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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 

ISSN: 1138-9788. 

Depósito Legal: B. 21.741-98 

Vol. X, núm. 218 (27), 1 de agosto de 2006 

OS MILITARES E O ESPAÇO URBANO DO RIO DE JANEIRO:
UM PROGRAMA DE PESQUISA EM GEOGRAFIA URBANA E GEOPOLÍTICA

Nelson da Nobrega Fernandes
Departamento de Geografia

Universidade Federal Fluminense


Os militares e o espaço do Rio de Janeiro: um programa de pesquisa em geografia urbana e geopolítica (Resumo)

O aspecto geopolítico e militar da ocupação da cidade só merece maiores atenções nos episódios da sua fundação. Contudo, exercendo a primazia geopolítica brasileira entre as metades dos séculos XVIII e XX, o espaço urbano da antiga capital do Brasil foi extensamente marcado pelas instituições militares. O auge desta situação ocorre na primeira metade do século XX com o processo de modernização das forças armadas, bem como pelo crescente protagonismo político da corporação militar na vida brasileira e da cidade, com a fixação de mais de um quarto do total de seus efetivos no antigo Distrito Federal. Encontra-se em todos os setores da área urbana várias unidades militares, algumas com a extensão de diversos bairros. Investigar as forças armadas como um agente modelador do espaço urbano do Rio na primeira metade do século XX é o eixo deste projeto de pesquisa.

Palavras-chaves espaço urbano, militares, Rio de Janeiro
 


The military and the space of Rio de Janeiro: a research program on Urban Geography and Geopolitics (Abstract)

The geopolitical and military aspect in the city’s occupation only deserves much attention if we take into consideration the episodes of its foundation. However, taking the Brazilian geopolitical primacy between the halves of the 18th and 20th centuries, the urban space of Brazil’s old capital was extensively marked by military institutions. The highest point of this situation takes place in the first half of the 20th century with the armed forces modernization process as well as the growing political protagonism of the military corporation in the Brazilian life and in the city, with the settlement of more than a quarter of all the military personnel in the old Federal District. It is possible to find several military units in all sectors of the urban area, some with the same extension as many districts. The axis of this research project is to investigate the armed forces as a shaping agent of Rio de Janeiro’s urban space in the first half of the 20th century.

Key words: urban space, the military, Rio de Janeiro



 
Tradicionalmente, o aspecto geopolítico e militar da ocupação da cidade do Rio de Janeiro só mereceu maiores atenções no episódio da sua fundação pelos portugueses e nos primeiros tempos da colonização, como se pode ver em Bernardes (1962) e Cardoso (1968). Após a consolidação da cidade fortificada na acrópole do Morro do Castelo e com o desenvolvimento mercantil na cidade baixa, a função geopolítica e militar vai desaparecendo de suas descrições. É como se a relações entre os assuntos militares e a cidade tivessem deixado de existir ou perdido importância. Em 1999 este juízo foi amplamente reconhecido em seminário organizado pela Escola Superior de Guerra (ESG), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e a Academia Brasileira de Ciências, em cujos anais seus organizadores escrevem o seguinte: “o que há de novo neste livro é o descobrimento desta convivência. (...) foi necessário que a instituição militar de ensino de maior prestígio no país, a Escola Superior de Guerra, comemorasse cinqüenta anos, para que fosse possível a montagem de um ciclo de palestras que envolvesse a academia, os estudiosos e historiadores militares no desvelar dessa relação (Krieger; Pereira; Peregrino, 1999: 5)”.

De uma maneira geral, com as devidas exceções, a exemplo de Everardo Backeuser, este divórcio é compreensível perante a recusa generalizada entre os geógrafos em discutir temas geopolíticos, como foi denunciado por Yves Lacoste (1978) em A geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra. Entretanto, argumentos geopolíticos levantados principalmente pelos militares, acusando a vulnerabilidade do Rio – por sua posição costeira e pelo perigo que a agitação das massas representava para o governo central (Vesentini: 1986) -, foram acionados para justificar a transferência da função de capital federal e a construção de Brasília.

Sendo desde o princípio um dos principais pontos estratégicos da geopolítica brasileira, tendo ocupado a sua primazia política entre o século XVIII e a primeira metade do século XX, o espaço do Rio de Janeiro foi muito marcado pelas instituições militares e suas instalações. Acompanhando a evolução da cidade observamos o crescimento e diversidade dos espaços militarizados, que foram determinados, evidentemente, pelas possibilidades e necessidades do Estado nas diferentes conjunturas geopolíticas ao longo de quatro séculos (Pondé, 1967).

Os espaços militares têm uma grande força de permanência, num certo sentido comparável à das instituições religiosas e seus edifícios, bem como uma lógica espacial subordinada a seus interesses e objetivos particulares. Foram estes elementos que orientaram onde e como determinadas áreas da cidade passaram a ser incorporadas para o desenvolvimento de suas atividades. Assim, de leste a oeste e de norte a sul, o território do município está marcado por muitas instalações militares, algumas com a extensão de vários bairros, como nos casos de Vila Militar e Bases Aéreas do Galeão e dos Afonsos. São Cristóvão, Praia Vermelha, Realengo e Grajaú têm ou tiveram diferentes unidades militares, que não raro possuíam também vilas ou conjuntos residenciais. Na própria área central da cidade existem grandes unidades do exército: a monumental e antiga sede do Ministério da Guerra, no Campo de Santana; da Marinha, no litoral entre a Praça 15 e a Praça Mauá e mais um conjunto de ilhas próximas; e da Aeronáutica, na Esplanada do Castelo e Aeroporto Santos Dumont.

Como centro geopolítico do país desde o século XVIII, quando lhe é atribuído pelos portugueses a condição de capital, o Rio sempre concentrou grandes contingentes do exército e da marinha, especialmente com o advento da República. Segundo Carvalho (2005: 32), durante o Império “a localização das forças do Exército obedecia a dois objetivos: a proteção de fronteiras potencialmente conflituosas e o controle de alguns centros urbanos litorâneos tradicionalmente inquietos, sobretudo a própria sede do governo central”. Era uma distribuição bastante desigual, pois o Estado do Rio Grande do Sul e a cidade do Rio de Janeiro concentravam quase 50 per cento do Exército. Em 1888, estavam alocados no Rio o segundo contingente do Exército (15, 65 per cento), o Rio Grande do Sul ocupava o primeiro lugar (31, 13 per cento), Mato Grosso o terceiro lugar (10,8 per cento). São Paulo (3, 29 per cento) e Minas Gerais (0,96) estavam praticamente desguarnecidos; Bahia e Pernambuco (5 per cento) ficavam em posição intermediária.

Com a República observa-se o aumento do contingente do exército no centro-sul, especialmente na capital do país. Em 1920, a participação do então Distrito Federal deu um salto para 26,18 per cento dos efetivos do Exército, os de São Paulo e Minas Gerais cresceram, respectivamente, para 8,56 per cento e 8,82 per cento, enquanto no Rio Grande do Sul houve pequena redução (21,68 per cento). O Mato Grosso (2,60), a Bahia (3,60) e Pernambuco (1,64) sofreram fortes perdas na nova geografia do exército da República. De qualquer forma, foi mantido o padrão imperial de fixar quase 50 per cento dos efetivos militares em apenas duas unidades da federação. Para Carvalho (op.cit.:33) tal concentração explica que desde a República até  1964 “quase todos os movimentos militares de âmbito nacional  (...) caracterizaram-se por choques, reais ou previstos, entre tropas que vinham do Rio Grande do Sul e tropas que iam do Rio de Janeiro”.

 Esta notável expansão da guarnição na capital federal nas primeiras décadas do século XX reflete uma situação em que para o poder central o controle da cidade tornou-se ainda mais estratégico que no Império, especialmente levando-se em conta que a Marinha também ali mantinha suas principais frotas e arsenais. E isto irá se ampliar ainda mais com o desenvolvimento da aviação militar e a criação da Aeronáutica. É de se esperar que a destinação de diversas áreas espalhadas por todo espaço do Rio de Janeiro para uso militar resultou em muitas conseqüências para o desenvolvimento de sua dinâmica e configuração espacial urbana.

A investigação destes problemas poderá levantar e elucidar diferentes questões não abordadas ou previstas pelos estudos urbanos e a literatura urbana carioca. O período a ser estudado compreende o inicio do século XX, quando começa o chamado processo de modernização e profissionalização das forças armadas, até 1960, quando os efeitos da transferência da capital para Brasília reorientam a posição da cidade no quadro geopolítico do país. Como se sabe, por parte das forças armadas a década de 60 corresponde também ao clímax de sua crescente interferência na vida política e social do Brasil. É um marco para a história política das organizações militares, do país e da própria cidade.

Neste estudo pretendo problematizar como as instituições militares construíram e ocuparam uma parte significativa do espaço urbano do Rio de Janeiro. Cálculos ainda precários indicam que as áreas militares podem alcançar parcelas significativas do território urbanizado do Rio de Janeiro. Por esta razão o objetivo geral da pesquisa é tratar as forças armadas como um agente de produção do espaço urbano, através da magnitude de sua ação e considerando a especificidade e complexidade das suas necessidades, assunto que ainda não foi devidamente reconhecido pelos estudos urbanos do Rio de Janeiro.

O fato de apenas uma cidade abrigar mais de um quarto das organizações militares de um país indica que este é o seu espaço mais militarizado; confere ao Rio de Janeiro uma situação urbana bastante singular, seja do ponto de vista do território nacional, seja do ponto de seu ordenamento interno. Conforme já observei, esta presença militar se ampliou ao longo da primeira metade do século XX. No caso do Exército, números fornecidos por Carvalho (2005:58) apontam que entre 1888 e 1920 seu efetivo na cidade passou de 1839 para 11 236 homens, aumentando em seis vezes. E naturalmente, esta expansão dos efetivos militares e suas respectivas atividades necessitaram de terrenos e infra-estruturas para sua acomodação em uma escala bastante considerável. Atualmente estão concentrados na cidade cerca de 70 per cento da Marinha e 30 per cento da Aeronáutica e do Exército respectivamente  (Lessa: 1999).

O primeiro objetivo específico da pesquisa é conhecer a amplitude das forças armadas como um agente modelador do espaço urbano; inventariar, quantificar e analisar o crescimento das áreas militares no Rio de Janeiro, apontado suas relações e conseqüências para o ordenamento interno do espaço urbano durante a primeira metade do século XX.

Um princípio teórico geral de análise recomenda que o entendimento da atuação de um agente modelador do espaço urbano requer identificar a especificidade de suas ações, necessidades, projetos e projeções na sociedade. É preciso conhecer a lógica das organizações militares, em que, quando e como ela é diferente de outros agentes públicos e privados tradicionais no processo de produção do espaço urbano do Rio de Janeiro. Este é um segundo objetivo específico a ser alcançado. Pretendo desse modo qualificar o processo de expansão das áreas militares, relacionando-o diretamente com as necessidades e objetivos de seus promotores.

Finalmente, o terceiro objetivo da pesquisa é a reconstituição das relações entre a evolução interna das forças armadas e sua crescente participação na vida política do Brasil com as características de sua intervenção no espaço urbano da cidade.  Trata-se de uma linha de investigação necessária para reconhecer os nexos entre a organização militar e seu espaço na cidade. Neste sentido, pretendo focalizar as forças armadas segundo três aspectos. A reorganização e profissionalização; a industrialização da guerra e seus efeitos sobre o os espaços militares; a crescente participação dos militares na vida política e social do país.

Esta pesquisa se justifica por duas razões. Em primeiro lugar a trajetória do pesquisador que tem se dedicado aos problemas da evolução urbana do Rio de Janeiro entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX (Fernandes, 1996, 1998, 1999, 2001ª, 2001 b), possuindo, portanto, experiêencia sobre o estado do conhecimento e dos problemas da questão. Trata-se de uma pesquisa nova sobre a geografia urbana carioca que vem sendo realizada de forma sistemática há mais de dez anos, podendo ser entendida como um aprofundamento de estudos sobre o espaço urbano carioca, focalizado sobre o aspecto ideológico, simbólico, político e cultural. A partir de 2004 venho orientando dissertações e teses de graduação e pós-graduação sobre estes temas.  Como segunda justificativa levanta-se a favor dessa pesquisa a escassez ou ainda o pequeno leque de tipos de abordagens nos estudos sobre os militares e suas organizações. Campos (1985) e Carvalho (2005) demonstram e caracterizam este quadro amplamente, indicando novas e promissoras linhas de investigação.

A primeira razão levantada decorre do fato de a relação entre o espaço urbano do Rio de Janeiro e, dentro dele, a posição destacada das áreas militares, chamarem a minha atenção desde uma pesquisa sobre o subúrbio carioca (Fernandes: 1996), quando constatei que a expansão da cidade para oeste, ao longo do eixo ferroviário da Central do Brasil, foi interceptada pela extensa área ocupada pela Vila Militar e o Campo de Instrução do Gericinó. A mancha urbana do Rio que já é bastante extensa e descontínua, em razão da presença dos Maciços da Tijuca e da Pedra Branca, se expande e se fragmenta ainda mais por força desses espaços militares que excluem ou não podem conviver com outras formas de uso e ocupação do solo.

Posteriormente, comecei a indagar qual a origem do modelo e a lógica espacial que presidiu a implantação da Vila Militar, em 1909, então situada na zona rural do Distrito Federal. As primeiras investigações sobre esta unidade do Exército mostraram que a sua construção foi parte do projeto de reorganização das forças armadas brasileiras, que começou a ser esboçado com a proclamação da República mas, de fato,  só implantado nas duas primeiras décadas do século XX. A Vila Militar é, sem duvida, um dos “fixos” espaciais mais expressivos da modernização do Exercito. Entretanto, nos levantamentos realizados até agora não encontramos qualquer estudo sobre o assunto. Nada de mais significativo foi achado nos livros e periódicos da Biblioteca do Exército. Em seu Arquivo geral só achei um único relatório do comandante da Vila Militar, prestando consta de sua gestão do ano de 1914, e o responsável pelo principal acervo da memória do Exercito me assegurou que ali nada mais existe.

A falta de informações e estudos maiores sobre a Vila Militar já é uma boa razão para justificar esse projeto de pesquisa, considerando o seu impacto no tecido urbano. Mas essa dimensão se amplia quando relacionamos a sua construção com o processo de modernização das forças armadas no século XX, quando tentamos entendê-la em sua dimensão espacial, o que obriga a trabalhá-la também como um estudo sobre os militares.

Como já foi salientado, em Campos e Carvalho encontra-se reiteradamente o estímulo para esta orientação.  Campos (op. cit.:15) lamentou a estreiteza da tradição de se estudar os militares quase exclusivamente sob o ângulo das intervenções armadas na política: “um fato obviamente compreensível, mas [que] não deixa de se constituir um desvio. Afinal as intervenções militares são apenas o aspecto mais espetacular do comportamento da instituição, geralmente o momento de explosão de tendências que se formaram ao longo dos períodos de normalidade: frustrações, isolamento ou reclusão dentro de um universo socialmente estreito, crise permanente de identidade profissional e assim por diante”. O peso dessa tradição, com uma ou outra exceção, impediu que o tratamento dos militares em seu cotidiano nos quartéis, como e onde vivem, seus hábitos, “as comemorações e cerimoniais da instituição e todo o universo simbólico que marca a vida do soldado”. É o politicismo das crises militares que marcam seus estudos, por isto a sociologia deveria, na opinião de Campos: “resgatar a instituição militar como objeto de análise por si mesma, e não pelos traumatismos de toda ordem que elas provocam”.

A proposição de Campos de se estudar os processos que envolvem as forças armadas como uma instituição em seu processo de constituição multifacetado justifica amplamente a pesquisa sobre a suas dimensões espacial, geográfica, política, social e paisagística da cidade do Rio de Janeiro. E tanto o tempo como o espaço do Rio de Janeiro estão se revelando um universo riquíssimo para se desenvolver tal proposta, por que aqui se concentrou um dos aspectos mais marcantes da história das forças armadas no século XX, ou seja, a sua modernização, cuja complexidade faz parte das transformações da sociedade e do Estado brasileiro. Trata-se de um processo de adequação aos tempos modernos, a uma conjuntura altamente beligerante da primeira metade do século XX  e seus dois conflitos mundiais, que trouxe o serviço militar obrigatório, reorganizou as unidades do Exército e criou as Brigadas Militares. Entre 1906 e 1914 jovens oficiais foram enviados à Alemanha para estagiar em seu exército, e o Forte de Copacabana foi construído com assessoramento germânico.

Durante este período esteve à frente dessas iniciativas o Marechal Hermes da Fonseca, primeiro com Ministro da Guerra, e depois, como Presidente da República. Hermes visitou a Alemanha, em 1908, e Paris, em 1910, onde tratou e se informou sobre problemas ligados à modernização dos exércitos europeus, inovações da grande indústria, “inclusive plantas e informes urbanísticos relativos a vilas operárias” (Fonseca Filho, 1961: 126). Hermes deve ter utilizado modelos e idéias colhidas nestas ocasiões na construção da  Vila Militar e da Vila Proletária Marechal Hermes, esta última parcialmente  inaugurada em 1913, sendo de fato a primeira intervenção federal na questão da habitação popular no Brasil.

O aprofundamento dessa pesquisa deverá ser uma investigação sobre as influências germânica e francesa como matrizes espaciais e geográficas no pensamento militar brasileiro.  No caso da França tal presença se verifica por mais de 20 anos, pois entre 1919 e 1942 o Brasil contratou e renovou seguidamente um acordo com uma missão militar formada por oficiais daquele país (Malan: 1988). É importante destacar que o pensamento militar modernizador tinha consciência que seus objetivos dependiam de uma reordenação do espaço nas mais diferentes escalas. Assim, como observou Fonseca Filho (op. cit.: 18) a respeito da educação do “soldado-cidadão”, aspecto capital da modernização das forças armadas, a sua formação não poderia se dar em qualquer ambiente: “Com o serviço militar obrigatório, vem a necessidade de quartéis higiênicos, confortáveis e campos de instrução. A maioria dos corpos está aquartelada em casarões que não preenchem as exigências do conforto e da sociabilidade indispensáveis à vida dos conscritos, nos quais se encontrará o mais rude camponês com o mais sofisticado intelectual”.

Ao longo da história a fundação de cidades e seu desenvolvimento encontraram nas necessidades de natureza militar e geopolítica uma presença mais ou menos constante. A função defensiva e de proteção é uma das características mais essenciais dos sítios urbanos. Como diz Mumford (1982), morfologicamente a cidade é um “recipiente”. Muito frequentemente constata-se que o fenômeno urbano surgiu e se desenvolveu ao lado de fortes e fortalezas, pontos que associados hierarquicamente formavam a rede de poder territorial dos Estados. Quando não foi assim, o aumento da importância política ou econômica das cidades requisitou a ampliação de segurança e proteção com suas respectivas instalações - fortes, quartéis, depósitos, estrebarias, oficinas, estaleiros, muralhas, arsenais – formando uma parte muitas vezes expressiva e indiscutivelmente estratégica do tecido urbano. Obviamente, por envolverem objetivos e conveniências do sistema de poder são espaços fechados ao uso e ao conhecimento da maior parte de seus cidadãos.

Uma boa parte da compreensão que temos hoje sobre o processo de produção do espaço urbano resulta de estudos sobre os seus agentes modeladores como o Estado, os proprietários fundiários, as diversas frações do capital, grupos e classes sociais, mais ou menos nessa ordem de importância: Harvey ( 1972), Capel ( 1975), Casttels: 1979), Lojkine (1981) e Corrêa (1989). O modo como esses grupos projetam, disputam e se apropriam do espaço da cidade, nas suas diferentes partes e períodos de tempo, muito nos diz sobre as formas, os processos, as funções e estruturas (Santos: 1988: 49) que especificam a dinâmica urbana.

Considerando as diversas conjunturas é compreensível que o avanço dos estudos sobre um determinado tema privilegie certos aspectos deixando outros de lado. Contudo, mais cedo ou mais tarde, graças a uma visão mais complexa e ampla do objeto pode-se ter a oportunidade de enxergar zonas obscuras e mal-conhecidas, certo silêncio com alguns assuntos e personagens sobre os quais não se fala e não se investiga apesar de estarem presentes e por longo tempo em nossa paisagem. Este é bem o caso das organizações militares enquanto agente modelador do espaço urbano do Rio de Janeiro, pois sua importância estratégica, política e econômica para o país sempre teve por conseqüência a militarização de diversas partes da cidade.

Se as forças armadas fossem uma organização estatal comum, esta pesquisa seria apenas um estudo de caso da intervenção do Estado como agente modelador do espaço urbano. O problema  é que as forças armadas têm particularidades inconfundíveis, o que requer uma compreensão teórica e empírica do papel histórico dos militares no Brasil. Nesta direção parece adequada à proposição de Carvalho em se estudar as forças armadas do ponto de vista do conceito sociológico das organizações. Diferente dos analistas que se limitaram a refletir sobre a evolução das forças armadas como reações aos estímulos externos da vida política, ou que os militares funcionem como simples representantes de grupos sociais, ele argumenta: “a sociologia tem mostrado exaustivamente (...) que as organizações possuem características e vidas próprias que não podem ser reduzidas a meros reflexos de influências externas. Isto vale particularmente para as organizações militares que, além de serem de grande complexidade, se enquadram no que Erving Goffman chama de instituições totais”. Sua característica mais marcante é o grande controle que exercem sobre o cotidiano de seus membros, que “chega a exigir uma radical transformação da personalidade”, impondo-lhes comportamentos e valores que resultam em identidades específicas. “Uma identidade mais forte aumenta o grau de autonomia da organização em relação ao meio-ambiente” (Carvalho, op. cit.: 13).  Usando as palavras de Carvalho, é possível formular a questão de como os militares construíram a sua autonomia no “meio-ambiente” do Rio de Janeiro, como os seus espaços foram estrategicamente construídos para as suas finalidade e projetos.

Adotar a análise organizacional em nosso caso parece bastante adequado. Afinal de contas, o espaço é um dos meios fundamentais para que uma determinada lógica social e política funcione, e é através do espaço, como observou Soja (1993), que a sociedade organiza o tempo e a sua vida.  Neste sentido, pode-se dizer que a análise do espaço militar dentro desse trabalho é, em boa parte, um aspecto do estudo organizacional das forças armadas, isto é, como um problema que diz respeito à dialética espaço e sociedade, um objetivo sempre almejado e que justifica a própria geografia enquanto ciência social.
 
 

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Ficha bibliográfica:

 
FERNANDES, N. da Nobrega.Os militares e o espaço do Rio de Janeiro: um programa de pesquisa em geografia urbana e geopolítica. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (27). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-27.htm> [ISSN: 1138-9788]