Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. X, núm. 218 (38), 1 de agosto de 2006 

UMA CIDADE EM (RE)CONSTRUÇÃO: A CIDADE DA PARAHYBA NO SÉCULO XIX[1]

Doralice Sátyro Maia[2]
Departamento de Geociências
Universidade Federal da Paraíba


Una Ciudad en reconstrucción: La Ciudad de Parahyba (Brazil) en siglo XIX (Resumen)

El siglo XIX normalmente se caracteriza por dos grandes ideales que gravaron la forma y la vida de las ciudades: la Modernidad y el Higienismo. Sus repercusiones se hacen sentir incluso en las ciudades más simples del Noreste Brasileño. La ciudad de Parahyba, en este periodo, está marcada por la intensidad de las construcciones y reparaciones realizados por la Secretaria de Obras Públicas: pavimentación de las calles, construcción de paseos, reparaciones en los edificios públicos, construcción de escuelas. Todas estas obras, si por un lado promueven una mejora en la estructura de la ciudad, por otro, provocan algunas desavenencias en la vida de sus habitantes. El objetivo de esta comunicación es hacer una lectura de la Ciudad de Parahyba en el siglo XIX  a partir de los documentos de la Secretaria de Obras Públicas que ordenaban la ejecución de esos trabajos, así como entender las repercusiones de ellas en la vida de sus habitantes. Para ello analizamos, además de los documentos de la Secretaria de Obras Públicas, los oficios y las cartas escritas a la institución y las noticias de los periódicos locales. La investigación fue realizada en el Archivo Histórico del Estado de Paraíba, en el Núcleo de Documentación e Información Histórica Regional y en el Instituto Histórico y Geográfico de Paraíba (Brasil).

Palabras clave: ciudad; siglo XIX; Modernidad; Higienismo.



A city in (re)construction: The City of Parahyba (Brazil) in the 19th century (Abstract)

The 19th Century is normally characterized by two great ideals that characterized the shape and life of cities: Modernity and Hygienism. Their impact can be felt even in more simple cities in the Northeast of Brazil. The city of Parahyba in this period is marked by the intensity of constructions and repairs carried out by the Department of Public Works: paving of streets, construction of promenades, repairs in public buildings, construction of schools. If, on the one hand, all these works cause the improvement in the structure of the city, on the other hand, they disturb the life of its inhabitants. The objective of this communication is to make a reading of the City of Parahyba in the 19th century, starting from the documents of the Department of Public Works, which ordered the execution of such works, as well as to understand their impact in the life of its inhabitants. Thus, besides the documents of the Department of Public Works, the         official letters and other letters written to this institution were analyzed together with the news in the local newspapers. The research was carried out in the Historic Archive of the State of Paraíba, in the Nucleus of Documentation and Regional Historic Information and in the Geographical and Historic Institute of Paraíba (Brazil).

Key words: city; 19 century; modernity; hygienism.


A Cidade da Parahyba: uma apresentação inicial

A princípio, achamos oportuno caracterizarmos o nosso objeto de estudo, a Cidade da Parahyba. Este núcleo, nasce cidade em 1585, dentro da perspectiva de cidade real, à margem direita do rio Sanhauá, com a denominação de N. S. das Neves - em homenagem à santa do dia quando os portugueses aqui aportaram -, visando fixar um ponto estratégico no mapa de conquista[3]. Razão esta que a fez surgir enquanto uma urbe sede como definiu Nelson Omegna (1961). Nasce cidade tão somente para exercer funções administrativas e comerciais e, principalmente, para viabilizar a continuidade da ocupação portuguesa em direção norte sobre estas novas terras.

O fato de ter sido criada para atender o princípio do domínio territorial fez com que a cidade permanecesse por um longo período sem um expressivo crescimento e sem grandes alterações na sua estrutura. A simplicidade, as construções marcadas fundamentalmente pelas igrejas e conventos foram destacadas pelos viajantes que por ela passaram até o século XIX. Elias Herckman, administrador da capitania no período do domínio holandês (1634 - 1641) destaca além daquelas construções, “pouco mais ou menos no meio da cidade e do lado sul” a praça do mercado, a casa do Conselheiro e o pelourinho “que assinala o lugar das execuções na cidade.” (Herckman, 1982, p. 14).

Ainda referente à simplicidade do lugar, tão mencionada pelos vários escritores e descritores encontrados, é preciso esclarecer que no Brasil, durante o período colonial, os espaços com esplendor eram os espaços rurais, os engenhos de açúcar, as fazendas de gado e de café e as cidades constituíam-se em espaços pouco expressivos: as poucas ruas traçadas, prédios modestos, pequena atividade econômica e principalmente ausência de uma vida social mais dinâmica. (Cf. Gilberto Freyre, 1960, Holanda, 1996). Este quadro geral brasileiro muda substancialmente a partir do século XIX com a chegada e permanência da família real na cidade do Rio de Janeiro, como bem escreveu Maurício de Abreu: “Um acontecimento que veio alterar definitivamente o rumo da sociedade brasielira: a transferência da sede do governo português para o Brasil.” Esclarece o autor:

“A corte portuguesa demorou-se no Rio de Janeiro de março de 1808 a abril de 1821. Foram treze anos de transformações políticas, econômicas e culturais que, em alguns casos, modificaram as estruturas sociais já consolidadas da colônia, e em outros adaptaram-se a elas ou acabaram por reforça-las, num verdadeiro choque de temporalidades”. (Abreu, 1997, p.37).
Assim, tratando-se da Capitania da Parahyba, eram os engenhos de açúcar que tinham maior intensidade econômica e, também, maiores construções, enquanto a Cidade da Parahyba apresentava uma configuração bastante singela, que sofria alguns incrementos quando se davam os ápices das produções agrícolas, especialmente da cana-de-açúcar e do algodão. Concordando com a sua conformação e estrutura, a sua vida social era “marcada principalmente pela ausência de um dinamismo próprio, destacando-se apenas as festas religiosas que provocavam a convergência dos "brancos senhores" para essa cidade; e que  portanto, permanecia como uma configuração espacial intermediária do campo onde havia uma vida dinâmica.” (Maia, 2000, p. 63).
É, então, a partir do século XIX, que se percebem algumas transformações na cidade, tanto no que diz respeito à sua morfologia como à sua vida social. Muito embora ainda estivesse restrita às duas porções iniciais, Cidade Alta e Cidade Baixa, como disse Mariz (1978), já se viam muitos sobrados e casas nobres dos senhores de engenho que aqui vinham “invernar”, como também dos negociantes “ricos do Varadouro que tinham suas vivendas residenciais na própria rua deste nome, depois Visconde de Inhaúma, hoje João Suassuna, e nas ruas das Convertidas, hoje Maciel Pinheiro, da Areia, Viração, Direita” ou ainda nos sítios de Tambiá e Trincheiras. “Os sobrados de três pavimentos da rua do Varadouro eram armazém, morada do negociante e dormida dos caixeiros, ao mesmo tempo.” (Mariz, 1978, pp. 90-91).
Portanto, é sobre a Cidade da Parahyba no século XIX, que iremos tratar neste artigo. Cidade que muito lentamente vai se expandindo e incorporando elementos da Modernidade, do Higienismo e de todo o conjunto de idéias que marcam este período da história e mais precisamente, da história brasileira. Para tanto, pensamos ser indispensável fazermos uma breve explanação sobre o século XIX e a cidade deste período. Esta primeira apresentação partirá de uma breve revisão bibliográfica que permitirá ao leitor conhecer as nossas principais fontes teóricas. Em seguida, trataremos da Cidade da Parahyba a partir dos documentos oficiais e dos jornais da época.
 

O século XIX e a cidade

Caracterizar um tempo não é tarefa fácil, mais ainda a partir do olhar geográfico, quando então nos sentimos um tanto “pisando na terra alheia”. Talvez esta sensação, deva-se muito mais à nossa formação e prática profissional que foi deixando para a disciplina da História o tratamento do tempo, e para a Geografia, o entendimento do espaço. Esse entendimento teve origem nas idéias de Kant, difunde-se por muito tempo, é re-elaborado por Hettner que, por sua vez, impulsiona e renova a sua aceitação pelos geógrafos até o final do século XX. Este fato, segundo Milton Santos, “é responsável por um equívoco extremamente grave no domínio do método, porque a geografia, na realidade, deve ocupar-se em pequisar como o tempo se torna espaço e de como o tempo passado e o tempo presente têm, cada qual, um papel específico no funcionamento do espaço vital”. (Santos, 1980, p.105).

Na verdade, ao estudarmos a cidade do passado, vimos que seria impossível entendê-la sem termos dimensão do tempo tratado. Sabemos que os acontecimentos temporais não se dão da mesma forma em todos os lugares, ao contrário, existem as peculiaridades dos tempos e dos lugares e ainda dos tempos nos lugares. Sobre a relação entre um tempo “global” e um tempo “particular”, cabe trazermos o pensamento de Foucault que esclarece que a história global “procura reconstruir a forma de conjunto de uma civilização, o princípio material ou espiritual – de uma sociedade, a significação comum a todos os fenômenos de um período, a lei que explica sua coesão – o que se chama metaforicamente o “rosto” de uma época”, a história nova problematiza as séries, os recortes, os limites, os desníveis, as defasagens, as especificidades cronológicas, as formas singulares de permanência, os tipos possíveis de relações”.(Foucault, 1986, pp. 10-11). A respeito desta questão, Norbert Elias chama atenção para o fato de que os filósofos não “se perguntam como e por que a experiência do tempo pôde adquirir tamanho poder sobre os homens” e nem “qual a sucessão de transformações dos estilos de vida e de experiência que contribuiu para sua formação” e conclui: “Na perspectiva filosófica, o conceito de “tempo”, ainda que associado ao de espaço, parece ter uma existência independente.” O mesmo autor ainda esclarece que, ao longo dos séculos, partiu-se “à caça de algo que não existe, ou seja, do ‘tempo’ entendido como realidade universal, uma realidade dada a todos os homens do mesmo modo e experimentada por todos da mesma maneira. (Elias, 1998, pp.98-99).  Desta forma, acreditamos que apesar das discordâncias, das defasagens, dos desníveis espaço-temporais, há algo que permeia aquele tempo, aquela época e que vai se fazer presente nos vários espaços de formas bastante diversas, e que se faz sentir diferentemente. Portanto, trata-se de entender aquilo que caracteriza aquele tempo para então se analisar e compreender como o mesmo se fez experimentar pela sociedade analisada.

Por conseguinte, entendemos que não poderíamos falar da cidade no século XIX sem abordarmos, mesmo que sinteticamente, alguns dos movimentos e ideais que marcaram esta época, quais sejam: a Modernidade e o Higienismo.[4]
 

Sobre o movimento da Modernidade

A demarcação temporal da Modernidade estende-se do início do século XVI até o século XX e, para alguns, até o século XXI.[5] Trata-se, portanto, do que os historiadores definem como sendo um fenômeno de longa duração no entendimento de Braudel (1958). Marshall Berman, em “Tudo que é sólido desmancha no ar” divide a história da modernidade em três fases: a primeira que corresponde ao período do início do século XVI ao fim do século XVIII; a segunda que se inicia com a Revolução Francesa em 1790 e se prolonga até o final do século XIX, que se caracteriza por ser uma “era que desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política” e quando o público moderno vivia material e espiritualmente “em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro”; e a terceira fase que se dá a partir do século XX, quando “o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento.” (Berman, 1986, p. 16). Assim, trataremos aqui do que Berman denominou de segunda fase da história da modernidade, mais exatamente do século XIX. Neste século, ainda segundo o referido autor, o que primeiro se observa é “a nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência moderna.” Descreve o autor:

“[...]. Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automativas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase sempre com aterradoras conseqüências para o ser humano; jornais diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de media, que se comunicam em escala cada vez maior; Estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionais de capital; movimentos sociais de massa, que lutam contra essas modernizações de cima para baixo, contando só com seus próprios meios de modernização de baixo para cima; um mercado mundial que a tudo abarca, em crescente expansão, capaz de um estarrecedor desperdício e devastação, capaz de tudo exceto solidez e estabilidade”. (Berman, 1986, p.18).
A descrição de Berman indica que o século XIX é caracterizado fundamentalmente pelas grandes transformações que se dão na sociedade, na economia, na política, por conseguinte, na vida social e também pelas latentes contradições. E apoiando-se nas palavras de Marx, diz o autor que a vida moderna é “radicalmente contraditória na sua base”. (Marx, s/d, apud Berman, op. cit. p. 19). As grandes transformações ocorridas neste século são sentidas e manifestas por vários escritores da época, – Marx, Nietzsche, Baudelaire, Dostoievski, Carlyle, Dickens, Machado de Assis, Azevedo, entre outros - como sensações contraditórias. Turbulências que provocam insegurança, medo, insatisfação, mas também encantamento, satisfação e admiração. E, como bem expressou Berman, “Marx, Nietzsche e seus contemporâneos sentiram a modernidade como um todo, num momento em que apenas uma pequena parte do mundo era verdadeiramente moderna.” (Berman, 1986, p. 35).

Se, aceitamos como fato que no século XIX, apenas uma parcela do mundo era verdadeiramente moderna, como se darão as experiências desse tempo nas outras parcelas do mundo, ou mais exatamente no Brasil e na Parahyba? Como podemos analisar o que Berman chamou de “experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo” (Berman, 1986, p.35) na então cidade da Parahyba no século XIX? Esta é a questão que norteia a nossa exposição.
 

A cidade como lócus da Modernidade

A Modernidade vai estabelecendo-se no mundo e tem como lócus principal a cidade. É nesta configuração espacial que inicialmente vão se dar as instalações dos equipamentos modernos: a indústria, a ferrovia, o maquinário, a iluminação pública, o telégrafo, os edifícios modernos, as largas avenidas, etc.[6] A partir do final do século XVIII as cidades européias passam por profundas alterações, provocadas não só pelo vertiginoso crescimento populacional, pelo aparecimento das indústrias, pela expansão da cidade, pelas inúmeras construções, pelo estabelecimento das ferrovias, pela produção e circulação de novas mercadorias, entre outros elementos, como também pela radical mudança na vida social. Todos aqueles sentimentos anteriormente mencionados que dizem respeito à modernidade, são relatados a partir das experiências que os autores têm na vida na cidade

A respeito dessa sensibilidade escrita nos textos “dos homens cultos do século XIX”, Maria Stella Bresciani escreveu um artigo que se intitula “Metrópoles: as faces do monstro urbano (as cidades no século XIX). Descreve a autora:

“Máquinas, multidões, cidades: o persistente trinômio do progresso, do fascínio e do medo. O estranhamento do ser humano em meio ao mundo em que vive, a sensação de ter sua vida organizada em obediência a um imperativo exterior e transcendente a ele mesmo, embora por ele produzido. Registros de perdas e de imposições violentas encontram-se nos escritos de homens que se auto-representaram contemporâneos de um ato inaugural..”.(Bresciani, 1985, p.37).
A autora utiliza-se de textos de “literatos, médicos, advogados, filósofos, filantropos, estadistas, em suma o homem letrado em geral”, mas também de depoimentos de “trabalhadores rurais e fabris, de vendedores ambulantes, artistas de rua, enfim toda grande parcela da população que subsiste através do trabalho de suas mãos” que expressaram “o sentimento de perdas diversas e de viverem situações paradoxais. As perdas foram: a representação do tempo regido pela natureza e com ela a medida do tempo pelas atividades cíclicas; na atividade do trabalho quando o homem é destituído das condições de produção e é reduzido à força de trabalho; os sistemas de trabalho fundamentado nas relações pessoais é substituído “pela impessoalidade das relações de mercado.” E ainda, a perda do habitat tradicional  quando “o homem, em especial o trabalhador fabril e urbano em geral” é “arrancado dos vilarejos e impelidos a levar uma vida agressiva nas cidades.”(Bresciani, 1985, p. 38).

Ainda de acordo com Bresciani, o registro dessas perdas embora se faça presente durante três séculos, é no século XIX que atinge o seu ápice, sendo este processo representado pela cidade moderna, caracterizada como “o lugar onde a subordinação da vida a imperativos exteriores ao homem se encontra levada às últimas conseqüências.” E acrescenta: “Fascínio e medo; a cidade configura o espaço por excelência da transformação, ou seja, do progresso e da história; ela representa a expressão maior do domínio da natureza pelo homem e das condições artificiais (fabricadas) de vida.” (Bresciani, 1985, p. 39). Conseqüentemente,
“Sem dúvida, a experiência estética do sublime foi proporcionada, no campo da arquitetura, pelas máquinas, fábricas, lojas, armazéns, viadutos, usinas geradoras de gás, asilos de loucos, prisões, estações ferroviárias, túneis e pela monótona uniformidade das extensas séries de casas construídas para os trabalhadores; e, no plano da potencialidade transformadora e assustadora do homem, pelas multidões em movimento, pelo tráfego contínuo de veículos, pelos bairros operários e pelos canteiros de construção de grandes obras públicas”. (Bresciani, 1985, p.42).
À descrição acima, podemos somar aquela já citada de Berman. Juntas, elas ilustram bem as imagens das cidades do século XIX, especialmente das cidades européias. Todo esse turbilhão de pessoas, construções, inovações transformam a cidade e, por conseguinte, a vida social nela existente.

O Higienismo e as reformas urbanas

Outra associação à cidade do século XIX, bastante presente nos escritos sobre a temática é a de lugar das epidemias. De fato, são marcantes as grandes epidemias que atingem as cidades neste período e que por sua vez vão fomentar a realização das reformas urbanas. Neste ínterim, surgem as idéias propagadas pelo Higienismo associado ao conhecimento médico. Vale acrescentar que é também no século XIX que o conhecimento científico ganha força a partir das idéias racionalistas e positivistas. Sobre esta questão, observam Sérgio Pechman e Lílian Fritsch:
“[...]. O adensamento populacional, a aglomeração humana geravam como subproduto as enfermidades de massa, as epidemias, realidade presente nas cidades que ingressavam na área da modernidade e da industrialização.
O século XIX, portanto, encontraria as grandes cidades atormentadas com o problema da insalubridade, cujo agravamento progressivo estava conduzindo-as irremediavelmente a uma situação de ingovernabilidade. Como implementar a modernização, o progresso, o ideal de multiplicação das riquezas da sociedade, se pairava sobre todos, como uma espada de Dâmocles, o temor das epidemias? Como conduzir de maneira racional e planejada o processo de mudanças detonado pela Revolução Industrial se, a cada tanto, as doenças recrudesciam, dizimando a população por toda a extensão do território urbano? [...]”. (Pechman & Fritsch, 1985, p. 142).

Todo esse conjunto de acontecimentos permite que se instalem nas cidades políticas pautadas no saber médico e sanitário: médicos, sanitaristas, governantes e engenheiros voltaram-se para apresentar à população as possíveis soluções. É no decorrer do século XIX que os governantes passam a contratar médicos e sanitaristas para desenvolverem os planos de urbanização.
 
Segundo Maurício de Abreu (1997), “o pensamento higienista, que já se projetava na Europa há algum tempo, vai também fincar as suas bases no Brasil” a partir do início do século XIX e adotará uma “polícia médica para as áreas urbanas, ou seja, “uma política de saúde destinada a colocar os interesses coletivos acima dos individuais.” (Abreu, 1997, p. 38). O autor expõe que o pensamento higienista foi aos poucos sendo implantado no Brasil, e que a partir das instituições de ensino médico no país, o mesmo ganha força e passa a ser difundido pelo país, mas que é no Rio de Janeiro, então a maior cidade e a capital do Brasil, que o Higienismo “vai mostrar toda a sua força”. (1997, p. 42).
 
Sobre o Higienismo, vale trazer a afirmativa de Sidney Chalhoub de que a Higiene configurou-se uma ideologia, “ou seja, como um conjunto de princípios que, estando destinados a conduzir o país ao ‘verdadeiro’, à civilização, implicam a despolitização da realidade histórica, a legitimização apriorística das decisões quanto às políticas públicas a serem aplicadas no meio urbano.” (Chalhoub, 1999, p.35). Tais princípios fundamentam a criação da Junta Central de Higiene, instituição do governo imperial , “fundada para coordenar os esforços governamentais no combate às epidemias”, responsável por cuidar das questões de saúde pública em todo o império e que “irá realçar ainda mais a posição de destaque do saber médico.”(Abreu, 1997, p. 45). Este conjunto de idéias, ainda de acordo com o referido autor, “iria saturar o ambiente intelectual do país nas décadas seguintes, e emprestar suporte ideológico para a ação ‘saneadora’dos engenheiros e médicos que passariam a se encastelar e acumular poder na administração pública.” E, ainda, a divulgação e a propagação de conceitos como “limpeza” e “beleza” e os seus opostos, como “imundície”, “desordem”, “tempos coloniais”, entre outros, imprimem na sociedade e particularmente nas cidades, “o desejo de fazer a civilização européia nos trópicos”. (Abreu, 1997, p. 45).
 
As medidas apresentadas pelos senhores sabedores da saúde pública vão determinar profundas transformações na morfologia das cidades: avenidas são abertas, casas são demolidas, grandes prédios são edificados, as habitações dos trabalhadores são transferidas para áreas afastadas, prisões, hospitais e cemitérios também são construídos fora da cidade, lagoas e áreas alagadiças são aterradas. Esta nova concepção de cidade que se instaura nas cidades européias, inicialmente em Londres e Paris, propaga-se pelo mundo, dando à cidade, uma nova feição: a da cidade moderna. E é esta nova imagem da cidade que passa a ser a grande inspiração dos governantes e da elite das cidades brasileiras.

Apesar das grandes diferenças entre a realidade urbana européia e a brasileira durante o século XIX, fato é que os modelos criados nas duas maiores cidades do mundo da época – Londres e Paris – passam a espelhar outros que se põem em prática em localidades distantes, como as cidades brasileiras. Sobre as reformas urbanas realizadas na cidade do Rio de Janeiro, concebidas pela Comissão de Melhoramentos da Cidade, escreveram Pechman e Fritsch:
“[...]. O projeto de reformas apresentado pela Comissão continha em seu bojo duas propostas que acompanhariam todo o debate sobre a modernização da Capital que se desenrolou até o início do século XX. A primeira delas referia-se à necessidade de se eliminar os inúmeros cortiços existentes na cidade, visto serem eles considerados um dos principais focos geradores de epidemias. A segunda proposta dizia respeito à importância de se dotar a cidade de uma nova fisionomia, “aformoseando-a” ao mesmo tempo em que e a reformasse. [...]. Saneamento, combate aos cortiços e embelezamento aparecerão, doravante, como partes indissolúveis do projeto de reforma da cidade, tal como este foi idealizado por expressivos setores da elite que sobre esta questão refletiram na virada do século”. (Pechman & Fritsch, 1985, p. 150).
É notório, portanto, que as transformações das cidades na Europa dentro dos ideais da Modernidade e do Higienismo repercutem em outras parcelas do mundo, mesmo que, como lembrou Berman, aí elas não se dêem completamente. É, então, exatamente sobre o rebatimento dessas ações e da concepção de cidade que são adotadas pelo governo imperial brasileiro na cidade da Parahyba que trataremos a seguir.
 

Construções e mudanças na Cidade da Parahyba no século XIX

 
Toda a discussão até então apresentada sobre a Modernidade, o Higienismo e as cidades européias no século XIX, podem fundamentar e mesmo justificar muitas das inspirações, das concepções e das atitudes da população e dos governantes da cidade da Parahyba.
 
Inicialmente, vale destacar que é no século XIX  que são estabelecidas as primeira posturas dessa cidade. Sobre as posturas urbanas é necessário entender a sua importância. Trata-se de um conjunto de normas e preceitos estabelecido pela Câmara Municipal “que obriga os municípios a cumprirem certos deveres de ordem pública, especialmente aqueles ligados à organização, ao disciplinamento e à construção do espaço da cidade.” (Souza, 2002, p. 2). Essas normativas representam a necessidade que os governantes da época tinham em disciplinar a expansão da cidade, bem como a conduta dos seus habitantes.
As primeiras posturas da cidade da Parahyba datam de 1830[7]. Essa documentação revela a preocupação por disciplinar os usos da cidade, a conduta das pessoas, enfim a sua vida social. Nas posturas de 1830, já se pode constatar a preocupação com a aparência da cidade e com o seu ordenamento. Na postura n.13 ordena-se que “só poderão conservar cercas, ou de pedra e de cal ou de taipa que se possa rebocar e caiar”, proibindo-se as cercas de madeira. Nesta mesma postura (artigo 2), estabelece-se um recuo das edificações em relação ao alinhamento da rua, de “vinte e quatro palmos craveiros para sua largura, tanto na frente, como no fundo. Ainda neste mesmo conjunto de posturas, determina-se que as ruínas ou edificações bastante deterioradas sejam destruídas. (Posturas n.12, 13 e 14 , Câmara Municipal, 1830, Arquivo Histórico do Estado da Paraíba).

Além das posturas, outros documentos como cartas e leis também expressam a idéia de que a cidade precisava ser ordenada e higienizada. Em ofício redigido à Presidência da Província, a Câmara Municipal expõe as dificuldades encontradas por esta instituição a “prover sobre limpeza, desempachamento e alinhamento das ruas”, uma vez que verifica-se a cada dia novas edificações na cidade “sem nenhuma regularidade e isto a falta de um plano geral pelo qual se possa dirigir o fiscal e o coordenador”. Tal requisito deveria ser imediatamente atendido, já que

“tendo chegado a esta capital um oficial de engenho”, que deveria “levantar e apresentar um plano pelo qual se possa esta câmara dirigir na edificação e reedificação de edifícios nesta cidade, tendo em vistas os existentes, devendo fincar-se postes que assinalem não só o comprimento, e largura das ruas, e praças, como também os palmos que devem ter as casas e becos, e isto com a brevidade que for possível”. (Correspondência da Câmara Municipal da Paraíba, 1834. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba).
Há, portanto, desde a década de 1830, início do governo imperial, uma explícita preocupação com o ordenamento e com a estética da cidade. Esta inquietação manifesta pelos governantes transformava-se em leis, decretos e normativas. Fica evidente que as idéias reveladas pelos então senhores da Câmara Municipal e da Presidência da Província compunham aquele ideário da época expresso nas linhas anteriores. Muitas dessas idéias eram trazidas pela elite após visitarem as cidade européias ou mesmo a Corte que era para muitos “o espelho de Paris no Brasil”[8]. Dessa forma, caiar as casas após o período chuvoso, significava manter a cidade com boa aparência e também limpa.
 
Várias são as determinações que tratam da limpeza das ruas, das casas e da cidade de modo geral. Estas, para se tornarem efetivas, prescreviam penalidades que correspondiam na maioria das vezes a pagamento à Câmara, mas que em alguns casos ignificavam a prisão.
 
Se em 1830 as posturas passam a exigir o caiamento das casas, posteriormente surgem outras normativas que exigem a limpeza das ruas e também das fontes que abasteciam a cidade. Em 1841 o Palácio do Governo da Parahyba publica uma nota informando que “se tem cumpridas as [...] ordens sobre a limpeza das ruas e fontes da cidade”. (Documento do Palácio do Governo da Parahyba, 23 de novembro de 1841. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba). Em 30 de janeiro de 1862, o jornal A Regeneração publica um expediente do governo ordenando a Thesouraria da Fazenda a pagar o aluguel de duas carroças para “carregamento do lixo das ruas”. Neste mesmo expediente, o Presidente da Província determina ao Chefe de Polícia que os presos da cadeia estão “designados para o serviço da limpeza das ruas desta capital”. (Jornal A Regeneração, 30 de janeiro de 1862). Ainda a respeito da limpeza da cidade, no mesmo periódico do mesmo ano, a Câmara Municipal estabelece:
“Art. 2 Fecão designados para deposito dos lixos na cidade alta o Forte, e a casa da pólvora ao norte, e no varadouro o Zumbi e o porto da Gameleira ao sul.
Art. 3 Toda a pessoa que deitar lixos na casa do mercado publico d’esta cidade, estragar o asseio da mesma casa pagará quatro mil réis de multa por cada vez, e na falta sofrerá quatro dias de prisão.
Art 4 Os fiscaes terão todo o cuidado na limpeza da cidade, advirtindo á todos as obrigações das posturas em vigor. [...]. ( Jornal A Regeneração, 10 de março de 1862)”.
A manifestação da falta de limpeza na cidade e de salubridade pública é tema recorrente durante quase todo o século. O presidente da província em relatório apresentado em 1888 diz:
“[...].Não é favorável o estado de saúde publica da capital, tendo-se desenvolvido ultimamente algumas febres palustras de caráter benigno. Se houvesse asseo e limpeza das ruas e das praças públicas, se algumas destas não servissem  de depósito de lixo, se finalmente fossem observados por parte da população os mais rudimentares preceitos de higyene, outras seriam suas condições sanitárias.[...]”. (Relatório do Presidente da Provínicia, 1888. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba).
No referido documento, o presidente da província indica algumas medidas necessárias para que a província e a sua capital possam apresentar um bom estado de higiene e saúde pública. As ações apontadas são: o saneamento da capital, precisando para isto de um conjunto de medidas e de recursos; o “abastecimento d’água em abundancia para as casas particulares e estabelecimentos públicos, a desobstrução dos rios Jaguaribe e Macaco, um sistema regular de esgotos de materiaes fecaes [...]” (Relatório do Presidente da Província, 888. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba).

Remoção do lixo, limpeza das ruas, dos terrenos e das fontes, foram, portanto, insistentes determinações da Câmara Municipal e também da Presidência da Província. Todas as ordenações e os princípios adotados condizem com os preceitos do saber médico e do pensamento higienista do século XIX, que fundamentavam as ações da Junta Central de Higiene, que por sua vez, exigiam a adoção e o cumprimento de normas rígidas de higiene.pública. (Abreu, 1997, p. 45).

 
 A limpeza da cidade, de acordo com os princípios de higiene já explicitados anteriormente, deveria ser conduzida de forma mais ampla possível. Tanto é que não tratavam apenas dos incrementos urbanos, mas também disciplinavam a comercialização dos alimentos. Neste sentido, foram determinados os locais e os horários adequados para a comercialização dos gêneros alimentícios na cidade. Na mesma comunicação da Câmara Municipal citada acima, ordena-se que “ninguém poderá atacar farinha, ou outro gênero alimentício antes das três horas da tarde”; todas as pessoas que conduzissem gêneros alimentícios para esta cidade deveriam dirigir-se ao mercado público; os açougues deveriam ser limpos e varridos diariamente, além de caiados e espanados. Para aqueles que descumprissem estas ordenações eram cobradas multas que variavam de dois a dez mil réis.(Jornal A Regeneração,  10 de março de 1862). Essas exigências implicavam, todavia, na exigência de dispor-se de um mercado público condizente com os princípios de higiene, bem como na determinação dos lugares para o abate das reses já expressos na postura n. 12 de 1831 e que reaparece em documentos de 1864.[9]
 
O estabelecimento do lugar e do horário para o abate do gado não foi recebido de bom grado pelos trabalhadores de carnes verdes da cidade. Em carta redigida aos “Senhores membros da Assembléia Provincial” esses trabalhadores reclamam do horário estabelecido para matar o gado e comercializar a carne - somente a partir das três horas da tarde e encerrando-se às sete horas da noite -, da falta de comodidades no matadouro e mostram o inconveniente em conduzir o gado para os lugares destinados fora do círculo da cidade Esses trabalhadores alegam ainda a grande insatisfação da “população menos abastada, os jornaleiros e os moradores nos subúrbios da cidade” por não conseguirem comprar carne, uma vez que este comércio encerrava-se as sete horas da noite.(Carta dirigida à Assembléia Provincial, 15 de outubro de 1864. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba). Assim, além da definição dos lugares permitidos para a matança do gado, distantes da cidade, há um movimento por parte da Câmara Municipal e também da Presidência da Província por se construir um mercado público com aqueles preceitos.
 
Sobre as condições do mercado público, encontram-se vários registros a respeito das reformas na sua construção. Em 1864 determina-se que as madeiras utilizadas para o conserto desse edifício deveria ser de “sycopira e não de mangue como foi construída no princípio.” (Ofício da Câmara Municipal, 1864). Esta obra prolonga-se pelo ano de 1865, provocando insatisfações e levantando supeitas sobre o engenheiro responsável que estaria desviando a madeira para a construção de uma residência particular.

Se o mercado público passa por várias restaurações e adaptações aos preceitos de higiene e saúde pública, outras edificações públicas também são reparadas notadamente a partir de meados do século, como as igrejas e mosteiros - da Matriz, de Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora Mãe dos Homens e São Bento-  a casa da Assembléia Provincial, edifício do Palácio, casa do Tesouro com varanda de ferro, edifício  da alfândega (1874), escola na rua Marquês do Herval, para instalação da Escola Normal (1874). Além destas obras, outras vão se fazer necessárias: a construção de uma casa de prisão em 1837 e de uma cadeia “que preste não só a indispensavel para garantia da justiça e com ella da segurança individual e da propriedade, como também se conforme mais com os princípios da humanidade [...]”[10]; as pontes do Mandacaru, Gramame (1864) e Sanhauá[11] (1864); estradas da ponte do Sanhauá ao Varadouro (1864) e do Tanque (1874); prolongamento do cães do porto e armazéns de arrecadação (1864); instalação de fábrica de gás para canalização e iluminação “com columnas, braços, lampeões e competentes combustores” (Carta do Presidente da Província, 09 de março de 1869. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba).

Se em meados do século exigia-se a construção de uma casa de prisão, esta deveria ser realizada em lugar afastado. Da mesma forma, os hospitais e os cemitérios também seriam transferidos para fora da cidade. O remanejamento da cadeia que se situava na cidade alta, passando para a cidade baixa, provocou a reconstrução do antigo edifício para abrigar a Câmara Municipal. Os hospitais para tratamento dos variolosos também são remanejados para áreas distantes. Foi assim com a Santa Casa da Misericórdia que se situava na Rua da Baixa na Cidade Alta e passa a funcionar em prédio construído nos arrabaldes da cidade, em lugar conhecido como Cruz do Peixe. Toda essa recondução disciplinar dessas edificações pode ser explicada a partir da leitura de Foucault. Este autor esclarece que “a disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço” e para isto utiliza diversas regras, entre elas, destaca-se a das “localizações funcionais” que

“[...] vai pouco a pouco, nas instituições disciplinares, codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente livre e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil. O processo aparece claramente nos hospitais, principalmente nos hospitais militares e marítimos”. (Foucault, 1991, p.132).
Nesse sentido, é que se publica no jornal O Liberal Parahybano nota oficial comunicando que o Hospital Cruz do Peixe “é destinado ao tratamento dos variolosos, e como seja tal moléstia eminentemente contagiosa, foi elle estabelecido fora da cidade, no prédio que outrora servia de azilo dos educandos artífices.”(Jornal O Liberal Parahybano, 14 de agosto de 1879. Arquivo do NDIHR/UFPB).

Data, também, do século XIX, a construção do primeiro cemitério da cidade. A sua construção foi ordenada em 24 de janeiro de 1855, tendo principiado e acabado no mesmo ano. Em 1860, foi assim descrito: “Ele é cercado de um muro de tijollo d’altura de 13 pés pelo qual correm as catacumbas d’algumas irmandades e confrarias, temos a capela no fundo e fachada com portas de ferro; e afora algum aceio e tracto de que precize, de nada mais me parece carecer para sua conclusão.” (Ofício encaminhado à Presidência da Província, em 1860).

A presença de cemitérios nas cidades passa a ser mais exigida com a ocorrência das epidemias do século. Foi assim também na Cidade da Parahyba. Em 1879 o jornal A Regeneração publica relatório do vice-presidente da província em exercício, comunicando que “as inhumações n’esta cidade se fazem em dous cemitérios. A área do antigo cemitério denominado do Senhor da Boa Sentença, acha-se quasi toda ocupada pelo grande numero de enterramentos que n’elle se tem feito durante a crise epidêmica.” e que se encontrava ainda em construção o cemitério Cruz do Peixe localizado por trás do Hospital do mesmo nome e que se destinava aos variolosos. No que diz respeito ao cumprimento das normas de salubridade pública, o então vice-presidente da província afirma que foi nomeada uma comissão “composta por todos os médicos da capital, afim de emittirem juízo sobre a conveniência do local em que, de preferência, devesse ser construído um terceiro cemitério.”(Jornal O Liberal Parahybano, 28 de agosto de 1879).

A necessidade de se adequar a cidade às exigências de salubridade pública expressava-se também nas constantes reclamações do estado das fontes de água, como na urgência de se realizar os serviços de encanamento da água, da construção de chafarizes e ainda da instalação de combustores para iluminação a gás. Em 1869 autoriza-se a construção de seis chafarizes na cidade: no largo do Palácio, no Mercado Público e no largo da Matriz na cidade alta e na cidade baixa, no largo do Varadouro próximo ao cais, no largo do quartel de primeira linha e no largo da cadeia nova. (Cf. Ofício da Presidência da Província de 1869. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba). Outra medida que previa o cumprimento das ordens higiênicas, bem como se espelhava na imagem da cidade moderna foi a proibição de construção de casas de palha e a ordem de destruição das já existentes.

Dessa forma, proíbe-se através do artigo 53 do código de postura de 20 de setembro de 1859, a construção de casas de palha, bem como exige-se a demolição das existentes. Interessante destacar que em 1860 alguns habitantes da cidade apelam para a revisão dessa determinação o que acontece em setembro de 1861, quando a Assembléia Provincial prorroga por três anos o prazo para a destruição das casas de palha já existentes e reforça-se a proibição de novas construções. (Cf. Lei n. 28 de 13 de setembro de 1861). Ressalta-se que as casas de palha eram as habitações da classe trabalhadora, dos pobres da cidade e que se faziam presentes em quase todas as ruas, excetuando-se as principais ruas da cidade alta onde se encontravam as melhores edificações e os melhores sobrados. O maior número de casas de palha estava concentrado em “três ruas sem denominação”, com 86 casas de palha, na rua Mãe dos Homens e na rua do Tanque que tinham, respectivamente, 56 e 42 habitações de palha de acordo com a descrição de Vicente Gomes Jardim, agrimensor dos terrenos de marinha da Província da Parahyba. (Relatório publicado no Jornal Gazeta da Parahyba em 1889).
 

Constata-se, então, a grande presença deste tipo de edificação na capital da Parahyba a despeito das leis promulgadas que determinaram a sua extinção. Essa medida pode ser entendida a partir da interpretação de Chalhoub (1996) sobre a ideologia da higiene, quando diz que nos fins do século XIX os pobres passaram a ser vistos como classes perigosas, não somente porque poderiam oferecer perigo à organização do trabalho e à ordem pública, mas também porque ofereciam risco de contágio, no seu sentido literal. Entendimento este respaldado pelo diagnóstico “de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade”. (Chalhoub, 1996, p. 29). Nesse sentido, à proporção que a cidade da Parahyba vai se expandido, as casas de palha vão sendo destruídas nas artérias principais e construídas nas vias consideradas periféricas ou fora do ciclo da cidade. É o que se denota ao observar a imagem do final do século da rua do Melão situada na cidade baixa e que assim permaneceu até o início do século XX.
Todo esse montante de obras – construções, restaurações e demolições – sobre as edificações da cidade foi acompanhado de uma re-estruturação urbana: alargamento, alinhamento e calçamento das ruas já existentes; abertura de outras vias e  construção de praças e jardim público. Higiene e embelezamento eram parâmetros para uma nova civilização urbana e conforme os preceitos da modernidade.

Já em 1834, em uma correspondência da Câmara Municipal da Paraíba para o presidente da província da Paraíba Bento Correia Lima, identifica-se a necessidade de se realizar um plano para regulamentar a edificação e a reedificação dos edifícios na cidade, demarcando-se a largura e o comprimento das ruas e praças, “como também os palmos que devem ter as casas e becos, e isto com a brevidade que for possível.” (Correspondência da Câmara Municipal da Paraíba para o presidente da província da Paraíba Bento Correia Lima, datada de 4 de agosto de 1834. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba).

O alargamento das ruas e a construção de praças exigiam a desapropriação de terras e, por conseguinte, o remanejamento de algumas residências. Alguns documentos expressam a ordem de desapropriação, como a que ocorreu sobre duas casas situadas na rua da Areia (rua que ligava a cidade baixa à cidade alta) para “a feitura e prolongamento da Rua da Viração, e formosamento da Cidade”. (Lei da Assembléia Legislativa Provincial da Parahyba do Norte em 03 de outubro de 1866. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba).

A respeito das obras de calçamento das ruas da cidade, é importante destacar que este beneficiamento implicava em outro que era a construção e rebaixamento dos passeios e o alinhamento das edificações. Assim, à proporção que se ia realizando os calçamentos, publicava-se nota oficial exigindo que os moradores daquela via construíssem os passeios dentro de prazo determinado com punição expressa para os infratores. Este tipo de documento é publicado com freqüência a partir de 1869. Os registros mostram que a primeira medida foi substituída em função da concretização do calçamento das vias. É o que expressa a lei n. 17 da Assembléia Provincial ao prorrogar o prazo concedido aos proprietários dos prédios para desfazimento e rebaixamento das calçadas existentes neste edifícios “até que o governo, ou a comarca municipal mande nivelar e calçar as ruas da cidade.” (Lei n. 17 da Assembléia Legislativa Provincial da Parahyba do Norte de 13 de agosto de 1860). Em 1864, a mesma Assembléia Provincial determina que as obras do calçamento das ruas seriam realizados a custa do cofre público e que os passeios seriam custeados pelos proprietários dentro de um prazo estabelecido e de “conformidade com o plano adaptado pelo mesmo governo”. (Documento emitido pela Assembléia Legislativa Provincial da Parahyba em 1864).

Além da construção dos passeios estabelece-se também a obrigação dos proprietários de terrenos nas principais ruas da cidade em “levantar fronteiras com cornija ou a mura-las, sendo em prolongamento de quintaes no prazo de dous annos [...]”. Além disso, exige-se que as fronteiras fossem rebocadas e caiadas. (Lei n. 243 da Assembléia Legislativa Provincial em 8 de outubro de 1866. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba).

Interessante que, essas construções que acontecem na cidade provocam algo indesejado pelos próprios governantes, bem como pela população: trata-se do acúmulo de material e das inúmeras escavações que além de impossibilitarem o livre acesso às vias, provocavam uma paisagem que feria a estética desejada. Em 04 de setembro de 1871, a Repartição de Obras Públicas da Província da Parahyba responde a um despacho da Presidência da Província explicando que as escavações feitas na Rua Marquês do Herval são poucas, não justificando a necessidade de remoção dos moradores. (Documento da Repartição de Obras Públicas da Província da Parahyba em 04 de setembro de 1871. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba). Os jornais também expressam a insatisfação da população quanto ao acúmulo de material para construção ou fruto das escavações. Contudo, no período que antecede essas obras públicas, há manifestações que reclamam o calçamento das ruas, uma “urgente necessidade de semelhante serviço” para “embelezar as nossas ruas”. (Jornal O Tempo, 28 de setembro de 1865).

Se a cidade precisava de ruas mais largas e pavimentadas, por sua vez, a modernidade também exigia a presença de praças e jardins. Assim, é que se verifica a contínua transformação dos antigos largos coloniais em praças e a construção do jardim público também erguido no antigo largo da igreja do complexo dos jesuítas. No ano de 1879, o jornal O Liberal Parahybano publica a seguinte nota:

Primeira pedra – a 1 hora da tarde de hoje deve ter lugar com toda a solenidade a collocação da primeira pedra do jardim no largo do palácio. [...] Deve ser um acto muito concorrido porque essa obra era uma das que o nosso público esperava ver com mais anciã realizada, e contava que não seria esquecido pelo destincto cidadão, que se acha a frente da administração da província. (Jornal O Liberal Parahybano, 24 de maio de 1879).

De fato, a construção de um jardim público, concretizava uma forte aspiração daqueles que sonhavam com a cidade moderna. Como escreveu Murilo Marx (1988), os jardins, “pode-se dizer que são mesmo recente em nossa paisagem citadina – e, laicos modernamente, testemunham com seu aparecimento o aumento do circuito das terras voltadas ao gozo público.” (Marx, 1988, p. 132).

Assim, se por um lado a inspiração de cidade moderna e o cumprimento dos preceitos da salubridade pública e da higiene conduziram à construção de praças e do jardim público, ao alargamento e ao calçamento das ruas, ao alinhamento das edificações e às outras obras acima mencionadas, por outro lado, provocaram medidas que tinham como princípio a varredura daquilo que representava o atraso, o feio ou anti-higiênico.

Diante o exposto, podemos afirmar que várias foram as tentativas de implementação dos princípios da Modernidade e do Higienismo na cidade da Parahyba no decorrer do século XIX e que estes ganham força a partir dos anos de 1850. À medida que o século avança, aumenta substancialmente o número de documentações oficiais, bem como de matérias jornalísticas que revelam os ideais de cidade moderna, bela, civilizada e higiênica. E para por em prática estes preceitos teria-se então que se reconstruir a cidade, por isto a intitulação deste artigo, uma cidade em (re)construção.


Notas
 

[1] Texto produzido a partir da pesquisa “A Rua e a Cidade: geografia histórica, morfologia e cotidiano” financiada pelo CNPq – Bolsa Produtividade e Edital de Humanas 2004 e que tem o apoio das bolsistas PIBIC/CNPq/UFPB: Ana Carolina Strapação Guedes Vianna, Maria Simone Morais Soares e Nirvana Lígia Rafael de Sá.

[2] Professora do Departamento de Geociências e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisadora do CNPq.

[3] Atualmente a Cidade da Parahyba é denominada João Pessoa, nomenclatura atribuída em 1930 em homenagem ao então presidente do estado morto neste ano. Suas outras denominações foram: Nossa Senhora das Neves, quando fundada pelos portugueses; Filipéia de Nossa Senhora das Neves ainda no final do século XVI, em homenagem ao rei espanhol Felipe II; Frederisksdadt, durante a ocupação holandesa (1635-1654); posteriormente Paraíba.

[4] A respeito da Modernidade já esboçamos algumas notas que foram apresentadas no X Encontro Latino Americano realizado na cidade de São Paulo em 2005 e que foram publicadas nos anais do evento. Portanto, muitas das idéias aqui contidas sobre o movimento da Modernidade e a morfologia urbana foram de alguma forma já abordadas no texto supracitado, mas que para esta exposição passaram por modificações.

[5] Alguns autores das ciências humanas e também da Geografia, a exemplo de David Harvey e Edward Soja, referem-se a Era Pós-Moderna que teria origem no final do século XIX. Aqui não entraremos neste debate.

[6] Sabe-se que a indústria se instala inicialmente no campo, mas é na cidade que ela vai se desenvolver completamente. É importante registrar que no século XIX ocorrem também grandes transformações no campo desde a extinção das terras comuns, o estabelecimento da propriedade privada à introdução do maquinário agrícola e ainda as alterações nas relações de trabalho.

[7] A pesquisa realizada no Arquivo Histórico do Estado da Paraíba, onde estão arquivados os documentos oficiais do estado, reuniu os documentos referentes à cidade da Parahyba desde o ano de 1775, data do primeiro registro encontrado. As primeiras posturas encontradas foram as de 1830, não tendo-se portanto registro de outras anteriores.

[8] O personagem principal da obra Casa de Pensão Aloísio de Azevedo, ao sair de São Luis na Província do Maranhão e mudar para a cidade do Rio de Janeiro, a Corte, diz ansiar por lá encontrar a cidade de Paris.

[9] Referimo-nos ao documento da Capitania dos Portos de 05 de setembro 1864 que define “dois lugares excelentes” para servir de matadouro público, ambos localizados à margem do Rio Tambiá Grande no sítio São Bento pertencente ao Mosteiro de São Bento.

[10] Ofício do Ministério dos Negócios do Império em resposta a ofício da Presidência da Província, em 25 de outubro de 1852. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba.

[11] A construção da ponte sobre o rio Sanhauá é matéria de vários documentos oficiais e de jornais. Esta construção gerou muita polëmica, exigindo a vinda de engenheiro do Ministério da Marinha para emitir parecer e resultando em descontratação do então engenheiro responsável. Mesmo após a sua construção a ponte do Sanhauá permanece provocando controvérsias e o seu precário estado é observado pelo então imperado do Brasil, quando esteve na Paraíba. (Cf. ALMEIDA, Horácio, 1978).
 

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Ficha bibliográfica:

 
SÁTYRO MAIA, D.  Una Ciudad en reconstrucción: La Ciudad de Parahyba (Brazil) en siglo XIX. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (38). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-38.htm> [ISSN: 1138-9788]
 

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