Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. X, núm. 218 (14), 1 de agosto de 2006 

ESBOÇO HISTÓRICO DA DESTINAÇÃO FINAL DOS RESÍDUOS DO LIXO
EM NATAL, BRASIL, PERÍODO 1920 A 2003[1]

Fábio Fonseca Figueiredo
Doutorando em Geografia Humana

Universitat de Barcelona



Esboço histórico da destinação final dos resíduos do lixo en Natal, Brasil, período 1920 a 2003 (Resumo)
 
O artigo objetiva traçar a historia ambiental do acondicionamento dado aos resíduos do lixo produzido em Natal, Brasil, no período 1920 a 2003. Trata-se de um estudo de caso que utilizou como fonte de dados documentos formulados pela Companhia de Limpeza Urbana da Cidade do Natal (URBANA), bem como consulta a diversos materiais científicos especializados. Foi realizado entrevistas com dois representantes da URBANA e uma catadora do lixão entre setembro e outubro de 2003. Os resultados sinalizam que as políticas ambientais adotadas pela Prefeitura de Natal para o acondicionamento final dos resíduos do lixo foram paliativas, caracterizando-se por serem imediatistas e descontinuas. Também houve dificuldades no equacionamento da questão devido a desconhecimento de técnicas de tratamento do lixo, sendo utilizadas como práticas o distanciamento das áreas de destino final dos resíduos da zona urbana e diversas mudanças do local de despejo. A formação de lixões propiciou a atividade da catação dos resíduos sólidos como estratégia de sobrevivência a pessoas de baixa renda, engendrando em uma problemática social da questão ambiental do lixo.

Palavras-Chaves:Destino final do lixo; Política ambiental; Catador de resíduos sólidos


Esbozo histórico del destino final de los residuos de basuras en Natal, Brasil, período 1920-2003 (Resumen)

Ese trabajo intenta trazar la historia ambiental del tratamiento de las basuras producidas en Natal, Brasil, entre 1920 hasta 2003. Es un estudio de caso que utilizó como fuente de datos los papeles de la Companhia de Limpeza Urbana da Cidade do Natal (URBANA), así como consulta a diversos materiales científicos especializados. Fueron  entrevistados dos representantes de la URBANA y un drapária del vertedero de Natal en el periodo comprendido entre Septiembre y Octubre de 2003. Los datos apuntan que las políticas adoptadas por el ayuntamiento de Natal para el tratamiento de las basuras son paliativas y descontinúas. Hubo dificultades en la minimización de la problemática debido al desconocimiento de las técnicas del tratamiento de las basuras. Se ha optado como solución llevar lejos de la zona urbana de la ciudad las basuras, así como a varios otros enclaves no adecuados. La formación de basureros propició una actividad de recolección de los residuos sólidos, como estrategia de supervivencia de personas de baja renta, engendrando así una problemática social alrededor de la problemática ambiental de la basura.

Palabras-clave: Destilación final de las basuras; Política ambiental; Drapária


Introdução

Este trabalho é, em realidade, um primeiro esforço visando traçar a história ambiental do acondicionamento dado aos resíduos do lixo produzido em Natal, Brasil. Por entendermos que a dinâmica morfológica de uma cidade pode, e também deve, ser analisada a partir de como a sociedade se relaciona com o lixo que produz, intentamos fazer esse resgate. Neste sentido, o presente texto se caracteriza como uma primeira abordagem ao tema haja vista que tencionamos profundizá-lo no decorrer da tese doutoral, ora em desenvolvimento[2].

Além da introdução, o trabalho está dividido em uma primeira parte que comenta a coleta dos dados necessários a sua realização. Em seguida, discutimos as primeiras iniciativas de manejo do lixo pela Prefeitura de Natal. A terceira secçao analisa o tratamento dos resíduos do lixo e partir da criação da URBANA (Companhia de Limpeza Urbana da Cidade de Natal). Por fim, tecemos considerações à luz dos resultados obtidos através das diversas fontes pesquisadas consultadas.

Percursos metodológicos

Compartilhando da compreensão de que o estudo de uma realidade particular é sempre um passo para a compreensão do espaço universal, este trabalho assume o caráter qualitativo do tipo estudo de caso. Conforme LUDKE & ANDRÉ (1986), a pesquisa qualitativa tem, como características principais, a prioridade para estudo dos fenômenos sociais, a coleta de dados e a análise dos fatos no contexto de origem, a interação entre sujeito, pesquisador e objeto, e a ênfase no processo de conhecimento.

Os dados são provenientes de pesquisa realizada entre os anos de 2002 a 2004, para a confecção do trabalho dissertativo[3]. Utilizamos como instrumentos de coleta de dados documentos disponibilizados pela URBANA, artigos científicos especializados e entrevistas.

Tivemos dificuldades em organizar as informações anteriores a 1979 devido a escassez de dados. Segundo a URBANA, os relatos da existência do lixo em Natal são deficitários, com informações desencontradas e dados imprecisos sobre produção e tratamento final do lixo. A Companhia acata como estudo formulado pelo renomado médico Januário Cicco, que nos anos 1920 formulou as primeiras análises sobre a problemática do lixo em Natal.

As entrevistas foram de caráter semi-estruturadas, gravadas, com roteiro pré-elaborado que continha questões semi-abertas. Dessa forma, pretendeu-se não direcionar as respostas dos sujeitos, deixando-os livres para expressar as idéias, e, com isso, foi possível incorporar elementos novos. Vale ressaltar que mais que uma entrevista, conversamos com os sujeitos.

Entrevistamos dois funcionários da URBANA. Para a escolha dos sujeitos, utilizamos como critério seu envolvimento com os catadores do lixão do bairro de Cidade Nova. Assim, selecionamos uma funcionária, assistente social, que trabalha na URBANA, desde a fundação, em 1979. Foram bastante satisfatórias as informações cedidas por essa técnica, haja vista ter participado de todas as intervenções desenvolvidas pela Companhia com o fito de melhorar o acondicionamento dos resíduos do lixo.

O segundo entrevistado é um funcionário comissionado. Embora não fizesse parte do quadro efetivo da URBANA, esse profissional, técnico em meio ambiente, possui a função específica de discutir, junto aos catadores da área do lixão, as ações propostas pela Companhia para os catadores do lixão.

Registre-se que as entrevistas, ou conversas, ocorreram em clima amistoso, com os dois sujeitos se dispondo a responder todas as perguntas pré-formuladas. Também foram complacentes em discutir questões internas da URBANA, o que enriqueceu a análise posterior dos dados.

Também entrevistamos uma catadora que desde o ano de 1980 catava materiais recicláveis do lixo. Essa entrevista foi muito importante uma vez que serviu para dar uma visão não institucional sobre a evolução do manejo dos resíduos dados pela URBANA. O critério de escolha desse sujeito foi a quantidade de anos que vivia naquela área trabalhando e por ter participado de todas as intervenções da Companhia junto aos catadores.

As primeiras iniciativas, período 1920-1971

Segundo Januário Cicco (1920)[4], não havia um órgão específico da Prefeitura para os serviços de coleta e tratamento final do lixo. O lixo coletado em Natal tinha como destino as proximidades do matadouro público, localizado na área atualmente conhecida como bairro do Salgado, zona oeste da cidade, em área próxima ao mangue do Rio Potengi.

Nesse estudo, há referência à necessidade urgente, àquela época, de se dar tratamento adequado ao lixo, “afastando da communidade tudo quanto possa influir desgraçadamente nas vidas das sociedades, é ainda de inadiável necessidade retirar para logar próprio o Matadouro e também o forno de incineração, ou antes, o depósito do lixo” CICCO (1920). Não há como determinar o significado do termo afastando da communidade, no entanto, o fato de a região, que atualmente engloba o bairro do Salgado, ser uma das mais antigas da cidade, supomos que, já na década de 1920, existiam pessoas potencialmente prejudicadas por morar próximo ao local. Neste sentido, propõe-se a construção de um incinerador.

Existem controvérsias em relação ao ano de funcionamento da primeira unidade de incineração do lixo, construído pela Prefeitura nas proximidades do que se conhece como Horto municipal, no bairro Passo da Pátria, zona leste da cidade. Há registros de que o incinerador, conhecido pelos residentes como forno do lixo, começou a funcionar no ano de 1935. Já o documento fotográfico da área dá conta de que a construção foi finalizada no ano de 1937. Outra versão é de um antigo funcionário da URBANA, o qual afirma que a construção do forno do lixo se deu somente em 1938[5].

O forno tinha capacidade para incinerar 32m3 de lixo, diariamente coletado por caminhões e carroças. Nas localidades em que inexistia a coleta oficial do lixo, a população se encarregava da construção de valas onde o lixo era depositado, queimado e posteriormente enterrado.

Com o aumento da quantidade coletada, o lixo voltou a ser lançado a céu aberto, nas proximidades do incinerador que, em 1945, foi definitivamente desativado. No ano de 1955, a Prefeitura inutiliza também o lixão que se formou nos arredores do extinto incinerador, passando a colocar o lixo coletado em área próxima a atual ponte do bairro de Igapó, no atual bairro Nordeste, zona oeste de Natal.

No início dos anos setenta, o destino final do lixo voltou para as proximidades do antigo incinerador, desta vez, para servir de material para cobertura de depressão do solo, no bairro do Baldo. Conforme a URBANA, a existência de residências e a proximidade do centro da cidade motivaram mais uma mudança na área de despejo dos resíduos, desta vez em definitivo, para o bairro de Cidade Nova.

Esse período marca a primeira iniciativa sistematizada em tentar resolver a problemática da disposição final dos resíduos. O fato de o lixo servir para a correção da depressão do solo e a drenagem dos gases provenientes do lixo orgânico conferem, a esta forma de tratamento, caráter de aterro controlado. Paralelamente, a Prefeitura passou a investir na formação profissional de funcionários, encaminhando-os para cursos específicos na área de gerenciamento e tratamento dos resíduos sólidos.

Em conformidade com as informações da URBANA, o aterro controlado, ou lixao, do bairro de Cidade Nova começou a servir como área de destinação final de lixo no ano de 1968, com o lixo sendo lançado a céu aberto. Posteriormente, o destino final dos resíduos é transferido para o bairro do Baldo, retornando, em definitivo, à Cidade Nova em 1972. Conforme COSTA (1983), a área foi designada pela Prefeitura para receber o lixo a partir de 1971.

Percebemos que o lixo tem se constituído em problema de difícil solução para a Prefeitura de Natal. Inicialmente, as práticas adotadas para a questão resumiam-se em distanciar da população a área de recebimento do lixo. Essa postura, somando-se às constantes mudanças de local, leva-nos a considerar que a problemática foi encarada pelo poder público como questão de difícil equacionamento, sendo, portanto, permeada por políticas paliativas.

Quanto às tentativas de se resolver tecnicamente a problemática do destino final do lixo, não lograram sucesso. A partir do resgate histórico, temos o entendimento de que o fracasso dessas ações se devem à descontinuidade das ações que visavam simplesmente à resolução imediata do problema, não levando em consideração fatores da realidade, como o aumento de volume de lixo devido ao crescimento da cidade e à ampliação e melhoria nos serviços de coleta.

Também merecem comentário os locais selecionados para o acondicionamento final do lixo. Todas as áreas estão localizadas em zonas ambientais importantes da cidade, ora nas proximidades dos manguezais do Rio Potengi, como nos bairros do Salgado, Nordeste ou Baldo, ora no terreno de dunas como o do aterro de Cidade Nova. Isso comprova, historicamente, a inexistência de políticas públicas voltadas para a conservação e preservação ambiental no município.
 

Lixão do bairro de Cidade Nova

Limitando-se a sudoeste com o município de Macaíba, com 6.250m2, a área do atual bairro Cidade Nova foi escolhida para receber o lixo produzido em Natal em início dos anos 1970 em virtude de ser praticamente despovoada (COSTA, 1983). Outro fator preponderante na escolha foi o fato de ser distante do centro, inexistindo praticamente vias de acesso até o local.

As primeiras construções residenciais, na área, o que posteriormente veio constituir o bairro, foram erguidas por pessoas posteriormente denominadas catadores. Essas pessoas povoaram o bairro no que demonstra a potencialidade da atividade da catação dos resíduos já nos anos 1970.

Atualmente[6], a produção diária de lixo em Natal aproxima-se de 1600 toneladas/dia. Segundo IDEMA (2001), estima-se que 5,0% desse total seja pré-coletado pelos catadores nas ruas antes da coleta oficial da URBANA. Outros 10,0% são separados na Usina de Triagem, localizada na área do lixão. O restante do lixo é despejado a céu aberto, sem que haja qualquer tratamento prévio. Não existem estatísticas referentes ao percentual de materiais recicláveis coletados pelos catadores avulsos na área de despejo do aterro.

Formulamos a tabela abaixo com os dados disponibilizados pela URBANA. Para os cálculos de índices de variação de lixo, adotamos como base o ano de 1980. A tabela está dividida em três períodos, um compreende a década de 1980 (período 1980-1989); outro, entre 1990 e 1999. Por fim, a década de 2000, até 2003.
 

 
Tabela 1
Lixo produzido no período entre 1980 e 2003
Ano
Produção de Lixo tonelada X 1000
Índice de Variação Base 1980=100
1980
162.500
1,00
1980/1989
254.3991
1,572
1990/1999
426.9151
2,632
2000
445.375
2,74
2001
443.441
2,73
2002
508.339
3,13
2003
573.400
3,53
Fontes 1 e 2: Valor total do período dividido por 10.
Fonte Tabela: URBANA (2004)[1]


Os dados da tabela demonstram que o volume de lixo produzido em Natal está evoluindo a taxas crescentes. A variação do volume, no período 1980-1989, foi de 57%, ao passo que, na década de 1990, o aumento no índice de variação atingiu 263% em relação ao ano de 1980. Para os anos de 2000, as estatísticas apontam para índices ainda mais elevados, triplicando o volume de lixo gerado na cidade. Esses números, que representam o crescimento no volume do lixo em Natal, podem ser explicados, dentre outros fatores, pelo aumento populacional do município e a melhoria nos serviços de coleta do lixo nas ruas.

Vale ressaltar que a URBANA coleta, indiretamente, os resíduos gerados em municípios vizinhos. Dada a proximidade com Natal, algumas comunidades desses municípios depositam seus resíduos em área pertencentes ao município de Natal. Essa prática denota a falta de controle das Prefeituras adjacentes com a questão do lixo. Também sugere prejuízos a URBANA, principalmente em se tratando de coleta terceirizada na qual o pagamento dos serviços está condicionado a quantidade de lixo coletado pelas empresas.

A inadequada disposição do lixo tem culminado em grave problema de cunho social, relacionado à saúde pública principalmente para os residentes dos bairros próximos ao aterro controlado. O lixo, a céu aberto, propicia a proliferação de microorganismos nocivos ao ser humano, bem como insetos e ratos. Durante a pesquisa que realizamos em 2003, ouvimos relatos de catadores que moravam nas proximidades da área do lixão sobre a proliferação desses agentes contaminantes. Some-se a isso a inexistência de serviços sanitários no bairro, o que propicia a doenças relacionadas com esses animais e insentos.

Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE)[8], as doenças mais comumente relacionadas, em virtude do não tratamento do lixo no destino final, são as diarréias infecciosas, amebíase, febre tifóide, malária, febre amarela, cólera, tifo e leptospirose.

Outro perigo ambiental resultante das práticas inadequadas ao lixo é a contaminação do lençol freático da cidade. O aterro controlado de Natal está localizado em área de duna, caracterizada pela alta permeabilidade, prestando-se à captação da água proveniente das chuvas para a reposição do lençol freático da cidade. Todavia, uma engenheira sanitarista que, no ano de 2002, fez um estudo sobre as águas subterrâneas da área do lixão nos relatou que apesar daquela área ter absorvido o chorume[9] do lixo desde o início dos anos 1970, o lençol freático não está poluído, podendo a água ser usada para o consumo humano.

O lixo produz também problemas de ordem social, notadamente os catadores de lixo, pessoas desprovidas de emprego ou com rendimentos baixos que usam como estratégia de sobbrevivencia a coleta e posterior venda dos materiais recicláveis do lixo. Segundo ESCOREL (2000:166), os catadores, embora ocupem a cena pública:

São relegados à experiência mais primitiva, que é a de uma existência individual limitada à sobrevivência singular e diária. Integram o lixo urbano, abandonados à própria sorte de conseguir sobreviver dia após dia, reproduzindo-se como animal laborans, que não deixam vestígio algum no mundo.

Em Natal, falar de manejo dos resíduos do lixo passa, necessariamente, por falar da URBANA e dos catadores do lixão de Cidade Nova. Desde sua fundação, a Companhia vem, paralelamente aos serviços de coleta, tentando encontrar uma maneira de equacionar a problemática social do lixo através de vários programas sociais junto aos catadores do lixão.

URBANA e catadores de lixo

Com índice de atendimento dos serviços de coleta do lixo próximo de 98%, no município de Natal, consta, no documento de apresentação da Sociedade de Economia Mista URBANA, criada à luz da Lei Municipal nº 2.659, de 28/08/1979, que a Companhia tem como finalidade especifica de:

Planejar, desenvolver, regulamentar, fiscalizar, executar, manter e operar os serviços de limpeza pública tais como: coleta de resíduos sólidos domiciliares, comerciais, resíduos de varrição de logradouros, capinação e limpeza de terrenos baldios, remoções especiais, limpeza do sistema de drenagem, limpeza das praias, limpeza de canteiros, pintura de meios-fios e operacionalização dos resíduos na área de destino final de Cidade Nova.

Do ponto de vista da legislação vigente, a URBANA está isenta de qualquer responsabilidade, no que se refere a ações de cunho social voltadas para pessoas que sobrevivem da catação e venda dos materiais recicláveis, na área do aterro controlado do bairro de Cidade Nova. Deste modo, toda e qualquer ação desta natureza a ser desenvolvida pela Companhia foge aos propósitos que nortearam sua criação, podendo ser considerada um desvio de função.

No entanto, segundo seus representantes, as intervenções junto aos catadores ocorrem desde 1979. Uma funcionária nos relatou que vários estudos sobre a situação dos catadores do lixão foram extraviados, restando apenas alguns poucos documentos em sua biblioteca particular. No período que estávamos na pesquisa de campo, solicitamos ao órgão de registro da URBANA documentos referentes as ações desenvolvidas junto aos catadores. Obtivemos como resposta que esses papéis haviam sido extraviados com o tempo. Essa atitude demonstra descuido, ou despreparo, por parte da Companhia no que se refere ao arquivamento de informações dessa natureza.

Devido à inexistência de setor interno responsável por montar trabalho concatenado junto aos catadores, as primeiras intervenções realizadas com aqueles sujeitos tenham sido informais, motivadas por sentimentos humanitários de alguns funcionários que conheciam o cotidiano das pessoas dentro do lixão.

Foi-nos relatado que inicialmente os funcionários da URBANA se preocupavam com os possíveis riscos à saúde dos catadores pelo fato de estarem consumindo alimentos encontrados no lixo. Tentando evitar que essa prática se perpetuasse, manifestavam-se em intervenções informais de caráter educativo alertando os catadores para o risco iminente de contaminação através da ingestão dos alimentos.

Com o passar dos anos, o olhar lançado aos catadores do lixão foi se focalizando sob outro referencial de observação. Vislumbrava-se a possibilidade de os catadores auferirem rendimentos suficientes à sobrevivência com a venda de materiais recicláveis coletados no lixo, não mais necessitando se alimentar dos restos de comida encontrados no lixão. Com a mudança na interpretação da realidade, a URBANA, nas palavras de seu REPRESENTANTE 02, ensejou “uma postura de trabalho...de sustentação deles [catadores] próprios[10].

No entanto, desde 1979 houveram vários programas sociais com os catadores que não lograram êxito. Segundo o representante da URBANA, o fracasso dessas intervenções deveu-se a dois fatores geralmente denunciados quando da ineficácia de programas públicos assistenciais: a escassez de verbas públicas para a concretização das diversas etapas dos projetos e a descontinuidade das ações iniciadas.

Esse histórico marcado por promessas não cumpridas e intervenções fracassadas fazia nutrir nos catadores sentimentos de descrédito e desconfiança:

(...) Eles [refere-se aos catadores] são pessoas muito desconfiadas, ao longo de 1979 até aqui, essa já é a quinta intervenção, e a gente vê que a cada intervenção os catadores já não confiam mais nos poderes públicos. Eles pensam que é mais um engodo. (REPRESENTANTE 02 DA URBANA)

De fato, o episódio ocorrido, entre os anos de 1988 e 1989, marcou negativamente a imagem da URBANA perante os catadores do lixão. Em agosto de 1988, a Companhia inaugurou o parque de triagem de resíduos contendo usina separadora de materiais do lixo, baias para separação de resíduos, máquinas compactadoras para prensagem e enfardo dos materiais recicláveis e um depósito para armazenamento dos materiais enfardados.

Na época, a URBANA admitiu, para o quadro funcional, os catadores do lixão para que desempenhassem função de garis. Aos recém-contratados coube a missão de gerenciar o parque de triagem. Identificamos alguns catadores que participaram daquela intervenção. Eles nos relataram que, seis meses após a iniciativa, todos os catadores-garis que haviam sido contratados foram sumariamente demitidos[11]. Nas palavras de uma catadores que viveu esse momento:

Dá URBANA eu só tive ajuda quando eu entrei pra trabalhar dentro da URBANA (se refere ao período em que todos os catadores foram recrutados para trabalhar naquele órgão, final do ano de 1988). Eu trabalhei 04 ano [refere-se ao período posterior a 1989, quando mesmo demitida da URBANA, continuo na usina de triagem] na usina, aí depois a gente foi demitido e até hoje nem as contas nós recebemo. (Catadora do lixão)

Esses catadores contaram que, no período, procuraram o Sindicato dos garis para rever os direitos trabalhistas, não obtendo, no entanto, apoio por parte da entidade. Os catadores atribuem a inércia do Sindicato ao clima de disputa que havia entre os garis de rua e eles, garis do parque de triagem pois, além dos salários, auferiam rendimentos extras devido a venda dos materiais que eram separados no parque de triagem.

Percebemos que existe uma difícil relação entre a URBANA e os catadores do lixão de Cidade Nova. Até o ano de 2003, havia um grande descontentamento por parte dos catadores. Em relação a Companhia, identificamos a ausência de uma política efetiva para o manejo final dos resíduos do lixo, o que envolve, necessariamente, ações de cunho social que agregue os catadores.
 

Considerações Finais

Desde a fundação em 1979, a URBANA vem tentando administrar a problemática do lixo em Natal. Destarte, até o final do ano de 2003 não se obteve o sucesso esperado em todas as intervenções. Embora possua índice de atendimento de coleta de lixo próximo dos 98% do município, a Companhia ainda não conseguiu suprimir a utilização dos diversos terrenos baldios espalhados pela cidade como logradouros de lixo.

Apesar das implicações da realidade do lixo que potencialmente ameaça a qualidade do meio ambiente ainda existente em Natal, a sociedade natalense, juntamente com o poder público, constituído nas esferas Municipal, Estadual e Federal, deve se sensibilizar com o perigo que é a poluição do espaço urbano. Caso contrário, não há alternativas eficazes para o combate à poluição. Nesse contexto, faz jus a exacerbada preocupação ambiental demonstrada por VALLE (1995:05), quando afirma que “preservar o meio ambiente não é mais um modismo de minorias, mas uma necessidade universal para a preservação de nossa espécie”.

Resumidamente, os tres periodos analisamos nos mostram que entre 1920 a 1971 a Prefeitura limitava-se a afastar o local de destinacao final dos residuos do lixo. Ou seja, inexistia uma politica ou plano de gerenciamento para o lixo. No final da década de 1960 houve uma tentativa de se gerenciar o lixo de maneira tecnico-ambiental correta, todavia essa postura de solucionar a problematica do lixo nao perdurou por muito tempo. Talvez devido aos elevados custos iniciais e/ou devido a mudanca politica ocorrida na cidade. Vale lembrar que nesse periodo o país vivia sob o forte regime ditatorial militar e, no final dos anos 1960, houve a indicaçao de prefeitos biônicos, indicados pelo governo federal.
Com a criaçao da URBANA, já nos finais dos anos de 1970, a Prefeitura admite que os problemas gerados com o lixo iam além da problemática ambiental, perpassando as vertentes socioeconômicas. Assim, buscou-se traçar estratégias para o gerenciamento do lixo de Natal. Contudo, dado o tipo dos projetos e as causas que motivaram seus fracassos, as tentativas de resoluçao da problemática formam muito mais de ordem paliativas que propriamente políticas efetivas de cunho socioeconômico e ambiental.

As últimas ações em Natal dão conta de um projeto de erradicação do lixão, o que de fato ocorreu desde janeiro de 2005. Também há nessa iniciativa a socialização dos catadores do extinto lixão. Nesse ínterim, percebemos uma postura diferenciada da URBANA em relação a problemática do lixo na cidade, o que, dada ao que existia antes, já pode ser considerada uma decisão acertada. Todavia, sentimos a necessidade de um estudo da realidade presente para tecermos análises de quais as implicações dessas mudanças para os agentes diretamente envolvidos, sociedade e setor público.

Notas

[1] Com o apoio do Programa Alban, Programa de bolsas de alto nível da União Européia para América Latina, bolsa nº E05D057301BR.
[2] Tese doutoral realizada na Faculdade de Geografia Humana da Universitat de Barcelona, sob orientação da professora Drª Maria Ángels Alió i Torres.
 
[3] Figueiredo (2004).
 
[4] Mesmo pesquisado em órgãos como IDEMA (Instituto de Desenvolvimento e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte), Secretaria de Saúde, UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e URBANA, não encontramos maiores referências deste estudo. Assim, reproduzimos as informações disponibilizadas pela URBANA no sítio eletrônico, <http://www.natal.rn.gov.br/urbana/index.php> Acesso em 25/08/2004.
 
[6] Dados de 2003.
 
[7] Dados disponibilizados no sítio eletrônico: <http://www.natal.rn.gov.br/urbana/index.php>; Acesso 25/08/2004.
 
[8] Informações disponibilizadas no sítio eletrônico: <www.abrelpe.org.br>; Acesso em 15/06/2003.
 
[9] Ver Pereira Neto (1996).
 
[10] Os textos referentes as entrevistas são oriundos de apontamentos realizados na pesquisa empírica. Transcritas de sua versão original, possíveis erros gramaticais são provenientes das falas dos sujeitos entrevistados.
 
[11] Esse episódio ocorreu após a senhora Wilma Maria de Faria ter assumido a Prefeitura de Natal, em 01/01/1989.



Referências

COSTA, Idalina Farias Soares. De lixo também se vive: Origem e reprodução de Comerciantes e Catadores de produtos do lixo em Cidade Nova. Natal: UFRN, 1983. Dissertação apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da UFRN, (mimeo)

ESCOREL, Sarah [et. al.]. Vivendo de teimosos. Moradores de rua da cidade do Rio de Janeiro. In: BURSZTYN, Marcel (org.). No meio da rua.  Nômades, excluídos e viradores.Rio de Janeiro: Garamond, 2000

FIGUEIREDO, Fábio Fonseca. Em cima do lixo: A exploração do trabalho dos catadores de materiais recicláveis do aterro controlado da cidade do Natal/RN. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2004. (mimeo)

IDEMA. Diagnóstico da situação dos resíduos sólidos no estado do Rio Grande do Norte. IDEMA: Natal, 2001. cd rom.

LUDKE, M. & ANDRÉ, M.E.D.A A pesquisa em educação: Abordagens qualitativas.São Paulo: EPU, 1986

PEREIRA NETO, João Tinoco. Manual de Compostagem. Processo de baixo custo. Belo Horizonte: UNICEF, 1996.

VALLE, Cyro Eyer do. Como se preparar para as normas ISO-14.000. São Paulo: Pioneira, 2ª ed., 1995

 

© Copyright Fabio Fonseca Figueiredo, 2006

© Copyright Scripta Nova, 2006
 
Ficha bibliográfica:
 
FONSECA FIGUEIREDO, F. Esboço histórico da destinação final dos resíduos do lixo en Natal, Brasil, período 1920 a 2003.  Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (14). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-14.htm> [ISSN: 1138-9788]


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