Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. X, núm. 218 (17), 1 de agosto de 2006 

AS QUESTÕES DE LIMITES INTERESTADUAIS DO BRASIL:
TRANSIÇÃO POLÍTICA E INSTABILIDADE DO TERRITÓRIO NACIONAL
NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1889-1930) – O CASO DO CONTESTADO

Julio Cesar Ferreira Santos

Departamento de Geografia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
 

 
As questões de limites interestaduais do Brasil: transição política e instabilidade do território nacional na Primeira república (1889-1930) – O caso do Contestado (Resumo)
 
Os debates acerca da definição dos limites interestaduais permearam toda a história política brasileira desde a invenção da República. Um dos momentos mais críticos refere-se ao período chamado Primeira República (1889-1930), quando o pacto territorial nacional herdado da Monarquia, responsável pela união das oligarquias brasileiras, é posto em xeque. Tal crise manifesta-se por revoltas por todo o país, como a sangrenta Guerra do Contestado (1912-1916), reunindo a insatisfação da miséria sertaneja e a reestruturação territorial dos Estados do Paraná e de Santa Catarina, ambos da Região Sul. Assim, este trabalho aponta a postergação da redefinição dos limites internos como um fator que se apresentou propício a uma conjuntura de conflitos.

Buscando dar uma pequena contribuição à história intelectual da Geografia brasileira, o presente trabalho tem como objetivo central analisar o debate político-territorial nacional na Primeira República de modo a encontrar elementos histórico-geográficos que expliquem as disputas territoriais, como a do Contestado. Por fim, investigar a atuação do Estado brasileiro em suas diversas instâncias quanto à contenção de movimentos dedicados à reestruturação dos limites internos brasileiros, modificando a configuração territorial da época.

Palavras-chave: reestruturação territorial, limites interestaduais, coesão nacional, guerra do Contestado.



 
Las cuestiones de límites interestatales de Brasil: transición política e inestabilidad del territorio nacional en la Primera republica (1889-1930) – El caso del Contestado (Resumen)

Los debates acerca de la definición de los límites interestatales estuvieron presentes en toda la historia política brasileña desde la invención de la República. Uno de los momentos más críticos se refiere al período llamado Primera República (1889-1930), cuando el pacto territorial nacional heredado de la Monarquía, responsable de la unión de las oligarquías brasileñas, fue puesto en tela de juicio. Tal crisis se manifestó en rebeliones por todo el país, como la sangrienta Guerra del Contestado (1912-1916), reuniendo la insatisfacción de la miseria provinciana y la reestructuración territorial de los Estados de Paraná y Santa Catarina, ambos de la Región Sur. Así, esta investigación apunta a la postergación de la redefinición de los límites internos como un factor que se presentó propicio a una coyuntura de conflictos.

Buscando dar una pequeña contribución a la historia intelectual de la Geografía brasileña, la presente investigación tiene como objetivo central analizar el debate político-territorial nacional en la Primera República de manera de encontrar elementos histórico-geográficos que explican las disputas territoriales, como la del Contestado. Por fin, investigar la actuación del Estado brasileño en sus diversas instancias cuanto a la contención de movimientos dedicados a la reestructuración de los límites internos brasileños, modificando la configuración territorial de la época.

Palabras Clave: reestructuración territorial, límites interestatales, cohesión nacional, guerra del Contestado.


 
Questions about Brazilian’s Interstate Limits: Political Transition and National Territory Instability in Brazilian First Republic (1889-1930) – The Case of Contestado (Abstract)

Debates about the definition of interstate limits permeated the Brazilian political history since the invention of the Republic. One of the most critical moments refers to the period called First Republic (1889-1930), when the national territorial agreement inherited by the Monarchy, responsible for the union of the Brazilian elite, is discussed. That crisis is manifested by rebellions in the country, like the bloody Contestado War (1912-1916), associating the dissatisfaction of the countryside misery and the territorial restructurations of State of Paraná and State of Santa Catarina, both localized in South Region. In this manner, this paper indicates the postponement of the redefinition of the internal limits like a factor presented favorable to a conflicted situation.

Searching for giving a small contribution to the intellectual history of the Brazilian Geography, this paper attempts analyzing the national political-territorial debate in First Republic in order to find out historical-geographical elements that explain the territorial disputes, like Contestado. Finally, it intends to study the Brazilian State action in its different instances concerning to the contention of movements dedicated to the restructurations of Brazilian internal limits, modifying the territorial configuration of that moment.

Key Words: territorial restructurations, interstate limits, national cohesion, Contestado War.



 

Após a queda do Império, ascende ao poder um grupo de militares responsáveis pela institucionalização da recém-criada República dos Estados Unidos do Brasil. Ignorando as demandas históricas de membros do regime anterior e dos intelectuais republicanos, o Governo Provisório não empreende uma revisão dos limites internos brasileiros.

Fruto de um conservadorismo arraigado na história política brasileira, tratar de limites interestaduais havia se tornado um tabu, discussão a ser evitada, apesar da insatisfação visível em diversas partes do país. Movimentos históricos de demandas territoriais materializaram-se subitamente na Primeira República, talvez encorajados por uma Constituição Federal (1891) negligente e extremamente descentralizadora para aquele momento. As antigas Províncias, agora Estados, legitimadas pela República, fragmentaram o mapa político nacional e expuseram as fraturas de um pacto político-territorial falido, a ser substituído. Dessa forma, analisando com um distanciamento histórico confortável, a Primeira República (1889-1930) converteu-se em um verdadeiro interregno entre um pacto e outro, projetos de Brasil definidos pelas elites políticas e intelectuais.

Buscando compreender esse quadro instável e sua repercussão no espaço brasileiro,  pretendemos realizar um resgate de parte da história da formação e consolidação do território brasileiro, destacando as primeiras décadas da República. Neste sentido, acreditamos que nosso estudo possa vir a ser uma pequena contribuição à história intelectual da Geografia Brasileira e um subsídio para compreender a Geografia Política e a História Territorial do Brasil. Para ilustrar nossa análise, utilizamos como estudo de caso a questão de limites interestaduais entre Paraná e Santa Catarina, a célebre Questão do Contestado, a manifestação de uma aguda crise social tendo como pano de fundo uma antiga disputa política em diversos níveis em prol da delimitação precisa de uma área conflagrada.

O Contestado, ao lado de Canudos e de Juazeiro, por exemplo, compreende uma ruptura importante na forma pela qual o Estado atuava no território, colocando em xeque a ação desse importante agente produtor do espaço. Como corolário dessa “ousadia”, a História escrita pelos conservadores encarrega-se de alterar o conteúdo crítico e a memória da população. Contestado atualmente é considerada uma guerra de “fanáticos”, como diria Mathias (1972), concepção que prevalece no ensino de História na escola. Na verdade, qualquer perturbação na “ordem” estabelecida, no modo como os objetos se organizam e se localizam e no questionamento dos problemas é convertida em obstáculo na consolidação da República e do território. De fato, no caso do Contestado, houve uma reação ao modo pelo qual o capital internacional se desenvolvia no Sul do Brasil, bem como à exploração empreendida por um grupo econômico poderoso, ao desmatamento desenfreado da floresta e ao escandaloso abuso da mão-de-obra usada. Lançados à marginalidade, esses movimentos sociais importantes são reinterpretados e seus líderes, vilanizados e/ou enlouquecidos.

O ponto de vista adotado neste trabalho considerará a insolvência social da Primeira República, mas, além disso, procuraremos fornecer informações institucionais da época a fim de contextualizar e ampliar a extensão dos fatos. Em se tratando do Contestado e das questões de limites interestaduais, cabe-nos destacar ao final do trabalho a atuação de um militar, engenheiro e – por que não? – geógrafo brasileiro, Thiers Fleming. Este Capitão de Fragata foi um importante intelectual no período em tela, contribuindo sobremaneira para a Geografia brasileira (à luz do positivismo), no momento em que esta ciência ainda não havia construído seu campo profissional. É de sumo interesse compreender que tipos de trabalhos e de ações eram efetuados naquele momento, pois nos permitirá compreender o grau de comprometimento da Geografia com a reprodução capitalista no tocante à estruturação do território do Brasil.
 

Formação da federação brasileira: a política na Primeira República

A colonização levada a cabo pela Coroa Portuguesa não conseguiu criar uma centralização político-administrativa capaz de aglutinar e ordenar a ação dos grupos privados instalados nas diversas regiões que compunham o território brasileiro (Abrucio, 2002). Para resolver esse problema administrativo secular, o Estado brasileiro institui em 1891, com a Constituição Republicana, o federalismo.

Sinteticamente, o federalismo é um modelo de soberanias partilhadas, construído a partir das diversidades culturais, das grandes distâncias de um país continental e da dispersão populacional do mesmo. Para que haja um contrato federativo (uma Federação) é necessário que exista uma parceria entre os entes federativos, como municípios e Estados. Essa parceria pressupõe uma divisão de poderes entre os entes parceiros, autonomia delimitada para cada um deles e um harmonioso relacionamento com o poder central, assegurando dessa forma uma adequada divisão de recursos, fortalecendo as conexões entre as diversas esferas de governo.

Grosso modo, historicamente, a Federação brasileira apresenta uma forma esquemática piramidal, ou seja, os Estados compõem a base da pirâmide e o poder central encontra-se instalado no ápice. O centralismo é a característica básica do federalismo, instituído timidamente com a Constituição de 1891, responsável por uma tentativa de substituição dos poderes oligárquicos locais e regionais pelo estatuto do Estado federado autônomo (Abrucio, 2002). Outrora, o Império transferira para aquelas oligarquias muitas de suas funções clássicas, como a coleta de impostos, o comando da guarda nacional, a gestão dos bancos oficiais com poder de emissão de moeda, efetuando uma transferência direta de poder da esfera pública para a esfera privada.

Embora o federalismo, em sua essência, apregoasse um caráter aglutinador e capacidade de fortalecer os elos entre os Estados, isto não ocorreu no Brasil. Existia uma forte tendência a privilegiar Estados já consagrados, como São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, o que se contrapunha aos interesses da maioria das antigas províncias imperiais, quais sejam, a conquista de maior autonomia e a redução da intervenção do poder central.

No ano de 1894, com o início do Governo do presidente Prudente de Morais, os militares responsáveis pela insurreição que levou à queda do Império deixaram o centro do poder político no Brasil. Após a administração de três presidentes-marechais, a chamada Primeira República (1889-1930) alcança sua etapa civil (com a exceção de Hermes da Fonseca) em um momento fundamental, no bojo da consolidação das instituições republicanas recém-criadas. Deixada para trás, a República da Espada (1889-1894) deu lugar à República Oligárquica, cuja influência dos políticos ligados aos poderosos fazendeiros da cafeicultura era notável.

Na Primeira República encontramos o modelo político do presidente Campos Salles, que ficou conhecido como “Política dos Governadores”, baseando-se no fortalecimento dos partidos sustentados pelas oligarquias. Com isso, haveria um equilíbrio entre os poderes Legislativo e Executivo, já que os interesses das oligarquias estaduais estariam assegurados. Como resultado, a partir de Minas Gerais e São Paulo, os partidos republicanos locais dominaram a política nacional por todo o período.

Essa fase do Federalismo esteve profundamente marcada tanto pela forte descentralização e pela autonomia dos Estados quanto pelo grande peso dos Estados de São Paulo e Minas Gerais que, através de um conluio político, mantinham uma clara relação de apoio e reciprocidade entre o governo local e as elites.          Essa relação entre paulistas e mineiros deu origem a uma alcunha representativa do revezamento sistemático característico da Primeira República: a “política do café com leite”. Sendo os maiores produtores nacionais dos produtos mais rentáveis no circuito econômico primário-exportador brasileiro, o café e o leite possuíam São Paulo e Minas Gerais como os seus maiores produtores, respectivamente. O poder econômico dos Estados determinava a influência política nacional; nada mais “natural” que os presidentes da República fossem “indicados” pelas oligarquias dos dois Estados.

O sistema eleitoral brasileiro, extremamente circunscrito a algumas parcelas da população, não possuía a representatividade da maioria da sociedade brasileira, o que não impedia a eleição do presidente e dos congressistas. Sem ser secreto, o voto dos poucos eleitores era monitorado pelas lideranças partidárias locais, bem como pelos candidatos, responsáveis pela “orientação” do eleitor no momento do pleito. Os chamados “coronéis” coagiam a população a votar nos seus candidatos, sustentando um amplo sistema de trocas e arranjos eleitorais refletidos no local e no nacional. A relação intrínseca entre os eleitos e os coronéis era tamanha, garantindo desta feita a representação dos interesses do coronelismo brasileiro e das elites nacionais.

Inevitavelmente, a relação clientelista entre Governo e oligarcas produziu um quadro de instabilidade política nas câmaras legislativas e na manutenção dos limites interestaduais. Essa situação gerou uma conjuntura problemática, durante a qual um questionamento utilitarista das instituições foi efetivado a fim de redimensionar a distribuição de poder entre os Estados. Neste sentido, cabe mencionar que, segundo Penha (1993), diversas teorias políticas com base científica de cunho naturalista eram disseminadas, afirmando certas condições necessárias para o desenvolvimento e crescimento econômico (e político) dos Estados. Para alguns intelectuais conservadores do período, como Fausto Souza e Teixeira de Freitas, acima de tudo, era necessário engendrar uma redivisão do território nacional, um verdadeiro redesenho das fronteiras internas de modo a produzir melhores resultados. Acreditava-se que, por exemplo, haveria uma extensão territorial natural adequada ao crescimento, de tamanho variável, mas bem próxima do tamanho dos Estados mais ricos do país, como São Paulo e Rio Grande do Sul.

Em A Geografia da Politicagem (1912), Sylvio Romero expõe o desequilíbrio político existente entre os Estados do Norte e os do Sul do Brasil. O debate à época especulava acerca da definição dos limites entre tais divisões. Bem mais que uma mera linha imaginária, tal discussão desvelava a desproporcionalidade de poder político entre, principalmente, o Rio Grande do Sul e os Estados nordestinos. Enquanto o governo gaúcho influía em diversos governos estaduais, assim como no Governo Federal, os representantes do Norte “se deixavam sempre no Senado levar pelas lábias do terrível politician, dando-lhe força, girando como satélites em torno [do senador Pinheiro Machado, hábil articulador gaúcho]” (p.4). Romero ainda destaca a dominação das oligarquias locais nos Estados do Norte. O autor aponta “o tresloucado esforço de manter exatamente, determinadamente, o sanhudo despotismo oligárquico”[1] por parte do Governo Federal (p.6).

O princípio de equivalência de áreas em uma redistribuição de terras entre os Estados ganhava muitos adeptos no momento em que a Geografia revestia-se do positivismo característico deste momento republicano e de institucionalização como ciência. Dessa forma, a Geografia aparecia como a ciência legitimadora dos discursos voltados à reestruturação territorial. Assim, “o tema da divisão territorial do País subsistiu até o período do Estado Novo como a principal questão da coesão nacional, haja vista a desproporcionalidade de áreas existentes entre as unidades político-administrativas, e as experiências históricas de riscos de fragmentação ocorridas desde o período colonial” (Penha, 1993, p.105).
 

A rediscussão da ordem territorial interna: as questões de limites interestaduais

Em uma edição antológica, o Editorial do dia 7 de setembro de 1911 do Jornal do Commercio lança algumas luzes sobre “uma grave e melindrosa questão, que anda por aí a levantar o espírito regional, acendendo ódios e fomentando discórdias” (Jornal do Commercio apud Fleming, 1917, p.09). De acordo, com o influente periódico, a união conformada pelas antigas províncias imperiais estava em xeque diante dos arroubos intelectuais de algumas personalidades precipitadas e dos interesses escusos dos governadores, dispostos a produzir um cenário de insolvência institucional a fim de ampliar seu raio de influência e de seus Estados. Na verdade, o próprio questionamento da ordem territorial interna era fruto de um casuísmo político dos primeiros republicanos, lenientes diante de uma situação propícia a uma reforma territorial consistente. O abandono dessa idéia, com a promulgação de uma Constituição descentralizadora, escamoteou o debate e fortaleceu o poder de manobra dos governadores. Para muitos, como Epitácio Pessoa e Tavares de Lyra (Roquette-Pinto, 1919, p.10), o Governo Provisório falhou ao negligenciar uma intervenção direta nas áreas de litígio em potencial, herdadas da Monarquia. Livres das amarras despóticas do Governo Imperial, as antigas províncias passaram a demandar maior autonomia, participação nos negócios e ampliação de seus territórios, criando áreas de litígio pontuadas por todo o Brasil.

Penha (1993) e Escobar (1940) convergem quanto às causas dos dissídios e apontam o fortalecimento de um “espírito regional”, estimulado pelos governadores, alimentado pelas indefinições e incertezas documentais sobre diversos pontos fronteiriços no interior do país. A ausência de um território consolidado prejudicava sobremaneira a atuação do capital privado no Brasil, dificultando a visualização de um cenário favorável a investimentos internos e externos. A indefinição de limites internos produzia um atraso quanto aos investimentos infra-estruturais necessários ao país e à realização da reprodução do modo de produção capitalista. Poderíamos dizer que o governo brasileiro concentrava seus esforços na mera administração do caos, controlando à força as crises sociais que espocavam pelo país.

Neste sentido, cabe relembrar que o período em tela alinhava-se a uma conjuntura internacional favorável às intervenções sobre o espaço a fim de organizar os objetos sobre o mesmo e permitir a reprodução do capital, atividade a qual a Geografia positivista comprometeu-se em demasia, sempre ao lado do Estado, organizando congressos a fim de discutir soluções formalistas para a desagregação interna. As intervenções aconteciam em diferentes escalas do campo à cidade, do local ao nacional. Na capital da República, por exemplo, a cidade imperial com forte presença de marcas coloniais era reformada de modo a adaptar espaço, hábitos e costumes às novas necessidades do capital internacional. O planejamento conservador varreu os expurgos da velha cidade e inaugurou novos recortes, imagens copiadas da Europa e instaladas nos trópicos com finalidade civilizatória. Apesar disso, a cidade brasileira da Primeira República revestiu-se das roupagens do sistema primário-exportador, marcando de forma indelével a ambigüidade das classes médias urbanas em formação “submetidas à dupla influência dos laços de dependência com as oligarquias e à ilusória autonomia que a participação nos serviços comerciais ou na burocracia do Estado pode dar a seus membros” (Pinheiro, 1985, p.22). Para Paul Singer (apud Pinheiro, 1985), a cidade brasileira desse momento (1914-1930) era “anti-industrial”, defensora dos interesses das oligarquias, mantenedoras da inserção brasileira na divisão internacional do trabalho como fornecedor de produtos primários.

Além do quadro de esfacelamento político, ressalta-se o flagelo social: a grande maioria da população brasileira estabelecida no campo vivia em condições sub-humanas, bem como a nascente classe proletária nas áreas urbanas. Em alguns lugares, a insatisfação crescente resultou em conflitos armados, como a Guerra de Canudos (1893-1897) e, o nosso caso, a Guerra do Contestado (1912-1916). Neste conflito, reuniram-se os problemas das fronteiras entre Paraná e Santa Cataria e a miséria dos camponeses.

Analisando os precedentes da questão de limites no Brasil, a partir de Penha (1993), os intelectuais debruçados sobre o assunto apontaram uma exagerada dose de “espontaneísmo” como a principal causa para a instabilidade política. Em 1534, a primeira divisão territorial do Brasil deu origem às doze capitanias hereditárias, uma cessão de exploração do uso do solo brasileiro por parte da Coroa Portuguesa a fidalgos de Portugal. O recorte territorial dessas primeiras delimitações seguiu o pragmatismo dos modelos geométricos, bastando o desenho de linhas retas imaginárias partindo do Leste (litoral) até o limite de Tordesilhas (Oeste). Daí em diante, sucessivas divisões e fusões de parcelas das capitanias foram efetivadas, mantendo uma dinâmica constante. Uma extensa documentação responsável pelo registro dos limites proliferou e acumulou-se; com o passar do tempo, parte se perdeu e, da falta de respeito às linhas imaginárias traçadas por El-Rey, originaram-se os pleitos internos.

O território do Brasil Colônia fora dividido em capitanias; proclamada a independência, a Constituição Imperial considerou o território do Império do Brasil dividido em Províncias, na forma em que se achavam, podendo ser subdivididas. Desapareceram de todo os antigos limites das capitanias à proporção em que se formavam novas capitanias. Registros das alterações, os Alvarás e as Cartas Régias que criaram as novas capitanias não marcaram suas fronteiras, gerando as questões de limites interestaduais que espocaram na Primeira República. Proclamada a República, a Constituição Republicana transformou as antigas Províncias em Estados e o Município Neutro em Distrito Federal, legitimando diante das instituições republicanas o que fora herdado do Império.

Contudo, a definição precisa das linhas divisórias das Unidades Federativas brasileiras ficou em suspenso, aparentemente pela ausência de subsídios materiais que justificassem tais limites. O traçado dos limites interestaduais foi extremamente mal demarcado, baseado em incertezas, como a descrição de acidentes naturais desconhecidos. Essa imprecisão foi a causa de muitos conflitos durante o século XIX, desafiando a autoridade dos Imperadores, alimentando parte da argumentação separatista de alguns grupos político-econômicos das Províncias litigantes.

A fluidez dos limites internos em alguns pontos do país era tão grande que, como nos aponta Fleming (1917, p.182), “a república herdou da Monarquia 27 questões de limites interestaduais: umas por disputa de um dado território e outras por necessidade de aviventar a linha divisória”. No Brasil, a posse de um território e a definição de limites entre os Estados obedeceu, invariavelmente, ao princípio consagrado do uti possidetis, ou seja, não sendo reconhecidos na íntegra os termos dos documentos que poderiam desfazer as demandas, os limites dos Estados mantinham-se pelos costumes e tradições. Essa era a forma pela qual o Imperador arbitrava, respeitando a evolução histórica da construção de um determinado território. Assim, quando insuficientes, as definições baseadas nos limites naturais eram adaptadas a partir de elementos humanos, como a identidade da população local, dentre outros fatores de cunho social.

O texto constitucional promulgado em 1891, excessivamente descentralizador se considerarmos o contexto de transição entre regimes, permitia diferentes interpretações acerca do julgamento das demandas estaduais. Essa imprecisão levou os maiores juristas da época, dentre eles Ruy Barbosa, Mendes Pimentel, Pedro Lessa, Epitácio Pessoa e Tavares de Lyra, a diferentes posicionamentos, sempre oscilando entre os interesses dos oligarcas e os do Governo Federal. Essa disputa entre diferentes atores apontava para uma polarização explícita quanto aos níveis de realização da prática política em busca de uma maior ou menor autonomia dos Estados. É forçoso lembrar que a pressão das oligarquias regionais apregoava uma maior autonomia regional e estadual, assegurando a influência, a participação e o poder de decisão dos governadores. A polarização a qual nos referimos anteriormente referia-se à indefinição do raio de ação dos Poderes da República, já que toda a estrutura e instituições ainda estavam em construção. Diante de uma Constituição incerta, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (Poderes Legislativo e Judiciário, respectivamente) eram indicados pela Carta Magna como as instâncias competentes para resolver os imbróglios. Contudo, o texto permitia interpretações dúbias, ora delegando aos Estados uma maior autonomia, ora concentrando na União.

A Constituição de 1891 trata em dois artigos das questões de território entre os Estados: no artigo 4º e no artigo 34. No artigo 4º, prescreve que “os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se, para se anexar a outros, ou formar novos Estados, mediante aquiescência das respectivas Assembléias Legislativas, em duas sessões anuais sucessivas, e aprovação do Congresso Nacional”. Já o artigo 34, ele diz que “compete privativamente ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre os limites dos Estados entre si” [grifo nosso]. Analisando as interpretações dos juristas citados no último parágrafo (compilados na obra de Thiers Fleming, Limites Interestaduais, de 1917), depreende-se que o artigo 34 subordina-se ao artigo 4º, complementando a regra explícita (primeiramente as Assembléias Legislativas dos Estados em litígio seguidamente do Congresso Nacional).

O jurista Ruy Barbosa entendia que ao Congresso cabia selar o acordo realizado entre as partes litigantes, acionado para homologar o acordo após as devidas aprovações nas Assembléias estaduais. Já o Supremo Tribunal Federal seria acionado diante de antagonismos latentes entre os Estados, cabendo aos ministros o arbitramento. Claramente, o Congresso Nacional possuía uma atribuição política, enquanto o STF, uma função jurídica. O Poder Executivo federal não intervém, mantendo-se a parte das discussões travadas nos Estados, coordenadas pelos governadores[2]. Percebe-se visivelmente que a posição de Barbosa favorecia a autonomia dos governadores e o sistema espúrio no qual se sustentava toda a política brasileira.

O jurista Epitácio Pessoa tinha uma posição divergente da de Ruy Barbosa. Para Pessoa, a Constituição precisava ser reformada, pois inferiorizava a ação do Poder Legislativo federal à vontade dos Estados, e colocava em risco a União, todo o sistema federativo na qual se organizava o Estado brasileiro. Além disso, atentava contra o princípio republicano da separação dos poderes, transferindo ao Legislativo algumas atribuições do Judiciário. Isso favorecia o coronelismo e a Política dos Governadores. Pessoa afirmava que ao Supremo cabia, ao ser consultado sobre os limites vigentes, dirimir os conflitos. Sua atribuição não dizia respeito à fixação de limites, mas determinar quais os limites fixados por lei. Existindo lei vigente que regulamentasse os limites, o STF teria a função de ratificá-los. Não existindo tais limites, de fato, cabia ao Congresso demarcá-los após a definição dos mesmos nas Assembléias Legislativas, com um acordo acertado entre as partes litigantes.

Os interesses regionais, extremamente exaltados, manifestados pelas oligarquias controladoras dos Estados, transpareciam a ausência de um sentimento de nacionalidade. A luta entre os governadores pelo seu quinhão e a pressão sobre o Governo Federal eram sintomas claros da inconsistência da República dos Estados Unidos do Brasil. O Estado brasileiro, refém dos interesses dos oligarcas, não conseguia fomentar uma identidade nacional na população e, automaticamente, não possuía legitimidade diante de amplas parcelas e grupos insatisfeitos. Para Roquette-Pinto, perdida a oportunidade existente durante o Governo Provisório, restava ao país lutar para gerar esse “sentimento nacional” e, dessa forma, a redefinição dos limites político-administrativos seria realizada. Em seu relatório ao ministro da Justiça (1919), ressalta que as discussões sobre a redivisão do território brasileiro são antigas e, durante o Império, contou com a colaboração de importantes personalidades, dentre elas, Fausto de Souza. Roquette-Pinto lembra que Souza, “em 1880, apresentava o interessantíssimo Estudo sobre a Divisão Territorial do Brasil, em que o problema é ampla e superiormente discutido. Entre outras notas interessantes, acentua Fausto de Souza que o Brasil é dividido em duas partes sensivelmente iguais por uma linha tirada do Pará pelo curso dos rios Gurupi, Araguaia e Paraná. Pois a nossa divisão territorial é tal que uma das metades do país se reparte por 17 províncias e a outra apenas por três” (1919, p.13). Roquette-Pinto era um crítico da forma pela qual os governos da Primeira República agiam, legitimando a estrutura fundiária herdada da Monarquia. Diagnosticando de uma forma tímida, porém direta para a época, Roquette-Pinto analisava a questão pelos vieses fundiário e institucional, indignando-se com a recusa do Governo Federal em acionar leis vigentes desde o Império que “abrigavam disposições explícitas que permitiram e permitem, em qualquer tempo, a renovação dos limites interestaduais” (1919, p.13). Todo esse quadro conservador e de insuficiência institucional, somado à negligência do Governo Federal para com alguns Estados do país, à autonomia dos governadores e à ausência de condições adequadas para a reprodução da vida do homem com dignidade produziram o caldo no qual alguns dos movimentos de questionamento da ordem se formaram e lançaram o país em uma crise política interna que a Primeira República não conseguiu resolver. Dentre eles, destacamos, como nosso estudo de caso, a Guerra do Contestado.
 

A Guerra do Contestado (1912-1916)

Conforme o trabalho de fôlego de Ildefonso Escobar (1940) registra, “na divisão do Brasil em capitanias hereditárias, a Martim Afonso de Souza, pela Carta Régia de 20 de novembro de 1534, foram doadas as terras que correm desde a barra de São Vicente até doze léguas mais ao sul da ilha de Cananéia, ou aproximadamente até uma das barras de Paranaguá, no atual Estado do Paraná, (...) [antigo] território da Comarca de Curitiba, (...) regulado pelo Alvará de 19 de fevereiro de 1812 e se manteve com os mesmos limites até a sua elevação à Província pela Lei nº 704, de 9 de outubro de 1853. (...) a área desta Província se compõe de parte do território da capitania de Martim Afonso de Souza, que alcançava a parte mais meridional da barra de Paranaguá e de parte da de Pero Lopes de Souza, na Terra denominada de Sant´Ana. (...) Desconhecida e compreendendo vastos sertões, a antiga 5ª Comarca de São Paulo (Curitiba), figura ainda hoje nos mapas. (...) Não existindo uma linha divisória clara e demarcada, surgiram dúvidas que resultaram zonas litigiosas entre Paraná e Santa Catarina, e Paraná e São Paulo” (Escobar, 1940, p.70).

A história do Estado de Santa Catarina guarda algumas particularidades em relação ao Estado do Paraná. O território de Santa Catarina “constituía em grande parte a Terra de Sant´Ana, pertencente à Capitania doada a Pero ou Pedro Lopes de Souza, irmão de Martim Afonso. (...) Depois da reversão, a Terra de Sant´Ana foi contemplada no território que se formou a Capitania de São Paulo e conservou-se até 1738, em que por Provisão do Conselho Ultramarino, foram a Ilha de Santa Catarina e o Rio Grande de São Pedro segregados da Capitania de São Paulo e incorporados à Capitania do Rio de Janeiro. (...) Pelas Cartas Régias de 9 de agosto de 1747 e 20 de novembro de 1749, foi criada a Capitania de Santa Catarina. Por Alvará de 9 de setembro de 1820 (...) ao território de Santa Catarina foi incorporada a Vila de Lages. (...) Tendo sido a Província do Paraná desmembrada da de São Paulo em época posterior (1853), o Estado do Paraná julgando-se com direito ao território de Lages, reclamou a sua incorporação, dando origem à famosa questão do ‘Contestado’” (Escobar, 1940, p.72). A controvérsia com o Paraná deu origem ao litígio do território denominado ‘Contestado’, por cuja posse debateram-se os dois Estados nos Tribunais durante setenta anos (1853-1924).

Em 1853, tem início a disputa de limites entre Santa Catarina e Paraná, quando este último se desmembra da Província de São Paulo e firma posse sobre o oeste catarinense. Com um caráter descentralizador, a Constituição de 1891 assegurava aos Estados o direito de cobrarem impostos sobre as exportações e a circulação de mercadorias, acirrando ainda mais a questão de limites.

Em 1904, Santa Catarina registra uma vitória importante no Supremo Tribunal Federal, instância a qual apela para a arbitragem. Apesar da conquista, o Paraná recorre da decisão dos ministros e  novamente é derrotado em 1909 e 1910. No STF, Santa Catarina baseou a sua argumentação na Carta Régia de 1749 e nos Alvarás de 1820 e 1821, e o Paraná fundamentou sua defesa no uti possidetis e na alegação de que não existia lei especial elaborada delimitando os Estados (Fleming, 1951). Vale lembrar que essa disputa territorial não tinha muita relevância para a população, já que o poder era sempre representado pelos caudilhos, não havia diferença em pertencer à Santa Catarina ou ao Paraná.

Ao mesmo tempo em que se desenvolvia o imbróglio entre os dois Estados, com discussões e deliberações nas mais altas cortes do país, conforme Mathias (1972, p.612), “no ano de 1912 começaram a surgir na região fronteiriça do Paraná e de Santa Catarina – denominada Contestado – os primeiros sinais de um movimento (...) entre os habitantes daquela área. Pequenos destacamentos policiais encontraram séria resistência por parte dos amotinados, e os acontecimentos chegaram a um ponto que o Governo Federal teve de intervir diretamente como acontecera quinze anos antes em Canudos”.

Tendo sido um dos conflitos sociais mais sangrentos ocorridos no Brasil, juntamente com a revolta em Canudos, a guerra do Contestado consistiu no choque entre militares enviados pelo governo e os milhares de camponeses sem terra estabelecidos na região do Contestado, situada ao oeste de Santa Catarina. Estes camponeses provinham da paralisação de obras de uma estrada de ferro e ainda outros camponeses que ocupavam as terras adjacentes à estrada de ferro. Esta faixa de terra ocupada pertencia à empresa americana contratante da ferrovia, a Brazil Railway. Com a expansão da área cafeicultora brasileira, surgiu a necessidade de se interligar os núcleos urbanos com a região sulina, para que esta os abastecesse com produtos agro-pastoris. Desta feita, criou-se uma comissão para a construção de uma Estrada de Ferro para ligar esses dois pólos.

A concessão da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande iniciou-se com o engenheiro João Teixeira Soares em 1890. Soares abandonou o projeto em 1908, transferindo a concessão para uma empresa norte-americana, a Brazil Railway Company, pertencente ao multimilionário Percival Farquhar, que, além do direito de terminar a obra, obteve a garantia de exploração de 15 Km de cada lado da estrada. Farquhar criou também a Southern Brazil Lumber & Colonisation, que objetivava extrair a madeira da região e comercializá-la no Brasil e no exterior. Além disso, a empresa adquiriu também o direito de revender os terrenos desapropriados às margens da estrada de ferro (Monteiro, 1985).

Para a construção do trecho necessário à conclusão da ferrovia, a empresa contratou cerca de 8000 homens nas cidades do Rio de Janeiro, Santos, Salvador e Recife, prometendo salários compensadores. Ao encerrar a construção da ferrovia, esses funcionários foram demitidos, sem qualquer auxilio por parte da empresa, a qual ignorou o acordo para retorná-los as suas cidades ao término do trabalho. Dessa forma, engrossaram a população carente que vivia na área do Contestado.

No ano de 1912 destaca-se um homem que seria seguido pelos camponeses carentes de terras para sua subsistência: o "monge" José Maria, a quem era atribuída uma aura sagrada. Em pouco tempo, José Maria arrebanhou um grande número de adeptos, à semelhança do messiânico Antônio Conselheiro, em Canudos. Este arrebanhamento de camponeses fiéis concentrou-se em Taquaruçu, desagradando as autoridades privadas locais (os coronéis), que logo trataram de expulsar tais camponeses. A partir daí, o povo liderado por José Maria migrou para a região do Contestado, mais precisamente em Campos do Irani. Os conflitos não cessaram: as situações históricas se cruzaram na medida em que se noticiou sobre a ocupação de catarinenses (o povo de José Maria ignorava a delimitação oficial) em terras paranaenses. Tropas lideradas pelo coronel João Gualberto Gomes de Sá, enviadas pelas autoridades paranaenses, atacaram os camponeses seguidores do "monge". Como resultado, as mortes do coronel e do "monge", bem como a derrota do exército pelos combatentes camponeses. A morte do "monge" o transformou em santo, ganhando novos adeptos localizados em diversas áreas adjacentes. Os rebeldes, contrários à República devido às mazelas sociais relacionadas ao novo regime, ostentavam uma postura favorável à Monarquia e declararam guerra aos poderes então constituídos. Os conflitos estenderam-se até 1916, tendo fim mediante uma ampla intervenção das forças militares federais, que aniquilaram a resistência dos militantes (Monteiro, 1985).

A questão de limites, o ideal monárquico, a oposição a certos coronéis, a questão de terras não explicam completamente o Contestado. Naquela guerra, ideais e crenças se confundiam e, passando de um nível a outro, a defesa da honra dos revoltosos deixa de ser mais relevante do que a defesa da religião que se funda. Monarquia e religião se fundem tendo um saudosismo oitocentista como esteio: funda-se uma “santa monarquia” (Monteiro, 1985, p.84). Se para o país o Contestado se destacava pela questão de limites, para os rebeldes que lutavam nas frentes isso não possuía qualquer significado. Mais do que defender a terra da subsistência, aqueles homens e mulheres defendiam um território celeste, algo prometido por um certo “monge”, um espaço onde a dor e o sofrimento não teriam lugar. Tal qual a Terra Prometida dos hebreus, para o povo do Contestado defender seu território é garantir para si o lugar de onde partiriam no dia do Juízo Final.

Durante esse período, registra-se uma alteração nos quadros dos revoltosos com a adesão dos ex-funcionários da Brazil Railway Company, ao lado de um expressivo número de fazendeiros que começavam a perder terras para o grupo Farquhar e para os coronéis. Com essas mudanças o grupo tornou-se mais organizado, distribuindo funções a todos, utilizando também táticas de guerrilha.

Em janeiro de 1914 um novo ataque realizado em conjunto com os dois Estados e o Governo Federal arrasa o acampamento de Taquaruçu. Contudo, a maior parte dos habitantes já havia se retirado para Caraguatá, área de difícil acesso. No dia 9 de março de 1914 os soldados travam uma nova batalha, sendo derrotados. Essa derrota repercute em todo o interior, trazendo para o reduto mais e mais pessoas.

Ao final do ano de 1916, um acordo assinado por Afonso de Camargo e Filipe Schmidt, respectivamente os governadores do Paraná e de Santa Catarina, põe fim às disputas territoriais. Este acordo só foi possível graças à atuação do Capitão Thiers Fleming, emissário direto do presidente da República Wenceslau Braz, responsável pela fórmula do “acordo honroso” desenhado de modo que o conflito se resolvesse de forma diplomática. Como conseqüência da eficiente articulação, o Estado do Paraná aceitou retirar-se da área em litígio em favor de Santa Catarina. Segundo Fleming (1951, p.1445), a argumentação utilizada pelos advogados baseava-se no princípio do uti possidetis, isto é, “tem direito ao território quem o possui” (Biato, 1999, p.241), respeitando a evolução histórica da colonização.

Apesar do bem sucedido acordo, movimentos autonomistas mantiveram a centelha viva provocando, de maio a agosto de 1917, uma insurreição popular pró-Estado das Missões, também sufocada. Em 03 de agosto de 1917, o Acordo de Limites é homologado consolidando o nome de Thiers Fleming como um conciliador.

Somente em 1924, cessou esta contenda entre os dois Estados: resolvida pelo Decreto Legislativo nº 3304, de 3 de agosto de 1917, tendo sido aprovados os trabalhos de demarcação de limites pelo Decreto nº 16595, de 10 de setembro de 1924, terminando definitivamente o litígio (Escobar, 1940).
 

Um Destacado Ator no Cenário Político Nacional: Thiers Fleming

O Capitão de Fragata e Engenheiro Naval Thiers Fleming destacou-se durante toda a Primeira República como um interlocutor constante do Governo Federal, do qual sempre fez parte como ocupante de cargos de confiança na estrutura militar (Fleming foi Chefe do Estado Maior brasileiro), com entidades e representações da sociedade civil relacionadas com a intelectualidade e com o pensamento brasileiro (IHGB, 1992).

Mineiro de São Gonçalo de Sapucaí, Fleming nasceu em 27 de agosto de 1880, vindo a falecer no Rio de Janeiro em 31 de agosto de 1971. Dentre os fatos mais importantes de sua vida, costumava mencionar sua atuação como emissário do presidente da República Wenceslau Braz nas negociações que resolveram, através de acordo, a  Questão do Contestado entre Paraná e Santa Catarina.

Thiers Fleming escreveu alguns livros e publicou artigos em periódicos especializados na área de Geografia a respeito do tema sobre o qual se dedicou por toda a vida: a questão de limites interestaduais. Publicou, a pedido de Wenceslau Braz, sua principal obra, Limites Interestaduais (1917), referência obrigatória para a compreensão da definição das fronteiras internas, configurando-se em verdadeiro inventário detalhado dos pontos utilizados como referência para a formação das unidades federativas[3].

Fleming foi sócio eminente de diversas instituições científicas e políticas de reconhecida importância na sociedade brasileira. Dentre as instituições, podemos citar a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (SGRJ), o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), o Clube de Engenharia (CE) e a Liga de Defesa Nacional (LDN). Todas as entidades prestaram homenagens e recomendaram a utilização de seu “memorial” na tentativa de solucionar todos os conflitos até o aniversário do primeiro Centenário da Independência (1922).

A partir deste momento, Fleming passa a colaborar com o debate como uma referência. Em 1918, organiza o livro Limites e Superfície do Brasil e seus Estados, a fim de subsidiar o projeto de eliminação das questões de limites até 1922. Em 1920, realiza-se a Conferência de Limites Interestaduais, convocada pelo Governo Epitácio Pessoa. Dentre os participantes, o Comandante Thiers Fleming assume a função de Secretário-Geral, representando a LDN, contribuindo para a feitura de diversos acordos. Entretanto, segundo Penha (1993, p.110), a Conferência “foi rechaçada por Lysias Rodrigues que, em trabalho publicado em 1944, argumentou terem sido infrutíferos os seus resultados, dada a permanência ainda de litígios que, segundo ele, contribuíram para reforçar os regionalismos”.

Em 1926, no 8º Congresso Brasileiro de Geografia, representa mais uma vez a Liga de Defesa Nacional e, na ocasião, pronuncia-se dos impedimentos para a extinção de litígios até 07 de setembro de 1922: “se tivéssemos persistência em nossos atos e cumpríssemos rigorosamente nossos compromissos teríamos celebrado o ‘Centenário da Independência’ tendo dirimido quase todas as questões de limites interestaduais” (Fleming. 1951, p.1448).

No Governo Washington Luís, os trabalhos são interrompidos com a extinção das Comissões de Limites ao Norte e ao Sul do Brasil, criadas durante o Governo Artur Bernardes para resolver os problemas de fronteiras naquelas regiões. Com a extinção, o material adquirido para o seu serviço se dispersa causando enormes prejuízos para a causa de Fleming.

Abrangendo o recorte relativo à conjuntura na qual Fleming escreve Limites Interestaduais, constatamos a atuação dedicada do Engenheiro Naval no tocante à resolução das disputas internas brasileiras. Dedicou-se a esta causa que, dificilmente, poderia extinguir. No seu projeto utópico de reduzir drasticamente as questões de limites até 1922, empreendeu esforços e imiscuiu-se na política nacional como poucos. Em um dos seus típicos pronunciamentos ufanistas, Fleming (1917, p.05) declara que “o Brasil, graças a Rio Branco, tem hoje as suas fronteiras com as nações vizinhas definitivamente demarcadas em sua quase totalidade. No entanto, isto não acontece aos Estados componentes da federação. Estados grandes, com escassa população, vivem disputando pedaços de terra e armando-se uns contra os outros. Fato de suma gravidade por atentar contra a coesão nacional – merece a atenção de todos os Brasileiros que amam a sua pátria e principalmente os que têm a responsabilidade da direção dos seus destinos”. E conclui: “Meu modesto intuito é apenas pôr em foco este perigo, pois, resolvido o caso do Contestado, que era o que se apresentava mais complexo e cheio de dificuldades, os outros podem sê-lo com relativa facilidade – antes que qualquer deles alcance a situação daquele” (1917, p.05).
 

Considerações Finais: A Efetiva Substituição do Projeto de Brasil

O abandono da escravatura, ainda no século XIX, desencadeou processos sócio-espaciais de relevante importância, como a queda do Império, a mudança de paradigmas econômicos e a desestruturação do arranjo institucional e político do Brasil. Décadas se passaram até que as elites brasileiras definissem um novo pacto, tendo sido a Primeira República o momento de transformações profundas na forma pela qual o capital se realizava no país, uma fase transitória de adaptação entre estruturas diferentes de reprodução. Aproveitando-se do caos, as oligarquias assumiram o país e executaram suas pretensões egoístas em detrimento de uma proposta que contemplasse a sociedade como um todo.

A manutenção da economia primário-exportadora sustentada pelo café suportava os constantes choques internacionais graças à intervenção do Governo Federal. Rompidos os acordos e quebrada a Bolsa, o Brasil buscou adotar uma nova postura, mais condizente com a situação. Era o momento aguardado pelas elites para implantar seu novo projeto de Brasil: com a crise de 1929, cai também toda a estrutura político-fundiária que sustentava o Brasil oligárquico. Em 1930, assume a Presidência da República o gaúcho Getúlio Vargas, cargo que ocuparia pelos próximos 15 anos.

A serviço das elites, com destaque para a classe média urbana em desenvolvimento, Vargas substitui o modelo econômico brasileiro e desvia as atenções do país para um programa de substituição de exportações baseado em uma política industrial. Para tal, Vargas reforma a Constituição Federal e reduz gradativamente o poder das oligarquias rurais na administração federal. Assim, adota medidas drásticas, como o fechamento do Congresso Nacional e das Assembléias Legislativas, substitui os governadores por interventores nomeados pela Presidência da República e centraliza a administração, atacando os regionalismos. No tocante à questão de limites interestaduais, a Constituição de 1934 estabelecia o uti juridetis como o instrumento adequado (e rápido) para a resolução das demandas (Penha, 1993).

Vargas utilizava a urbanização do Brasil para enfraquecer os regionalismos, apoiando-se nas classes urbanas. Sobre isso, Pinheiro pondera que, por ser “a urbanização um processo no interior do qual há uma lenta diferenciação social, principalmente depois da Primeira Guerra Mundial, é inegável que os novos protagonistas irão engrossar as fileiras da reação antioligárquica (profissionais liberais, funcionários, empregados e inclusive operários urbanos). Mas isso acontece em conseqüência de alterações ao nível político, quando alguns grupos regionais de dominação ampliam o esquema de aliança política, para se fortalecerem contra as oligarquias nacionalmente dominantes” (Pinheiro, 1985, p.23).

Contrárias à indústria durante a Primeira República, as classes médias urbanas se abrem para a industrialização com Vargas. Recusado o modelo agro-exportador sob as bases do café e da mão-de-obra escrava (anteriormente defendido), a radicalização antioligárquica se instala. Pinheiro conclui que “as classes médias sempre estiveram associadas às diversas alterações da aliança política dominante” (1985, p.26). Esse era o esteio de um novo projeto político do Brasil que se chocou frontalmente com o projeto do Estado da Primeira República. O Estado sob Vargas produziu um nacionalismo inexistente, alinhado a um pertencimento ao território brasileiro como um todo e uma fidelidade ao Governo como jamais se viu até aquele momento. As questões de limites subsistiram durante esse período da história republicana, mas reduzidas em número e gravidade (Escobar, 1940), apaziguadas pelo poder e personalidade do presidente Getúlio Vargas, algo impensável no contexto da finada República Oligárquica.
 
 

Notas
 

[1] As principais oligarquias estaduais das Regiões Norte e Nordeste eram representadas pelas seguintes famílias: no Amazonas, os Nery; no Pará, os Lemos; no Piauí, os Pires Ferreira; no Ceará, os Accioly; na Paraíba, os Machado; e em Alagoas, os temidos Malta (extraído de Romero, 1912).
 
[2] A exceção consiste na Guerra do Contestado, que contou com a intervenção direta do presidente Wenceslau Braz, a fim de dirimir a questão de limites entre os dois Estados e sufocar a rebelião do campesinato.
 
[3] Esse tipo de compilação é elogiável diante da dificuldade de obtenção de informações, bem como da disponibilidade (existência) de documentos que ratifiquem os limites estabelecidos. Esse exercício teve Fleming como pioneiro (Limites Interestaduais e Limites e Superfície do Brasil e seus Estados) e encontra paralelo apenas em Ildefonso Escobar (Síntese Histórica da Formação dos Estados, Distrito Federal e Território da República dos Estados Unidos do Brasil e Divisas Interestaduais) e André Roberto Martin (As Fronteiras Internas e a Questão Regional no Brasil).

 

Bibliografia

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BIATO, Marcel. O Processo de Paz Peru-Equador. Parcerias Estratégicas, nº6, março/1999

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PENHA, Eli Alves. A Criação do IBGE no Contexto da Centralização Política do Estado Novo. Rio de Janeiro: IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações, 1993.

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ROMERO, Sylvio. A Geografia da Politicagem (o Norte e o Sul do Brasil). Rio de Janeiro: Coleção Visconde de Ouro Preto, 1912.

ROQUETTE-PINTO, Edgar. Limites Interestaduais. Relatório apresentado ao Sr. Dr. Alfredo Pinto Vieira de Mello, D.D. Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Professor E. Roquette-Pinto, seu representante no 6º Congresso Brasileiro de Geografia, reunido em Belo Horizonte a 7 de setembro de 1919. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1919.

 
 

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Ficha bibliográfica:
 
SANTOS, J. C. F. As questões de limites interestaduais do Brasil: transição política e instabilidade do território nacional na Primeira república (1889-1930). Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (17). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-17.htm> [ISSN: 1138-9788]

 
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