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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. X, núm. 218 (44), 1 de agosto de 2006 

A LÓGICA E OS EMBATES NA PRODUÇÃO DA CIDADE: O CASO DE SÃO PAULO

 
Glória da Anunciação Alves
Departamento de Geografia
Universidade de São Paulo

A lógica e os embates na produção da cidade: o caso de São Paulo (Resumo)

A cidade, enquanto uma materialização espacial, é condição, meio e produto da reprodução social. Hoje sua produção, que é sempre contínua e resultado de um processo histórico, tem sido formalmente marcada pelas ações de agentes que representam o poder público e os empreendimentos privados. Mas a produção da cidade não pode ser resumida a ação desses dois agentes. A população, articulada ou não, representada ou não por movimentos sociais, a partir de seu cotidiano também interfere e produz o espaço, gerando muitas vezes o conflito. Discutir a ação desses agentes a partir do caso paulista é o que se pretende neste artigo.

 
Palavras chave: cidade, produção do espaço, concebido, vivido.
 

Logic and struggle in the production of the city: the case of São Paulo (Abstract)

The city, as a spatial materialization, is the condition, means and product of social reproduction. Today, its production, which is always continuous and the result of a historic process, has been formally marked by the actions of agents who represent public and private enterprise. Nevertheless, the city production cannot be limited do the action of these two agents. The inhabitants, whether articulated and either represented or not by social movements, in their daily routine also intervene and produce space, often generating conflict. This article is intended to discuss the action of theses agents in the city of São Paulo.

 
Key words: city, production of space, conceived, lived.



Compreender a lógica da produção da cidade pressupõe que se deixe claro, do ponto de vista geográfico e tendo isso como premissa, o que se entende por espaço geográfico. Partiremos aqui do entendimento que espaço geográfico é uma construção social, ou seja, não existe a priori. Ao mesmo tempo em que é construção, o espaço é condição para o desenvolvimento social, e interfere também na produção da sociedade. Deste modo é condição, meio é produto social.

Uma das formas de materialização de nossa sociedade é a cidade. Ela é resultante de um processo histórico que, pelas relações existentes, produz materialidades espaciais que podem permanecer ou desaparecer ao longo de seu desenvolvimento. Assim, ao procurarmos entender um dado espaço podemos iniciar nossas buscas por uma análise da paisagem, que pode ainda estar marcada pela presença de indicadores do processo de constituição do passado (como a existência de edifícios, marcos arquiteturais ou ainda “resíduos” de outros tempos), como pode estar “livre” das marcas do passado, quando a opção pelo desenvolvimento se pautou na destruição da materialidade de outrora, como ocorre em muitas cidades, quase que seguindo um modelo de desenvolvimento urbano inspirado em cidades norte americanas: trata-se de “arrasar”, “destruir” as materialidades espaciais do passado em nome da renovação, da modernidade, da construção do novo.

A cidade de São Paulo, ou melhor, parte de seu centro histórico que, no final do século XIX e depois, nos anos 50 do século XX, teve parcela de seu espaço transformado com o desaparecimento de muitos de seus edifícios considerados ultrapassados. Eles deram vez ao moderno, ao novo, ao atual, que também, rapidamente, envelhece e é substituído por novas formas. A cidade se transforma constantemente e num ritmo muito acelerado não tendo suas formas materiais tempo de envelhecer, de ser um referencial da história

Sobre isso, N. L. Müller (1958) já escrevia, ao falar do então centro da cidade de São Paulo, que ele, pela transformação de suas formas, com a demolição de antigos edifícios que deram lugar a arranha-céus o que promoveu o desenvolvimento de um processo de verticalização nessa área central, fazia com que a cidade, ou pelo menos essa parte da cidade, lembrasse as cidades norteamericanas.

É importante destacar que o centro, como lugar da aglomeração, do encontro, das possibilidades, dos fluxos de pessoas e capitais, da concentração de atividades raras em outras parcelas da cidade, além de uma multifuncionalidade operacional, fazia com que essa área da cidade, esse centro, fosse considerado como único.

Devemos alertar que no Brasil, em específico na ciência geográfica, o centro como um objeto de análise diferenciado aparece com uma nova dimensão a partir dos nos 50 do século XX, coincidindo com o período “desenvolvimentista”, que se inicia nos anos 30 com Getúlio Vargas, mas que tem na era de J. Kubitschek seu desenvolvimento. Müller, como já indicamos, participa com um artigo (pioneiro sobre essa questão no Brasil), sobre a discussão da área central da cidade, no célebre trabalho sobre São Paulo realizado quando da comemoração dos quatrocentos anos da cidade, e que foi publicado em 1958 quando foi lançada a obra A cidade de são Paulo em quatro volumes. Seguindo as tendências dos estudos geográficos da época, e sob a influência da escola francesa, discute e caracteriza o centro a partir de sua funcionalização: para a autora, por exemplo, a função de residência não fazia parte do centro propriamente dito, ficando essa atribuição para os arredores dessa área, que ela delimita a partir das funções tidas como características de áreas centrais. Ainda no final dos anos 50 (1959), temos o doutorado de Milton Santos intitulado O Centro da cidade de Salvador que destaca a importância do conteúdo sócio-econômico para a definição da estrutura urbana.

Vale recordar que nesse momento a diferenciação de centro e cidade só aparece em trabalhos acadêmicos, pois, para a população que vivia no município de São Paulo, o que se denomina de centro, era chamado de cidade. O que isso significava? Que para a população a cidade em si era uma centralidade, que concentrava atividades, serviços, pessoas, riqueza e possibilidades. As pessoas, ainda que formalmente morassem no Município de São Paulo, em área urbana, não se consideravam fazendo parte da cidade, pois o lugar de moradia localizado em áreas mais distantes desse centro não oferecia as mesmas possibilidades de satisfação das necessidades cotidianas. A cidade, esse centro específico, enquanto uma centralidade, tinha reforçado seu papel pela precariedade existente em outras áreas do município. Nos anos 70 (séc. XX), por exemplo, os que viviam nas chamadas periferias da cidade diziam, quando necessitava ir ao centro, que iam à cidade. Isso mostra como esse centro, hoje chamado de tradicional/histórico, ou ainda, segundo Cordeiro (1997), de Principal, era a expressão da centralidade única da época.

A cidade, principalmente a partir do final dos anos 60 e anos 70, com o desenvolvimento da industrialização em São Paulo, se expande. Esse processo é relatado no trabalho de J. R. Langenbuch (1971). O crescimento das periferias na cidade (aumento da população e sua dispersão nessas áreas periféricas) desprovidas de infra-estrutura e serviços sociais em geral, reforçava o papel da centralidade única existente. Ainda que esse centro concentrasse a intersecção das linhas de transporte coletivos (ônibus e trens, nos anos 60, e a partir de meados de 70 também do metrô), o que favorecia a acessibilidade da população a essa área, esse reforço de centralidade implicou na necessidade de sua própria expansão fazendo com que subcentros e novas centralidades passassem competir/colaborar com a centralidade tradicional. Usamos aqui a expressão competir/colaborar já que esse processo se remete à expansão da cidade no atual estágio da reprodução do capital, em que essas centralidades espaciais podem ser entendidas, segundo Henrí Lefebvre (1986), na articulação da tríade: fragmentação, homogeneização e hierarquização espacial.

Pensando os espaços da cidade sob esse prisma, podemos observar que mesmo as centralidades, que deveriam ter enquanto atributo o papel de concentração de atividades (e isso elas possuem, daí a tendência a uma homogeneização inclusive das formas espaciais), ainda que aparentemente tendam a uma certa homogeneização de tipos de funções e formas, estão fragmentadas pela cidade, às vezes com uma especialização funcional muito grande a ponto de poderem promover uma certa segregação espacial, fazendo com que hajam centralidades principales e centralidades secundarias, promovendo uma hierarquização entre as mesmas. A produção dos espaços urbanos é feita a partir da articulação de determinados agentes presentes no espaço urbano, a saber: Estado, agentes do setor produtivo privado (imobiliário, financeiro, comercial e industrial) e a população (enquanto movimentos sociais ou não). Essa articulação depende da força política e econômica de cada um dos agentes e, em geral, se revela conflituosa, ainda que os conflitos nem sempre apareçam como tal.

 
Na cidade de São Paulo a expansão de sua centralidade, necessária para o desenvolvimento, do processo de reprodução capitalista, ao mesmo tempo em que promovia esse desenvolvimento implicava, também, em uma melhoria na vida cotidiana dos moradores, principalmente em algumas das centralidades mais periféricas, que a partir de então podem ter a possibilidade de satisfação de algumas necessidades postas na vida como atendimento de saúde (público), acesso a serviços burocráticos da administração pública que outrora se concentravam na área do centro tradicional e acesso a bens e serviços[1] do setor privado e público, que no passado se concentravam no Centro da cidade.

O processo de desdobramento da centralidade (Cordeiro, 1980), que acabou por promover a policentralidade na cidade, se revelou como um processo contraditório: ao mesmo tempo em que, com o desdobramento, resolvia-se parcialmente alguns dos problemas gerados pela extrema concentração existente na chamada centralidade única (altos preços locacionais, congestionamentos, falta de lugar para estacionar veículos, edifícios sem capacidade de adequação aos novos sistemas informacionais que exigem a inserção na rede de cabos de fibra ótica, por exemplo), criavam-se novos problemas nessa mesma centralidade.

As novas centralidades, espacialmente criadas numa articulação entre poder público e setor privado, passam a atrair empresas, inclusive muitas das que tinham locação no centro tradicional. Ao se deslocarem para as novas centralidades (mais funcionais, especializadas e seletivas, diferentes dos subcentros, mais multifuncionais e menos especializados)[2], ocupam novos espaços (em geral os chamados edifícios inteligentes[3]), desocupando os outrora “modernos” (hoje considerados arcaicos) arranha-céus da área central.

Esse deslocamento empresarial (dentre os tipos de empresas que saem do centro podemos citar: de consultoria, informática, publicidade, além de muitas sedes de bancos privados) promove uma alteração espacial na região: ainda que alguns prédios fiquem vazios, desocupados, o que se viu foi a mudança do tipo de atividade existente nos edifícios: muitos, principalmente no andar térreo, passam a ter como atividade o comércio de produtos e serviços voltados para uma população de mais baixa renda: casas de produtos eletrodomésticos a preços mais acessíveis (graças ao sistema de crediário popular), lojas de roupas e calçados a preços populares, bem como de alimentação (inclusive a rápida , ou seja, fast food), de empresas de crédito pessoal e drogarias populares. Nos andares superiores dos edifícios podem ser encontrados, até porque se mantiveram aí, os tradicionais escritórios de advocacia, empresas de crédito pessoal, consultórios médicos e oftalmológicos e até mesmo pequenas confecções, além de vários andares terem se transformado em locais de estoque de mercadorias.

As mudanças podem ser consideradas mais significativas quando alguns dos edifícios, antes com funções comerciais, ao serem desocupados e ficarem fechados e sem uso, são durante a década de 90 (séc. XX) ocupados e têm sua função alterada: passam, pela ação de movimentos sociais organizados, a serem prédios ocupados para moradia popular.

A saída de empresas ligadas às atividades do terciário avançado, e mesmo ao setor financeiro, bem como de lojas comerciais, principalmente de vestuário, voltadas às camadas de maior poder aquisitivo e a entrada de empresas voltadas à população de menor poder aquisitivo, fez com que houvesse uma mudança na paisagem: ainda que a área central sempre tenha sido o lugar de afluxo de pessoas das mais diversas camadas sociais, essa alteração do tipo de atividades fez com que, do ponto de vista material, a alteração do tipo de empresas existentes não permitisse aos novos ocupantes a conservação física dos edifícios, o que fez com que muitos passassem a ter um ar de desgaste, envelhecimento, pela falta de manutenção, processo esse chamado por muitos de degradação espacial[4].

É interessante que, tanto em documentários da mídia impressa e televisiva bem como em alguns documentos públicos e de instituições privadas, a degradação espacial remete ao espaço enquanto produto social: não é só a não conservação física dos edifícios que se atribui a degradação; a maior presença de uma população de menor poder aquisitivo, tanto enquanto moradora da área como enquanto transeunte, foi considerado outro fator da “degradação”. Esse entendimento não é novo. Já no trabalho de Müller (1958), vemos apontado que em algumas áreas do centro alguns edifícios haviam mudado de função promovendo o que ela chamou de “degradação moral”, principalmente quando fala de edifícios com “reputação suspeita”, pela mudança do tipo de população e atividade que passa a ser neles exercida.

Essa “degradação espacial” promove uma desvalorização desse espaço, afugentando a possibilidade de grandes e volumosos investimentos privados na área. O empresariado que aí permanece começa a pressionar o poder público para uma mudança da situação já que se nada for feito para parar o processo, na visão desse grupo, a perda patrimonial seria muito grande.  Se há desvalorização de certos espaços nessa área, em outras partes da cidade o inverso é verdadeiro: novas centralidades, como as existentes nas regiões da Faria Lima , Berrini e Verbo Divino, passam a ser as áreas de  grande atração de investimentos públicos e privados. Esse processo indica que o desdobramento da centralidade faz com que haja competição entre os agentes e empreendedores imobiliários dessas áreas com os das centralidades mais antigas, que, num processo especulativo e articulado, conseguem fazer com que o Estado invista em infra-estrutura nessa área possibilitando a atração de grandes investimentos.

Deste modo, algumas centralidades se valorizam, atraindo um maior volume de capitais, enquanto outras, nesse mesmo processo, passam por um processo de desvalorização patrimonial. Mas há limites para esse processo que ocorre na cidade de São Paulo e que é similar a de algumas cidades européias, americanas e latino americanas e a reação a ele também tem seguido, como tentaremos mostrar, padrões de revalorização das áreas centrais que se põem como se fossem únicos, já que aparecem como “modelos” a serem seguidos pelas mais diferentes centralidades das mais diferentes cidades.

O processo de revalorização da área do centro tradicional da cidade de São Paulo, que inicialmente era denominado por revitalização[5], passa por diversas ações em que os agentes mais identificados são ligados ao poder estatal e dos agentes empreendedores privados. Se retomarmos as idéias de Lefebvre[6] sobre as dimensões do espaço, podemos verificar que a dimensão do concebido, marcada pela estratégia estatal, planejamento, racionalidade, se impõe como se fosse a única possibilidade existente para a revalorização da área central tradicional.

Em uma ação conjunta do poder público e dos agentes empreendedores privados temos propostas de recuperação da área do centro histórico tradicional da cidade que, embora seja resultado de um processo histórico conflituoso (como em geral o é em todo mundo capitalista), tem características próprias ligadas à sociedade que o vive e o produz, com uma espacialidade ligada a sua história. Ainda que assim o seja, as propostas para a revalorização seguem um padrão internacional: no caso paulista, o chamado “modelo Barcelona”[7] é tido como um exemplo ideal, ainda que situações ocorridas em cidades norteamericanas também sejam debatidas.

Na requalificação da área do centro tradicional da cidade, a mudança da paisagem é colocada como fundamental. Nas propostas, a criação de uma imagem positiva da área implica na retirada dos trabalhadores de baixa renda. Eles devem ser retirados da visibilidade já que a eles se associa não só pobreza como também violência. Assim se reduz, por exemplo, o aumento da violência à presença de pessoas de baixa renda que, em grande número e usando a área central para sua reprodução da vida, são também tidas como responsáveis pelo afastamento das camadas de melhor poder aquisitivo do centro.

A tentativa de requalificação dessa área também contribui para a efetivação de um outro projeto para a cidade de São Paulo que é a sua manutenção na rede de cidades globais[8], cujas cidades que dela fazem parte deveriam fazer parte do comando e gerenciamento do processo de reprodução da sociedade capitalista.

Se até o início do século XXI esse discurso só aparecia em documentos[9] de instituições privadas interessadas na capacitação desse espaço na cidade para fazer parte da estratégia espacial de comando produtivo (em sentido amplo), em 2005 lemos em documento oficial do Município essa determinação da seguinte forma:

A crescente internacionalização dos fluxos de bens, serviços e informações dão origem à formação de uma rede mundial de metrópoles, onde são geradas e por onde transitam as decisões financeiras, mercadológicas e tecnológicas capazes de moldar os destinos da economia mundial. Os centros urbanos situados no topo da hierarquia do sistema urbano nacional são denominados Cidades Globais, que atuam como foco de irradiação das decisões tomadas em escala planetária para as demais cidades do sistema.

Ao lado delas existem as Cidades Mundiais. Nestas, as vantagens comparativas regionais e metropolitanas, derivadas das atividades exportadoras, devem constituir-se no principal foco de dinamismo para as grandes metrópoles, em especial as atividades ligadas à indústria intensiva em tecnologia e aos serviços típicos de cidades mundiais, tais como telemática, pesquisa e desenvolvimento (P&D), consultoria de negócios, gestão empresarial e financeira e serviços de transportes internacionais. São Paulo já pode ser considerada dentro desta categoria. Mas é preciso consolidar e avançar o papel de São Paulo como Cidade Global (D.O.M. 21/10/05: 182)

Na capacitação da cidade para esse fim, ou seja, de gerenciamento e comando de atividades tidas como essenciais para a reprodução do sistema produtivo capitalista, a requalificação de sua área central se põe como uma das estratégias. Nesse sentido, as transformações espaciais de áreas desse centro tradicional são postas, em discurso institucional, como fundamentais para a vida dos que aí circulam, trabalham e/ou moram e para a cidade como um todo. Ainda que no documento oficial a hierarquia diferencie cidade mundial de cidade global, situando São Paulo enquanto uma cidade mundial que busca “subir na hierarquia”, almejando ser denominada de cidade global, a forma de hierarquização havia sido posta de outra forma por Sassen[10]. Para ela, as cidades que fazem parte da rede de cidades globais podem ser classificadas (de acordo com seu ranking[11] de cidades globais e candidatas) em quatro categorias, sendo que a da primeira divisão, onde estariam situadas cidades como Nova Iorque e Londres, por exemplo, seriam aquelas em que estariam os agentes que teriam o comando sobre o sistema produtivo. São Paulo já aparece na quarta divisão por pontos. Fazer parte desse ranking é importante para a criação de uma imagem de cidade positiva e serve como estratégia de marketing da cidade à atração de investimentos privados nacionais e internacionais, bem como para o desenvolvimento da atividade turística que exige, para sua realização, mudanças, com grande incremento de serviços e infraestruturais do setor hoteleiro.

Ainda que a idéia seja a atração de investimentos privados nacionais e internacionais para a cidade, o poder público também tem seu papel como grande investidor: é ele que diretamente, pela instalação de infra-estrutura (sistema de comunicações e transportes, água, luz, esgoto, entre outras), ou com a criação de atrativos ou isenções fiscais (principalmente pelas chamadas Operações Urbanas). Assim efetiva-se a transformação da cidade ou de parcelas dela pela articulação público privado.

Esse processo de (re)construção do espaço urbano, do qual a cidade é uma de suas expressões, faz parte do desenvolvimento do processo de reprodução do capital que tem dentre seus fundamentos a desigualdade espacial. Como nos mostra E. SOJA (1993) o atual processo produtivo[12] tem como princípio, como acontecia já no período fordista, o desenvolvimento geograficamente desigual.

Assim, a “opção” ou o projeto à entrada ou pertencimento na rede de cidades globais implica na manutenção das desigualdades espaciais na cidade. Ao mesmo tempo criam-se discursos que tentam promover um consenso sobre as questões de modo a evitar, na medida do possível, os conflitos e  questionamentos sobre as estratégias e ações ligadas às transformações no espaço da cidade desenvolvidas pelo ou com o aval do poder público. Em geral, as mudanças espaciais aparecem como obras de grande magnitude, aliadas ao discurso do quanto importante ela é para a vida dos cidadãos paulistanos, reforçando as idéias de uma São Paulo grandiosa, a mais importante do Brasil e, do ponto de vista econômico, da própria América Latina, da qual todos os citadinos deveriam ter orgulho de pertencer. As ações, que se inserem nas estratégias de mercado, são postas como essenciais para a resolução de problemas urbanos (como congestionamentos, atração de investimentos que gerariam empregos, entre outros) e encobrem as diferenças sociais (já que se fala em uma sociedade paulistana como se fosse homogênea) e a luta pelo direito à cidade.

Esse consenso é buscado, e na maior parte das vezes alcançado (no sentido de que as lutas contra algumas ações não conseguem ter força de impedimento), pois a estratégia é colocar as transformações espaciais anunciadas como se fossem a única alternativa ao desenvolvimento social, sempre apoiada em planos estrategicamente traçados e difundidos por uma razão lógica, na qual, aparentemente, não há o que se colocar de empecilho.

A exemplo de outras cidades no mundo, a ação de qualificar ou requalificar implica em se pensar transformações nas centralidades já existentes e até, se for necessário, criar centralidades específicas. É nesse sentido que passamos agora a discutir como o centro tradicional da cidade se insere nessa estratégia.

A requalificação do centro tradicional está pautada num projeto articulado entre a iniciativa privada e o poder público e já está sendo posto em ação. Ainda que esse processo não seja novo (desde final dos anos 80 há tentativas de requalificação de espaços na área central) é com maior ênfase nas últimas administrações municipais (Marta Suplicy-PT-2000/2004 e José Serra –PSDB 2005/2008) que essa parceria público/privada tem sido insistentemente posta como única alternativa para a transformação do centro histórico, de modo a que ele assuma seu papel, enquanto uma das centralidades de São Paulo, nessa inserção da cidade na rede de cidades globais.

A Associação Viva o Centro[13] tem apresentado desde sua fundação (início dos anos 90 do século XX), uma série de propostas para a revalorização dessa área[14]. Ainda que projetadas por uma entidade que representa agentes privados da região, parte das propostas colocadas vem sendo postas em ação, com sua incorporação acontecendo no discurso oficial da Municipalidade. Desta forma, o concebido, como em geral ocorre, se eleva e se impõe sobre as outras dimensões do espaço, sendo apresentado à sociedade como o único possível e sobre o qual se procura impingir um consenso, como se as ações ao serem efetivadas gerassem apenas soluções e não conflitos espaciais.

Qualquer questionamento sobre as propostas apresentadas não é discutido, pois, em geral, se desqualificam os que o fazem, alegando que não possuem competência técnica, ou seja, as propostas são apresentadas como inquestionáveis tecnicamente, tentando dar respostas qualificadas e racionais aos problemas postos. A questão é que nem sempre todos os que participam da produção desse espaço tem voz na discussão.

Um exemplo que pode aqui ser mencionado é com relação a requalificação do Pólo Luz, em que algumas ações públicas vem sendo tomadas na área conhecida por Cracolândia[15]. Desde o início de 2005, já na gestão Serra, uma série de medidas de “limpeza moral” vem sendo realizadas nessa área. Com o auxílio da força policial, uma série de hotéis (que eram considerados como possíveis prostíbulos) foram interditados, tendo suas portas fechadas com tijolos e cimentos. Junto a essa limpeza forçada, desde o segundo semestre de 2005 é proposto um projeto que, visando atrair novos empreendimentos para a região, anuncia a possibilidade de isenção de impostos às empresas que instalarem uma filial na área, além de desconto nos tributos municipais para a sede existente, independente de onde se localize.

A efetivação desse projeto exige uma grande transformação espacial e, para isso, novamente o papel do poder público é fundamental. Nesse sentido, no primeiro semestre de 2006 foi anunciado pelo poder municipal o projeto de reurbanização da área que prevê a desapropriação de vários imóveis, possibilitando a destruição de vários quarteirões dessa área (cerca de 105 mil metros quadrados) de modo a permitir a construção de novos empreendimentos imobiliários que viabilizem a instalação de empresas do setor terciário avançado (empresas de informática, publicidade, telecomunicações, entre outras), como também de instituições de nível superior.

A instalação de instituições universitárias, por exemplo, poderia promover a função de moradia na área dando-lhe uma maior qualificação, já que possibilitaria a surgimento de pensões, flats e mesmo moradias estudantis, o que promoveria, junto com a presença das outras empresas o surgimento de uma série de serviços (lanchonetes, restaurantes, escolas de idiomas, academias de ginástica, cafés, livrarias, lan house, etc) voltados a um público mais seletivo e com maior poder aquisitivo.

Ainda que aparentemente se fale da área conhecida como Cracolândia, tida como “degradada”, sua requalificação é fundamental para a viabilidade do Pólo Luz. Hoje, ainda que a Sala São Paulo seja um marco dessa tentativa, suas imediações ainda afugentam parte dos que para ela se dirigem a fim de assistir os espetáculos aí apresentados, o que faz com que muitos cheguem à Sala São Paulo entrando pelo estacionamento e saiam, quando do término do espetáculo, pelo mesmo, sem a necessidade, e nem interesse, de entrar em contato com o entorno. Com a reurbanização dessa área, o entorno da Luz poderia vir a se tornar local de movimento, encontro e permanência, para grupos de melhor poder aquisitivo, a partir da presença dos novos serviços que viriam a surgir, viabilizando um desenvolvimento econômico.

Do modo como está aqui apresentado, que reproduz a lógica da dimensão do espaço concebido, aparentemente não existe nenhum problema com a proposta. Entretanto, não estamos falando de um espaço vazio. Ele está ocupado, tem uma série de atividades, que não se restringem à existência de prostíbulos e venda de drogas, o que faz com que nele muitas outras atividades e relações existam.  Temos aí, por exemplo, um comércio popular[16] que emprega muitas pessoas, além da existência de moradias em que predominam habitantes de baixo poder de consumo.

Ao propor a desapropriação de imóveis e a destruição de uma grande área para que novos empreendimentos possam ser executados, o que se poderia fazer com a população que aí reside ou trabalha, e, em relação a esses últimos, o que implica a perda do empregado ou atividade por eles realizada e fundamental para sua sobrevivência?

Questões como essas não são colocadas como importantes. Genericamente se afirma, sem responder o que fazer com essa população, que novas possibilidades serão abertas com a mudança espacial, o que possibilitará um grande desenvolvimento econômico, criando uma nova dinâmica sócio-econômica na área.

A população de rua, por exemplo, é vista como um problema social. Isso é uma realidade, mas a solução que em geral se aponta é a sua simples retirada (sem deixar claro para onde, de que modo vão viver, se será limitada a alocação em um albergue público ou se há outra proposta). Não há um debate do porquê ela existe e o que poderia ser feito para solucionar os motivos que são ligados ao desenvolvimento do sistema produtivo. Quando alguma voz questiona os projetos perguntando sobre os moradores, inclusive os de rua, é taxativamente rotulada de demagógica[17] pela mídia, que enaltece as propostas que aparentemente são do poder público, mas, como já vimos, em sua maior parte foram elaboradas por uma associação privada e incorporadas ao discurso público oficial.

Esse pode ser tomado como um exemplo das ações cuja intenção é estabelecer, em fragmentos espaciais do centro tradicional, pólos tecnológicos e culturais que reforcem a inserção da cidade de São Paulo na chamada rede de cidades globais.

As soluções postas ou apresentadas, em geral, procuram articular algumas escalas geográficas. No caso, a escala da cidade com a escala global. Trata-se da qualificação da cidade para a manutenção e pertencimento na rede de cidades mundiais. Para isso o que é priorizado quando da transformação espacial são os chamados elementos voltados à produção (velocidade de fluxos de informações, capitais, mercadorias) pensada em um sentido amplo. A escala do corpo e do lugar em geral não é levada em consideração, pois mais ligadas à dimensão do vivido no espaço, não são vistas como importantes para se pensar a produção da cidade.

A ênfase quando se pensa no produzir a cidade é a da dimensão do concebido, mas que não resolve, como se afirma do ponto de vista técnico, os problemas postos: atinge alguns pontos, mas cria novos problemas. A grande questão é que, ainda que não se pense na dimensão do vivido ela faz parte e interfere na produção da cidade, não só questionando, como também colocando em xeque as estratégias apresentadas.

O chamado centro da cidade, aqui denominado por centro histórico/tradicional, ainda é um dos espaços mais democráticos que existe na cidade. Por isso ainda é um dos lugares, além de ser nodal do ponto de vista dos transportes públicos, por onde transitam mais de um milhão de pessoas por dia. É local de intensa atividade econômica e financeira, reforçada pela presença das Bolsas de Valores e de Mercadorias e futuro, além de sedes bancárias. É lugar de compras, tanto de produtos com preços mais populares como mais sofisticados. Como lugar de grande afluxo populacional, aliado à situação de falta de empregos; favorece a presença de camelôs nas principais vias públicas além da chamada população de rua. Essa multiplicidade de atividades e pessoas faz do centro esse lugar democrático, e, ao mesmo tempo, justamente por colocar muitos diferentes em um mesmo espaço, um lugar de grandes conflitos, ainda que nem sempre tão claros.

Um dos grandes conflitos que se põe é o da presença da atividade do chamado comércio informal, exercida pelos camelôs ou ambulantes. Se retomarmos as propostas da Associação Viva o Centro verificamos que a presença dos camelôs é posta como um problema à “recuperação” da imagem positiva do centro. Sobre esse “problema” vemos uma sugestão no item 7[18] que propõe a criação de espaços adequados ao comércio informal. Nesse caso a solução não aparece como uma possibilidade de parceria público-privado: cabe ao poder público a criação de

...um ou dois centros populares de compras em terrenos, prédios ou galpões adquiridos ou locados pela Prefeitura para tal fim, liberando, dessa forma, totalmente as calçadas, praças e ruas para a circulação de pedestres e veículos[19].

Apesar da proposta, a tentativa de efetivação da mesma, que passa também pela retirada de camelôs do espaço público, encontra resistências. Os ambulantes alegam que a atividade do comércio informal necessita da rua, do espaço de passagem dos pedestres, que não iriam a um camelódromo[20] para fazer as compras. Ainda segundo os ambulantes a compra em uma barraca ou pano estendido no chão[21] de um camelô é dada pelo acaso, pelo comprador estar de passagem e, eventualmente ver ou ter a necessidade de algum objeto[22]. Além da resposta formal à proposta, respostas físicas, e por vezes violentas também ocorrem. Em 2005, na época de Natal, conflitos entre policiais e ambulantes na Rua 25 de março foram manchete nos noticiários televisivos e na mídia impressa. Apesar da repressão, os camelôs recriaram estratégias e permaneceram nas ruas.

Não podemos nos esquecer que essa atividade, por outro lado, é também uma forma de apropriação privada do espaço público, impedindo ou dificultando a passagem das pessoas pelas ruas. Resolver essa questão exige que se discuta os porquês disso ocorrer, para só a partir daí se buscar alternativas para o problema.

Além da presença física dos ambulantes temos também, e em grande número na área central, os moradores de rua ou o povo de rua. Se pensarmos na possibilidade de sobrevivência a partir da mendicância, a área central se apresenta como o lócus privilegiado para isso. Como dissemos, só pelo Viaduto do Chá, que faz a ligação entre o centro histórico e o chamado centro novo, de acordo com dados da prefeitura, são mais de um milhão de pessoas que por ele transitam diariamente. Mas a presença dessas pessoas nessa área é tida como inibidora na construção da imagem positiva do centro. Os mendigos aparecem como pessoas a quem se deve ter medo, como se fossem assaltantes. Retira-los da paisagem se põe como estratégia. Sobre isso a Associação (2004) propõe que a Prefeitura paulistana faça uma coordenação e gestão eficiente da rede de instituições públicas e privadas que atendem ou acolhem as pessoas em situação de rua da área central, de modo a “tirá-las das ruas e devolver-lhes a dignidade”, sem, entretanto, apresentar efetivamente uma proposta concreta, como o faz, por exemplo, para outros itens como os da requalificação e reurbanização de algumas áreas centrais, como aparece no documento.

Sobre a população em situação de rua os conflitos vem surgindo, inclusive veiculados na mídia, com mais força a partir de 2004, quando do assassinato de moradores de rua no centro da cidade. Na época chegou-se a levantar a hipótese de que teria sido um crime encomendado por comerciantes locais, já que a presença dessas pessoas afugenta os clientes de algumas lojas. Apesar de alguns suspeitos terem sido interrogados, até hoje esses assassinatos encontram-se sem solução.

Ainda que de forma não organizada, esses assassinatos serviram para que os moradores de rua criassem estratégias espaciais de tentativa de sobrevivência. Depois de um dia de mendicância, muitos deles começaram a se concentrar na Praça da Sé[23], onde de forma mais marcada passou a ser o lugar do dormir, do fazer as necessidades, do banho (nas fontes), do sexo ocasional, etc. A Praça virou casa sem o ser. Mas por que essa Praça? Claro que não é apenas essa, mas ela, em especial, possibilita uma maior seguridade. Fica ao lado da Igreja da Sé e do marco zero da cidade, que também faz parte praça. Nesse trecho está instalado um posto da polícia militar e outro da polícia civil que, de alguma forma, mesmo quando fechados, dão a sensação de maior segurança. Além disso, a concentração de pessoas em situação de rua em um mesmo espaço permite a vigilância recíproca em caso de novos atentados contra a vida.

Mas  ocupar a praça e lá permanecer mais marcadamente em alguns horários (final da tarde, noite e parte da manhã), fez com que muitos dos que vão a essa área, restrinjam seus passos a área da Praça localizada em frente da Catedral da Sé, que começa nas escadarias, passa pelo marco zero e chega a rua. Venceslau Brás, ou seja, ao corredor que existe marcado pela presença das palmeiras imperiais nessa praça. A área onde encontramos as fontes, os canteiros de vegetação e as árvores presentes nos jardins e onde se concentram os moradores de rua que, ocupando esse espaço, acaba por ficar restrita a esses moradores de rua, já que as outras pessoas passam a ter medo do lugar.

Isso faz com que a Praça se torne um problema no sentido em que passa a ser encarada como uma área degradada que afugenta não só pessoas, mas no seu entorno, investimentos que poderiam levar a uma maior dinâmica econômica na região.

Resolver essa questão passa a ser fundamental se pensarmos no projeto de requalificação desse centro. O “solucionar” o problema tem passado essencialmente por propostas pautadas na transformação espacial dessa praça. O remodelamento paisagístico, que propõe mudanças do projeto arquitetônico existente e que mexe no tipo de vegetação dos canteiros e jardins, faz parte da estratégia, que aparentemente virá a ser executada a partir deste ano (2006), mas que já foi apresentada em 2005, pelo então sub prefeito Andrea Matarazzo.

Faz parte do projeto de requalificação da Praça[24] da Sé, e seguindo as atuais tendências de projetos arquitetônicos de praças, a tentativa de criação de uma total visualização da Praça o que exige a retirada dos desníveis existentes, bem como a mudança do tipo de vegetação que não pode ser impeditiva da visão total do espaço. A Praça hoje possui diversos desníveis, fontes, bancos, jardins e alguns canteiros suspensos (cerca de meio metro do solo). Essa forma da Praça possibilita que os moradores em situação de rua possam se abrigar (em sentido amplo), nos desníveis e sob os canteiros, além de usar também as áreas dos pequenos jardins.

Em um primeiro momento a requalificação da Praça exigirá a retirada dessas pessoas para que a obra possa ser executada. Além disso, até por uma questão de segurança aos que andam nas imediações, virão os tapumes que cercarão a área e impedirão o acesso a obra. A própria obra servirá à retirada da população em situação de rua da Praça. O que ocorrerá, provavelmente, será uma migração dessa população por áreas dessa centralidade sendo removidos hoje de um lugar, amanhã de outro e assim por diante.

Há ainda outras formas de resistência que tomam o espaço público e o privado. Estamos nos referindo à luta de grupos organizados por moradia, que existem por toda a cidade, inclusive na área central. O Plano diretor da cidade aprovado em 2002 aponta para a criação das áreas de habitação de interesse social e boa parte delas se concentra na área central já que esta é bem provida de infra-estrutura (água, luz, esgoto, transportes, comunicações, etc) que, segundo os estudos realizados, ficam subutilizadas depois do expediente comercial e aos finais de semana. Como há grupos que lutam pelo direito à moradia, e pela pressão que exerceram, aparece essa possibilidade formalmente no plano diretor da cidade. Entretanto existe também oposição a isso. A Associação Viva o centro, por exemplo, é a favor do incremento da função moradia na área central, até para reforçar a segurança nessa área, mas propõe que a moradia seja voltada a população de média ou alta renda, alegando que a população de baixa renda não teria condições de manter os edifícios, fazendo com que a paisagem da região rapidamente se degradasse pela falta de manutenção adequada, principalmente das fachadas dos edifícios.

Não há consenso com relação aos projetos de moradia popular. Os interesses são divergentes. Ainda que a possibilidade se apresente no Plano Diretor, as verbas para a efetivação do projeto dependem de investimentos públicos, mas isso aparentemente não é prioridade. Como só está no papel, mas não há ações concretas por parte dos poderes públicos, de mudança do quadro, vemos a luta dos movimentos para que, pela pressão, alguma coisa seja feita. Dentre as estratégias estão: a ocupação[25] de prédios vazios como forma de pressão sobre o poder público e acampamento nas vias públicas, em geral na frente de edifícios ligados à liberação de verbas para a moradia popular. Além disso há também a tentativa de eleição de representantes que lutem pela causa da moradia popular nas várias instâncias do poder legislativo e participação nas discussões dos planos e estratégias para a cidade e ou parcelas da cidade.

Tanto no caso dos camelôs, quanto dos moradores em situação de rua, como dos que lutam, enquanto movimento social, pelo direito a moradia (na maior parte das vezes pelo direito à propriedade privada) é a presença física desses grupos (com ou sem movimento reivindicatório ou questionador das estratégias postas) que aparece como forma de questionamento das ações pautadas na tecnicidade e na lógica e que tendem a se impor como únicas alternativas á transformação do espaço.

O que definitivamente vale ressaltar é como a dimensão do espaço concebido tende a se sobrepor às outras dimensões do espaço. Mas elas existem e se queremos construir uma sociedade mais justa devemos levar em conta que a sociedade não é um todo homogêneo: ao contrário, se constitui de diferentes grupos sociais, econômicos, culturais e políticos e que a opção por esta ou aquela estratégia espacial implica em uma opção por um ou outro desses grupos. Portanto, enquanto cientistas sociais temos a obrigação de deixar isto bem claro à sociedade, evitando os famosos consensos de que as transformações espaciais levam ao desenvolvimento social. A questão é: de que sociedade estamos falando? Será que lembramos que existem outras dimensões para além da que prioriza a racionalidade técnica? Será que é possível levarmos em conta também as escalas geográficas[26] do corpo, da casa ou a escala privilegiada será sempre a da cidade na relação com a escala global?  Essa última é que temos visto ser apresentada quando se pensa na produção da cidade.

Notas

[1] Cinemas, teatro, diversão no geral, comércio variado e específico, instituições bancárias (estatais e privadas), como exemplo, tinham sua concentração no centro tradicional.

 
[2] Observe a hierarquia posta entre a nova centralidade e o subcentro.
 
[3] Por edifícios inteligentes estamos nomeando as modernas edificações de escritórios que possuem gerenciamento empresarial, e que do ponto de vista tecnológico possuem o que hoje se considera ponta e indispensável às empresas ligadas a produção do terciário avançado.
 
4] A idéia de degradação remete a se pensar a cidade enquanto um organismo, recuperando noções da escola de Chicago, o que é uma contradição com relação a noção de cidade enquanto  meios, condição e produto social.
 
5] Revitalização, termo encontrado em muitos dos documentos públicos e de instituições privadas estudadas, pode levar à idéia de negação ou inexistência da vida sócio-econômica presente nesse espaço e, como venho demonstrando, não é disso que se trata.
 
6] Para LEFEBVRE (1986) o espaço possui três dimensões articuladas: o concebido, o percebido e o vivido.
 
7]H. Capel (2005) fez referências a esse Modelo Barcelona que está publicada no livro El modelo Barcelona: un examen crítico.
 
8] Sobre as cidades globais temos como referência as obras de SASSEN (1998) E. CASTELLS (2002).
 
9] São Paulo como uma cidade mundial e seu centro histórico como uma centralidade da cidade capaz de exercer essa função aparece em vários documentos da Associação Viva o Centro (1996) (2004).
 
10] Fonte: Global Networks – Linked Cities, editado por Saskia Sassen, Routledge, 2002, retirado del site: http://www.mujeresdeempresa.com/portugues/actualidad/actualidad030802.htm
 
11]Os critérios levantados pela autora para classificar as cidades globais foram: Fluxos de passageiros de avião (por exemplo: avaliar entre que cidades se realizam os principais fluxos), Pontos dos circuitos de cruzeiros, Número de firmas internacionais de serviço global que produzem “commodities” organizacionais indispensáveis ao sistema econômico e financeiro global (por exemplo: advocacia, publicidade, auditoria e fiscal, corretores e instituições ligadas aos mercados financeiros, logística, design, segurança, serviços de limpeza), características do Investimento Direto Estrangeiro e dos fluxos comerciais, Localização dos centros de decisão das sedes regionais das multinacionais, Geografia de posicionamento das multinacionais do país, Alianças entre mercados financeiros, Fluxos de imigração para serviços qualificados e profissionais, Posicionamento geopolítico e geo-econômico (nó de uma rede, papel de “ponte”, ponto de entrada, etc.), Serviços à elite profissional, Bienais e festivais, Mercado de arte, Redes “alternativas” (ambientalistas, direitos humanos, etc.), Alianças inter-cidades transfronteiriças, Fixação de fluxos de “outsourcing” em setores de alto valor acrescentado,  Redes transnacionais de infra-estrutura comunicacional em que se insere.
 
12] Por produtivo estamos entendendo a produção (propriamente dita) de mercadorias, a circulação, distribuição e consumo.
 
13] A Associação Viva o Centro é uma entidade que representa os interesse de grupos empresariais existentes na região. Destaca-ser dentre os mais de oitenta agentes (associados) os seguintes nomes: BankBoston, Bolsa de Mercadorias & Futuros - BM&F; Associação Brasileira de Bancos Internacionais – ABBI, Federação Brasileira das Associações de Bancos – FEBRABAN; Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de São Paulo; Bolsa de Valores de São Paulo – BOVESPA; Pinheiro Neto Advogados; Serviço Social do Comércio – SESC; Klabin; Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Universidade Anhembí Morumbi; Mosteiro de São Bento de São Paulo; Ordem dos Advogados do Brasil - OAB; Fundação Bienal de São Paulo; Casas Bahia; Sebrae - Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo/Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP; Banco Itaú; Banco Santander Banespa; Sociedade Amigos de Vila Buarque, Santa Cecília, Higienópolis e Pacaembu; Associação Nacional das Corretoras de Valores, Câmbio e Mercadorias – ANCOR; e Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento – ACREFI.
 
14] Dentre as propostas podemos destacar: a reurbanização da Praça do Patriarca, a requalificação das praças públicas - Sé, República e Roosevelt, a revisão do sistema de calçadões, a requalificação do Pólo Luz-Santa Ifigênia, a refuncionalização do Vale do Anhangabaú, a requalificação da rótula central, a construção de garagens subterrâneas, a criação de espaços adequados ao comércio informal, a implantação de uma eficiente coordenação e gestão, pela Prefeitura, da rede de instituições públicas e privadas que atendem ou acolhem pessoas que vivem nas ruas do Centro e a implantação de sistema circular de bondes.
 
15] Cracolândia é um termo pejorativo, freqüentemente utilizado, pela mídia e também pelo poder público quando se refere a área, em reportagens veiculadas pelos meios de comunicações, para se referir a uma parte da região central localizada nas  imediações da Estação da Luz, onde existem muitos  usuários de crack (alucinógeno derivado da cocaína) e onde eram encontrados um grande número de prostíbulos.  Essa área tem como limites a Avenida Duque de Caxias, Avenida Rio Branco, Avenida Ipiranga e Rua General Couto de Magalhães.
 
16] Por comércio popular estou denominado o conjunto de lojas comerciais tais como vestuário, bares, lanchonetes, restaurantes, entre outros, que oferecem mercadorias com preços acessíveis à população de baixa renda e poder de consumo que pela região transita, mora ou trabalha. Vale lembrar que nas proximidades temos a estação da Luz (tanto de trem como a de metrô), bem como a importante área de confecções da rua José Paulino, que hoje tem significativa presença da comunidade coreana e chinesa.
 
17] Em reportagem na Revista Veja sobre a reurbanização da Cracolândia, ANTUNES (2006) afirma que as posições do padre Julio Lancelotti, responsável pela pastoral do povo de rua e que questiona o projeto  chamando-o de higienista, eram demagógicas.
 
18] O documento Carta aos Candidatos, datado de 2004, reaparece no site da Associação com o título “Dez propostas para o Centro” a partir de 2005 e pode ser lido na página da Associação. Ver: http://www.vivaocentro.org.br/noticias/arquivo/propostas.htm
 
19]  ASSOCIAÇÃO, 2004.
 
20] Camelódromo é o nome pelo qual foram conhecidos alguns espaços exclusivos para a presença de ambulantes, tentativa está já posta em prática em algumas gestões municipais.
 
21] O estender as mercadorias sobre um pano ou lona no chão é uma estratégia criada pelos ambulantes para fugir (sem a perda da mercadoria) da eventual tentativa de repressão dessa atividade pela força policial ou de fiscais da municipalidade.
 
22] É comum nos dias em que chove “aparecerem” guardas-chuva entre as mercadorias dos camelôs, que vendem, a preços módicos, aqueles que saíram de casa desprevenidos.
 
23] A Praça da Sé sempre foi um lugar de dormida aos moradores de rua (homens, mulheres e crianças), entretanto após os assassinatos, o número deles aumentou muito, tornando-se um território das pessoas em situação de rua.
 
24] O projeto de requalificação da Praça da Sé faz parte de um programa mais amplo de recuperação das praças públicas da região central. Nesse grande programa requalificação estão incluídas, além da Praça da Sé , a Praça da República e a Praça Roosevelt.
 
25] A ocupação de prédios se dá de várias formas: desde o uso da força durante a ocupação até a estratégia da ocupação pela festa. Um exemplo dessa última situação ocorreu em um prédio na área central onde, já estado ocupado alguns andares e, sob a vigilância da polícia, os outros andares foram ocupados, sem violência, quando da realização de uma festa de aniversário em que todos que entravam no prédio alegavam ir a festa.
 
26] Sobre a questão das escalas há um interessante texto de N. SMITH (2000) que a partir da discussão dos homeless em Nova Iorque debate a importância da discussão da escala geográfica de análise.
 
 

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Ficha bibliográfica:
 
ALVES, Glória ANUNCIAÇÃO de. A lógica e os embates na produção da cidade: o caso de São Paulo. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (44). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-44.htm> [ISSN: 1138-9788]
 

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