Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (91), 1 de agosto de 2005

 

OPERAÇÃO URBANA: A EXPERIÊNCIA DE BELO HORIZONTE

 

Daniela Abritta Cota

Faculdade de Minas Gerais – FAMINAS.

 

Tânia Maria de Araújo Ferreira

Centro Universitário de Belo Horizonte - UNI-BH.

E-mail: taniamaf@ig.com.br

 


Operación urbana: La experiencia de Belo Horizonte (Resumen)

La operación urbana, instrumento urbanístico definido por el Estatuto de la Ciudad, presenta-se como una posibilidad de viabilizar intervenciones en la ciudad, con la participación de los sectores público y privado. Aunque las legislaciones federal y municipal visen la defensa del interese colectivo en detrimento del privado, reconociendo el derecho de todos à la ciudad, las leyes muestran imprecisiones que pueden permitir desvíos de estos objetivos. Esto puede ser verificado en la aplicación de este instrumento en el municipio de Belo Horizonte, capital del Estado de Minas Gerais. Al analizar dos propuestas de operación urbana, buscando identificar el comportamiento de las partes involvidas, principalmente de los agentes de inmuebles y del Estado, frente la mayor libertad de negociación en la flexibilización de normas de uso y ocupación del solo, constata-se que varios aspectos de los textos legales revelan tendencias de beneficiar, en mayor escala, la iniciativa privada. Así, puede-se cuestionar la eficacia de este instrumento en la promoción del desarrollo urbano con justicia social.

 

Palabras-claves: planificación urbana, gestión urbana


The urban operation: the case of Belo Horizonte (Abstract)

The urban operation, urbanistical instrument defined by the City Statute, presents itself as a possibility to make interventions in the city viable, with the participation of the public and private sectors. Although federal and municipal legislation aim at the defense of the collective interest in detriment of the private, recognizing the right of all to the city, the laws show impressions that can permit deviations from these objectives. This can be verified in the application of this instrument in the county of Belo Horizonte, capital of the State of Minas Gerais. When analyzing two proposals of urban operation, seeking to identify the behavior of the involved parts, especially of the real estate agents and the State, in face of  the greatest liberty of negotiation in the flexibilization of regulations of the use and occupation of land, it is found that various aspects of legal texts reveal tendencies to benefit, in greater scale, the private initiative. Thus, the efficiency of this instrument can be questioned in the promotion of urban development with social justice.

 

Key-words: urban planning, urban management


 

Operação Urbana é considerada um conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo poder público com a participação de recursos da iniciativa privada (Souza, 2003). O objetivo do instrumento é viabilizar intervenções de maior escala em atuação conjunta do poder público e da iniciativa privada, visando a integração e a divisão de competências e a obtenção de recursos para a execução de projetos comuns. Pode-se considerá-lo uma forma de urbanização consorciada, na qual o Estado faz concessões à iniciativa privada mediante o oferecimento de contrapartida por parte do empreendedor interessado.

 

Vale ressaltar que, apesar da validade do instrumento como forma de viabilizar empreendimentos de interesse coletivo em parceria com a iniciativa privada, é justamente nesta parceria que está o grande perigo: corre-se o risco de gerar favorecimentos abusivos de interesses privados em detrimento do interesse da coletividade. A proposta de analisar o instrumento, neste trabalho, expressa a preocupação com tal risco, buscando aqui, avaliar a sua efetividade enquanto instrumento de promoção do desenvolvimento urbano com justiça social.

 

Operação Urbana: um breve histórico

 

A idéia de se utilizar a operação urbana como instrumento urbanístico de indução do desenvolvimento urbano surge em um contexto caracterizado pela necessidade de tratamento específico de determinadas áreas da cidade que sofreram esvaziamento em função de reconversão produtiva (re-territorialização de atividades econômicas), ocorridos nas grandes cidades a partir dos anos oitenta. Sua origem (européia e americana) carrega em sua concepção a utilização do instrumento para requalificação urbana com a participação de investimentos privados. Além disso, outro fator que alimenta a proposta do instrumento é a possibilidade deste representar uma alternativa de flexibilização de normas de uso e ocupação do solo, adequando-as às especificidades espaciais, sociais e ambientais, em geral, não consideradas nas legislações urbanísticas.

 

No Brasil, o instrumento surge nos anos oitenta[i] com o objetivo duplo de promover mudanças estruturais em determinadas áreas da cidade e mobilizar recursos para tais mudanças. A demanda pela aplicação do instrumento ocorreu a partir da constatação de quatro fatores principais que justificariam a sua instituição como instrumento urbanístico:

 

  • a carência de recursos públicos para realizar investimentos de transformação urbanística;

 

  • a convicção de que investimentos públicos alteram o valor da terra, gerando valorização imobiliária que poderá ser captada ou recuperada pelo poder público;

 

  • o controle do potencial construtivo e sua flexibilização é a grande “moeda” ou contrapartida que o poder público poderia oferecer ao participar da operação;

 

  • a rigidez de normas urbanísticas que não consideram as singularidades locais e suas necessidades.

 

Vários municípios brasileiros vêm servindo-se do instrumento da operação urbana, na sua maior parte, para viabilizar pequenas intervenções, em escala local, em áreas onde já existia um grande interesse do mercado imobiliário. Mais adiante, neste trabalho, serão analisadas algumas destas experiências para o caso específico do município de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais.

 

 

O Instrumento no Estatuto da Cidade (Lei Federal n° 10.257/2001)

 

A Lei 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, foi promulgada visando fixar diretrizes de ordem pública e interesse social sobre o uso da propriedade urbana e da cidade, tendo em vista o interesse coletivo, a segurança e o bem-estar dos cidadãos, bem como o equilíbrio ambiental. Esta lei regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, que tratam da "Política Urbana", proporcionando uma uniformização capaz de dirimir os problemas decorrentes da implementação de regras estabelecidas pelo Poder Público municipal e materializando os princípios constitucionais da função social da propriedade urbana e da ordenação da cidade. O Estatuto da Cidade prevê diversos instrumentos de política urbana, descritos no art. 4º, postos à disposição das unidades federadas. Tais instrumentos são divididos em: instrumentos de planejamento (incisos I a III), institutos tributários e financeiros (IV), e institutos jurídicos e políticos. Destaque-se aqueles que visam estabelecer uma proposta de sustentabilidade ambiental e de justiça social, tais como: direto de preempção, outorga onerosa, transferência do direito de construir e operações urbanas consorciadas.

 

As operações urbanas consorciadas, de acordo com o artigo 32, § 1º do Estatuto da Cidade, são “o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar, em uma área determinada, transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”.

 

A implementação das operações urbanas consorciadas deve se dar através da edição de lei municipal específica em que conste, no mínimo: definição da área a ser atingida; programa básico de ocupação da área; programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação; finalidades da operação; estudo prévio de impacto de vizinhança; contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados, em função da utilização dos benefícios decorrentes da modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo, alterações de normas edilícias e regularização de construções, reformas ou ampliações; bem como a forma de controle da operação, com compartilhamento obrigatório e representação da sociedade civil.

 

A adoção destas medidas procura evitar que as operações sejam somente "liberações" de índices construtivos para atender interesses particulares, ou simples operações de valorização imobiliária que impliquem expulsão de atividades e segmentos da população de menor renda.

 

Além disso, devem ser destacados alguns componentes da conceituação do instrumento que devem ser observados para sua legalidade:

 

·               Somente o Poder Público poderá coordenar as intervenções urbanas. Trata-se de uma função pública, não passível de ser delegada para o setor privado.

 

·               A participação dos agentes previstos deve ser garantida, estabelecendo negociações e mediações entre os diferentes interesses envolvidos.

 

·               As intervenções previstas devem destinar-se a transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. A ausência de um destes elementos pode acarretar a inconstitucionalidade do instrumento.

 

Nos termos do caput do artigo 32, para a aplicação do instrumento da operação urbana consorciada é necessário que o município institua a operação através de uma lei municipal específica que, como dito anteriormente, delimite áreas objeto da operação. Esta lei deve ser baseada no Plano Diretor do município. Dito isto, pode-se concluir que as modificações de uso e ocupação do solo na lei da Operação Urbana deverão estar sintonizadas com as diretrizes previstas no Plano Diretor para o desenvolvimento urbano, de modo que as alterações propostas sejam voltadas a atender os princípios da função social da cidade e da propriedade. Dessa forma as mudanças nas normas de uso e ocupação do solo somente poderão ser feitas se tiverem fundamento e respaldo nas diretrizes e normas do Plano Diretor.

 

Quanto aos recursos obtidos da Operação Urbana, estes deverão ser aplicados exclusivamente na própria operação urbana nos termos do § 1º do artigo 33. Caberá à lei municipal definir como deverão ser utilizados os recursos de modo a proporcionar um controle social sobre a utilização dos recursos e evitar uma transgressão à ordem urbanística.

 

Sabe-se também que, de acordo com o significado do instrumento, o poder público não poderá estabelecer contrapartida desproporcional, no qual proprietários e investidores privados sejam duplamente beneficiados em detrimento da coletividade. A lei municipal, dessa forma, não poderá privilegiar o setor privado, uma vez que o que se pretende com a aplicação do instrumento é o equilíbrio sócio-espacial-ambiental. No entanto, a Lei Federal não é clara quanto a este ponto, o que aumenta a preocupação quanto as prioridades dos interesses empresarias prevalecerem nessas operações.

 

O Estatuto da Cidade prevê ainda, nos termos do artigo 34, a emissão pelo município de “certificados de potencial adicional de construção” que poderão ser alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação. O direito de construir proveniente dos certificados somente poderá ser exercido na área objeto da operação urbana, conforme o § 1º do artigo 34. O “certificado de potencial adicional de construção” permite a superação das normas estabelecidas pela legislação de uso e ocupação do município, em um limite a ser definido pela Lei municipal da Operação Urbana, sem contrariar as diretrizes do Plano Diretor. Também neste ponto a Lei define o instrumento de forma vaga e perigosa: deixa que as “liberações” nas normas urbanísticas e seus limites sejam definidos na Lei da Operação Urbana, o que é um risco, já que envolve a negociação com o setor privado, que, em sua busca incessante pelo lucro, almeja por índices construtivos sempre mais permissivos que os pretendidos. Além disso, a Lei não prevê penalidades para as leis de operação urbana que contrariarem as diretrizes gerais definidas no Plano Diretor.

 

Feitos tais comentários, o emprego da Operação Urbana como um instrumento urbanístico indutor do desenvolvimento urbano pode ser questionável, uma vez que algumas de suas diretrizes podem não ser seguidas, já que a lei as define de forma vaga.

 

A partir da reflexão conceitual do instrumento propõe-se a análise de experiências de aplicação do mesmo como forma de subsidiar a avaliação de sua efetividade enquanto indutor do desenvolvimento urbano. Os resultados da aplicação das Operações Urbanas no município de Belo Horizonte serão avaliados de forma a constatar se os objetivos do instrumento, instituído na Lei Federal, vêm sendo alcançados.

 

O caso de Belo Horizonte

 

A Lei do Plano Diretor de Belo Horizonte, promulgado em 1996, trouxe em seu conteúdo alguns conceitos defendidos pelo Movimento Nacional de Reforma Urbana, sobretudo, aqueles não incorporados pela Constituição. O governo municipal, desse período, representava uma frente de esquerda política do país e, neste contexto, esperava-se esse comportamento. Seria uma forma de colocar em prática as idéias rejeitadas pelos constituintes representantes dos setores mais conservadores da sociedade. Assim, as idéias de função social da propriedade, justiça social, universalização dos serviços públicos e preservação ambiental, desde os recursos naturais ao patrimônio histórico e cultural, estão explícitas nos princípios fundamentais do documento.

 

Reconhece-se, em um genérico texto legal, a intenção de inversão da lógica da exploração do solo urbano por meio do pacto entre a administração pública e o setor privado. Contudo, a sustentação destes princípios ao longo da lei nem sempre é sólida e detecta-se alguma insegurança na tentativa de assegurar estes objetivos. Destacam-se, a seguir, aspectos relevantes do texto da Lei do Plano Diretor que consistem em referências para a discussão proposta pelo presente trabalho.

 

Na abertura da lei, ao atribuir ao Plano Diretor sua posição de instrumento “básico da política de desenvolvimento urbano”, é explicitada a preocupação em ressaltar os interesses coletivos como fator a ser respeitado. Afirma-se, ainda, que uma das garantias que o ordenamento da ocupação e do uso do solo deve oferecer é “a justa distribuição dos custos e benefícios decorrentes dos investimentos públicos”. Mais adiante associa-se a função social da propriedade ao “aproveitamento socialmente justo e racional do solo”. Todavia, ao descrever aos objetivos estratégicos do desenvolvimento urbano perde-se em especificidades sem coesão. Neste texto, de aspecto irregular, as conexões com as intenções iniciais mostram-se tênues, exceto em um único inciso, entre os vinte e cinco, que insere a participação da população na gestão municipal. Nas diretrizes de política urbana, a coerência é restabelecida ao ser enfatizada a importância do Plano Diretor na garantia do interesse coletivo e na estratégia para evitar a especulação relativa à utilização do espaço urbano. Aqui está presente a opção por um planejamento mais dinâmico e ampliado, evitando-se a fragmentação e o distanciamento da realidade cotidiana. Muitas dessas incongruências foram promovidas pelas negociações com vereadores e setores econômicos para a aprovação da lei na Câmara Municipal.

 

No decorrer do conteúdo subseqüente diretrizes são listadas, agrupadas de modo variável, pois ora o elemento agregador é a dimensão setorial ora sobressaem as questões territoriais. Nesta parte, as interferências do processo de negociações parecem ter sido mais fortes. Algumas dessas diretrizes serão relembradas nas análises das operações urbanas específicas que será feita adiante neste trabalho.

 

Nos artigos referentes aos instrumentos de política urbana encontra-se o principal objeto desse estudo: a Operação Urbana. Como se pode constatar este instrumento de indução do desenvolvimento urbano passa a ser aplicado em Belo Horizonte antes da aprovação do Estatuto da Cidade. Foram dedicados cinco artigos que pretendiam não só instituir a figura, como também indicar algumas diretrizes que norteassem as propostas das operações urbanas. Estas deveriam ser constituídas em lei específica. Como cada operação urbana trataria de um caso particular suas normas também deveriam atender às demandas próprias daquele determinado local e/ou contexto. Logo no primeiro artigo do capítulo da lei direcionado à operação urbana, fica declarada a pretensão de envolver a iniciativa privada nos investimentos das intervenções na cidade, ou seja, dividir os custos. Contudo, o Executivo reserva para si o controle da proposição, de modo que apenas este pode apresentar na Câmara Municipal projeto de lei sobre a matéria.

 

A seguir, são listados os tipos de intervenções que poderiam utilizar o mecanismo buscando, assim, sugerir as possibilidades, mas sem limitá-los. A natureza das intervenções caracteriza-se por fatores que afetam a estrutura urbana, tais como obras de melhoria do sistema viário, tratamento urbanístico de áreas públicas, regularização fundiária e ações que promovam a proteção ambiental. O que parece, em um primeiro momento, que a operação urbana deveria ser aplicada em questões estruturantes, logo se percebe que tudo pode se encaixar nos detalhes dessas intervenções. Acrescenta-se o fato que, pelo texto legal, esta lista pode ser aumentada sem qualquer restrição. Conclui-se, então, que a imprecisão dos limites de utilização da operação urbana revela a ignorância do potencial, positivo e negativo, do instrumento.

 

Pode-se, no entanto, encontrar um ponto ainda mais frágil quanto à indefinição de contrapartidas. Se por um lado, a lei demonstra preocupação de seus autores em descrever, de forma bem detalhada, o conteúdo da lei que instituirá cada operação urbana, por outro não há qualquer menção às regras que estabeleçam os caminhos da participação do setor privado. Diante de um quadro de tamanha precariedade no qual vive a administração pública, a concessão de pouco pode significar uma vantagem. Assim, esta desregulamentação representa a possibilidade de negociações perigosas, pois não garante que as partes tenham participações equilibradas, evitando favorecimentos oportunistas a favor do setor privado.

 

Apesar da imprecisão dos reais objetivos da criação do instrumento, havia uma crença entre os técnicos da Prefeitura que a Operação Urbana seria um instrumento que permitiria ao Executivo viabilizar, sobretudo, intervenções de grande porte. A principal "moeda de troca" se consistia na permissão de utilização de parâmetros construtivos mais permissivos que os definidos por lei, mas de acordo com determinações da Prefeitura. Em outras palavras, o setor privado estaria pagando para "transgredir", controladamente, a lei, ação esta legitimada pelo bem estar da coletividade. Não se percebia, em princípio, que se criava um mecanismo precário cuja "nobreza" apenas poderia ser assegurada diante das "boas" intenções de um poder executivo e legislativo honesto e realmente preocupado com a cidade.         

 

Finalmente, vale alertar que a Lei que instituiu o Plano Diretor não determinou sanções por seu descumprimento. Assim sendo, não há nada que obrigue ao Executivo ou ao particular seguir rigorosamente as diretrizes expressas nessa Lei. A prática tem mostrado que a conveniência tem sido a regra. Quando o conteúdo da lei vai ao encontro das necessidades do momento, ela é defendida. Do contrário, a ignorância às regras será o caminho adotado.

 

Exemplos desses procedimentos serão analisados a seguir. Ressalta-se que o objeto de estudo será o texto legal, aprovado ou não pela Câmara Municipal.

 


Operação Urbana Avenida Antônio Carlos

 

Esta foi a primeira proposta de operação urbana consolidada em um projeto de lei, mas sem a aprovação pela Câmara. O exemplo será aqui analisado por sua proximidade às intenções iniciais, expressas na Lei do Plano Diretor, referentes à Operação Urbana. 

 

Elaborada pelo Executivo, a finalidade desta operação urbana seria buscar recursos para as obras de alargamento de uma via de grande importância na cidade, acesso principal para a região norte, fazendo parte, inclusive, do trajeto para o aeroporto internacional metropolitano. Este seria o ganho da população, pois resolveria problemas de retenção de trânsito e, conseqüentemente, de transporte coletivo. Os aspectos positivos para o coletivo dessa intervenção seria reforçada pelo fato da região atendida se compor, em sua grande maioria, de uma população de baixa renda.

 

A lei define, claramente, os mecanismos que assegurariam a contrapartida, utilizando outros instrumentos, presentes no Estatuto da Cidade aprovado posteriormente. A  Concessão Onerosa do Direito de Construção Adicional, a Cessão de área públicas e a Contribuição de Melhorias seriam aplicados em situação diferenciadas, mas que complementariam para arrecadação dos recursos para execução do projeto. O projeto urbanístico compõe a Lei e apresenta como seriam utilizados os parâmetros mais permissivos de modo a explicitar os impactos que estas mudanças poderiam trazer para a cidade. Desta maneira, há uma visibilidade de todo o processo: o caminho a ser percorrido e o resultado final. 

 

Reforçando o cuidado com a utilização de instrumento tão delicado, seria consistido um Conselho Consultivo com participação da população envolvida – moradores, técnicos e outra entidades interessadas para monitorar e acompanhar o desenvolvimento das questões que cercam a Operação Urbana, além de um grupo interno a Prefeitura de coordenação.

 

O projeto de alargamento da Avenida Antônio Carlos foi previsto já na década de setenta do século XX. Desde então, a legislação tem reservado as áreas lindeiras para o alargamento da via de modo que as construções não podem ser substituídas ou renovadas com mudanças estruturais. Assim sendo, é visto uma crescente deterioração do espaço que é 'reforçado' pelo excessivo trafego na avenida. A requalificação da área passa, então, a ser fundamental para o sucesso da operação urbana, além de transformá-lo em um pólo econômico com maior vitalidade que o atual. 

 

O mecanismo de arrecadação dos recursos para as obras necessárias seria através, sobretudo, da valorização da área proveniente das melhorias promovidas. Isto se daria com a venda de permissão de adensamento construtivo e populacional acima do definido pela Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do solo. Contudo, apenas a intervenção no leito da via não bastaria para tornar o negócio sedutor o necessário para atrair o maior número de investidores. Como dito acima o projeto contemplaria áreas de desenho urbano diferenciado conformando espaços atratores de sofisticados setores econômicos. Embora não explícita na lei, esta intenção está intrínseca ao processo de negociação para se alcançar os objetivos desejados. Afinal, sendo uma intervenção de grande porte, o recurso a arrecadado pela operação urbana teria que ser em grande quantidade e, por isso, os interessados deveriam fazer parte de um grupo que poderiam investir muito, mas com segurança de retorno. Grandes áreas públicas associadas à possibilidade de utilização de grande potencial construtivo, muito acima do máximo permitido na cidade, seriam formas de indução destes empreendimentos.

 

Surge, entretanto, uma dúvida: será isto o suficiente para seduzir os investidores com o perfil necessário? Qual o diferencial eficaz que a área poderia oferecer?  Belo Horizonte teria este tipo de investidor? Segundo informações de técnicos envolvidos na elaboração dessa operação urbana, as respostas vieram numa consulta ligeira ao mercado imobiliário. Na visão deles, este empreendimento não teria sucesso fácil, pois a “moeda”, sobretudo potencial construtivo, não era forte o bastante para atender as expectativas de arrecadação. Por isso a operação urbana foi retirada da pauta política e a avenida continua sem intervenção.

 

Um outro questionamento pode ser feito sobre esta operação urbana se refere à obra proposta, o alargamento da Avenida Antônio Carlos. Ao se resgatar as diretrizes de desenvolvimento urbano constante da Lei do Plano Diretor encontra-se a constatação de que a estrutura viária radioconcêntrica representa um problema em vários aspectos (qualidade ambiental da área central, deslocamentos excessivos etc) e que deve ser reformulado, inclusive, para propiciar a descentralização de atividades econômica e serviços públicos. A Avenida em questão, todavia, é uma das que liga a região norte ao centro e, assim sendo, a melhoria deste seria reforçar a estrutura radioconcêntrica. Se por um lado atende á uma demanda imediata de dificuldades de fluxo, por outro pode agravar situação no futuro próximo. 

 

Operação Urbana Do Conjunto Arquitetônico Da Avenida Oiapoque

       

Quatro anos separam a proposta acima e esta operação urbana. Durante este período algumas leis de operação urbana foram aprovadas. A maioria se mostrou muito inexpressiva quanto aos impactos sobre a cidade, sejam negativos ou positivos, mas já começaram a representar desvios dos propósitos mais relevantes definido no Plano Diretor. Propostas por particulares ao Executivo, tinham a origem em questões de interesse privado, embora para definir o objetivo, buscava-se na própria lei, a dimensão nobre do discurso. Ocorre uma inversão com relação à operação urbana da Avenida Antônio Carlos, pois nos casos posteriores é o particular, geralmente ligado ao setor imobiliário, que busca uma solução para uma irregularidade, à luz da legislação pertinente, já consumada ou pretendida. A contrapartida pode ser apresentada pelo interessado ou pelo Executivo e o acordo é celebrado.

 

A operação urbana do conjunto arquitetônico da Avenida Oiapoque teve várias questões envolvidas sendo que a menos importante é a idéia registrada no título. Dois interesses do setor privado se encontraram em uma aliança coordenada pelo poder público: os proprietários de um shopping na área nobre da cidade necessitando de maior potencial construtivo que a lei lhe permitia e um proprietário de um edifício tombado pelo Conselho deliberativo do Patrimônio Cultural precisando de recursos para dar uma utilização rentável para seu imóvel. A venda de potencial construtivo para o shopping poderia ter sido realizada sem recorrer à operação urbana, pois o imóvel tombado pode alienar o potencial construtivo impossível de ser aplicado no local devido à restrição imposta pela preservação do edifício. Contudo, a legislação permite que cada imóvel receptor incorpore, no máximo, 20% da área de construção acima da definida pela lei e as normas vigentes para esta transferência restringe a recepção à determinados zoneamentos que apresentam infra-estrutura viária e capacidade de adensamento. No entanto, dois obstáculos impediam a adoção deste processo. O primeiro motivo é o fato do shopping estar localizado em uma zona não passível de se beneficiar com a transferência de potencial construtivo, por se tratar de uma região muito adensada e saturada em termos de sistema viário. A outra dificuldade é que os proprietários queriam construir 60% acima do permitido. Assim, a operação urbana foi empregada para resolver este impasse, pois a Lei do Plano Diretor, como já comentado neste trabalho, não estabeleceu limites e, ao contrário, possibilitou que, através de lei específica deste instrumento, novos parâmetros urbanísticos fossem instituídos e todo tipo de negociação pudesse ser efetivado.

 

A contrapartida para o interesse coletivo consistiu na preservação do edifício construído na década de 40 do século XX, na implantação de um terminal de ônibus de importância secundária e a criação de um espaço para “atividades de interesse público relacionadas ao lazer, à cultura e à economia popular”. Esta última expressão garantiu ao proprietário a instalação no prédio de um centro de comércio popular, onde são alugados pequenos boxes para ambulantes (camelôs) que ocupavam as ruas do entorno. Assim o “interesse público” se traduziu em ganhos particulares, mas o discurso estava respaldado pelo Plano Diretor que indica, entre as diretrizes de indução do desenvolvimento urbano, a utilização de instrumentos e incentivos para promover a requalificação da área central.

 

Ao analisar a lei que institui a operação urbana do conjunto arquitetônico da Avenida Oiapoque, pode-se destacar vários pontos que merecem comentários. Primeiramente, observa-se que, em comparação com a operação urbana da Avenida Antônio Carlos, esta lei é muito pouco claro quanto às suas reais intenções. Entre os objetivos da operação, os ganhos públicos descritos são frágeis e pontuais, sem apresentarem uma relevância urbanística. Por outro lado, as concessões para viabilizar o shopping são amplas e não se encerram na recepção excepcional de potencial construtivo, como explicado acima, mas outros procedimentos foram facilitados para agilizar o processo de aprovação do projeto shopping, já que sua construção estava em estágio avançado.

 

Mas as questões suscitadas mais instigantes se encontram, sobretudo, no campo das contrapartidas. Nessa lei, assim como nas outras, não aparece a mensuração financeira do ganho das partes. Mesmo que se encontrem dificuldades em medir as melhorias de mobilidade com o fim dos incômodos camelôs, não se pode esquecer que o centro de comércio popular e, numa proporção muito maior, o sofisticado shopping para seleta elite geram lucros incessantes com os ganhos da operação urbana. Não estaria, então, esta compensação muito desequilibrada? É fato que o Executivo deixou de gastar na construção dos locais específicos para os ambulantes, mas o proprietário está ganhando com isto. No mais, para alcançar este intento, o poder público promoveu a agregação de valor de um negócio privado e isto, segundo o próprio Plano Diretor, deveria ser revertido, no mesmo nível, para a coletividade. Entretanto, isto não parece claro e, ao contrário, reveste-se de fatos relativos ao setor privado não perceptíveis para a população, enquanto que a saída dos camelôs das ruas foi tema de campanha eleitoral.

 

Deve-se ressaltar, ainda, que, segundo informações de técnicos da Prefeitura, as intervenções não foram estudadas pelas instâncias internas de planejamento urbano para uma possível análise da importância das proposições para a estrutura urbana. A elaboração e as negociações se restringiram aos gabinetes dos secretários, sendo que apenas o Conselho Municipal de Política Urbana foi consultado, sem que tenha ocorrido qualquer obstrução.

 

Considerações Finais

 

A partir da análise conceitual do instrumento, das propostas legais que propõem a implementação do instrumento e das experiências ou tentativas de sua aplicação é possível tecer alguns comentários.

 

Primeiramente, é necessário ressaltar que as duas leis analisadas neste trabalho – a municipal (Plano Diretor) e a federal (Lei 10.257/2001) apresentam basicamente os mesmos objetivos: viabilizar, através de recursos da iniciativa privada, projetos de interesse público. Além disso, as duas normas não propõem qualquer regra para definir formas de participação do setor privado. Ambas deixam o caminho livre às possibilidades mais diversas de negociação por parte do empreendedor, o que pode levar a definição de contrapartidas desproporcionais aos interesses públicos.

 

Vale salientar também que nem a legislação urbanística de Belo Horizonte, nem o Estatuto da Cidade define penalidades para as Leis de Operação Urbana que descumprirem as diretrizes de crescimento e desenvolvimento urbanos propostas no Plano Diretor. No caso de qualquer definição na Lei da Operação Urbana não encontrar respaldo nas diretrizes do Plano Diretor, isso, em tese, configuraria uma ilegalidade. Porém a ausência de penalidade para tal ilegalidade abre caminho para transgressões ao instrumento e às normas urbanísticas da cidade.

 

Em segundo lugar, ao analisar as experiências de aplicação do instrumento no município de Belo Horizonte, pode-se dizer que a participação de setores envolvidos, –proposta de forma geral no Plano Diretor e de forma específica para o instrumento no Estatuto da Cidade – não vem de fato acontecendo. Em geral, as negociações ocorrem entre o público, na figura do Executivo, e o privado, representado pela iniciativa privada. Apesar da Lei da Operação Urbana ser aprovada na Câmara de Vereadores (simbolicamente a estância de representação popular), “os moradores, usuários permanentes” e etc nem sequer tomam conhecimento da discussão da Lei que implementa o instrumento. Formas de implementar a participação popular seriam assim necessárias, de modo a cumprir o interesse público e a democratização do planejamento defendido nas duas leis.

 

Quanto aos objetivos do instrumento, parece que a primeira experiência analisada – Operação Urbana Avenida Antônio Carlos – exemplifica muito bem os reais interesses públicos, podendo ser considerada uma “transformação urbanística estrutural” e que, além disso, incentiva a participação popular através de um conselho consultivo estabelecido para tal finalidade. No entanto, a proposta não saiu do papel. Trata-se de uma área na qual o mercado imobiliário não vem atuando. Além disso, a contrapartida oferecida pelo poder público não foi atrativa para o segmento. Este fato expressa que, de certa forma, a ausência de interesse privado inviabiliza a operação. Seria necessário um estudo da área para identificar sua real vocação de modo a transformar tal potencialidade em contrapartida a ser oferecida ao empreendedor, consolidando assim a operação.

 

Já na Operação Urbana do Conjunto Arquitetônico da Avenida Oiapoque, a o objetivo da “requalificação urbana” e a “valorização ambiental” das áreas envolvidas foram as grandes justificativas, inclusive para transgredir algumas diretrizes do Plano Diretor. Nesta foi proposta a utilização de potencial construtivo muito permissivo em uma área já adensada em que, segundo diretrizes do Plano Diretor, deve-se “restringir a ocupação”. Esta contrapartida diverge com algumas diretrizes do Plano Diretor municipal na medida em que permite a aplicação de tal potencial em áreas já adensadas. As contrapartidas, assim, expressam um total privilégio conferido aos interesses particulares, mesmo que o interesse público tenha sido atendido. Além disso, a lei não prevê a utilização do potencial construtivo adicional na área da Operação Urbana, o que, pelo Estatuto da Cidade, poderia ser considerado uma inconstitucionalidade (art. 34 da Lei 10.257/2001). No entanto, como o Plano Diretor não estabelece tal regra, a utilização do referido potencial em outras áreas não se configura uma inconstitucionalidade.

 

Por último, vale ressaltar que as parcerias só vêm acontecendo onde há o interesse prévio da iniciativa privada em investir. Além disso, o instrumento não serviu, até o momento, para alcançar, em uma área determinada, “transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”. Não serviu para reestruturar ou reurbanizar áreas desprovidas de infra-estrutura ou redirecionar o crescimento e a expansão urbanos e sim, para investir em áreas onde já se concentram os maiores investimentos da cidade. Por esta razão e pelas demais apresentadas ao longo deste trabalho pode-se considerar que a utilização do instrumento não tem se prestado, até o momento, à indução do desenvolvimento urbano.

 

Cabe ainda salientar que o município de Belo Horizonte, ao instituir o instrumento em 1996 não incorporou, até o momento, as diretrizes e regras gerais estabelecidas no Estatuto da Cidade, em especial a necessidade de a lei da operação urbana incluir um “programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação” e o a realização do “Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança”, não constantes no Plano Diretor. Essa pode ser a forma de se garantir contrapartidas menos desproporcionais e de se promover um desenvolvimento urbano com justiça social

 



Notas

 

[i] O instrumento “Operação Urbana” aparece pela primeira vez no Brasil no Plano Diretor de São Paulo, em 1985, plano este que não foi aprovado. Esta proposta de Plano Diretor pode ser considerada a primeira forma concreta de tentativa de se promover maior democratização no planejamento brasileiro e cumprir a função social da cidade.

 

 

Bibliografia

 

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SOUZA, M. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

 

BRASIL. Governo federal. Lei Nº10.257. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes da política urbana e dá outras providências. Brasília: 2001.

 

 

© Copyright Daniela Abritta Cota y Tânia Maria de Araújo Ferreira, 2005

© Copyright Scripta Nova, 2005

 

Ficha bibliográfica:

ABRITTA, D.; ARAÚJO, T. Operación urbana: La experiencia de Belo Horizonte. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (90). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-90.htm> [ISSN: 1138-9788]

 

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