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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (73), 1 de agosto de 2005

 

A GESTÃO DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL

 

Cristiane Fernandes de Oliveira

Doutoranda em Geografia - Departamento de Geografia – FFLCH. Universidade de São Paulo – Brasil.

E-mail: cadolive@uol.com.br

 


A gestão dos serviços de saneamento básico no Brasil (Resumo)

Os serviços de saneamento básico no Brasil são analisados sob o aspecto da evolução de sua gestão. Para analisar esta evolução procurou-se discutir aspectos do crescimento das demandas urbanas e sociais relativas aos serviços de saneamento básico em determinados períodos históricos, assim como discutir as oscilações de investimentos no setor a partir das correlações existentes entre as políticas públicas de saneamento e políticas econômicas.

Procurou-se também avaliar através de alguns exemplos a ação de empresas públicas e empresas privadas responsáveis por serviços de saneamento básico, em que se pese no atual período histórico a tendência à substituição da gestão pública de cunho sanitarista pela forma de gestão empresarial neoliberal.

 

Palavras chave: saneamento, gestão da água, abastecimento de água e serviços de esgotamento sanitário, políticas neoliberais.

 

The sanitation management services in Brazil (Abstract)

The water and sanitation services in Brazil are analyzed under the aspect of its management evolution. In order to perform this analysis, the growing of the urban  society demands related of the sanitation services are discussed, and so the investments oscillation in sanitation sector relating sanitation public policies and economic policies.The approach focuses how the sanitary management issue has been replaced by neoliberal business management and get some examples to show the public and the private enterprises action.

 

Keywords: sanitation, water management, public, water supply and sanitation services


Historicamente o ser humano sempre procurou construir suas moradias próximas às fontes de água, já que este recurso é essencial à satisfação de suas necessidades básicas, à produção de mercadorias e à reprodução das próprias necessidades.

 

À medida que foram sendo desenvolvidas e difundidas técnicas de exploração e distribuição de água mais eficazes, o ser humano pôde desenvolver atividades e expandir seus domínios de moradia e produção para locais cada vez mais distantes destes recursos. Nota-se deste modo, a expansão urbana disseminada de forma crescente, conduzidas em grande parte por agentes produtores do espaço através do domínio da técnica e da informação, mas, sobretudo pelo poder de influência político-econômico.

 

No Brasil, quando os primeiros aglomerados urbanos se constituíram, a ausência de uma estruturação sanitária e de abastecimento permitiu a formação de um pequeno mercado para serviços privados, principalmente ao que tange a distribuição de água. Caracterizados a princípio por trabalhadores individuais que, em geral prestavam basicamente serviços de entrega de água, atualmente os serviços de saneamento são prestados por grandes empresas.

 

Esta transformação de prestadores de serviços individuais para grandes empresas especializadas se deu de acordo com a evolução das demandas, que foram se tornando mais complexas. As preocupações iniciais relacionadas somente a captação e distribuição da água, com o decorrer do tempo, foram se estendendo aos problemas sanitários, que tiveram grande crescimento em virtude da disposição inadequada de dejetos humanos. Podemos afirmar ainda que além das necessidades de investimentos em coleta de esgotos também passou a ser exigido destes prestadores investimento em desenvolvimento de técnicas e de aplicação das mesmas em tratamento de esgotos.

 

Os serviços de saneamento básico no Brasil são historicamente constituídos pela atuação de instituições públicas e de instituições privadas.

 

A iniciativa pública passou a atuar no Brasil, em alguns municípios, na área do saneamento entre o final do século XIX e início do XX com a ampliação do acesso à água através de distribuições de chafarizes e bicas públicas e, principalmente na implantação das primeiras estruturas sanitárias destinadas à coleta de esgotos, com fins a solucionar problemas de epidemias advindas das precárias condições urbanas.

 

As instituições públicas são aquelas criadas pelo poder do Estado, principalmente representadas pelas instâncias estaduais e municipais e já nascem possuindo um caráter mais sistêmico em relação ao saneamento, considerando que sua atuação original estaria atrelada às tentativas de desenvolvimento de soluções aos problemas relacionados ao esgotamento sanitário e ao abastecimento de água.

 

As instituições privadas que atuam na área de saneamento básico se apresentam sob duas formas de atuação: pequenas e médias empresas (em geral nacionais), que atuam somente no ramo de exploração subterrânea de água e de sua distribuição e grandes empresas, que podem ser nacionais (em geral formadas por consórcio entre empresas) ou estrangeiras (em geral subsidiárias de grandes corporações transnacionais) que nos últimos dez anos tem substituído empresas públicas nos serviços de abastecimento, coleta e tratamento de esgotos em áreas urbanas.

 

As pequenas empresas distribuidoras atuam no Brasil desde o Brasil Colônia, quando entregavam, ainda em carroças, a água vendida em cântaros ou em pequenos tanques aos compradores, como lembra Aristides de Almeida Rocha (1997). Hoje ainda é possível verificarmos este tipo de comércio de entrega de água em galões mesmo em grandes cidades, especialmente em localidades em que pesam dúvidas sobre a qualidade da água distribuída em redes. Porém, nem sempre a qualidade desta água vendida como potável é boa, o que sujeita seu consumidor a contrair doenças. Estas empresas se distribuem amplamente pelo território nacional e não é rara a ausência da licença para o exercício deste tipo de atividade, assim como predomina a falta de controle sanitário sobre a qualidade da água comercializada.

 

A história do abastecimento da cidade de São Paulo foi construída a partir da participação destes diversos agentes, desde o pequeno distribuidor de água em cântaros, evoluindo para a empresa Cantareira de Água e Esgotos que permaneceu responsável pelos serviços de saneamento até novembro de 1892, até a mesma ser encampada pelo governo Estadual através de diferentes instituições o que culminou com a criação da SABESP – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo - em finais da década de 1960, perdurando até os dias atuais.

 

Várias cidades brasileiras também são atendidas por empresas públicas quanto à prestação de serviços de saneamento básico, sendo que em alguns municípios onde há alguma estruturação organizacional, estes serviços são prestados pelos DAE - Departamentos de Água e Esgoto, e em outros, em geral mais pobres e desarticulados há a concessão de prestação destes serviços à empresas Estaduais, tais como a SABESP no Estado de São Paulo ou à iniciativa privada, como discorreremos adiante.

 

O início da década de 1970 foi marcado por grandes pressões por parte da população e de representantes da indústria e comércio, reivindicando maiores investimentos no setor de saneamento básico, tais como extensão das redes de abastecimento, redes de coleta e tratamento de esgotos, já que os déficits estariam impedindo o crescimento econômico e social das cidades, levando um grande número de empresas a abandonar os grandes centros urbanos em virtude dos custos implicados em sua manutenção.

 

Neste período foi criado o PLANASA – Plano Nacional de Saneamento – em que o poder federal concentrou o poder de decisão e financeiro no Banco Nacional da Habitação, através do referido plano, direcionando grandes investimentos para o setor de saneamento. Caberia, portanto, ao Estado e aos Municípios aderirem ou não a este Plano para obterem recursos, que por sua vez tinha origem no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS. Neste sentido, foram criadas em todos os Estados, Companhias de Saneamento Básico, tais como a SABESP, que estariam responsáveis pelo planejamento, execução e operação dos serviços de saneamento, através da concessão dos municípios.

 

Entre 1971 e início da década de 1980 segundo levantamento efetuado por Marcos T.Abicalil (1998) o setor de saneamento teve grande impulsão, crescendo 43% em cobertura de água e 122% em coleta de esgotos.

 

Este crescimento do atendimento, no entanto, não teria abrangido a população brasileira como um todo, como afirma Ana L. Brito (2001: 18086), privilegiando “as regiões mais ricas do país, as cidades mais populosas, e dentro delas os segmentos de maior renda”.   Além disso, as possibilidades de subsídio cruzado que teriam sido previstas em função do ressarcimento pelos serviços, baseados em taxa única, não teria dado certo.

 

O motivo, como bem infere C.B. Fabriani e V.M Pereira (1987) tem fundamento na concentração de renda da população brasileira, já que a maioria estaria incapacitada de arcar com os preços reais dos serviços prestados para a manutenção do sistema.

 

A partir de meados da década de 1980 o setor foi perdendo força, culminando com a extinção do órgão central do sistema – o Banco Nacional da Habitação e com a pulverização das funções exercidas pelo PLANASA.

 

Contemporaneamente, a luta pela retomada do poder de decisão municipal tomava corpo através das eleições em 1985, seguido da constituição de 1988 que fornecia subsídios à descentralização dos serviços de saneamento básico.

 

A década de 1990, por sua vez, concretiza a possibilidade da privatização dos serviços de saneamento básico aos moldes das grandes empresas. A princípio este modelo de gestão era opcional, surgindo no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso. Porém, no segundo mandato, a imposição de reajuste econômico do FMI, como lembra Brito (2001, induziu o governo federal a impedir a contração de novos financiamentos por parte de empresas públicas e a disponibilizar grandes somas às empresas privadas no setor de saneamento básico. Com isto as empresas públicas estaduais e municipais que já se encontravam enfraquecidas pela queda de investimentos, teriam que assumir sozinhas o ônus de novos investimentos necessários ou ceder às pressões pela concessão dos serviços à iniciativa privada.

 

A gestão privada nos serviços de saneamento básico

 

Apoiadas pelo desenvolvimento de políticas neoliberais e pelo emprego do discurso de domínio tecnológico e de organização moderna e funcional passível de suplantar instâncias públicas “inchadas” e “arcaicas” a gestão privada dos serviços de saneamento foi amplamente estimulada principalmente durante o governo Fernando Henrique Cardoso, conforme supracitado.

 

As empresas privadas ligadas ao setor de saneamento básico no Brasil são caracterizadas por capital estrangeiro e por consórcios entre empresas médias e grandes de capital nacional.

 

Apesar de ainda não dominarem totalmente o mercado, as grandes corporações transnacionais estrangeiras estão relacionadas aos grandes capitais financeiros mundiais que resultam de constantes fusões de empresas com tradição em setores distintos, tais como transporte, pavimentação urbana, energia, comunicação, saneamento, entre outros.  Estas entraram em poucas cidades brasileiras, mas se localizam em pontos estratégicos do ponto de vista das áreas de produção de água mundial e em relação à potencialidade de exploração de mercados consumidores.

 

Via de regra se instalam com a denominação da cidade sede dos serviços prestados, com vistas à evitar resistências quanto a sua origem estrangeira ou à evitar questionamentos quanto ao histórico de atuação da corporação em outros países.

 

A alteração constante de designação nestas corporações e subsidiárias, advindas de constantes fusões e aquisições tem dificultado uma análise do processo de desenvolvimento e de atuação destas empresas em relação aos períodos anteriores ao início da década de 1990, quando se acirra mundialmente o processo de privatização de serviços de saneamento básico. Além disso, essa pulverização da informação também dificulta o próprio controle e fiscalização de suas ações, já que os investimentos entre empresas irmãs e seus grupos de fornecedores é uma prática comum entre estas grandes corporações.

 

Entre as maiores empresas do mundo no setor de saneamento básico temos o grupo Suez Lyonaisse des Eaux (ex Lyonaisse des Eaux), o grupo Veolia Environnement (ex Vivendi Environnement), o grupo RWE Ag – Thames Water, o grupo Bouyques e o grupo Bechtel. Os dois primeiros grupos são franceses e os maiores do mundo, com mais de 100 subsidiárias espalhadas entre mais de 80 países, os quais o Brasil faz parte.

 

No caso brasileiro, apesar das pressões em relação às possibilidades de investimentos, a opção pela concessão dos serviços de saneamento básico à iniciativa privada não foi adotada pela maioria dos poderes municipais ou estaduais, sendo que atualmente, segundo a Associação Brasileira de Concessionárias de Serviços Públicos de Água e Esgoto – ABCON - há 37 concessões no Brasil concentradas principalmente em estados do Sudeste e Centro Oeste.

 

São Paulo liderou as concessões à iniciativa privada na região sudeste do Brasil, possuindo hoje 16 empresas privadas responsáveis pela gestão dos serviços de saneamento básico, seguido do Rio de Janeiro com 7, Minas Gerais com 3 e Espírito Santo com 1. Porém, a privatização na região centro-oeste tem se expandido muito e além de uma empresa atuante em Mato Grosso do Sul, a atuação privada vem crescendo no Mato Grosso, haja vista que este estado que contava inicialmente com a prestação de serviços de saneamento por 3 empresas privadas, se encontra em fase de levantamento de dados para o estabelecimento de mais 21.

 

Em relação a isto Marcelo C. Vargas (2003) constata que o restrito número de empresas privadas frente ao potencial de mercado brasileiro se dá principalmente em relação aos obstáculos ainda existentes do ponto de vista “jurídico-legais presentes no seu ordenamento institucional”, no que tange principalmente a regulamentação da titularidade sobre os serviços de saneamento nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas que ficou “congelada” na atual gestão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

 

Apesar da idéia de desonerar o Estado e viabilizar investimentos em saneamento básico através da atuação privada parecer atraente, deve-se esclarecer que a atuação privada em serviços de saneamento básico, também carrega riscos, os quais José Esteban Castro (1999) chama a atenção para a possibilidade de superexploração dos recursos hídricos advindos da busca desenfreada por lucro e para os problemas correlatos às supertaxações e exclusão da população mais empobrecida na cobertura dos serviços.

 

Outra questão a ser refletida é sobre a valorização da água, embasada na lógica de mercado. Se pensarmos que um bem é valorizado a partir de sua escassez no mercado, chegaremos à conclusão lógica que quanto mais escassa à água maior o seu valor, e, portanto, o crescimento da escassez qualitativa, com o avanço de contaminação de fontes hídricas sem a devida contenção ou tratamento, iria, neste sentido, ao encontro dos interesses do capital.

 

Os investimentos das iniciativas privadas, deste modo, se dão prioritariamente no avanço das redes de abastecimento de água, deixando ao largo investimentos em coleta e tratamento de esgotos.

 

A contaminação crescente de fontes hídricas por sua vez, resulta não somente na diminuição dos volumes passíveis de serem utilizados, mas, sobretudo no aumento dos custos de tratamento de água, o que acaba sendo repassado aos consumidores finais, através do aumento das tarifas.

 

Em países mais empobrecidos como é o caso de vários países latino-americanos e africanos o aumento de tarifas sobre serviços essenciais pode significar a exclusão de grandes parcelas da população, levando o Estado a arcar com os incrementos em custos no setor de saúde. A exemplo disso, segundo publicado pelo International Consortium of Investigative Journalism o Sul da África em 2000 apresentou o desenvolvimento de um surto de cólera após a empresa privada concessionária excluir da cobertura de água parcelas da população que não podiam arcar com os preços cobrados, levando-as a buscar água para o consumo em cursos d’água contaminados.

 

Escândalos relacionados ao não cumprimento de metas, como grandes perdas de água por vazamentos nas redes, como aumento abusivo de tarifas em curto período e mesmo como a remessa de lucros para fora dos países onde são prestados os serviços ocorrem e não raro se reproduzem em praticamente todas as grandes corporações estrangeiras supracitadas. Porém, as concessões contratadas em geral por longo período, em geral por mais de 30 anos, dificilmente são rescindidas, em virtude da possibilidade do ônus da quebra de contrato recair sobre o Estado, como o ocorrido no caso Colombiano em relação ao grupo Brechtel, em que a empresa moveu um processo contra o Estado após este ter rescindido o contrato pelo não cumprimento de metas propostas. A empresa deste modo solicita na justiça os dividendos de lucro em potencial pelos anos em que a empresa ainda teria a concessão dos serviços.

 

Pode parecer uma situação absurda, mas as políticas neoliberais associadas às grandes intervenções de instituições financeiras mundiais tais como o Banco Mundial e o FMI têm apoiado estas grandes corporações, já que grandes somas estão envolvidas. A população passa a arcar com o ônus em todos os sentidos, seja pelo não atendimento de suas demandas, seja pela dívida advinda destes processos.

 

Além das pressões externas à incorporação do capital transnacional nos serviços de saneamento básico no Brasil podemos inferir que também as fragilidades internas quanto à estrutura reguladora e fiscalizadora facilitariam a atuação destas corporações.

 

Com o desmantelamento das instâncias públicas no processo de concessões, as fragilidades tornam-se mais evidentes. As instâncias públicas que teoricamente seriam responsabilizadas pela regulação dos serviços são encampadas por estas corporações através da manutenção financeira destas instituições, impedindo o caráter de neutralidade na avaliação dos serviços prestados.

 

Segundo William Tabb (1997: 28), as frágeis estruturas políticas e sociais acabam por reforçar a idéia de que o Estado não tem poder para frear esse movimento exploratório, o que por sua vez, passa a ser uma “poderosa ferramenta do próprio capital”, encerrando um círculo vicioso em que a exploração geraria mais fragilidades e mais dependência.    

 

Produção social e privatização

 

Outro aspecto a ser refletido sobre a atuação de empresas privadas na concessão dos serviços de saneamento é a questão do emprego.

 

Como grandes parcelas da população brasileira encontram-se desde a década de 1980 sob a pressão constante do desemprego e o setor público sempre contribuiu para a absorção de parte destas populações, a privatização tem significado a ampliação das taxas de desemprego.

 

Porém, do ponto de vista do discurso, a geração de empregos também é importante para a obtenção de empréstimos junto às instituições financeiras nacionais, como o caso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social que publicamente assumiu o financiamento de 65,7 milhões de reais à empresa Águas do Amazonas (pertencente ao grupo Suez), com vistas que a mesma estaria gerando 500 empregos diretos e 1.200 indiretos.

 

Uma análise minuciosa, porém, aponta que o número de empregos no setor de saneamento básico com a entrada da corporação diminuiu cerca de 50%, o que gera por sua vez uma retração dos mercados locais e um aumento do processo de exclusão social.

 

Segundo Márcio Pochmann (2002: 179) há uma relação estreita entre as políticas trabalhistas e o processo de exclusão, assim quanto tratamos de privatização de setores essenciais para a sociedade não podemos deixar de tratar também desta questão, já que a tendência à dispensa de mão de obra por grandes corporações não somente altera as relações de consumo locais, pela diminuição de postos de trabalho, mas também pode levar parcelas da população à impossibilidade de consumir o que é essencial à vida e a saúde pública, a exemplo da própria água tratada.

 

Neste sentido, o modelo econômico vigente tem permitido o distanciamento cada vez maior do objetivo primordial da prestação de serviços essenciais, como é o caso dos serviços de saneamento básico, que é o alcance da equidade e da universalidade do atendimento, propiciando o pleno exercício da cidadania à todos, conforme aborda  Jaime Pinsky (2003).

 

A gestão pública nos serviços de saneamento básico

 

Os municípios gerenciados pelo setor público em relação aos serviços de saneamento básico têm apresentado segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, para o ano de 2003, tarifas médias praticadas que em sua grande maioria não chegam a 1 real por metro cúbico de água consumida, enquanto que as tarifas médias praticadas por empresas privadas em todas as regiões do país ultrapassavam 1,20 por metro cúbico de água consumida. Notamos também que se compararmos os índices de atendimento de água em áreas urbanas já consolidadas, como é o caso da região Sudeste, tanto empresas privadas quanto empresas públicas apresentam médias semelhantes, em torno de 95%.

 

A substituição de empresas públicas por privadas, portanto, não podem ser apoiadas no discurso de melhor oferta de serviços e de preços, já que isto não pode ser fundamentado nos índices divulgados.

 

Contudo, em regiões onde ainda há grande deslocamento populacional de áreas rurais para as urbanas, como é o caso da região Norte, notamos a dificuldade das empresas públicas em lidar com a demanda por novos investimentos. Fato este que se acirrou fortemente a partir da década de 1990, com o impedimento de financiamentos, como supracitado.

 

Em relação aos índices de atendimento urbano de coleta de esgotos, com exceção da SABESP que atende grande parte da região Sudeste, os índices ainda são muito baixos para todas as regiões atendidas pela iniciativa pública, variando em torno de 20% nas regiões Nordeste, 27% no Sul, 46% no Centro Oeste e somente 6% na região Norte, que no caso desta última região também empata com os índices apresentados pela iniciativa privada.

 

Em relação ao consumo médio de água por economia notamos que os índices apresentados pelas empresas públicas eram em grande parte menores do que as apresentadas pela iniciativa privada, principalmente no que diz respeito à região Norte. Isto se deve possivelmente aos investimentos constantes de instâncias públicas na divulgação e promoção de programas educativos com objetivos à redução do consumo de água, o que não ocorre em relação à iniciativa privada com freqüência já que o não consumo significa menor captação de lucro.

 

Em relação às perdas por faturamento das redes é possível fazer uma associação entre a renda da maior parte da população e as perdas. Os dados do SNIS mostram que as regiões Norte e Nordeste são as áreas onde há maior perda de faturamento e são também as em que predominam as menores rendas per capta no país. Isto aponta para dois aspectos possíveis de situações de perdas: um relacionado ao baixo poder de consumo destas populações, altos índices de inadimplência e consequentemente lucros menores e outro relacionado às grandes potencialidades de irregularidades nas redes, com perdas de volumes de água tratada em função das ligações clandestinas.  Neste sentido, tanto empresas públicas, como as empresas privadas de prestação de serviços de saneamento ainda não conseguiram uma solução definitiva ao problema, que está no centro da questão – a extrema concentração de renda de nossa sociedade.

 

Considerações finais

 

O avanço de corporações privadas em prestação de serviços considerados essenciais, tais como são os de saneamento básico, deve ser avaliada não somente no sentido de possibilidade de investimentos em manutenção e ampliação dos sistemas já existentes, já que nem sempre, após o processo de concessão o ritmo de aplicação destes investimentos ocorre conforme as metas contratuais propostas.

 

A frágil estrutura reguladora e fiscalizadora do Estado tem permitido, por sua vez, grande maleabilidade das regras contratuais, tanto do ponto de vista de sua instituição quanto do ponto de vista de sua concretização. Neste sentido, conforme críticas de Horácio Capel (2000) sobre a formulação dos contratos de licitação sobre a prestação destes serviços, equipes técnicas de consultoria internacionais direcionariam as grandes corporações às melhores oportunidades do mercado e, com a conclusão dos contratos, estas desapareceriam de cena, deixando empresa e Estados com os problemas derivados ou remanescentes de informações que raramente se encaixam.

 

Porém, estes agentes externos, caracterizados por instituições financeiras ou consultorias que auxiliam a entrada de grandes corporações não agem isolados. O próprio Estado, caracterizado por representantes de instâncias governamentais em diferentes hierarquias apresenta não raramente um empenho que não aponta para o interesse comum. Na ânsia para solver problemas de cunho econômico de empresas públicas prestadoras de serviço através de sua privatização, vale até mesmo arcar com pesados ônus das demissões, livrando a empresa concessionária destes encargos e ainda, formular contratos atrativos do ponto de vista das metas propostas e dos prazos a serem cumpridos.

 

É possível compreender este contexto quando o relacionamos às políticas neoliberais disseminadas na atualidade, que têm levado o Estado a abandonar suas atribuições essenciais para garantir a reprodução do capital. Assim, como bem lembra Bertha Becker (1995: 50) “A ideologia liberal, com sua estratégia de modernização dos aparatos institucionais que inclui como componentes centrais a desburocratização, a privatização e a descentralização, visam justamente liberar o Estado de seus constrangimentos em relação à nação para garantir a sua preservação e sua aliança com a empresa”.  

 

Quanto à localização destas corporações pode-se dizer que elas se dirigem preferencialmente: aos locais em que a renda da população permita arcar com o consumo, aos locais onde a população urbana esteja razoavelmente consolidada, tais como as grandes aglomerações, evitando necessários investimentos em ampliação das redes e aos locais onde a produção de água potencialize sua exploração, seja no mercado real ou no financeiro.

 

Todas as evidências as quais nos referimos sobre a atuação privada e a pública, nos permite considerar que no caso brasileiro, em que pesa a grave estrutura concentradora de renda, os altos déficits em infra-estrutura de saneamento e uma séria crise de desemprego, o subsídio ao acesso ao abastecimento e ao esgotamento sanitário torna inviável a sustentabilidade do setor privado a não ser pela alta taxação. Além disto, a opção pelo setor privado pode ter como conseqüências a ampliação da exclusão social que pode ocorrer sob diversas formas: sob a forma de ampliação do desemprego e da diminuição da movimentação das economias locais, sob a forma de aumento da clandestinidade e irregularidades das populações não atendidas e sob a forma de potencialidade de difusão de epidemias ligadas à veiculação hídrica, com o aumento do ônus do Estado no setor de saúde.

 

Por outro lado, as resistências a esta forma de Estado não esmorecem, as contradições urbanas se multiplicam, e as diversas facetas com que se apresentam as conseqüências de uma estrutura deficitária de saneamento básico coloca em xeque as tendências às formas de elitização de serviços essenciais. 

 

Problemas sanitários e difusão de doenças vinculadas a estes problemas não obedecem a fronteiras, e apesar de atingirem sempre com mais força as populações mais empobrecidas a água contaminada pode chegar à locais distantes de sua origem, causando doenças como o cólera, hepatite, meningite, entre outras. Assim, o comprometimento de cursos d’água pelo não investimento em saneamento básico demonstra “a ponta do iceberg” de decisões de gestão dos serviços de saneamento que vão na contra mão do que se espera de um sistema sanitário e de saúde voltado para o bem comum.

 

O saneamento básico é um serviço que tem por objetivo principal a manutenção da vida com qualidade através da oferta de água de potável e do desenvolvimento de soluções ao esgotamento sanitário com sua coleta e tratamento. Devendo ser, portanto, um direito de todos, conforme rege a Constituição brasileira de 1988. Se o Estado através do abandono do setor público privilegia o privado ele está negando sua própria constituição, seja esta compreendida como aparato legal, regulador, seja esta compreendida como própria instância representativa de seu povo e neste segundo caso, não haveria mais Estado.

 

Referências

 

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Ficha bibliográfica:

FERNÁNDEZ, C. A gestão dos serviços de saneamento básico no Brasil. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (73). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-73.htm> [ISSN: 1138-9788]

 

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