Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. XI, núm. 245 (05), 1 de agosto de 2007
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]


Número extraordinario dedicado al IX Coloquio de Geocritica


URBANISMO: É POSSÍVEL PROJETAR UM FUTURO COLETIVO PARA A CIDADE?


Silvana Maria Pintaudi
Centro de Estudos Ambientais - Observatório Territorial
Universidade Estadual Paulista – Campus Rio Claro
observa@rc.unesp.br

Urbanismo: é possível projetar um futuro coletivo para a cidade? (Resumo)

Urbanismo e urbanística emergem com o apagamento do urbano e da urbanidade nos primórdios do século XX, momento em que a polis se dilacera de maneira determinante, que não volta atrás, sem retorno. Na perspectiva de uma Geografia Crítica, discutiremos o planejamento urbano elaborado a partir da participação da cidadania. Projetar a cidade pressupõe pensar a cidade no tempo, avaliando suas condições materiais plasmadas no espaço, bem como as possibilidades não realizadas. Planejar a cidade implica a definição de tempos e lugares onde a vida acontecerá, em todas as suas dimensões e sentidos. Responsabilidade do poder público, as ações empreendidas para o planejamento urbano, que recorrem à participação cidadã, são recentes e merecem análises cuidadosas, tendo em vista as desigualdades sociais que se ampliam e se aprofundam nas cidades e que podem romper a possibilidade de diálogo para projetar um futuro coletivo.

Palavras-Chave: urbanismo, participação cidadã, espaço público, espaço político, tempo coletivo.


City planning: is it possible to project a collective future for the city? (Abstract) 

City Planning and urbanistic emerge when the urban and the urbanity get extinguished in the XX century beginnings at the moment that the polis decisively lacerates with no possibilities to turn back. From the Critical Geography perspective, we will discuss the urban planning developed through the citizenship participation. To project the city supposes to reflect on it into time, evaluating its material conditions shaped in the space, as well as the not accomplished possibilities. To plan the city means to identify the times and places where life - in its all dimensions and senses - will happen. The Public Power responsibility, the urban planning actions that regard to the citizen participation are recent and they deserve to be carefully analysed, having in mind the enlargement and deepen of social inequalities in the cities which could break the possible dialogue to plan a collective future. 

Keywords: city planning, citizenship participation, public space, political space, collective time. 


Este texto, de certa maneira, dá continuidade àquele apresentado em maio de 2005 durante o VII Colóquio Internacional de Geocrítica realizado no Chile e publicado em Scripta Nova, vol. IX, número 194 (102), em agosto do mesmo ano. Naquela ocasião fizemos referência e tecemos considerações sobre um instrumento de gestão, denominado “Conferência da Cidade”, usado duas vezes no Município de Rio Claro, SP, e que demanda a participação da cidadania. Embora tenhamos feito menção às duas Conferências realizadas, detivemo-nos mais na análise da primeira delas, realizada em 2000, e concluímos o artigo dizendo que a Conferência havia sido um momento de encontro para a organização da vida coletiva, o que não significava exatamente o exercício do poder pelo povo. Esse instrumento de gestão, embora pensado como uma maneira de os cidadãos olharem para o futuro, revelou, através dos resultados da primeira conferência, que os desejos se voltavam para a satisfação das necessidades básicas de reprodução da própria vida; portanto,  a realização de projetos no curto prazo.

Concluímos, naquela oportunidade, que a Conferência Municipal, como instrumento que permitia pensar o futuro, desenhá-lo, necessitava, como instrumento em si, de maior transcendência para que o olhar do cidadão não se limitasse ao ‘plano básico’ e individual de reprodução da vida. Afirmamos, ainda, que aquele instrumento de gestão pública, detentor de grande potencial emancipatório para a produção de espaços mais generosos de reprodução da vida humana, precisava ter seus limites e possibilidades mais bem compreendidos. Isso sem esquecer que, quando existe um instrumento que oferece uma possibilidade verdadeira de emancipação, ele deixa de ser funcional ao estado.

Como se depreende do resumo exposto, chegamos a algumas conclusões que mereciam maior aprofundamento para que se compreenda melhor o espaço político que esse instrumento permite criar virtualmente e se discutir o papel dele concretamente. É esse o propósito deste trabalho, que tem como referência maior a segunda conferência, realizada no município de Rio Claro em 2003. A análise das condições da participação cidadã na construção de um projeto coletivo para a vida urbana se faz, desde logo,  na perspectiva de uma Geografia Crítica. O quadro de nossa interpretação, inclusive, vai além dos limites da Geografia, pois não é possível compreender as Conferências Municipais - enquanto espaço político - sem lançarmos mão de outros conhecimentos disciplinares, particularmente quando nos voltamos para a compreensão do espaço político. Analisaremos aqui um objeto que, por sua própria natureza, é polidisciplinar. E não existe especialidade que, sozinha, possa torná-lo mais inteligível. Estamos diante de um objeto complexo e abordá-lo requer, no mínimo, igual complexidade de pensamento. Sabemos que tratar de objetos complexos se constitui desafio enorme num mundo em que a visão está reduzida a parcelas dele, aos seus fragmentos; mas é imperativo tentar, sob pena de não conseguirmos compreender mais nada.

Acerca do sentido da polis

É absolutamente necessário retomar, ainda que resumidamente, alguns conceitos tal como foram entendidos no momento de sua formulação, de modo a se compreenderem as mudanças nas suas interpretações. Hoje empregamos alguns deles com um significado completamente diverso daquele original, no contexto em que foram criados (‘democracia’ é modelar nesse aspecto), ou distorcidos por alguma interpretação equivocada (‘maquiavélico’ é um bom exemplo), o que obscurece o entendimento da realidade. Os conceitos têm data, são historicamente construídos. Essa é a razão de buscarmos a maior clareza possível para aqueles conceitos que, articulados, nos proporcionam fundamentos para compreensão de nosso objeto de estudo.

Recordamos, inicialmente, as palavras de Francis Wolff[1]: “é a política que assegura a comunidade contra si mesma e contra o exterior. (...) os homens não podem viver sós, mas precisam ser coagidos a isso”, ou seja, são sociáveis, mas devem ser forçados a tal sociabilidade. Voltaremos a este paradoxo mais adiante, mas, desde já, ele nos dá a chance de compreender as próximas afirmações sobre a política e seu escopo.

A idéia de política foi criada na Grécia e, nos termos da concepção aristotélica, estava inextricavelmente ligada à polis ; portanto, ao espaço que compreendia os aglomerados humanos[2], aquele que se referia ao espaço da vida em comum. “O viver ‘político’ (na polis) era ao mesmo tempo o viver coletivo, a vida associada e, mais intensamente, a vida em koinonía – em comunhão e ‘comunidade’” (Sartori, 1997, 2ª, p. 159). Antes,

É só porque o homem vive na polis – e porque a polis vive nele – que o homem se realiza como tal. Dizendo ‘animal político’ Aristóteles exprimia a concepção grega da vida. Uma concepção segundo a qual a polis era a unidade constitutiva indecomponível e a dimensão suprema da existência[3]

No viver ‘político’ e na ‘politicidade’ os gregos viam não uma parte, ou aspecto, da vida, mas seu todo, sua essência. Inversamente, o homem ‘não político’ era um ser deficiente, um ídion, um ser carente (significado original do nosso termo ‘idiota’), cuja insuficiência consistia justamente em ter perdido (ou em não haver adquirido) a dimensão e a plenitude da simbiose de sua polis. Em breve [em suma], um homem ‘não político’ não era apenas um ser inferior, era menos-que-homem (Sartori, 1997, 2ª, p. 158/159).

Observamos que cidade e política, na origem, são termos inseparáveis, considerando-se, então, que as aglomerações de pessoas de diferentes classes sociais (proprietários de terras, escravos, não-proprietários, comerciantes, artesãos etc.) passaram a compartir um espaço comum e, para resolver as diferenças, fazia-se necessária uma ordem: a justiça era indispensável para que reinasse a paz na polis. Assim, o propósito da vida política dos gregos era a justiça. Conforme escreveu Chauí (2005, p. 349),

A palavra política é grega: ta politika, vinda de polis. Polis é a cidade, não como conjunto de edifícios, ruas e praças e sim como espaço cívico, ou seja, entendida como a comunidade organizada, formada pelos cidadãos (politikós), isto é, pelos homens livres e iguais, nascidos em seu território, portadores de dois direitos inquestionáveis, a isonomia (igualdade perante a lei) e a isegoria (a igualdade no direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a cidade deve ou não deve realizar).

Ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos: costumes, leis, erário público, organização da defesa e da guerra, administração dos serviços públicos (abertura de ruas, estradas e portos, construção de templos e fortificações, obras de irrigação, etc.) e das atividades econômicas da cidade (moeda, impostos e tributos, tratados comerciais, etc.).

Isto implica um conjunto de instituições, administração e modo de participação no poder, como indica a mesma autora. O poder em si já existia, mas romanos e gregos “inventaram o poder e a autoridade políticos propriamente ditos” (Chauí, 2005, p. 349), melhor dizendo, retiraram do poder o seu caráter místico. Chauí (2005, p. 352) também se refere à criação do espaço político ou espaço público entre os principais traços da invenção da política, e concebe esse espaço como o “coração da invenção política”. Arendt (2004, p. 213) considerava que,

O único fator material indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens. Estes só retêm poder quando vivem tão próximos uns dos outros que as potencialidades da ação estão sempre presentes; e, portanto, "a fundação de cidades que, como as cidades-estados, converteram-se em paradigmas para toda a organização política ocidental, foi na verdade a condição prévia material mais importante do poder"[4]. O que mantém unidas as pessoas depois que passa o momento fugaz da ação (aquilo que hoje chamamos de ‘organização’) e o que elas, por sua vez, mantêm vivo ao permanecerem unidas é o poder. Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência, renuncia ao poder e se torna impotente, por maior que seja sua força e por mais válidas que sejam suas razões.

Embora com fundamentos diferentes, ambas as autoras apontam a presença de um espaço comum entre os indivíduos na origem do poder político, quando ele deixa de ter um caráter sobrenatural. Desde então, e guardadas as devidas proporções, o que estará em jogo é a propriedade, de pessoas, de terras etc.

A dissociação entre o político e o social emergirá com mais vigor na Idade Média, embora no mundo romano não fosse considerada civitas (com o mesmo significado de polis) qualquer aglomerado, mas sim aqueles que contavam com aprovação legal. Um século antes de Cristo esse fato já era indicado por Cícero (Sartori, 1997, 2ª, p. 159). É o apagamento do sentido grego da polis – onde política não estava associada a poder – que traz para a superfície o social. A polis, plena de sentidos, vê, paulatinamente, a usurpação de cada um deles e, no limite, a banalização de cada um – do político, do social, do econômico etc. O que restou? A cidade histórica que se desfaz em pedaços e o urbano que, como escreveu Lefèbvre (1986, p.160) “ne designe pas la ville et la vie en ville. Au contraire: il naît avec l’éclatement de la ville, avec les problèmes et la détériorarion de la vie urbaine».

Acerca do sentido da política

Para Arendt (2002, p.117) “o sentido da política é a liberdade”[5]. Na modernidade esse sentido falta à política ou “seu sentido transformou-se em falta de sentido”, como a autora afirmou (2002, p.119), ao mesmo tempo em que se perguntava se a política ainda tinha algum sentido. Analisando a questão Arendt considerava duas condições: 1) as formas totalitárias de governo [onde “o todo da vida dos homens pretensamente tornou-se totalmente politizado” tendo como resultado o fato de nelas não haver mais liberdade alguma”(2002, p.117)] e 2) o desenvolvimento da aniquilação da vida [“cujo monopólio é detido pelos Estados que, sem ele, nunca teriam se desenvolvido] (2002, B, p. 117).

Contra a primeira condição a autora lembra que, “desde a Antiguidade ninguém mais partilhou da opinião de que o sentido da Política era a liberdade”[6] e, na modernidade, tampouco “a esfera política foi considerada, tanto sob o aspecto teórico quanto sob o prático, como um meio de assegurar as provisões vitais da sociedade e a produtividade do livre desenvolvimento social” (2002, p. 118-119). Contra a segunda condição, a da política em formas totalitárias e o poder que tem sobre a vida, a autora afirmou que “o que aqui ameaça[7] a esfera política é exatamente aquilo que na opinião da modernidade legitima[8] essa esfera em sua existência, ou seja: a mera possibilidade da vida e, mais precisamente, a possibilidade da vida de toda a humanidade” (2002, p.119). Sobre essas condições a autora conclui que "se é verdade que a política não é nada além do que é infelizmente necessário para a preservação da vida da humanidade, então com efeito ela começou a ser liquidada, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido. (2002, p.119)

Porém, Arendt não se detém nesse pensamento. Vai além, argumentando que o ser humano é capaz de realizar milagres (que para ela não são fenômenos restritos ao âmbito religioso) e o dom para desencadear esse processo é o agir (palavra que, conforme a autora, em sua origem latina significa ‘pôr em movimento’ e, na versão grega, compreendia o sentido de ‘iniciar e comandar’). Como ela escreveu,

O milagre da liberdade está inserido nesse poder de iniciar, que por sua vez, está inserido no fato de que todo homem, ao nascer, ao aparecer em um mundo que estava aí antes dele e que continuará a ser depois dele, é, ele mesmo, um novo início (2002, B, p.121/122).

Neste ponto, de certa maneira, a subjetividade aflora, o que é próprio da condição humana, e não podemos esquecê-la porque se constitui um dos caminhos de entendimento da zona de sombra do que é político[9]. Porém, a própria Arendt, como já mencionado acima, afirmou que o poder emerge quando os homens atuam em conjunto; quando não, ele desaparece. Há uma vontade comum. Conforme Habermas (2005,p.215),

H. Arendt no entiende el poder político ni como un potencial para la imposición de los propios intereses de uno o para la realización de fines colectivos, ni como el poder administrativo de tomar decisiones colectivamente vinculantes, sino como una fuerza autorizadora que se manifiesta en la creación de derecho legítimo y en la fundación de instituciones. Se manifiesta en ordenes jurídicos que protegen la libertad política, en la resistencia contra las represiones que amenazan a la libertad política desde fuera y desde dentro, y sobre todo en esos actos fundadores de libertad ‘que crean nuevas instituciones y leyes’.[10]

Castoriadis (2002, p.262), por sua vez, afirmou também que não é a felicidade, mas a liberdade o objetivo da política. A liberdade efetiva, para esse autor, (não incluída a filosófica, como ele mesmo esclarece) é denominada “autonomia”, tanto dos indivíduos quanto da comunidade, uma não existindo sem a outra. Para a concretização dessa autonomia Castoriadis considerou necessárias algumas condições, sendo a primeira delas a participação efetiva do indivíduo no que chamou de “formação da lei (da instituição)”.

Depreendemos das ponderações desse conjunto de autores que, se ainda podemos falar em sentido em se tratando de política, esse sentido é o da liberdade, que não é a individual, mas a coletiva. Ademais a liberdade depende do poder de uma cidadania ativa para sua permanência no tempo. Certamente os conselhos de cidadãos se constituem em espaços políticos que oferecem a possibilidade de construir uma vida em comum de caráter libertário.

Sobre o sentido da Conferência da Cidade

O espaço político[11] criado pela realização de uma Conferência da Cidade significa, desde logo, uma nova maneira de administrar um município, já que se trata da criação de um espaço onde os cidadãos se reúnem para projetar o futuro, discutindo e decidindo a maneira de torná-lo realidade. Trata-se, sem dúvida, de um espaço de poder onde a vontade coletiva tem primazia.

No município de Rio Claro, São Paulo, foram realizadas duas Conferências, uma em 2000 e outra em 2003, com finalidades distintas. Relembramos, no início do texto, algumas conclusões a que chegamos sobre a primeira delas; e agora daremos seqüência comentando a segunda.

Com o objetivo de “ampliar e assegurar o espaço de participação para toda a comunidade, garantindo o aprimoramento das ações do poder local” a II Conferência da Cidade se propôs a discutir com a sociedade os seguintes tópicos: 1) os espaços para o exercício da democracia participativa; 2) diferenças individuais e sociais: reconhecimento, respeito e inclusão; 3) desenvolvimento e sustentabilidade; e, 4) a inserção da cidade de Rio Claro na região, no estado, na federação e internacionalmente. É bom que se diga que foi entregue a cada participante um caderno contendo a prestação de contas das ações aprovadas durante a I Conferência, em 2000, mostrando o estágio em que se encontravam, ou seja, se a ação estava concluída, em execução ou em estudo.

A dinâmica, como a temática, desse encontro, foram diferentes do primeiro. Num primeiro momento foram realizadas pré-conferências, organizadas a partir de um número mínimo de dez pessoas interessadas, que discutiam os tópicos. Concluídos os debates era elaborado um relato que, aprovado pelos presentes, era encaminhado ao núcleo organizador da Conferência. Elas chegaram a 120 em todo o município e contaram com acompanhamento de representante da administração municipal. No fim de cada reunião, era eleito um delegado para cada cinco participantes, com direito a voz e voto na Conferência. Todos os relatos de discussão foram analisados e sistematizados pela equipe de governo, que elaborou diretrizes de ação governamental para serem votadas na Conferência. Houve, em todo o processo, uma participação de mais de 4.500 pessoas.

Das discussões resultou que o item 2 - sobre as diferenças individuais e sociais: reconhecimento, respeito e inclusão - foi o maior alvo de debates e propostas. O 3º item - sobre o desenvolvimento e sustentabilidade - e o 1º, cujo propósito era o de averiguar a acolhida e o significado dos espaços políticos dos conselhos de cidadãos, as sugestões para o fortalecimento e ampliação dos espaços de exercício da cidadania, receberam bem pouca atenção tendo em vista as inúmeras indicações recebidas no item 2. O 4º item, por sua vez, não mereceu nenhuma discussão por parte dos integrantes das pré-conferências e, portanto, não houve encaminhamento.

Esse resultado deixou nítido que o interesse maior daqueles que participaram da Conferência era a solução dos problemas do dia-a-dia, do futuro bem próximo, daquilo que é necessário e palpável, do prêt-à-porter, mesmo se estimulados a sonhar, a desenhar um futuro para a cidade. Apesar de essa faceta ter aparecido como resultado da Primeira Conferência que tinha por base a discussão de um plano de governo, a Segunda Conferência abria uma grande possibilidade de discussão da vida em comum, da cidade como um todo, mas não foi o que emergiu.

Na verdade, essa temática em tela permitiria deixar evidente a contradição entre estado e cidadão, expondo a emancipação como não funcional ao estado. A temática e o instrumento escolhido (uma reunião de cidadãos sem vínculos diretos com o poder municipal, embora se fizesse presente na Conferência um poder político como “força autorizadora”) estavam dotados de uma virtualidade impar para que um projeto de sociedade local pudesse se desenhar. Não ocorreu. Talvez porque a vontade comum tenha sido estimulada pelo próprio estado, e não partido da atuação conjunta dos cidadãos na construção desse espaço político. E mais, o agir, o atuar não é o mesmo que olhar a ação, a cena. Será que tínhamos a presença de cidadãos ou de público? Este não é um mero jogo de palavras, mas uma hipótese a considerar, porque estamos, hoje, diante da massa e da sua própria cultura, que almeja ter seu cotidiano resolvido, é essa sua aspiração. O futuro é muito incerto e, portanto, instala-se o tempo presente, aquele do que é imediato. Digamos que, apesar de questionarmos a ‘ausência do cidadão’, e da sua ‘pouca sensibilidade’ para perceber aquele espaço político como um caminho para o desenvolvimento pleno da sociedade, para que ela formule o seu plano de futuro, não podemos esquecer que esse cidadão está tendo acesso ao que é político e local. Através da TV ele tem notícias fragmentadas do resto do mundo, sempre na forma de acontecimento; e, dessa forma, não consegue elaborar uma crítica coerente, além do que parece não haver muita chance de mudanças. Trata-se, então, de extrair, naquele momento político, o que é possível para melhorar o presente. É como se dissessem “o futuro não nos pertence”.

Urbanismo

Projetar a cidade pressupõe pensar a cidade no tempo, avaliando suas condições materiais plasmadas no espaço, bem como as possibilidades não realizadas. Planejar a cidade implica a definição de tempos e lugares onde a vida acontecerá, em todas as suas dimensões e sentidos. Responsabilidade do poder público, as ações empreendidas para o planejamento urbano que recorrem à participação cidadã ressurgem atualizadas na vida urbana. Sim, ressurgem porque a participação de cidadãos na construção de um projeto para a vida em comum não se constitui novidade, mas encontram-se, enquanto instrumentos do urbanismo, atualizadas e, apesar de terem sido formuladas como instrumentos que virtualmente permitem mudanças, (embora não sendo isto funcional ao estado), já não têm chance de ocorrer, porque há imposição do tempo presente, impedindo o sonho. 

Pensar o futuro da cidade de maneira coletiva, isto é, projetar os rumos da vida sem empreender ações autoritárias requer a escuta dos desejos da cidadania. Recordamos, inicialmente, as palavras de Francis Wolff, e repetimos: “é a política que assegura a comunidade contra si mesma e contra o exterior”. É a política que pode reduzir a desigualdade entre os homens; porém, além de mal vista, ela já não tem o tempo que necessita para ser elaborada, ter permanência no tempo, ter seu rumo sempre aferido e corrigido. A instantaneidade impede esses aprimoramentos e reduz a política à troca, a pedidos que podem ser satisfeitos imediatamente. Os participantes da Segunda Conferência não “perderam seu tempo” em discutir temáticas de médio prazo, que não cabiam no tempo do mandato. De certa forma, devemos reconhecer a ‘sabedoria coletiva’, que se mostrou pragmática


Notas

[1] Anotações da autora durante conferência proferida por Francis Wolff em 06/09/06, dentro do ciclo sobre O esquecimento da política – organização de Adauto Novaes – auspícios: Ministério da Cultura, Petrobrás, SESC e outros.

[2] Não podemos usar os conceitos de cidade e de urbano em sua acepção atual, para nos referirmos àquele momento histórico. Henri Lefèbvre, em Le retour de la dialectique (1986, p. 160), escreveu particularmente sobre o conceito do urbano que “nasce com a fragmentação da cidade, com os problemas e a deterioração da vida urbana [...] de uma nostalgia, aquela da cidade e da ville histórica” processo que se acentua a partir da segunda metade do século XX. 

[3] Grifo nosso.

[4] Grifo nosso.

[5] Sobre a liberdade, no prefácio a O Antigo Regime e a Revolução (1973, p.326), Tocqueville escreveu: Os próprios déspotas não negam a excelência da liberdade. Ocorre apenas que a desejam exclusivamente para si, considerando como totalmente indignos dela a todos os outros. Assim, a divergência não está em torno da opinião que temos da liberdade  mas em torno da estima, maior ou menor, em que temos os homens.

[6] Na tragédia ‘As Suplicantes’ de Euripedes, numa resposta de Teseu (rei de Atenas) a um arauto que perguntava quem era o senhor que comandava Atenas para transmitir as ordens de Creonte (rei de Tebas) lemos o que segue: Dès le premier mot tu es dans l’erreur, étranger, en cherchant ici un tyran. Notre ville n’est pas au pouvoir d’un seul homme. Elle est libre. Son peuple la gouverne. Ses chefs son élus pour un an. L’argent n’y a nul privilège. Le pauvre et le riche ont les mêmes droits.

[7] Grifo nosso.

[8] Grifo nosso.

[9] A esse respeito ver Eugenio Trias, La política y su sombra. Barcelona: Anagrama, 2005.

[10] J. Habermas está citando H. Arendt, ‘Sobre la violencia’, em Id., Crisis de la República, Madrid, 1973, p. 146.

[11] Estamos distinguindo espaço público de espaço político porque entendemos que o primeiro engloba o segundo e não necessariamente inclui poder.

Bibliografía

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ARENDT, Hannah. A dignidade da política – ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

CASTORIADIS, Cornelius. A ascensão da insignificância. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2005, 13ª ed.

EURIPIDE. Tragédies complètes. Paris: Gallimard, 1962.

LÈFEBVRE, Henri. Le retour de la dialectique. Paris : Messidor, 1986.

SARTORI,Giovanni. A Política : lógica e método nas ciências sociais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª. ed., 1997.

TOCQUEVILLE, Aléxis de. O antigo regime e a revolução In: Os Pensadores, vol. XXIX, 1973 p. 321-362, Editora Abril, São Paulo.

TRÍAS, Eugenio. La Política y su sombra. Barcelona: Anagrama, 2005.

 

© Copyright Silvana Maria Pintaudi, 2007
© Copyright Scripta Nova , 2007

Ficha bibliográfica:

PINTAUDI, Silvana Maria. Urbanismo: é possível projetar um futuro coletivo para a cidade? Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales.   Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2007, vol. XI, núm. 245 (05). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-24505.htm> [ISSN: 1138-9788]


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