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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XII, núm. 270 (98), 1 de agosto de 2008
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]


A NOVA PERSPECTIVA DO PLANEJAMENTO SUBVERSIVO E SUAS (POSSÍVEIS) IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO
PLANEJADOR URBANO E REGIONAL – O CASO BRASILEIRO

Rainer Randolph
Prof. Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ
rainer.randolph@gmail.com


A nova perspectiva do planejamento subversivo e suas (possíveis) implicações para a formação do planejador urbano e regional – o caso brasileiro (Resumo)

Em trabalho anterior, apresentado no IX Colóquio Internacional de Geocrítica em 2007, foi discutida a necessidade de uma reorientação conceitual e, até, epistemológica do planejamento para torná-lo apto a propiciar uma “verdadeira participação” e “participação verdadeira” aos cidadãos envolvidos nos processos de planejamento.

Agora, pretendemos avançar nessa discussão e perguntar em que medida uma nova compreensão do planejamento não exigiria uma revisão das formas como os planejadores são formados nas escolas (superiores) de planejamento, especialmente no Brasil que fornece a realidade de referência para essa reflexão.

Para isto, o presente trabalho introduz três elementos como constituintes de um novo planejamento – comunicação, espaço e tempo – que se referem às principais contradições no mundo contemporâneo – lógicas instrumental versus comunicativa práticas abstratas versus concretas pensamento indolente versus cosmopolita – que ameaçam à própria convivência social. O planejamento subversivo pretende ser, neste sentido, construtivo na medida em que procura ser uma “mediação” entre essas contradições o que significa nada mais e nada menos do que supera-las. O planejador como mediador que contribui para a superação de contradições, nesse caso, assume funções da mais alta complexidade e torna-se, assim, uma figura da maior importância para o avanço de uma transformação voltada para a racionalidade comunicativa, o espaço diferencial de valores de uso e o pensamento cosmopolita baseado nas experiências sociais das populações exploradas e oprimidas.

É no sentido de sentir as distâncias entre essas proposições do planejamento subversivo e a formação atual do planejador urbano e regional no Brasil que analisamos, no final do presente ensaio, as características dos cursos a respeito dessa temática nos programas de pós-graduação em planejamento urbano e regional no Brasil.

Palavras chave: planejamento urbano e regional, participação, práticas sociais subversivas, formação do planejador.


New perspectives for subversive planning and its (possible) implications to form urban and regional planners – the Brazilian case (Abstract)

In previous work, presented in the IX International Colloquio of Geocrítica of 2007, the need of a conceptual and, till, epistemoligical reorientation of planning was apointed for turning it capable to propitiate a "true participation"to citizens involved in planning processes. 

Now, we intend to move forward in this discussion and to ask in what measure a new understanding of planning would demands a revision in the ways planners are formed at the schools of planning at the universities, especially in Brazil that supplies the reference reality for our reflection. 

For this, the present work introduces three elements as constituent of a new planning mode - communication, space and time - that refer to the main contradictions in the contemporary world - instrumental versus communicative logics abstract versus concrete practices indolent versus cosmopolitan thinking - and that threaten the own social coexistence itself. The subversive planning intends to be, in this sense, constructive in the measure in that it tries to be a "mediation"among those contradictions what  means nothing else and nothing less than to overcome them. In that case, the planner as mediator, that contributes to the overcome of contradictions, assumes functions of the highest complexity and becomes, like this, an agent of largest importance for the progress of a transformation directed to empower communicative rationality, differential space of use values and cosmopolitan thinking based on the social experiences of the explored and oppressed populations. 

It is in this sense of identifiying distances between those propositions of the subversive planning and the urban and regional planner's current formation in Brazil that we analyze, in the end of the present rehearsal, the characteristics of the courses with respect to planning issues in the masters degree programs on urban and regional planning in Brazil.

Key words: urban and regional planning, participation, subversive social practices, planning education.


Em trabalho anterior, apresentado no IX Colóquio Internacional de Geocrítica, foi discutida a necessidade de uma reorientação conceitual e, até, epistemológica do planejamento para torna-lo apto a propiciar uma “verdadeira participação” ou “participação verdadeira” aos cidadãos envolvidos nos processos de planejamento (Randolph 2007).

Agora, pretendemos avançar nessa discussão e perguntar em que medida uma nova compreensão do planejamento urbano e regional não exigiria uma revisão das formas como os planejadores são formados nas escolas (superiores) de planejamento, especialmente no Brasil que fornece a realidade de referência para essa reflexão.

Observando genericamente a trajetória do planejamento (e a da formação de planejadores) no mundo capitalista e no Brasil desde as décadas de 1940 e 1950, identifica-se como planejamento e planejadores em geral e planejamento urbano e regional em particular contribuíram para a consolidação de um Estado capitalista baseado numa visão de direitos formais e de uma cidadania igualmente formal um processo que Habermas chamou de “racionalização da racionalização”.

Discutimos no acima citado trabalho as possibilidades e dificuldades do planejamento ser apropriado para algum outro tipo de projeto político ou utopia social voltados para a emancipação dos cidadãos tanto de uma lógica instrumental e indulgente como de um espaço abstrato que dominam nessas sociedades. Chegamos à conclusão que seria necessário, uma opinião apoiada por outros autores (vide a discussão em Miraftab/Wills 2005), que o planejamento agisse como agente subversivo e se voltasse para formações de uma “cidadania insurgente” (vide também Santos 2006).

Um modo alternativo insurgente e subversivo de planejar reconhece as contradições entre cidadania formal e substantiva e trabalha em nome da expansão de direitos de cidadania. Refletindo sua posição de atribuir o monopólio do planejamento e da cidadania ao Estado, a prática dos tradicionais planejadores racionais está centrada principalmente na identificação de necessidades e prioridades pelo Estado.

Em consonância com uma vertente emergente de planejadores, argumentamos já no anteriormente citado trabalho (Randolph 2007) que são os espaços cotidianos das práticas sociais e espaciais que podem dar origem a formas substantivas de exercício de cidadania, do aproveitamento de outras fontes de informação e de uma orientação nova para práticas de planejamento.

Essa discussão será apresentada de uma forma sintética na segunda parte do atual trabalho. Lá se distingue três fases de uma reformulação do planejamento que parte de uma modalidade crítica ao tradicional planejamento racionalista – aqui chamada de comunicativa - e alcança uma formulação onde se busca explicitar um possível potencial subversivo e insurgente do planejamento.

Com essa argumentação o presente trabalho assume um posicionamento próximo aquele de um “urbanismo insurgente” (vide Holston 1999) que não confia nem nos altos comandos do Estado somente, nem numa valoração exacerbada do engajamento de certos grupos comunitários que, supostamente, são representantes da sociedade civil (organizada) e, assim, autorizados para inclusão nos processos de participação. Essa “autorização” por parte do Estado acaba discriminar, muitas vezes, a atuação subversiva e insurgente daqueles  que não contam com ela. “As ações de grassroots insurgentes dos pobres para proteger os telhados sobre suas cabeças e seu acesso a serviços básicos,... são tão importantes como ações de grassroots oficialmente sancionadas para produzir abrigo” (Miraftab/Wills 2005).

Essa discussão, no presente contexto, é colocada em outros termos:  sem pensar em movimentos de base (grassroots) insurgentes, toma-se aqui como referência o rico acervo de experiências sociais existentes particularmente de segmentos populares das sociedades do “Sul Global” como fala Boaventura Santos (2004) que são desperdiçadas por causa da falta do reconhecimento do seu potencial de transformação social pela lógica dominante da globalização que o mesmo autor chama de “indulgente”.

Antes de apresentar a análise da formação do planejador urbano e regional no Brasil, tecemos, na terceira parte, algumas reflexões epistemológicas dos impasses que enfrenta o ensino do planejamento do país. Pretende-se arrolar alguns argumentos a respeito de uma necessária mudança epistemológica e metodológica na formação de planejadores para que estejam preparados a lidar com o novo quadro acima apontado. Recorremos, para isto, a um trabalho de Magnavita (2007) que vai chamar a atenção tanto pela dimensão da cientificidade do planejamento, como pela sua dimensão política. Conforme esse autor, no ensino do planejamento urbano não são evidenciados o nível e o destino das decisões políticas e, o que importa particularmente no contexto do presente trabalho, muito menos a questão da participação comunitária. Ao mesmo tempo, o ensino não pode ficar restrito à “razão científica” seria necessário contemplar outras formas de pensar como aquela da filosofia e da arte. Esse argumento vai de encontro com outros autores, como p.ex. Holston (1999) que vê importantes implicações dessa mudança de perspectiva para a educação em planejamento que deve se afastar de um conhecimento especialista e científico para um conhecimento etnográfico.

Com esse referencial crítico, será analisada, brevemente a orientação da formação de planejadores como ela se apresenta nas disciplinas ministradas nos cursos de pós-graduação em planejamento urbano e regional no Brasil, conforme seu pertencimento à respectiva Área  de Avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Entretanto, antes de tudo, iniciaremos o presente trabalho, como primeiro passo, com algumas observações e questionamentos a respeito da formação de planejadores urbanos e regionais no Brasil de hoje que devem servir como problematização do assunto aqui em pauta.

A formação do planejador urbano e regional no Brasil. Questões e questionamentos

Durante o XII Encontro Nacional da Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional em maio de 2007 em Belém do Pará, um grupo formado por pesquisadores universitários de diferentes formações e instituições apresentou um primeiro debate e reflexão sobre a temática da formação do planejador no Brasil.

Num texto introdutório à apresentação dessa mesa redonda, Costa (2007) afirma que no

"... conjunto de países cujas associações de escolas de planejamento compõem a Global Planning Education Association Network (GPEAN), o Brasil é um dos poucos que não tem este tipo de formação em nível de graduação. Contribui para entender este fato a forma tardia como os chamados “problemas urbanos” passaram a ser motivo de preocupação governamental no Brasil. A história do planejamento urbano no país revela que somente a partir dos anos sessenta do século passado a preocupação mais explícita e generalizada com as questões urbanas emergiu, em um primeiro momento a partir de organizações da sociedade civil (especialmente o Instituto Brasileiro dos Arquitetos - IAB) com propostas para uma reforma urbana até certo ponto radical. Em um segundo momento, com a resposta aos chamados “problemas urbanos” dada pelo regime militar com a política habitacional do Banco Nacional de Habitação (BNH) e a elaboração de planos de desenvolvimento local integrados."

Para esse autor, a elaboração de planos urbanos antes dos anos sessenta do século passado foi, basicamente, atribuída a arquitetos e engenheiros que aplicaram uma perspectiva físico-territorial. Já, depois na formulação de planos locais intergrados, foi introduzida uma idéia mais compreensiva desse planejamento – acompanhando os modelos em outros países – que significou o envolvimento de equipes multidisciplinares na elaboração de planos.

Não obstante, como diz Costa (2007), “não se tratava de uma compreensividade de fato, uma vez que as participações de arquitetos, engenheiros, sociólogos, administra­do­res, advogados, geógrafos, etc., se dava ainda de forma muito independente uns dos outros”.

Foi, então, “a partir deste tipo de experiência que surgiu a iniciativa de criação de cursos de pós-graduação em planejamento urbano e regional”, que teve início em 1970 com um curso na Universidade Federal do Rio Grande do SUL (PROPUR). Posteriormente, ao lado de mais três cursos em Recife, Brasília e São Paulo, foi criado em 1972 o Mestrado em Planejamento Urbano e Local dentro da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que substitui depois o “local” pelo “regional”. Este, após sua desvinculação da COPPE em 1979, transformar-se-á, em 1987, no único instituto universitário em pesquisa e planejamento urbano e regional (IPPUR) no Brasil.

Naquele momento inicial, havia financiamento por parte do então Ministério do Interior (MINTER) e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU)  para esses programas. Especialmente, o programa da COPPE 

"deveria ser um programa de planejamento urbano de  caráter quantitativo, a engenharia de planejamento, nas palavras de um ex-diretor da COPPE. Para dar o caráter compreensivo da metodologia do SERFHAU, o PUR deveria contar com professores de outras áreas da universidade. Cedo, no entanto, este tipo de proposta começa a se mostrar inadequado face à natureza do objeto: um espaço urbano que expressa as perversidades resultantes das contradições do desenvolvimento do capitalismo em formações sociais periféricas."

Costa (2007) acredita que diante desse quadro da pouca eficácia do planejamento, os próprios cursos da área de planejamento urbano e regional começaram a se orientar, a partir dos anos 1980, menos para instrumentalizar planejadores para o exercício de sua profissão de uma maneira estreita, mas mais para a “formação de uma consciência crítica sobre os processos sócio-espaciais, políticos, ambientais, entre outros, relacionados às chamadas questões urbanas e regionais ou, de uma forma mais abrangente, à produção e reprodução do espaço”.

Nossa análise das disciplinas ministradas em cursos de pós-graduação ligados ao planejamento urbano e regional, na última parte desse ensaio, via mostrar até que medida essa hipótese vai ser confirmado.

Do planejamento comunicativo ao planejamento subversivo

A trajetória do planejamento (capitalista) – seja enquanto prática, seja como da elaboração de idéias – demonstra que sua característica principal foi a sua racionalidade instrumental e abstrata. Mesmo as novas propostas que procuram, de uma forma mais ou menos explícita e efetiva, assegurar alguma “participação” daqueles que serão afetados pelas medidas planejadas não rompem, em sua grande maioria, com essa tradição (Randolph 2007).

E mesmo com a "guinada argumentativa"ou "comunicativa” do planejamento, esse caráter formal e abstrato não pude ser superado. Na verdade, essa guinada está inscrita numa tendência do planejamento de separação entre uma visão “processualista” e uma “intervencionista” (voltada para resultados) que é apontada por Fainstein (2000, 3) como característica principal do debate atual. Nenhuma dessas tendências, como diz a autora, tornou-se dominante, em tempos recentes, porque afetaram diferentes aspectos da prática.

Em nome do discurso, da argumentação, da comunicação e da busca por consensos, a modalidade do planejamento participativo supera apenas em casos excepcionais a lógica instrumental e, ao se aproximar à “práxis” (vivência) daqueles que são seu objeto-sujeito ou por ele afetados, se constitui como verdadeiro exercício de uma racionalidade diferente a da instrumental. Essa ruptura com a lógica instrumental acontece mais como exceção do que regra porque mesmo as modalidades participativas do planejamento se baseiam numa lógica de representação da sociedade e, particularmente, do espaço social que concebe, tendencialmente, qualquer “participação” apenas enquanto abstrata e formal, sem considerar as suas condições concretas de possibilidade.

Vejamos, como exemplo, a crítica que Villaça (2005) apresenta a respeito dos Planos Diretores Participativos que foram propagadas pelo governo do Presidente Lula e estão sendo elaborados no século XXI no Brasil. Diz esse autor, que esses planos criam apenas uma ilusão de participação que precisa ser desmistificada. Falando em geral do Plano Diretor, o autor alerta que a experiência revela que as “outras formas de pressão - como as matérias pagas na imprensa, as pressões diretas sobre os vereadores e sobre o próprio chefe do Executivo - são na verdade muito mais poderosas que as pressões, reivindicações ou ‘contribuições’ manifestadas nos debates públicos formais”. A participação popular serve, em última instância, apenas para legitimar um resultado (plano) de um processo onde tive influência muito reduzida confere um toque de democracia, igualdade e justiça às decisões contra a arbitrariedade, a prepotência e a injustiça.

No entanto, é necessário relativizar o julgamento que está aqui baseado na maioria das experiências concretas de elaboração dos Planos Diretores pois, nem todas as concepções e experiências “participativas” podem ser caracterizadas como meramente legitimadoras, ideológicas, mistificadoras.

Existem aquelas propostas e mesmo práticas que procuram promover uma “verdadeira” participação através de um questionamento bastante profundo das relações entre sociedade e Estado e do papel do planejamento público em sociedades capitalistas (Forester 1993, Healey 2003 e outros). Nessas propostas desses autores ainda transparece uma tendência de compreender a participação como exercício de meras “ações de fala” ou atuação simbólica (vide Randolph 2007). Mesmo assim, suas formulações enquanto “comunicativas” não podem deixar de apontar pistas a respeito da direção que uma verdadeira ruptura do paradigma autocrático do planejamento e de sua racionalidade instrumental poderia tomar. Nessa proposta, o planejamento assume explicitamente um papel de “mediador” ou “tradutor” entre diferentes esferas de sociedades contemporâneas pluralistas – entre o Estado e a comunidade o sistema e o mundo da vida uma perspectiva “pro-ativa” de especialistas (não apenas só do Estado) e a vivência cotidiana de determinados grupos sociais.

Essa crítica à lógica predominante no planejamento pode ser formulada de uma maneira mais radical quando não se questiona apenas a racionalidade instrumental, mas a contribuição do planejamento na difusão e consolidação da “lógica indolente” da globalização e do neoliberalismo contemporâneos como o faz Santos (2003, 2004). Sua crítica aponta para a valorização da experiência social que, por sua vez, exige a “expansão do presente” e a “contração do futuro”. “Only thus will it be possible to create the time-space needed to know and valorize the inexaustible social experience under way in our world today. In other words, only thus will it be possible to avoid the massive waste of experiences we suffer today” (Santos 2004: 4). 

De uma forma sintética, pode se apresentar a transição do planejamento comunicativo para o planejamento subversivo no quadro 1.

Quadro 1. Características das diferentes formas de planejamento

MODOS

PLANEJAMENTO
COMUNICATIVO

PLANEJAMENTO DO
ESPAÇO DIFERENCIAL

PLANEJAMENTO
SUBVERSIVO

Constituintes – Centro da formulação

SITUAÇÃO SOCIAL DA COMUNICAÇÃO

ESPAÇO SOCIAL COMO PRODUTO SOCIAL

TEMPO SOCIAL DA MODERNIDADE

Referências teóricas

Jürgen Habermas (1997)

Henri Lefebvre (1991)

Boaventura de Souza Santos (2003)

Conflitos/contradições

Sistemas vs. Mundo da Vida ou Núcleo do sistema político vs. Periferias sócio-políticas

Representação do espaço vs. Espaços de representação (vs. Práticas espaciais – Tríade)

Globalização neoliberal vs. luta de movimentos sociais e ONGs

Expressão das contradições

Colonização do mundo da vida pelos sistemas econômicos e administrativos

Dominação das concepções dos arquitetos, urbanistas e planejadores

Desperdício da riqueza de experiências sociais (particularmente fora do centro hegemônico)

Manifestação

Instrumentalização de todas as manifestações sociais

Concepção abstrata do espaço

Concepção linear do tempo

Lógicas contraditórias em jogo (causas)

Razão instrumental vs. razão comunicativa

Lógica dominante vs. “underground” das expressões no cotidiano, nas artes etc.

Razão indolente (dominante no ocidente nos últimos 200 anos) vs. razão cosmopolita

Fontes de uma possível “subversão”

Expressões no mundo da vida e na periferia do sistema sócio-político

Corpo, cotidiano: espaço concreto

Criar espaço-tempo necessário para valorizar a experiência social

Caminhos de superação

Ressonância das demandas periféricas na Esfera pública política

Fortalecimento do consumo do espaço e da sua vivência

Combate à concepção linear do tempo

Papel do Planejamento

Mediação entre as duas razões ou reforço ao poder comunicativo

Fortalecimento da vivência do espaço em relação à concepção dominante

Exercer a sociologia das ausências sociologia das emergências

Na primeira coluna do esquema encontram-se as características da proposta comunicativa do planejamento como foi ela elaborada por Forrester, Healey, Innes/Booher (1999) e outros. Nas primeiras linhas constam a principal referência conceitual dessa proposta, as contradições e suas expressão que a abordagem identifica nas sociedades contemporâneas, a maneira da atuação do planejamento tradicional e seu envolvimento em lógicas contraditórias, para, enfim, nas últimas três linhas indicar caminhos que a proposta indica para a superação – subversão – da atuação do planejamento compreensivo-formal.

A partir desse ponto de partido – o planejamento comunicativo - o primeiro passo para alcançar o patamar seguinte – o planejamento do espaço diferencial - consiste na introdução de uma superação das mediações inerentes à proposta comunicativa de ultrapassar o nível das “traduções” entre um “mundo sistêmico” e um “mundo da vida”. Essa “superação” acontece, ao nosso ver, quando a formulação do planejamento contempla, explicitamente, os condicionantes de um “espaço-tempo” que estão envolvidos no processo. É preciso reconhecer as divergências e possíveis conflitos entre as representações lógicas e abstratas do espaço-tempo concebidas pelos planejadores, por um lado, e a vivência difusa, pouco explícita e nem sempre discursivamente acessível daqueles que “participam” desse processo, por outro. Portanto, o pensamento que guia essa análise é o de Henri Lefebvre (1967, 1979, 1991). Semelhante à caracterização do planejamento comunicativo, constam na planilha indícios de características dessa nova proposta. Seria fundamental, aqui, compreender a profunda contradição que Lefebvre identificou entre os espaços abstratos de consumo e o consumo concreto do espaço que se expressa em duas lógicas diferentes de representação do espaço e da sua vivência em diferentes espaços de representação. A fonte para a “subversão” da concepção abstrata do espaço que está ainda presente, em boa medida, na proposta comunicativa do planejamento, seria a valorização do espaço concreto (nas sociedades contemporâneas, um espaço diferencial) que se expressa nos corpos e no cotidiano.

Num segundo momento – avançando mais uma coluna no quadro 1 acima -  interpreta-se o caráter subversivo dessa nova relação do “espaço-tempo” a partir das sociologias das ausências e sociologias das emergências do Boaventura de Souza Santos (2003, 2004). As principais contradições no mundo contemporâneo são aqui compreendidas como luta entre globalização neoliberal e movimentos sociais e ONGs, que, sob domínio da primeira, acarreta um enorme desperdício de experiências sociais (cotidianas). O tempo do planejamento é um tempo linear, acelerado, onde a presença se reduz a um momento ínfimo e o futuro parece infinito. Neste caso a reformulação do paradigma colaborativo resulta (e pressupõe) profundas transformações das relações entre Estado e sociedade que incorporam as propostas republicanas do planejamento comunicativo (Randolph 1999) e valorização dos espaços de vivência, mas vão além disto. Um planejamento que merece o nome de subversivo precisa, então, criar o espaço tempo necessário para a valorização da experiência (e vivência) social. Isto significa nada menos do que colocar em prática as concepções que Boaventura Santos (2003, 2004)  elabora a partir de sua crítica à “razão indulgente”. E, enfim, é assim como razão instrumental e mesmo razão comunicativa vão ser superadas (dialeticamente) por “razão cosmopolita” em contraposição à razão indulgente como conceitua Boaventura Santos.

Não será preciso, no presente trabalho, especificar essas propostas (para uma explicitação mais detalhada do raciocínio que levou ao esquema acima apresentado, vide Randolph 2007). Acreditamos ter mostrado, mesmo com essa reflexão ainda mais geral que a elaboração de um novo paradigma do planejamento – como esse do subversivo – necessita de uma profunda mudança epistemológica em relação aos modos como o planejamento está sendo pensado até agora. Essa necessidade de uma ruptura epistemológica não é apenas um “capricho” de uma abordagem arbitrária de um novo planejamento. Na verdade, foram os próprios planejadores e os intelectuais ligados ao Estado os maiores mestres em inventar supostamente novos modelos – desde a década de 50 do século passado: depois do racional, o incremental, o advocatício, o indicativo, o participativo e outros mais.

Diferentemente, o planejamento subversivo não deve ser compreendido como modelo, mas como uma prática que decorre de uma determinada compreensão do mundo contemporânea e uma profunda preocupação de buscar direções de sua transformação ou, talvez, procura identificar no presente – naquilo que já existe e anuncia sua existência – as  potencialidades para uma transformação no futuro. É por isto que lança mão de três elementos como seus constituintes – comunicação, espaço e tempo – que se referem às principais contradições no mundo contemporâneo – instrumental versus comunicativo abstrato versus concreto indolente versus cosmopolita – que ameaçam à própria convivência social. O planejamento subversivo pretende ser, neste sentido, construtivo na medida em que procura ser uma “mediação” entre essas contradições o que significa nada mais e nada menos do que supera-las. O planejador como mediador que contribui para a superação de contradições, nesse caso, assume funções da mais alta complexidade e torna-se, assim, uma figura da maior importância para o avanço de uma transformação voltada para a racionalidade comunicativa, o espaço diferencial de valores de uso e o pensamento cosmopolita baseada nas experiências sociais das populações exploradas e oprimidas.

É no sentido de sentir as distâncias entre essas proposições do planejamento subversivo e a formação atual do planejador urbano e regional no Brasil que confrontamos, no final do presente ensaio, as idéias do planejamento subversivo com as características dos cursos a respeito dessa temática nos programas de pós-graduação em planejamento urbano e regional no Brasil. Vemos na identificação de uma distância com tradicionais modos de planejamento (o “moderno” e “estratégico”, como vão ser chamados por Magnavita 2005) algo absolutamente positivo porque pode também indicar certas potencialidades da formação que podem já estar implícitas na medida em que avançam de um arcabouço conceitual-crítico do planejamento para formas mais radicais de crítica a fim de chegar a proposições que superam as limitações dos modelos atuais – seja do planejamento participativo seja mesmo do planejamento estratégico.

Para preparar essa parte conclusiva do presente trabalho, acreditamos ser oportuno apresentar o raciocínio de um planejador urbano que, uns anos atrás, propus uma mudança epistemológica para o planejamento.

O desafio epistemológico para um novo planejamento

Serve-nos, para esse pequeno interlúdio, uma reflexão acerca de aspectos epistemológicos do ensino no campo do urbano, elaborado por Magnavita (2005). Apesar das matrizes conceituais diferentes desse autor que toma como base de sua reflexão basicamente Foucault e Deleuze daquelas apresentadas no presente trabalho, acreditamos ser possível e interessante acompanhar sua abordagem que questiona o planejamento urbano em sua versão moderna exatamente ao constatar que surgiram na contemporaneidade diferentes noções e conceitos que procuram “subverter (sic!!) entendimentos e pressupostos consolidados e relacionados com o tema escolhido: ensino do Planejamento Urbano”.

Constata um conjunto bastante heterogêneo de níveis de saberes e práticas que formam, no ensino acadêmico, as disciplinas que contribuem para o Planejamento Urbano. Nota que nos enunciados dessas disciplinas está claro a subordinação dos saberes aos poderes “quando se afirma que as questões, problemas e soluções dependem de ´decisões políticas´. Entretanto, não fica claro a que políticas os ensinamentos se referem e se destinam”.

Magnavita identifica, no total, três principais discursos no âmbito acadêmico sobre a teoria e prática do planejamento urbano nas últimas décadas. Um primeiro que estaria próximo a uma concepção vinculada ao pensamento moderno que seria o Planejamento Integrado e um segundo e mais recente que procuraria, na opinião do autor, dar conta da realidade bem mais complexa e dinâmica das sociedades pós-industriais que seria o Planejamento Estratégico. Esse último estaria mais relacionado com o “mundo globalizado sob a égide de tecnologias da informação e comunicação, expressão do ´capitalismo flexível´, o qual, vem estimulante, nos ´espaços de fluxos´, uma exponencial forma de consumismo irrefreável e ilimitado, tanto de bens materiais quanto imateriais e/ou simbólicos”

A vertente que Magnavita chama de Planejamento Integral Urbano – em nossa opinião um outro nome para o Planejamento Urbano Racional Compreensivo – alimentava-se do pensamento e das utopias (modernos) do crescente progresso que via a possibilidade do planejamento contribuir para controlar a expansão urbana, assegurar seu equilíbrio e, assim, uma melhor qualidade de vida para amplos segmentos dos moradores na cidade.

Entretanto, a partir da década 1950, a crença generalizada nos planos integrados permitiu que se desenvolvesse uma crítica bastante contundente aos seus enunciados e proposições, e isso, em decorrência da falência de seus pressupostos ideológicos e experiências concretas. Principalmente pela vulnerabilidade dos conceitos e objetivos encontrados nos discursos formulados, e isso, em decorrência da crença no poder da Razão científica e das tecnologias então disponíveis. (Magnavita 2005).

As críticas a essa forma de planejamento – moderno ou racional-compreensivo – durante um período até a década de 70 do século passado voltaram-se contra o caráter ideológico dessa concepção e seu fracasso de não ter conseguido estabelecer a nova e prometida ordem social.

E mais, pelo fato de favorecer a especulação e prestigiar as grandes empresas e as cidades se tornarem cada vez mais desiguais e tediosas em seus subúrbios no limiar da miséria e seus centros congestionados e/ou no nível do abandono. E isso, à revelia da arrogância profissional dos planejadores que acreditavam propor soluções corretas à situações tão complexas, questões tão bem caracterizadas por Jane Jacob em seu paradigmático livro. (Magnavita 2005)

Diante das mudanças que ocorreram num período mais recente, impõe-se a mencionada segunda vertente do Planejamento Estratégico Urbano que se apresenta como totalmente despojado de utopias sociais. Sua tônica é a de competir em um mundo globalizado e aferir lucros dos investimentos alocados. Para tanto, deve criar

"imagens urbanas pontuais, sedutoras, singulares à guisa de simulacros, devendo as mesmas promover diferentes níveis de fruição, e para isso, conta com o advento das novas tecnologias da informação e comunicação, as quais vêm contribuindo para potencializar os processo de subjetivação individual e coletiva estimulando o consumo." (Magnavira 2005).

O autor denota que há diferenças entre essas duas modalidades do planejamento urbano, porém apenas de nível e não de natureza. “Ambos os planejamentos possuem um denominador comum: O Capital especulativo, aumento da inflação, desemprego das desigualdades sociais entre outros indicadores, particular­mente em países periféricos”.

Entretanto, além dessas duas vertentes, houve uma terceira que, em nosso país, esteve em moda particularmente na fase terminal do regime autoritário e da abertura para o processo de democratização: um planejamento baseado numa “participação comunitário”. Na opinião de Magnavita (2005), essa vertente

"parece um tanto esquecida ou quando muito se abrem em restritos canais de informação e comunicação, adquirindo, em nosso país, com raríssimas exceções (orçamento participativo), uma conotação ainda utópica do que de realidade. É bem verdade que nos países centrais, o destino das cidades e das intervenções que nelas se processam contam com uma maior participação da comunidade. Tratam-se de sociedades menos desiguais, formadas de um modo geral, de uma classe média homogeneizada que compõe a grande maioria das populações urbanas, bem diferente, portanto, da acentuada desigualdade verificada nos países periféricos."

Formalmente, observando a quantidade de Planos Diretores Participativos  elaborados nos últimos anos no Brasil,  essa afirmação do relativo esquecimento talvez devesse ser relativizada. Pois, por tudo o que discutimos nas partes iniciais desse ensaio precisa-se ser cautela também em relação a essa modalidade do planejamento que traz consigo uma carga ideológica diferente.

Expressa-se, aí, a desconfiança ou descrença daqueles que teorizam ou ministram disciplinas correlatas em relação aqueles que detêm o poder e decidem, como diz Magnavita (2005)?  É porque nos nossos trabalhos não assumimos o planejamento como essencialmente técnico que oferece um hall de competências a serviço do que vai ser decidido? Mas uma abordagem onde o planejamento tem, como diz o autor,  “uma conotação polêmica, marcadamente crítica, revelando mais angústia e impotência frente à complexidade da questão que expressa dominantes exercício de poderes que, todavia, se apresentam numa multiplicidade de heterogêneas situações, estas de diferentes níveis, embora todas sob a égide de um denominador comum: o Capital, as cidades como espaço por excelência de mercado, de produção do consumo”?

Concordamos com o autor quando diz que a questão não se reduz a essa dualidade de aderir tecnicamente ou de adotar um pensamento crítico frente à impotência de atuar e contribuir nas decisões. A tentativa de formular a proposta do Planejamento Subversivo tem exatamente essa finalidade: mostrar um potencial concretamente existente – nas manifestações sociais – de um caminho onde essa dualidade seja abolida. E a pergunta que motiva o presente ensaio é a mesmo que Magnavita levanta no último parágrafo do seu trabalho:

"O que se deveria esperar das disciplinas de Planejamento Urbano na formação acadêmica/profissional, no sentido epistemológico na interface da Ciência? E não apenas da Ciência, mas também, da Filosofia (Ética) e da Arte (Estética)?. Embora os saberes científicos ocuparam e ainda ocupam posição hegemônica na cultura moderna e pós-moderna, formas de pensar contemporâneas questionam essa hegemonia. Neste sentido, a Lógica da Multiplicidade {Cosmopolita ?, observação nossa} considera o pensamento uma totalidade segmentaria, uma Heterogênese, no sentido de que as formas de pensar e criar constituem um sistema aberto de relações e conexões. ... Não havendo hegemonia de uma das formas de pensar e criar sobre as demais. Elas se entrelaçam, atingindo a plenitude desse entrelaçamento quando o conceito se torna conceito de função ou de sensação a função de conceito e de sensação e a percepção, percepção de conceito e de função. O que significa que o pensamento é uma Heterogênese."

Em síntese, nossa tentativa de reformular o planejamento urbano e regional significa um desfio para o ensino exatamente em relação às questões apontadas por Magnavita. O pensamento (saber) científico não perde a sua importância como uma forma de análise, síntese e vigilância de naturalizações de outras formas de pensar. Nesse sentido, precisa ser articulado com a totalidade de outras formas “eruditas” do pensamento (filosófico, artístico), mas também com o senso comum (cotidiano) (vide a proposta de uma ciência pós-moderna apresentada por Boaventura Santos já em 1989). Este último conhecimento, apesar de ser a fonte para qualquer esforço emancipatório do planejamento na nossa concepção, precisa ser submetido ao crivo da análise crítica. O planejamento e o planejador urbanos e regionais assumem, assim, uma nova função de intermediação tanto entre o pensamento e conhecimento técnico e o político, como entre disciplinas e áreas de conhecimentos diferentes. Esse pensamento seria, assim, uma heterogênese, como diz Magnavita (2005).

Novos caminhos para a formação do planejador urbano e regional?

Para finalizar o presente estudo, será caracterizada brevemente a atual (2005) formação de planejadores urbanos e regionais no âmbito da pós-graduação brasileira e mais especificamente, nos cursos então credenciados pela CAPES na (sub)área de Planejamento Urbano e Regional. Dessa caracterização espera-se subsídios para identificar o desfio que estaria colocado para uma formação pós-graduada caso procurasse contribuir para a formação de um planejador comprometido com a abordagem subversiva que foi apresentada no item 2 do presente ensaio (vide também Randolph 2007).

Mesmo na ausência de uma proposta detalhada desse “planejamento subversivo”  sabemos que no caminho para a formulação do seu projeto precisam ser superados três principais obstáculos (i) o predomínio de uma racionalidade instrumental - presente nas vertentes atuais tanto modernas, pós-modernas, como participativo-comunitárias - através do fortalecimento de uma racionalidade comunicativa (ii) o domínio do espaço abstrato da sociedade de consumo fomentado pelas atuais processos formais de planejamento que precisam ser substituídos por formas que favorecem o surgimento de um espaço diferencial e (iii) o domínio da lógica indulgente da globalização que precisa ser enfraquecido, progressivamente, pela incorporação de uma lógica cosmopolita ao planejamento que se pode encontrar nas sociologias das ausências e a das emergências.

A análise e a sistematização aqui realizadas estão limitadas apenas aos títulos das disciplinas de planejamento urbano e regional lecionadas nos cursos de pós-graduação. Não se pode identificar, assim, com maior rigor e certeza suas contribuições no sentido de apoiar ou o vigente modelo de um planejamento instrumental, abstrato e indulgente ou uma forma de planejar comunicativa, concreta e cosmopolita. Será necessário, no futuro, dissecar seus objetivos, conteúdos, interlocuções que estabelece e identificar outras características mais pormenorizadas. Portanto, o esforço aqui realizado serve como uma primeira e ainda provisória aproximação a uma apreciação dessas contribuições das disciplinas.

Cabe, inicialmente, fornecer algumas informações mais gerais sobre o universo de análise do presente trabalho. A (sub)área de Planejamento Urbano e Regional (PUR) na CAPES é composta hoje (em 2008) por 19 programas e 24 cursos ou 20 programas, caso o mestrado da ENCE seja aqui contado – talvez equivocadamente - como acontece oficialmente. Não está contemplado aqui o curso em Arquitetura e Urbanismo da USP que tem uma grande e forte área de concentração em Planejamento Urbano e Regional e onde foram, durante muitos anos, formados os doutores que hoje integram os quadros docentes de uma boa parte dos cursos em Planejamento Urbano e Regional. O primeiro curso de doutorado num dos programas da própria área foi criado em 1993 na UFRJ.

Há uma perspectiva, no presente ano, de atrair mais quatro ou cinco cursos para essa área através de transferências de cursos agora localizados na área Multidisciplinar da CAPES. Ainda, com duas aplicações de cursos novos (APCN) em 2008 pode ser possível aumentar o conjunto de cursos, caso sejam aprovados pela Comissão da Área e pelo CTC-ES. Acreditamos que, ao médio prazo, o número de programas na área pode ultrapassar trinta.

Com relação à composição e trajetória da sub-área de PUR no Brasil pode-se brevemente sintetizar: como já mencionado no início do nosso ensaio, os primeiros cursos foram fundados na década de 1970 voltados para o planejamento tanto urbano como regional. Foi dada, desde o princípio, uma maior ênfase ao urbano do que ao regional na medida em que esses mestrados estiveram (e estão) ligados fundamentalmente a Faculdades de Arquitetura e Urbanismo das suas respectivas universidades (federais). A única exceção foi o curso da UFRJ que, inicialmente criado na Coordenação de Pós-Graduação em Engenharia de Produção (COPPE) transferiu-se, na década de 1980, para o Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas o que é coerente com sua orientação mais sócio-econômico-político.

Havia, inicialmente, uma concentração grande da sua localização nas áreas metropolitanas do país, particularmente, fora das macro-regiões Norte e Nordeste (exceção: o mestrado em desenvolvimento urbano – MDU – da UFPE).

Esse quadro vai se modificando durante os últimos quase vinte anos em dois sentidos: (i) entre os programas mais recentemente aprovados observa-se um grande número que se dedica ao desenvolvimento e planejamento regional e (ii) esses programas estão, em boa parte, localizados fora das áreas metropolitanas da região Sul-Sudeste. Temos assim cursos de orientação regional desde as regiões Sul (UNISC, FURB e UNIOESTE, UNC) e Centro-Oeste (ALFA) como também até do Nordeste (UNIFACS) e Norte (UNIFAP e UFT). Em caso de transferências de programas da área Multidisciplinar para a PUR localizados, na sua maioria, em territórios mais afastados do centro do país, a temática do planejamento e desenvolvimento regional deve se fortalecer ainda mais.

Mas, houve também um aumento de programas voltados tanto para o urbano como comprometidos com a articulação entre o urbano e o regional como os cursos da Cândido Mendes (SBI) no interior do estado do Rio de Janeiro e aquele da UNIVAP no Vale do Paraíba do Sul em área peri-metropolitana de São Paulo. Mais recentemente, juntam-se a eles dois cursos  explicitamente voltados ao urbano (UNAMA e PUC/PR). Ainda, surgiram cursos que se referem ao desenvolvimento territorial sem maiores especificações ou anunciam uma abordagem ambiental e/ou social do planejamento e desenvolvimento (UCSal, UDESC, UNAMA).

Como em relação aos cursos mais recentemente aprovados na CAPES ainda não estão disponíveis informações sobre sua estrutura acadêmica e as disciplinas ministradas – informações indispensáveis para a análise do presente trabalho – a discussão aqui fica limitada a 11 programas com 16 cursos, dos quais 10 são mestrados acadêmicos, um é  mestrado profissional e 5 são cursos de doutorado. Como já apontado antes, os dados levantados em 2007 referem-se à situação dos cursos em 2005.

Uma primeira diferenciação entre os cursos diz respeito, como acabamos de mencionar, a uma abordagem mais urbana e metropolitana e uma outra mais voltada para o regional. Esses focos são mais ou menos nítidos nos cursos com exceção com alguns poucos como os programas da UFRJ, UNIVAP e SBI.

Para poder aprofundar essa análise é necessário observar a estrutura acadêmica o que leva à distinção entre duas fases de formação que estão presentes em todos os cursos da área: há uma primeira etapa de formação, tanto no mestrado como no doutorado, onde o aluno é obrigado a participar de determinadas disciplinas consideradas básicas pelos cursos. Na segunda fase, o aluno pode optar entre um conjunto de disciplinas oferecidas para aquelas que mais lhe interessam, contribuem para sua dissertação ou tese etc.

a) Análise do conjunto das disciplinas obrigatórias

O número e o conteúdo dessas disciplinas varia de curso para curso. Num extremo, nota-se dois programas com cursos de mestrado e doutorado que não obrigam os alunos a se apropriar de conteúdos e temáticas pré-estabelecidos (UFPE, UFRGS). No máximo há alguma obrigação de matricular-se em cursos de cunho metodológico. No outro extremo encontra-se o programa da UFRJ que tem uma carga pesada em termos de disciplinas obrigatórias – tanto no mestrado como no doutorado - que pretendem oferecer aos estudantes a possibilidade de articular conhecimentos da sociologia, economia e ciência política com os do campo do planejamento urbano e regional.

Mas, o que é mais interessante para a discussão do presente trabalho é a diferença entre os cursos em relação à temática do planejamento. Não se verifica que os cursos de “Desenvolvimento Regional” não tenham, também, uma preocupação com alguma discussão sobre planejamento o que se esperaria, inclusive, por causa da própria temática do desenvolvimento. Além dos dois programas tradicionais da área que não exigem mais, obrigatoriamente, nenhuma discussão sobre planejamento, há mais dois cursos recentes da vertente regional onde o planejamento não está sendo tratado por uma disciplina obrigatória (UNIOESTE, FURB). Uma consolidação e sistematização das disciplinas oferecidas com essa temática pelos demais cursos encontram-se no quadro 2:

Quadro 2. Disciplinas obrigatórias sobre a temática do planejamento

(i)
Estado e agentes políticos 
(“ator”)

(ii)
Urbano – Regional
(objeto)

(iii)
Gestão – administração - planos

Estado e Planejamento

Cidades e Planejamento

Gestão pública e governança eletrônica

Planejamento e Políticas Públicas

Planejamento e Desenvolvimento Regional

Administração estratégica de políticas públicas e projetos urbanos

Estado, Planejamento e Território

Região e Planejamento

Administração de Recursos Públicos

Classes, Estado e Desigualdades

Planejamento Urbano e Regional no Brasil (ou apenas urbano ou regional)

Formulação, Implementação e Avaliação de Planos

Teoria e Metodologia do Planejamento Urbano

 

Políticas Públicas e Turismo

Além de tratar do planejamento, essas disciplinas dedicam-se a determinadas temáticas mais ou menos abrangentes do debate. Há cursos que, de uma forma bastante abrangente, procuram inserir o planejamento em concepções e análises mais amplas do Estado, da política ou de outros atores sócio-políticos. Um outro grupo segue um corte mais territorial (urbano e/ou regional). Um terceiro mais voltado a questões operacionais, setoriais e, às vezes, técnicas como gestão, administração e da própria formulação, implementação e avaliação de planos.

É interessante dar uma rápida olhada naquela disciplina sobre Teoria e Metodologia do Planejamento Urbano (UNIVAP). Talvez representativa para outras desse grupo de disciplinas (vide a primeira coluna no quadro 2), ela explicita uma posição crítica a respeito do planejamento que vê como um processo de argumentação dialética que envolve informações de distintas origens (vide acima o item 3.). Parece, de alguma forma, compartilhar a visão defendida nesse ensaio que o planejamento deva desenvolver “novas atitudes frente â possibilidade de transformação da realidade” – como diz na sua ementa.

Vale notar, finalmente, em relação às aulas obrigatórias que, com exceção dos três programas mais antigos e os mestrados da PUC/Paraná e da UNIOESTE todos os demais dão uma ênfase muito grande à temática do desenvolvimento seja em forma de reflexões sobre a articulação entre desenvolvimento, sociedade e economia, seja na sua dimensão regional ou urbana ou referente à sua distribuição geográfica.

 b) Análise do conjunto das disciplinas optativas ou seletivas

O quadro das disciplinas optativas voltadas para a temática do planejamento (urbano e regional) é, obviamente, mais amplo, abrangente e heterogêneo em comparação aquele das obrigatórias. Juntando todas as disciplinas oferecidas como optativas em 2005 é possível identificar, além da temática do planejamento, uma série de outras questões cuja abordagem no ensino confere característica e especificidades aos cursos da área. Só para mencionar um possível agrupamento dessas disciplinas (complementar às do planejamento), é possível distinguir (i) um grupo de disciplinas preocupado com a gênese, história e evolução da cidade ou da região e de seu desenvolvimento (ii) um outro grupo voltado para estudo da infra-estrutura (iii) um grupo voltado para questões da cultura e outros (iv) para a temática do meio ambiente. Um outro conjunto de disciplinas (v) preocupa-se com diferentes aspectos (setoriais) da cidade e do território como habitação e urbanização, conservação, morfologia, legislação, segregação e outros outras disciplinas (vi) podem ser agrupadas porque apresentam reflexões teóricas ou setoriais sobre espaço, sociedade, economia e outros. Por fim, existe um grupo (vii) voltado para questões epistemológicas e metodológicas da produção do conhecimento múltiplo da área.

Como o presente trabalho procura aprofundar a análise do grupo das disciplinas optativas voltadas ao planejamento e temáticas correlatas, elaboramos uma sistematização a partir dos seus títulos. O resultado encontra-se no quadro 3 (página seguinte) onde foram agrupadas as aulas oferecidas no ano de 2005 pelos diferentes programas sob seis aspectos maiores:  (i) há aquelas disciplinas voltadas à articulação do planejamento com diferentes agentes públicos envolvidos (ii) discute-se o planejamento em relação a novos agentes como movimentos, associações etc. (iii) aspectos mais operacionais ou mesmo técnicas que já encontramos, assim, nas disciplinas obrigatórias junto com poucas disciplinas voltadas para a questão ambiental (iv) no grupo seguinte reunimos disciplinas que trabalham com algum recorte público-privado e setorial (v) há cursos voltados a questões da cidadania, cultura e segregação que assumem particular importância no nosso estudo porque podem indicar certas tendências de um planejamento não-instrumental, não-formal e não-indulgente. Finalmente, existe uma série de disciplinas (vi) que travam uma interface com o Urbanismo e estão voltadas para reflexão e aplicação do geo-processamento de dados.

Escolhemos aqui como exemplo de uma daquelas disciplinas aquela sobre Planejamento Participativo (UNISC) que poderia, talvez, apontar naquela direção que nós estávamos defendendo no presente ensaio.

Pela ementa da disciplina e pelas indicações bibliográficas nota-se que a discussão ultrapassa as concepções tradicionais e dedica-se em boa parte a abordagens participativas do planejamento. Neste sentido, parece já encaminhar um debate como aquele que estamos propondo aqui sem, entretanto, avançar radicalmente para uma visão subversiva.

Quadro 3. Disciplinas optativas sobre planejamento, Estado e te,atiças correlatas

(i)
Estado,
agentes,
políticas

(ii) Planejamento,
Participação

(iii)
Gestão,
governança,
planos

(iv)
Recortes
Setorial e público- privado

(v)
Cultura,
cidadania,
segregação

(vi)
Interfaces com urbanismo
e geo-pro

Estado, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (outra: sem Estado)

Teoria do planejamento urbano

Planejamento e gestão urbana

Políticas dos serviços urbanos

Cultura e Planejamento

Fundamentos do desenho urbano

Estado e processo de planejamento urbano

Planejamento participativo

Governança e redes urbanas - Tópicos avançados I, II, III e IV

Introdução à legislação urbanística  básica

Vulnerabilidade, Segregação e Politica I + II

Cidade em projeto

Estado, Sociedade e Processos Espaciais (ou Estado e questões urbanas e regionais)

Associativismo Civil e Poder Local

Gestão de Políticas Públicas e Desenvolvimento

Política e desenvolvimento agro-industrial

Educação, Trabalho eCidadania

Projetos de Intervenção Urbana

Políticas de Desenvolvimento Local

Organização Social e Participação no Desenvolvimento Regional

Gestão da conservação integrada

Habitação, Política e Mercado

Cidade, Cidadania e Política

Geo-processamento aplicado ao planejamento (incl. urbano e regional)

Globalização Política Territorial I  e II

Planejamento e (outros) sentidos da cidade

Metrópoles e Planos

Estratégias de crescimento empresarial

 

Sensoriamento remoto aplicado ao planejamento urbano

 

Democracia Part. Politicas Publicas

Tópicos avançados em gestão urbana

Gestão de negócios agro-alimentar

 

 

 

Tópicos, Questões e Seminários sobre PUR

Gestão Ambiental da Cidade

 

 

 

 

 

Elementos ambientais de planejamento territorial

 

 

 

Como já anunciado anteriormente, essa análise dos programas de pós-graduação da área de planejamento urbano e regional no Brasil ia apenas identificar primeiros indícios até que ponto, no seu seio, a discussão sobre o planejamento insurgente e subversivo já tem alguma expressão – talvez ainda primeira, provisória e tímida. Pelo levantamento e pela sistematização que realizamos não se pode afirmar que haja uma significativa difusão de uma perspectiva crítica a respeito mesmo do planejamento participativo, como expresso, por exemplo, nos Planos Diretores Participativos. Mas, por outro lado, existem certos sinais de uma consciência crítica em relação aos discursos do planejamento que estão sendo transmitidos aos alunos em sala de aula pelos docentes. A partir da perspectiva defendida no presente trabalho seria desejável se os cursos dedicassem maior atenção a este assunto.

Bibliografia

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© Copyright Rainer Randolph, 2008
© Copyright Scripta Nova, 2008


Referencia bibliográfica

RANDOLPH, Rainer. A nova perspectiva do planejamento subversivo e suas (possíveis) implicações para a formação do planejador urbano e regional – o caso brasileiro. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2008, vol. XII, núm. 270 (98). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-270/sn-270-98.htm> [ISSN: 1138-9788]


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