Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. XI, núm. 245 (16), 1 de agosto de 2007
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

Número extraordinario dedicado al IX Coloquio de Geocritica

A ESQUERDA NO PODER LOCAL: PORTO ALEGRE E O PARTIDO DOS TRABALHADORES


Mario Leal Lahorgue
Departamento de Geografia
Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC)

mll@unesc.net

A esquerda no poder local: Porto Alegre e o Partido dos Trabalhadores (PT) (Resumo)

Quais são os limites que um Partido de esquerda encontra quando se encontra administrando uma cidade inserida numa conjuntura onde o modo de produção de mercadorias é dominante? A partir de um exemplo brasileiro, se examina as políticas urbanas implementadas pelo Partido dos Trabalhadores na cidade de Porto Alegre (RS – Brasil), entre os anos de 1989 e 2004, período no qual este Partido governou a cidade em quatro administrações sucessivas. Portanto, busca-se aqui uma compreensão geral sobre políticas públicas implementadas nesta metrópole brasileira e seus efeitos sobre o espaço urbano e sua população, não se limitando às tradicionais discussões sobre o Orçamento Participativo, largamente debatido quando se fala em Porto Alegre e Partido dos Trabalhadores. Este trabalho apresenta a síntese de algumas idéias desenvolvidas na Tese de Doutoramento concluída pelo autor em 2004 na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Palavras-chave: Espaço urbano; poder local; políticas urbanas; administração municipal; Partido dos Trabalhadores (PT).


  The left on the local power: Porto Alegre and the Worker’s Party (PT) (Abstract)

Which are the limits that a left-wing party finds when it’s managing a city inserted in a conjuncture where the dominant mode of production is the capitalism? From a Brazilian example, it examines the urban policies implemented by the Workers’ Party in the city of Porto Alegre (RS - Brazil), between the years of 1989 and 2004, period in which this Party governed the city in four successive administrations. Therefore, this text is looking for a general understanding on the implemented public policies in this Brazilian metropolis and its effect on the urban space and its population, not limiting to the traditional discussions on the Participatory Budgeting, widely debated when Porto Alegre and Workers’ Party are focused. This work presents the synthesis of some ideas developed in the PhD Thesis concluded by the author in 2004 at the UFSC (Federal University of Santa Catarina).

Key-words: Urban space; local power; urban policies; municipal government; Workers’ Party (PT).



Porto Alegre, cidade no sul do Brasil centro de uma metrópole com mais de 3 milhões de habitantes, teve durante 15 anos uma experiência única, se considerarmos as particularidades da política brasileira. A partir de 1989, e por quatro administrações sucessivas até 2004, o Partido dos Trabalhadores (PT) governou o município, introduzindo inovações como o Orçamento Participativo, apoiando a realização do Forum Social Mundial e se tornando um dos focos do debate sobre as possibilidades da esquerda nas transformações em escala local.

Ao contrário de outras grandes cidades brasileiras, onde partidos de esquerda raramente conseguem ficar no poder mais de quatro anos (o período de mandato entre uma eleição e outra), o longo tempo em que o PT se manteve no poder local evidenciou uma maneira de se entender a cidade e o urbano sendo posta em prática. Visto a partir de um ângulo mais genérico, existiu a prática de um partido de esquerda no gerenciamento de uma cidade capitalista. Quais são os limites desta prática neste contexto? Visto agora por um ângulo mais específico, quais são os limites das políticas urbanas implementadas pelo PT em Porto Alegre?

Antes de prosseguir, se faz necessário alguns esclarecimentos. O primeiro diz respeito ao que está sendo considerado aqui poder local. No âmbito deste trabalho, poder local está circunscrito ao território do município, sendo a principal expressão deste poder o governo municipal, especialmente o poder executivo (Prefeitura). O segundo diz respeito à questão dos limites do poder local. Evidentemente, existem limites jurídicos, de distribuição de competências entre os poderes municipal, estadual e nacional, além de competências diferentes entre o legislativo, executivo e judiciário. Não é disso que se trata aqui. A questão é como a cidade foi administrada pelo Partido dos Trabalhadores dentro das possibilidades e barreiras existentes na lógica de acumulação de capital, na qual o urbano tem um papel bastante significativo. O terceiro esclarecimento é sobre o uso do termo esquerda. Desde que a coalizão liderada pelo PT venceu as eleição nacionais em 2002 e Luis Inácio Lula da Silva se tornou Presidente do Brasil, muitos tem questionado se o PT realmente continuaria sendo um partido de esquerda. Esta discussão não será feita. Este texto parte do princípio que, na prática, a administração petista em Porto Alegre foi de esquerda. O conceito de esquerda aqui utilizado se assemelha à definição de Bresser-Pereira (2006:26-27):

A direita é o conjunto de forças políticas que, em um país capitalista e democrático, luta sobretudo por assegurar a ordem, dando prioridade a este objetivo, enquanto a esquerda reúne aqueles que estão dispostos, até certo ponto, a arriscar a ordem em nome da justiça – ou em nome da justiça e da proteção ambiental, que só na segunda metade do século XX assumiu estatuto de objetivo político fundamental nas sociedades modernas. Adicionalmente, a esquerda se caracteriza por atribuir ao Estado papel ativo na redução da injustiça social ou da desigualdade (…)

Assim, estou englobando no conceito de esquerda não só grupos revolucionários, que pretendem substituir o capitalismo pelo socialismo, mas também a parcela que pode ser chamada de social-democrata, pois pretende instituir reformas no sistema sem necessariamente substituí-lo.


O que pode o poder local?

Em um trabalho recente, Carlos Vainer (2002) apresenta uma pergunta básica semelhante à que norteou a pesquisa que deu origem a este texto. A pergunta, “o que pode o poder local?”, não tem como base um estudo de caso específico, mas procura apresentar um contraponto à “mercadotecnia” e às “cidades em competição” defendidas por autores como Borja e Forn (1996) ou Borja e Castells (1996).

Vainer (2002:29) coloca que é possível romper com o “fatalismo do pensamento neoliberal”, desde que se parta do pressuposto que a política local deva ser concebida como parte de uma “estratégia transescalar” (ou seja, é imprescindível articular a escala local com outras) e tenha como objetivos:

· a redução das desigualdades e melhoria das condições de vida das classes e grupos sociais oprimidos e explorados, principalmente através da transferência de recursos em seu favor;

· o avanço e radicalização de dinâmicas (sociais, políticas, culturais) que propiciem a organização e a luta populares;

· o enfraquecimento dos grupos e coalizões dominantes através da desmontagem de mecanismos tradicionais de reprodução de poder e a desarticulação de alianças e dispositivos que favoreçam a privatização de recursos públicos.

Pois bem; o objetivo aqui não é discutir as teses deste autor, mas usar estes enunciados como um ponto de partida para a discussão sobre Porto Alegre. A razão provavelmente já tenha sido notada pelo leitor que conhece pelo menos um pouco a cidade: as políticas implementadas ao longo desses 15 anos na capital gaúcha pelo Partido dos Trabalhadores sempre foram pautadas por objetivos muito semelhantes aos citados acima. Vide o Orçamento Participativo e seu “efeito redistributivo”, além do próprio processo do OP como uma “nova forma de poder”; a desarticulação de práticas clientelistas tradicionais, entre outras. Consequentemente, se estes objetivos podem (pelo menos parcialmente) ser encontrados em Porto Alegre, a questão agora é discutir os limites destas estratégias como uma contraposição ao neoliberalismo.

Para isto é necessário que se parta de um entendimento mais geral. Portanto, um “limite genérico” pode ser apontado: as relações capitalistas não estão limitadas às fronteiras territoriais do município; logo, existem componentes estruturais que não só não podem ser modificados na escala local, mas tem o poder de produzir o espaço quase à revelia tanto do governo municipal quanto das forças políticas locais. E isto coloca um problema para os Partidos de esquerda que aceitaram as regras da democracia formal, ganharam eleições e se encontram administrando cidades no contexto capitalista: o que pode ser feito na escala local?

Algo que é frequentemente esquecido quando alguns analistas tentam mostrar a pretensa novidade da globalização é que o desenvolvimento do capitalismo, pelas próprias características do processo de acumulação, sempre foi um movimento de quebra de barreiras espaciais, de expansão. O processo de acumulação sempre foi ao mesmo tempo um processo de incorporação de novos territórios dentro da lógica capitalista, seja no início unificando o espaço pulverizado do feudalismo em estados nacionais, seja através do “comércio mundial” ou da implantação mais recente de unidades fabris (as empresas transnacionais) nos mais diferentes países do globo.

Além disso, esta unificação do espaço carrega ao mesmo tempo a transformação de praticamente tudo em mercadoria: não só as coisas produzidas nas fábricas, mas a força de trabalho e o próprio ambiente construído. Dito de outra maneira, passa a predominar o valor de troca em detrimento ao valor de uso e a própria cidade vira valor de troca, como já lembrava Henri Lefebvre (1976 e 1978).

Se genericamente existe a unificação do espaço como um requisito da acumulação, isto não significa que territórios particulares, nas mais diversas escalas, não tenham diferenças. No exemplo mais óbvio, não existe indústria em todos os pontos do planeta, nem mesmo em todas as cidades de um mesmo país. De forma semelhante ao trabalho, o espaço é abstrato, homogeneizado, se comporta como equivalente (o que ajuda a explicar as disputas das municipalidades por indústrias, a competição entre cidades) e ao mesmo tempo é concreto, pois a particularidade (produzida) do lugar significa formas e possibilidades diferentes no processo genérico de acumulação.

A particularidade do local então, pode tanto servir como estímulo a investimentos diversos de capitais quanto servir para estratégias diferenciadas na luta por um ambiente construído que não sirva unicamente à acumulação.

O processo de valorização necessita criar uma ampla gama de estruturas que imobilizam o capital, uma paisagem física, um ambiente construído, um capital fixo. As cidades são as melhores representações disso, são espaços produzidos, configurações particulares de uma forma de produzir e consumir. Em outras palavras, o urbano é uma coerência estruturada, para retomar David Harvey (1989). O que significa que não é tão fácil a mudança de fluxos de investimentos de uma região para outra, de um lugar para outro. A imobilização de uma quantidade enorme de capital como ambiente construído faz com que o capital também seja interessado (pelo menos até um certo ponto) na continuidade do urbano existente. Isto ajuda a explicar alianças de classe em defesa da cidade através da mobilização de sentimentos de comunidade e solidariedade em relação ao lugar, a criação (artificialmente ou não) de um sentimento de pertencimento.

Por conta disso, “a redução das desigualdades e melhoria das condições de vida das classes e grupos sociais oprimidos e explorados” não significa necessariamente algo contrário aos interesses burgueses, pois isto pode reforçar uma região ou cidade como local atraente aos investimentos capitalistas.

Evidentemente, a proposta aqui não é apostar no “quanto pior melhor”. É perfeitamente “justo” e moralmente defensável melhorar as precárias condições de vida das classes exploradas, principalmente no Brasil. A questão é: o objetivo de um partido de esquerda é fazer somente isso? Faz parte das estratégias dos defensores do city marketing e da competição entre as cidades (ver como exemplo os já citados Borja e Castells) preservar e estimular modelos de produção e consumo, níveis de lucro e salários e a própria infraestrutura física e social. Pois não é exatamente isto que a maior parte das políticas urbanas do PT em Porto Alegre fizeram? Vejamos.


As políticas urbanas do PT em Porto Alegre

As administrações do partido melhoraram as condições sanitárias (da cidade) e de saúde (da população): a extensão da rede de água e esgotos fez parte dos programas de governo desde a primeira gestão do PT. Alguns dados básicos demonstram isso: pelas informações dos Censos do IBGE, a proporção de domicílios particulares permanentes com saneamento inadequado (ou seja, sem rede de abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo) em Porto Alegre caiu de 1,3 por cento em 1991 para 0,2 por cento em 2000. Em 2001, 99,5 por cento da população da cidade era atendida pela rede de abastecimento de água; a coleta de esgoto chegava a 84,2 por cento. Deve ser ressaltado que os pouco mais de 84 por cento de coleta de esgoto se refere tanto ao esgoto que recebe tratamento quanto ao simplesmente coletado (usualmente redes mistas pluviais/cloacais). O problema é que a base inicial de tratamento de esgoto era bastante baixa: em 1989, apenas dois por cento do esgoto era tratado na cidade. Assim, entre 1989 e 2002 foram construídas cinco novas estações de tratamento, aumentando para 27 por cento a população atendida com este serviço. A meta, não atingida, era estender para 77 por cento o serviço de tratamento secundário de esgotos. Existe um projeto já há bastante tempo que pretende atingir esta meta; como é um projeto complexo e de grande porte, ainda está esperando por fontes de financiamento (o que, não pode ser esquecido, lembra da questão das limitações municipais).

É preciso levar em consideração mais uma coisa: os números gerais de abastecimento de água e esgoto se tornam um pouco diferentes quando se examina a situação dos domicílios localizados em áreas irregulares. Dos 73.331 domicílios portoalegrenses em vilas ou núcleos irregulares, 94 por cento contam com rede de água e 64 por cento estão conectados a algum tipo de rede de esgotos. Neste caso, ainda há muito por fazer (e a ser demandado pelos participantes do OP).

A menção à irregularidade de moradias em Porto Alegre remete a outro importante item da “política social”, a questão habitacional. Antes de tudo, o que foi feito no período de 1989 a 2002: o DEMHAB (Departamento Municipal de Habitação) contabilizou cerca de 12.000 unidades habitacionais entregues com infraestrutura completa, contando aí reassentamentos, assentamentos no mesmo local e novos loteamentos.

O que a primeira vista pode parecer um número razoável, quando confrontado com outros dados mostra uma realidade não tão rósea. Segundo os censos do IBGE de 1991 e 2000, a situação na cidade era a seguinte: o número de domicílios no ano de 1991 em situação de favelização/subabitação era de 33.436; no ano de 2000 foram encontrados na mesma situação 39.816 domicílios (ou 19,1% de aumento). Considerando o número de pessoas vivendo em situação favelada, haviam 136.410 em 1991 e 143.292 em 2000. Ou em outras palavras, o número de pessoas vivendo em condições precárias na cidade cresceu durante a década de 90 a taxas maiores que o próprio crescimento demográfico do município, que foi de 0,91 por cento de crescimento anual e de 7,6 por cento no período. De posse destes números, nem é preciso uma pesquisa muito aprofundada para se chegar a conclusão que a favelização na década de 90 é um fenômeno muito mais “interno” (no sentido que atinge pessoas que já viviam em Porto Alegre), associado a desemprego e queda de renda do que algo ligado à migrações em direção às metrópoles, por exemplo. E aqui não importa considerar as diferenças de metodologia entre a prefeitura e o IBGE - que resultaram em números diferentes[1] -, mas ressaltar que a política habitacional da prefeitura durante a gestão do PT está bem distante de equacionar o problema.

Mesmo assim, é importante mencionar que os governos da “administração popular” mudaram, pelo menos parcialmente, a forma de encarar o problema da subabitação. Como já é bastante conhecido daqueles que estudam o processo de urbanização brasileiro, em Porto Alegre (aliás, em todas as cidades do país) tradicionalmente e sem exceção, a maneira de resolver o problema das favelas era erradicá-las através de uma remoção seja para a periferia ou mesmo municípios limítrofes. Um exemplo: Entre os anos de 1971 e 1976 foram removidas 7.744 famílias: 1.273 (16,4%) para a Restinga Velha distante 28,4 quilômetros do centro da cidade; 747 (9,7%) para a Restinga Nova; 1.246 (16,1%) para outras vilas de Porto Alegre e 4.478 (57,8%) para outras áreas da região metropolitana.” (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2001:301).

Esta - é preciso deixar bem claro - expulsão generalizada dos pobres para a periferia, configurou o território das metrópoles brasileiras e gerou uma gama de  pesquisas sobre segregação espacial. O que a prefeitura sob governo petista vai fazer parcialmente é tentar frear este tradicional processo, na forma de urbanização de favelas no mesmo local onde elas estavam situadas, ainda que encravadas no centro da cidade (e com a classe média em volta). Ao mesmo tempo, uma política de regularização fundiária tentava garantir, em áreas de ocupação consolidadas, a permanência dos moradores no local onde se encontram. Isto é importante porque reconhece e incorpora estas habitações (ainda que precárias) à cidade formal, tornando mais difícil o processo de expulsão para a periferia.

Existem duas urbanizações de favelas bastante emblemáticas, não só deste programa de política habitacional, mas da própria disputa pelo espaço da cidade: a da Vila Planetário e da Vila Lupicínio Rodrigues. Ambos, assentamentos irregulares incrustrados em zonas centrais e bastante valorizadas de Porto Alegre (o que significa, entre outras coisas, estarem localizadas no meio de bairros de classe média). O fato de o governo ter não só respaldo eleitoral como também do processo do Orçamento Participativo não significou falta de contestação sobre a regularização e urbanização das duas vilas no local onde se encontravam. A Vila Planetário - primeira experiência deste tipo na cidade - além de “abaixo-assinados” da população das redondezas sofreu a contestação de vereadores com o argumento que o Plano Diretor vigente na época (o de 1979, anterior ao Plano proposto pelo PT e atualmente vigente) considerava a área como praça pública (área verde) e, portanto, impossibilitaria a permanência da população ali. Na Vila Lupicínio aconteceu algo semelhante, ainda que muitos anos depois. A favela, no meio do bairro de classe média Menino Deus, sempre foi considerada por uma grande parcela da população do entorno como um “problema” (era comum após roubos e furtos nas imediações o ladrão usar o local como rota de fuga e/ou esconderijo). O resultado foi que, depois de aprovado pelo OP e na iminência do início das obras, circulou pelo bairro (apoiado pela associação dos moradores – de classe média) um abaixo-assinado pedindo a remoção e não a urbanização da vila. A petição até tentava ser “politicamente correta”, reconhecendo e apoiando o direito da comunidade a uma habitação condigna, desde que… isto não acontecesse ali, tão perto da assustada classe média.

Estes dois exemplos servem para demonstrar que a) ainda que não se concorde totalmente com as teses de Flávio Villaça (1998), existe sim um componente de disputa por localizações na estruturação do espaço urbano (ou intra-urbano, como quer o autor) e b) é possível uma política que reverta, pelo menos parcialmente, a periferização da pobreza. E o caso do Menino Deus é emblemático também por outro motivo: o bairro vem passando por um processo de verticalização e alteração no público-alvo dos lançamentos imobiliários, de classe média “média” e baixa para classe média-alta (e a urbanização da favela não alterou este perfil em transformação).

Ao longo dos governos petistas, a participação das despesas em “Políticas sociais” no total de gastos da prefeitura aumentou de 39,4 por cento para 54,8 por cento (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2003).

Na verdade, os maiores responsáveis pelo aumento na participação dos gastos em “Políticas Sociais” são as Secretarias de Educação (SMED) e Saúde (SMS), esta última também auxiliada pelos repasses do SUS (Sistema Único de Saúde) a partir de 1997, quando o processo de municipalização da saúde em Porto Alegre estava completado.

O forte crescimento das verbas da SMED deve ser debitado não só aos programas como de alfabetização de adultos, mas ao próprio crescimento físico da rede de ensino (e portanto também de pessoal: professores, serventes, etc.). A rede municipal de ensino também contempla as creches, tanto as construídas pela própria prefeitura (principalmente através de demandas do OP) como o dinheiro repassado para creches comunitárias conveniadas pela Secretaria. Entre 1989 e 2002, o número de estabelecimentos da rede municipal de ensino aumentou de 37 para 91, além de terem sido criadas 120 creches comunitárias. Sem dúvida, foi louvável o esforço da administração municipal em aumentar o número de escolas e de pessoas atendidas pelo sistema.

Outro fator relevante é a localização dos estabelecimentos construídos durante o período: a grande maioria em áreas carentes da cidade.

Mas, algo muito importante deve ser considerado: a quantidade maior de equipamentos públicos requer também uma despesa proporcionalmente maior para a manutenção destes equipamentos. Individualmente, por exemplo, o ensino fundamental representa hoje em dia o maior gasto com pessoal do município (e o salário pago aos professores é maior do que na rede estadual). Isto é igualmente válido para a Saúde: em 1999 era a segunda maior despesa com pessoal (20,6%), perdendo apenas para o Ensino, com 22,7 por cento (Rabelo, 2003:171).

Como recentemente mencionado, “Saúde” corresponde a um dos maiores gastos da prefeitura. Em verdade, se forem contabilizadas as transferências da União para o SUS, as despesas com com este item se tornam individualmente a maior parcela dos gastos do município. Para 1999, por exemplo, os recursos do provenientes do governo federal para o SUS representavam 29 por cento da despesa total municipal (Rabelo, 2003:166). Isto coloca outro problema para a análise: as melhoras nos índices relativos à saúde em Porto Alegre podem ser imputados unicamente à “boa” gestão municipal ou também deve ser levado em consideração os gastos e as políticas de Saúde da União? Um exemplo: entre 1992 e 2001, a mortalidade infantil em Porto Alegre caiu de 18,6‰ para 14,2‰. Mas esta queda não foi verificada unicamente na cidade; no estado do Rio Grande do Sul, passou no mesmo período de 19,3‰ para 15,7‰, enquanto no Brasil como um todo foi de 43,0‰ para 28,3‰ (dados do IBGE). Ou, em resumo, é no mínimo complicado atribuir todas as melhorias nos índices sociais municipais unicamente à gestão petista: como sempre é bom relembrar, o local (município de Porto Alegre) não é um microcosmo isolado da influência de outras escalas (econômicas, políticas, espaciais).

Pois bem, o que temos até aqui? O que todos estes números apresentados mostram pelo menos inicialmente?  Que, como apontou Carlos Vainer (citado no início deste artigo), houve investimento na “infraestrutura física e social”. E, um dos responsáveis pela existência destes investimentos foi o Orçamento Participativo.


Orçamento Participativo: um balanço

O Orçamento Participativo (OP) parte de uma premissa simples: é um mecanismo pelo qual a população decide onde alocar os investimentos municipais da cidade.

Com mais de quinze anos de funcionamento (continua existindo, ainda que o PT tenha perdido as últimas eleições na cidade), o Orçamento Participativo não só ganhou fama internacional como chamou a atenção de inúmeros pesquisadores. O resultado é que a bibliografia sobre o OP começa a ficar volumosa [2] e, o que na verdade mais chama a atenção, é o fato de ser difícil encontrar balanços negativos entre as pesquisas já realizadas, ainda que pontualmente possam ser encontrados reparos e sugestões para a melhoria do processo. Críticas mais contundentes só são encontradas em políticos de oposição ao Partido dos Trabalhadores e mesmo assim há um certo temor dos políticos locais em criticar abertamente esta experiência; usualmente, preferem censurar o “esvaziamento” do poder legislativo e propor uma maior participação da Câmara de Vereadores no processo.

Uma das coisas mais propagandeadas pelo Partido dos Trabalhadores a respeito do OP foi a existência de uma inversão de prioridades na alocação de recursos da Prefeitura. A pergunta a ser feita, portanto, é: existiu um efeito redistributivo (em direção aos lugares mais carentes) trazido pela dinâmica do OP? A resposta inicial é sim.

Há uma correlação bastante visível entre as regiões do Orçamento Participativo com renda média menor e o volume de investimentos per capita. Assim, entre 1996 e 2002 a Região Extremo Sul foi a que mais recebeu investimentos, na ordem de R$ 728,17 per capita, seguida por Nordeste (R$ 562,91), Cristal (R$ 371,56), Glória (R$ 369,73) e Lomba do Pinheiro (R$318,44). No outro extremo, estão Partenon (R$ 130,57), Noroeste (R$ 61,60) e Centro com R$ 42,82 per capita (Tartaruga, 2003:70).

Uma outra forma de verificar o efeito redistributivo do OP foi feito por Marquetti (2002). Este autor mapeou o número de obras por grupo de mil habitantes nas Regiões e comparou com a renda per capita no período de 1989 a 2000. O resultado foi praticamente o mesmo obtido por Iván Tartaruga. A Região Nordeste, a de menor renda, obteve a melhor colocação em relação ao número de obras executadas por mil habitantes, enquanto a Região Centro, de maior renda, teve a menor relação obras/mil habitantes. Tentando mostrar que outros indicadores (além da renda) também demonstram o efeito redistributivo, ele cruzou os dados relativos aos investimentos nas Regiões com a porcentagem de mães com primeiro grau incompleto com filhos nascidos vivos, porcentagem de de domicílios em núcleos e vilas irregulares e porcentagem de habitantes com menos de 15 anos. Como já esperado, de forma geral quanto maiores estas porcentagens, maior o investimento realizado através do mecanismo do Orçamento Participativo.

Para finalizar esta seção, algumas considerações se fazem necessárias. Em primeiro lugar, não há como deixar de observar que o Orçamento Participativo foi se tornando um processo complexo e, ao mesmo tempo, se burocratizando. Toda uma grande estrutura foi sendo montada (e aperfeiçoada também, diga-se de passagem) ao longo dos anos de funcionamento do OP. Esta estrutura faz com que todos possam participar efetivamente no início do processo, mas no final das contas quem realmente vai decidir onde e de que maneira os recursos serão aplicados é a minoria eleita para o Conselho do Orçamento Participativo (COP). Além do mais, o processo sem dúvida nenhuma é amplamente comandado (ou pelo menos induzido) pela ação governamental, encarregada de propagandear e fomentar a participação nas reuniões além de garantir recursos técnicos e espaço físico para a montagem das mesmas.

Reforçando a presença da Administração Municipal no processo, não se pode esquecer que também há uma grande diferença entre o saber dos técnicos da Prefeitura e os participantes do OP, por mais tempo que estes últimos estejam no processo. Isto acarreta, entre outras coisas, que o poder de decisão muitas vezes pende para o lado do governo, que acaba “impondo” determinadas obras. Segundo o próprio Regimento Interno, os conselheiros não podem ficar mais de dois anos no cargo, enquanto os funcionários municipais não tem esta limitação. A consequência é que

A renovação das lideranças tem um lado positivo. Permite envolver e qualificar cada vez mais pessoas. Mas, por outro lado, cria uma dificuldade para a população discutir de igual para igual com o governo. Enquanto novos conselheiros chegam a cada ano, enquanto as comunidades de base têm dificuldades ainda maiores de entendimento, os representantes, os técnicos da prefeitura ficam anos após anos na função. Além do conhecimento técnico devido a sua formação, eles têm um acúmulo de experiência, enquanto a população fica privada desse desenvolvimento. Essa defasagem ‘permite ao governo, entre outras coisas, promover suas próprias obras’, nota Felisberto Luisi. São as obras institucionais, cuja idéia não vem das comunidades reunidas nos fóruns regionais ou temáticos, mas dos órgãos da prefeitura que as apresentam à votação do conselho do OP. É assim que a terceira perimetral, uma via rápida que vai interligar o norte com o sul de Porto Alegre, está sendo realizada, enquanto o tema da circulação e transporte nunca foi priorizado pela população. É assim também que se está conduzindo o projeto integrado da entrada da cidade. O COP aceitou o projeto, sabendo das necessidades dessas comunidades particularmente carentes. Mas não se trata de uma demanda da população (ONG Solidariedade, 2003:135-6)

Portanto, apesar de às vezes dar a impressão, não se está na presença de uma “democracia direta”. A forma que assumiu o OP ficaria melhor descrita como uma democracia representativa, aperfeiçoada e paralela ao Poder Legislativo. Da mesma forma, não se pode falar que efetivamente o OP funcione como uma pura “esfera pública não-estatal”, como quer Tarso Genro (1999). A independência dos participantes, se não pode ser desprezada, ao mesmo tempo deve ser relativizada. Todo este mecanismo, por conta destas questões, tem implicado muitas vezes em relações conflituosas entre Estado e sociedade civil (ou, se preferível, entre o poder municipal e as organizações comunitárias da cidade). Isto não significa necessariamente um problema; a tensão entre o OP e a administração local é um sinal que o “aparelhamento” pelo Partido dos Trabalhadores (crítica usual dos partidos de oposição) do processo também deve ser relativizada, ainda que não desprezada.

Mais uma coisa: em que pese as constatações sobre o ganho de novos militantes nas organizações da sociedade civil e mesmo no Partido dos Trabalhadores, uma das características típicas observadas pelos estudiosos dos movimentos sociais urbanos pode ser facilmente vista no OP (e constatada pela prefeitura desde o início; ver o texto de Augustin Fº in Horn, 1994:59): as próprias comunidades aumentam ou diminuem sua participação de ano para ano, com tendência clara de redução após a conquista das reivindicações mais emergenciais. Em outras palavras, ao contrário do que gostaria uma boa parcela da esquerda, a participação nesse processo não garante um aumento na “consciência de classe” (e muito menos alguma espécie de “radicalização”, sonhada por muitos quadros do partido quando ainda se falava simplesmente em “conselhos populares”).

Por fim: existem limites claros nesta experiência, se pensada em termos de uma estratégia da esquerda para se contrapor ao neoliberalismo ou mesmo de uma forma de apontar caminhos para uma possível superação do capitalismo. Isto porque, na verdade, o que o Orçamento Participativo apresenta é um gerenciamento de recursos não muito diferente que um empresário honesto faria com o gerenciamento de suas empresas (não gastar mais do que a arrecadação, só contrair empréstimos com garantias sólidas do não comprometimento futuro da capacidade de investimentos, fiscalização no cumprimento de contratos com terceiros, etc.)

O Orçamento Participativo, sem querer tirar seus próprios e inegáveis méritos, deu certo porque nunca foi uma ameaça às instituições capitalistas. É uma política inclusiva, porque redistribui recursos territorial e socialmente, levando equipamentos públicos urbanos em lugares onde antes isto não havia. Mas, o que normalmente não se pergunta quando se fala em exclusão/inclusão é: inclusão em que? Em primeiro lugar, é uma política inclusiva só nesse sentido, de dar acesso a equipamentos públicos para a parcela da população “excluída” deles. Portanto não há nada de anti-neoliberalismo ou anti-capitalismo nisso.

Em segundo lugar, “exclusão social” ou “exclusão espacial” são falsos conceitos. Uma população favelada, por exemplo, mesmo que em precárias condições, trabalha e se move dentro da cidade e não só no seu local de moradia. O capitalismo não é exclusivo, esta não é sua lógica de funcionamento. Na verdade, apenas a forma como se inclui os mais pobres na sociedade brasileira é diferente das classes mais abastadas, porque tem um forte componente de informalidade (em relação às leis trabalhistas e ao ordenamento territorial dos Plano Diretores, por exemplo). Logo, o que o OP tem feito é trazer para a formalidade (ou legalidade) partes do território da cidade que antes estavam em situação precária neste sentido. Em outras palavras, ainda que se queira continuar trabalhando com os conceitos de inclusão/exclusão, só se pode entender políticas de inclusão como políticas que procuram trazer para dentro da formalidade capitalista pessoas que se encontram parcialmente fora dessa formalidade. Não mais que isso. Voltarei a este assunto.


Os limites da esquerda no poder local

A partir de tudo que foi discutido até aqui, uma questão pode ser levantada: são estas as políticas que caracterizam uma administração de esquerda? Porque em verdade quase todas estas políticas mencionadas podem ser encontradas em administrações de outros Partidos nos mais variados pontos do País. Alguns exemplos: urbanização de favelas? Projeto Cingapura durante os governos Maluf e Pitta em São Paulo. Melhoria nas condições de saúde, queda das taxas de mortalidade e construção de novos postos de saúde em zonas próximas às áreas carentes? Governo Ângela Amim (PP) em Florianópolis. Aumento de 8 para 40 escolas municipais? Governo Dário Berger (PSDB) em São José (SC). E, diga-se de passagem, exemplos nos mais variados cantos do país não faltariam.

Portanto, o que poderia diferenciar uma administração petista de outros partidos? Um discurso com pitadas esquerdistas? Talvez o conjunto de ações, supondo que os outros partidos atendam apenas parcialmente às necessidades dos mais pobres? Não se pode esquecer que nenhuma agremiação política consegue se manter no governo se não atender minimamente interesses das classes dominadas. Porisso a tradicional pulverização de obras pelas periferias das cidades brasileiras feita por praticamente todos os prefeitos: um asfalto aqui, um posto de saúde acolá, uma obra de contenção de deslizamentos em morros, etc, etc. É o tradicional clientelismo da política brasileira: a troca de obras por votos.

Então, seria o fato de as relações do PT com a sociedade serem menos clientelistas? Este é um terreno pantanoso, pois os opositores do partido também sempre acusaram a prefeitura de Porto Alegre de praticar um clientelismo “modificado” via processo do Orçamento Participativo. Em época de eleições as bandeiras e faixas de candidatos do PT são absolutamente hegemônicos nas casas de antigas favelas urbanizadas, por exemplo (por outro lado, por que não poderiam ser?).

O caso do Orçamento Participativo é interessante, tanto por sua potencialidade quanto por seus próprios limites. Como disse Francisco de Oliveira (2001:19), ele “politiza o poder local” via algo (o orçamento, evidentemente) que sempre foi visto como uma questão técnica, somatório de despesas e receitas. Além disso, tem um potencial desformalizador, por dissolver a legitimidade da representação política tradicional e que, não à toa, recebeu acirrada oposição dos políticos tradicionais da cidade (para não falar no quase silêncio da mídia local). Mas o OP nunca foi capaz (pelo menos até agora) de se transformar num poder efetivamente autônomo, como foi comentado neste trabalho. Seja pelo fato de que a grande maioria dos participantes depois de ver atendida sua reivindicação se retira do processo ou mesmo por muitas vezes haver uma quase imposição (praticamente atropelando a “democracia participativa”) de obras prioritárias pela prefeitura. Os dois casos mais emblemáticos desta prática talvez sejam a construção da 3ª Perimetral e o projeto de urbanização de favela “Entrada da Cidade”.

Também emblemáticos porque são projetos que não poderiam ser realizados com dinheiro unicamente vindo das receitas da prefeitura. A Terceira Perimetral, orçada inicialmente em R$ 113.000.000,00 contou com recursos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), enquanto o “Entrada da Cidade” – ainda em andamento e que realizará, entre várias obras, o reassentamento de 3.061 famílias – foi orçado em Us$ 55.000.000,00 com Us$ 27.500.000,00 do FONPLATA (Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata).

Significativamente, a possibilidade de haver empréstimos de instituições internacionais diretamente para projetos de administrações locais está relacionado com a “mudança do paradigma de desenvolvimento” (ver Zanetta, 2001) acontecido nestas instituições. Em consonância com as idéias correntes de globalização (e de uma articulação mais direta entre global e local), as administrações locais agora são vistas como capazes de “aliviar a pobreza” muito mais eficazmente do que a antiga forma de distribuição de recursos para grandes projetos nacionais de desenvolvimento. As cidades, na visão do Banco Mundial por exemplo, devem buscar a sustentabilidade, boas condições de vida para os cidadãos e ao mesmo tempo serem competitivas e fiscalmente responsáveis (ver World Bank, 2000). Porto Alegre tem sido capaz de captar recursos externos porque aos olhos destas instituições, os itens elencados acima podem ser encontrados na cidade. Impossível não colocar aqui uma questão provocativa: seriam as administrações petistas em Porto Alegre uma versão, com viés de esquerda, do neoliberalismo realmente existente?

Além disso, o PT não escapou das amarras do processo eleitoral: aos poucos entrou no discurso que o partido governa para toda a cidade e não só para os “trabalhadores” ou “excluídos”. Todo período eleitoral se transformava num esforço da administração em provar isto. E as duas grandes obras citadas entram sem dúvida neste esforço. Não está aqui em discussão a necessidade de uma obra viária estruturadora como a 3ª Perimetral, nem mesmo o caráter potencialmente humanizador de resgatar mais de 3.000 famílias para a cidade formal como no projeto “Entrada da Cidade”. Mas uma obra viária de grande porte serviu também para atender os anseios da classe média em “desafogar o trânsito” e a localização do conjunto de favelas atendidas pelo projeto “Entrada da Cidade” – como o próprio nome já deixa antever – tem também o propósito de tirar a “má impressão” de quem entra na cidade por sua principal via de acesso rodoviário. E, lembro novamente, estas obras passaram pelo OP quase como uma imposição da Prefeitura. Os próprios moradores das vilas atualmente na fase inicial de obras de reurbanização não tinham organização suficiente para demandar o reassentamento através de todo o processo do OP.

Tendo em vista tudo que foi visto neste trabalho, é possível tirar um modelo de cidade e gestão, um “modo petista de governar” pela experiência de Porto Alegre? Sim, e este “modelo” pode ser descrito da seguinte forma:

Em primeiro lugar, ao longo dos anos (e das gestões) o partido foi se acomodando, no sentido de passar do confronto para uma tentativa de consenso sobre a cidade. Não só coisas como a intervenção nas empresas de ônibus foram deixadas de lado (que aconteceu logo no início do primeiro mandato petista: havia a intenção – não cumprida – de estatizar o sistema de transporte urbano); o próprio Orçamento Participativo – potencialmente desformalizador, como recentemente comentado – foi sendo aceito, quase se institucionalizando e entrando para o “calendário da cidade”.

Como ressalva, deve ser dito que este consenso intenta ser atingido através da ação política, pois se reconhece que há vários conflitos e contradições em torno do uso da cidade. Portanto, estes conflitos podem ser “acomodados” através do Estado, que assume o papel de articulador e promotor do bem-estar coletivo. Nesta visão, os conflitos podem ser resolvidos “democraticamente” através de mecanismos participatórios como o próprio OP ou mesmo através do Sistema Municipal de Gestão do Planejamento, incentivados pelo Estado.

O problema deste modelo é que ele não se propõe a resolver ou mesmo questionar (já que não se pode esperar superar o capitalismo localmente) as contradições sociais. Quando se promove a miscigenação de usos do solo da cidade, como no caso do Plano Diretor, ou quando se promove a discussão do orçamento entre todos os segmentos da cidade, o que está sendo buscado é uma espécie de “desenvolvimento harmônico” da cidade. Em outras palavras, a utopia petista parece ser não a superação das condições que propiciaram as extremas desigualdades sócio-espaciais encontradas no país, mas a simples diminuição destas desigualdades através da promoção de um convívio “democrático” entre todos os segmentos da cidade.

Neste sentido, o “modelo” de cidade aventado não é uma contraposição ao neoliberalismo ou ao capitalismo. É social-democrático, na acepção clássica do termo (não a do PSDB brasileiro), pois procura promover reformas na cidade capitalista com o intuito de melhorar as condições de vida das classes menos favorecidas.

E, se formos olhar de um ponto de vista mais amplo, uma questão bastante importante pode ser observada a partir da comparação da distribuição territorial da renda na cidade de Porto Alegre durante a década de 90. Os dados dos censos demográficos do IBGE de 1991 e 2000 mostram que a cidade seguiu com o modelo clássico de periferização da pobreza. Visto por este ângulo, não houve alteração no espaço da cidade durante os governos petistas. Os pobres e os ricos continuaram exatamente no mesmo lugar. E isto depois de mais de uma década de “inversão de prioridades” como política da Prefeitura Municipal (mapas da distribuição territorial da renda na cidade pode ser visto em Lahorgue, 2004:132-135).

Não existe nenhum mistério na explicação para isto. Na verdade, o tipo de política desenvolvida pelo PT na prefeitura nunca foi no sentido de alterar a forma de estruturação do espaço urbano, mas de levar equipamentos públicos para os extratos excluídos destes equipamentos e “trazer” (ou reconhecer oficialmente) para a cidade formal esta mesma população.

A lógica de configuração do espaço urbano continua praticamente a mesma, independente das políticas desenvolvidas no município. E, sempre é bom ressaltar, a lógica de formação do espaço urbano passa por outras escalas, além da local. A “disputa por localizações” no espaço intra-urbano não pode servir como explicação única para a configuração do ambiente construído. Como exemplo bastante óbvio, deve-se lembrar que o aumento do desemprego e suas consequências sobre a pobreza urbana e a persistência da existência de um grande número de subabitações na cidade de Porto Alegre passa por uma escala completamente diferente da local, pois envolve políticas nacionais e regionais de desenvolvimento econômico (ou a falta delas) e a maneira de inserção do Brasil na “globalização”.

Aliás, voltando à provocação do neoliberalismo petista, o PT também faz “city marketing”.

Mesmo não sendo a “mercadotecnia” do qual falavam Borja e Castells, a promoção internacional da “cidade com qualidade de vida”, da democracia participativa e da “transparência administrativa” servia ao propósito de criar um ambiente propício aos negócios, desde que “politicamente corretos” e “sustentáveis”. Para investir em Porto Alegre, é apenas necessário que a empresa entre na recente moda da “responsabilidade social”. Isto é tão verdadeiro que a cidade tem aparecido nos primeiros lugares de todos os rankings sobre “os melhores lugares para se investir” no Brasil promovidos por revistas como Exame. Rigorosamente, nem o Forum Social Mundial escapa disso. Inicialmente visto com certa desconfiança, logo os empresários do setor hoteleiro e do comércio começaram a apreciar o aumento nas ocupações (na verdade, lotação completa) e nas vendas. Nenhum evento, em toda a história da cidade, foi capaz de movimentar a economia como o Forum faz. Com a provável excessão dos donos de franquias McDonalds e dos representantes da empresa multinacional Monsanto no Rio Grande do Sul (frequentes alvos de protesto de movimentos ditos “anti-globalização”), todo mundo lamentou o fato de uma das edições do Forum ter se mudado para a Índia em 2004.

Isto tudo pode acontecer porque ao contrário do que muita gente tem dito, a lógica de funcionamento do capitalismo é muito mais de inclusão do que de exclusão. Relembrando: ao mesmo tempo que se reproduz, o capitalismo modifica-se (Lefebvre, 1973); como as relações mercantis são amplamente dominantes, a tendência é de incorporação de movimentos potencialmente contestatórios, como a própria “exportação” do OP a centenas de cidades do Brasil e do mundo comprova. O mote “tudo é mercadoria” serve para explanar as razões tendenciais da inclusão, muito mais poderosas que de exclusão. Como nunca é demais lembrar, o processo de acumulação de capital é ao mesmo tempo um processo de expansão tanto histórico quanto geográfico, de incorporação de novos territórios à logica da mercadoria, como provam no início a dissolução das amarras e fronteiras feudais e formação dos estados nacionais, e posteriormente a expansão das corporações multinacionais para além das fronteiras nacionais no século XX. Em outras palavras, o capitalismo é tendencialmente inclusivo. Mas este é um processo contraditório, que “exclui” parcelas da população do mercado em vários momentos e espaços diferentes, como o próprio Marx já alertava ao falar da criação do exército industrial de reserva (Marx, 1985).

Portanto, todas as políticas (além de manifestações e protestos como o “grito dos excluídos”) que se propõe a resolver o problema da habitação com a construção de moradias, de distribuir terra, da criação de emprego e geração de renda fazem, em última instância, o papel de tentar reinserir no mercado os “marginalizados”. Como bem disse José de Souza Martins (2002:38), “a contradição de que o excluído é produto e expressão não é contradição constitutiva, (…) porque ela se resolve na reprodução ampliada e não na transformação da sociedade que o vitima”.

Esta é mais uma razão para este trabalho afirmar que as políticas sociais implementadas pela prefeitura durante os mandatos petistas são programas inclusivos, que a característica das administrações ao longo destes mais de 15 anos é social-democrata e pouco questiona a lógica capitalista.

Mas, nunca é demais insistir, este texto não advoga a tese que “quanto pior melhor” ou que “não há alternativa”. O que se procurou demonstrar é que:

· existem limites na administração de uma cidade capitalista dados pelo próprio sistema; a lógica de acumulação não está limitada ao espaço restrito de uma cidade e, portanto, da mesma maneira que o “socialismo em um só país” é altamente questionável, não é possível o “socialismo em uma só cidade”;

·esta lógica é multiescalar: fatores regionais, nacionais e mundiais contribuíram para a produção do espaço urbano na capital gaúcha; portanto, não é possível aceitar a ideologia simplista da escala dual “global e local”. Da mesma maneira, somente através do local não é possível haver contraposição ao neoliberalismo;

· o próprio caráter contraditório do capitalismo oferece a possibilidade da existência de movimentos e políticas que questionem a predominância do valor de troca nas relações sociais;

·mesmo que existam limites estruturais na administração de uma cidade capitalista por um partido de esquerda, não se pode esquecer que assim como o locus privilegiado da re-produção capitalista é o espaço urbano, da mesma maneira o locus privilegiado da contradição e da possibilidade de contestação também é o espaço urbano (e, não pode ser esquecido, o espaço urbano de Porto Alegre não é só o território do município);

· as políticas implementadas pelo Partido dos Trabalhadores em Porto Alegre não foram políticas questionadoras ou que procurassem forçar os limites capitalistas;

·o Orçamento Participativo, excessão destas políticas por questionar e confrontar estruturas tradicionais de poder na cidade, acabou “preso” nos limites da discussão sobre a distribuição dos recursos orçamentários, ainda mais se for considerado que por maior que seja a cidade, o volume de recursos de uma administração municipal é sempre limitado.


Finalmente, deve ser dito que não foi objetivo deste trabalho discutir ou propor alternativas, mas mostrar que os limites da experiência de Porto Alegre coloca a todos – militantes ou simpatizantes da esquerda – a necessidade de se repensar e discutir os objetivos e estratégias da esquerda, em todas as escalas.


Notas

1 Num levantamento feito em 2002 pelo DEMHAB (Departamento Municipal de Habitação), o número de domicílios em vilas (como são chamadas as favelas em Porto Alegre) irregulares foi muito maior do que o levantado pelo IBGE: pelos cálculos da prefeitura, seriam 73.331 domicílios.

2 Sem pretender mencionar todas os trabalhos já desenvolvidos sobre o assunto, um balanço positivo pode ser visto em Abers (1998 e 2000), Fedozzi (1997), Genro (1997), Horn (1994), Moura (1997), Santos (2002), Souza (2000 e 2002), Tartaruga (2003).


Referências bibliográficas

ABERS, Rebbeca. Inventando a democracia: distribuição de recursos públicos através da participação popular em Porto Alegre, RS. [on line], 1998. <http://www.portoweb.com.br/ong/cidade> [14 de fevereiro de 2002].

BORJA, Jordi e CASTELLS, Manuel. As Cidades como Atores Políticos. Novos Estudos CEBRAP, 1996, nº 45, p. 152-166.

BORJA, Jordi e FORN, Manuel. Políticas da Europa e dos Estados para as cidades. Espaço e Debates, 1996, nº 39, p. 32-47.

BRESSER-PEREIRA, Luis Carlos. O paradoxo da esquerda no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, 2006. nº 74, p. 25-45.

FEDOZZI, Luciano. Orçamento Participativo: reflexões sobre a experiência de Porto Alegre, Porto Alegre: Tomo, 1997.

GENRO, Tarso (coord). Porto da Cidadania. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997.

GENRO, Tarso. O futuro por armar. Petrópolis: Vozes, 1999.

HARVEY, David. The urban experience. Baltimore: Johns Hopkins, 1989.

HORN, Carlos H. (org). Porto Alegre: o desafio da mudança. Porto Alegre: Ortiz, 1994.

LAHORGUE, Mario L.: Espaço e políticas urbanas: Porto Alegre sob governo do Partido dos Trabalhadores. Tese de Doutorado, Geografia, UFSC: 2004.

LEFEBVRE, Henri. A re-produção das relações de produção. Porto: Escorpião, 1973.

LEFEBVRE, Henri. Espacio y politica. Barcelona; Peninsula, 1976.

LEFEBVRE, Henri. El derecho a la ciudad. Barcelona: Peninsula, 1978.

MARQUETTI, Adalmir. O Orçamento Participativo como uma política redistributiva em Porto Alegre. Porto Alegre: 1º Encontro de Economia Gaúcha, 16 e 17 de maio, 2002.

MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. 3 vol. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

MOURA, Maria S. S. Cidades empreendedoras, cidades democráticas e redes públicas: tendências à renovação na gestão local. Tese de Doutorado, Administração, UFBA, 1997.

OLIVEIRA, Francisco de. Aproximações ao enigma: o que quer dizer desenvolvimento local? São Paulo: Pólis; Programa gestão pública e cidadania/EAESP/FGV, 2001

ONG SOLIDARIEDADE. Caminhando para um mundo novo: Orçamento Participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis: Vozes, 2003.

PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Relatório de Indicadores sociais de Porto Alegre - ano III – 2000. Porto Alegre: PMPA, 2001.

PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Relatório de Indicadores sociais de Porto Alegre - ano V – 2002. Porto Alegre: PMPA, 2003.

RABELO, Mercedes. O desempenho das finanças e o perfil dos gastos sociais em Porto Alegre, nos anos 90. Indicadores econômicos FEE, 2003, vol. 31, nº 2, p. 149-176.

SANTOS, Boaventura de Souza (org). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2002.

SOUZA, Marcelo L. Os Orçamentos Participativos e sua Espacialidade: uma agenda de pesquisa. Terra Livre, 2000, nº 15, p. 39-58.

SOUZA, Marcelo L. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

TARTARUGA, Iván G. P. O Orçamento Participativo de Porto Alegre: o lugar e o território do cidadão. Dissertação de mestrado, Geografia: UFRGS, 2003.

VAINER, Carlos B. As escalas do poder e o poder das escalas: o que pode o poder local?. Cadernos IPPUR, 2002. nº 2001-2/2002-1, p.13-32.

VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998.

WORLD BANK. Cities in transition: a strategic view of urban and local government issues. Washington: World Bank, 2000.

ZANETTA, Cecilia. The evolution of the World Bank's urban lending in Latin America: from sites and services to municipal reform and beyond. Habitat International, 2001, nº 25, p. 513-533.

 

© Copyright Mario Leal Lahorgue, 2007
© Copyright Scripta Nova , 2007

Ficha bibliográfica:

LAHORGUE, Mario Leal.  A esquerda no poder local: Porto Alegre e o Partido dos Trabalhadores.  Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.   Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2007, vol. XI, núm. 245 (16). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-24516.htm> [ISSN: 1138-9788]


Volver al índice de Scripta Nova número 245
Volver al índice de Scripta Nova

Menú principal