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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XII, núm. 270 (99), 1 de agosto de 2008
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

TERRITORIALIDADE ESTATAL E OUTRAS TERRITORIALIDADES:
NOVAS FORMAS DE USO DOS TERRITÓRIOS NA AMÉRICA LATINA. CONFLITOS, DESAFIOS E ALTERNATIVAS.

Prof. Márcio Cataia[1]
Depto de Geografia/Instituto de Geociências/Unicamp
cataia@ige.unicamp.br


Territorialidade estatal e outras territorialidades: novas formas de uso dos territórios na América Latina. Conflitos, desafios e alternativas (Resumo)

O texto interroga as relações entre tradicionais formas hierárquicas de organização político-estatal de territórios Latino-americanos e novas formas horizontais de uso e apropriação desses territórios por parte de grupos sociais não hegemônicos. Com base nessa indicação, tratamos das tensões que surgem dessa relação e dos obstáculos, desafios e alternativas ao reconhecimento das autonomias regionais requeridas por territorialidades não hegemônicas: a reflexão teórica é orientada a partir de uma das concreções do espaço geográfico, a categoria território, que é tanto resultado do processo histórico, quanto base material e social das ações humanas. A análise acontece a partir de contextos de “modernização periférica” – de adequação dos territórios nacionais às exigências do mercado global –, onde exacerbam-se os conflitos entre diferentes territorialidades e, conseqüentemente agravam-se os embates por novas delimitações territoriais. Empiricamente, verifica-se que conjuntamente à tradicional “territorialidade estatal” e sua geopolítica hierárquica, junta-se uma nova “geopolítica popular” apoiada na atualização de tradicionais territorialidades, como são os casos dos territórios quilombolas (habitados por descendentes de escravos) e indígenas no Brasil e no México com o caso de “los caracoles”.

Palavras chave: território, territorialidade estatal, territorialidades não hegemônicas.


Territorialidad estatal y otras territorialidades: nuevas formas de uso de los territorios en Latinoamérica. Conflictos, desafíos y alternativas (Resumen)

El texto interroga las relaciones entre tradicionales formas jerárquicas de organización político-estatal de territorios Latinoamericanos y nuevas formas horizontales de uso y apropiación de esos territorios por parte de grupos sociales no-hegemónicos. Con base en esa indicación, tratamos las tensiones que surgen de esa relación y los obstáculos, desafíos y alternativas al reconocimiento de las autonomías regionales requeridas por territorialidades no-hegemónicas: la reflexión teórica es orientada a partir de una de las concreciones del espacio geográfico, la categoría territorio, que es tanto resultado del proceso histórico, cuanto base material y social de las acciones humanas. El análisis acontece a partir de contextos de “modernización periférica” – de adecuación de los territorios nacionales a las exigencias del mercado global –, en donde se exacerban los conflictos entre diferentes territorialidades y, consecuentemente se agravan los embates por nuevas delimitaciones territoriales. Empíricamente, se verifica que conjuntamente a la tradicional “territorialidad estatal” y su geopolítica jerárquica, se junta una nueva “geopolítica popular” apoyada en la actualización de tradicionales territorialidades, como son los casos de los territorios quilombolas (habitados por descendentes de esclavos) e indígenas en Brasil, y de “los caracoles” en México.

Palabras clave: territorio, territorialidad estatal,territorialidades no-hegemónicas.


State territoriality and other territorialities: new ways of using territories in Latin America. Conflicts, challenges, and alternatives (Abstract)

The text questions the relations among the hierarchical forms of political and state organization of Latin-American territories and new horizontal forms of using and appropriating these territories by non-hegemonic social groups. Based on this indication, we deal with the tensions arising from this relationship, and the obstacles, challenges, and alternatives to the acknowledgement of regional autonomies required by non-hegemonic territorialities: the theoretical reflection is based on one of the concretions of geographical space, the category of territory, which is both the result of the historical process and the material and social basis of human actions. The analysis is based on contexts of “peripheral modernization” – adapting national territories to the requirements of the global market –  where there is an exacerbation of conflicts among different territorialities and, as a result, an aggravation of the struggles for new territorial boundaries. It is empirically observed that besides the traditional “state territoriality” and its hierarchical geopolitics, there is also a new “popular geopolitics” based on the updating of traditional territorialities, as is the case with the territories occupied by the Quilombolas (descendants of African slaves), the native Brazilian Indians, and the “Los Caracoles”, in Mexico.

Key wordsterritory,state territoriality, non-hegemonic territorialities.


O período atual é marcado pela égide da circulação das informações em “tempo real”, possibilitando novos nexos informacionais na escala do mundo. Este fato levou Santos (1996) a afirmar a existência de uma “convergência dos momentos”, em articulação com uma “unicidade técnica” e uma “unicidade do motor” da globalização, que é a busca da mais-valia em escala mundial. Esses três dados constitutivos do período atual são a um só tempo causas e efeitos uns dos outros, são mundialmente solidários. Articulando-se ao encurtamento das distâncias geométricas promovidas por estas três unicidades, outro signo distintivo de nossa Era é a compartimentação do espaço (Gottmann, 1952; Siegfried, 1955; Santos e Silveira, 1996; Mattelart, 2000; Santos, 2000). Em verdade, um mundo sem compartimentação é desconhecido de nossa história, pois o substrato físico do planeta já era diferenciado antes da presença humana, mas é o trabalho social que abre a era da organização política do espaço (Isnard, 1982), produzindo o fato fundamental da geografia política que é a compartimentação do mundo habitado (Gottmann, 1952). A diferenciação do espaço se exprime pelo fenômeno da compartimentação do espaço, ou seja, pelo processo de subdivisão da superfície terrestre em compartimentos políticos.

A compartimentação do espaço não é um dado novo da história, porém é um elemento que deve ser sublinhado em face das ideologias do fim das fronteiras e dos territórios. Como afirma Siegfried (1955), todo desenvolvimento técnico e científico produz acelerações nos modos de circulação de idéias, homens e mercadorias, no entanto, sempre que se produzem acelerações produzem-se concomitantemente obstáculos, pois a técnica e a ciência a serviço da circulação não são imunes à política. Aceleração e limite conformam um par dialético de apropriação dos territórios. Já no imediato pós Segunda Guerra Mundial a vertigem da velocidade aeronáutica alimentou um discurso sobre o fim das fronteiras (“one world”), porém mesmo em vôo o avião obedece a pelo menos dois obstáculos: um imposto pela geografia política, pois o “espaço aéreo” das nações é parte da soberania territorial, e outro imposto pela necessidade técnica de reabastecimento, manutenção e troca de tripulação. A aceleração dos fluxos materiais, em sua forma mais veloz – a aeronáutica –, não transformou o mapa mundi político num espaço liso, numa “bola de bilhar” (Gottmann, 1952), isento da política, assim como o império da circulação da informação em “tempo real” também não dá indícios seguros de que vá produzir um mundo sem fronteiras. A circulação tem a propriedade de animar as relações, mas nada indica que as relações possam ou necessitem ser efetuadas sem os compartimentos territoriais[2].

O capitalismo é movido pelo ímpeto de acelerar o ritmo de circulação do capital e, conseqüentemente revolucionar os horizontes temporais do desenvolvimento, todavia isto só pode ser realizado por meio de investimentos de longo prazo no ambiente construído e nas infra-estruturas. Logo, há cada vez mais capital fixado no território, criando uma estrutura de recursos geograficamente organizada que inibe a trajetória do desenvolvimento ulterior. A idéia de desmantelar as infra-estruturas urbanas das grandes metrópoles mundiais do dia para a noite e recomeçar do zero é impensável, portanto cria-se uma enorme contradição com a crescente necessidade de movimento (Harvey, 2004). Do mesmo modo, há sérias dificuldades políticas para desmantelar instituições territorializadas por lutas travadas durante longos períodos, ou seja, as “rugosidades” (Santos, 1985), ou o tempo passado cristalizado como território, representam injunções sobre o presente.

Essa tendência à inibição do movimento também é acompanhada por discrepâncias nos horizontes temporais das ações técnicas e políticas. Há uma tensão permanente entre o horizonte temporal do mercado financeiro global “desterritorializado”[3] e as temporalidades próprias aos lugares.

Ao contrário do que afirma a ideologia da globalização, a velocidade não dissolve o território. O que há é uma nova valorização diferencial dos lugares, uma nova hierarquização do espaço causada pelas diferentes e desiguais densidades infra-estruturais, populacionais, normativas e, sobretudo informacionais. Segundo Santos (2005) a informação é um novo princípio de hierarquia entre os lugares e também um novo obstáculo a uma inter-relação mais frutuosa entre os lugares. A mesma informação que é o fermento da aceleração de determinadas relações, sobretudo a serviço dos agentes hegemônicos da economia e da política, também é o fermento de uma nova divisão territorial do trabalho que reorganiza os espaços de cima para baixo (hierarquicamente) em novos compartimentos “verticais”, por que sem referência direta com o cotidiano daqueles que vivem nos lugares. A difusão do meio técnico-científico e informacional (Santos, 1996) é acompanhada da propagação de limites.

Concomitante à compartimentação vertical oriunda de vetores hierárquicos – como as grandes empresas e o Estado[4] –, instalam-se também no território formas alternativas de compartimentação resultantes de movimentos endógenos, “de baixo para cima”, que poderiam se denominadas de “compartimentações horizontais” ou “populares”. De fato, há lugares ameaçados de estandardização, de perda de substância pela ação dos agentes hegemônicos, no entanto as interações são múltiplas, complexas e permanentes, enredando campos de forças fluidos, onde os atores internos não são desprovidos de meios de ação e onde os atores externos estão longe de ter pleno poder de manipulação de todas as variáveis em jogo. Conjuntamente às tradicionais compartimentações, herança dos Estados territoriais, hoje a globalização representa também a possibilidade de começarmos a divisar com maior nitidez uma “chorodiversidade” mundial, representada por territorialidades alternativas, a exemplo das territorialidades indígenas, como “los caracoles” no México, e afro-latinas, como os territórios quilombolas no Brasil[5].

Uso e compartimentação do território

A compartimentação do espaço humanizado[6] resulta de seu “uso” (George, 1972; Santos, 1994a) e diz respeito ao problema fundamental da repartição e distribuição das coisas e pessoas pelo espaço. A compartimentação teria começado com a circunscrição do primeiro campo, com a construção do primeiro limite e o traçado do primeiro caminho. De uma maneira geral o espaço destinado ao trabalho é apropriado, delimitado, marcado (George, s/d). Durante um longo período os grupos humanos mantiveram-se relativamente isolados por limites zonais, espaços que os grupos sociais reputavam impróprios para o desenvolvimento de suas culturas, verdadeiros limites do ecúmeno. Atualmente, o desenvolvimento técnico-científico concede aos Estados nacionais o favor da delimitação linear de suas fronteiras, ainda que zonas fronteiriças continuem existindo, porém não mais como espaços anecúmenos.

O trabalho dos grupos sociais se incumbe de determinados aperfeiçoamentos em lugares particulares, fazendo das benfeitorias irremovíveis o cimento da comunidade com a lugar onde ela se situa (Polanyi, 2004[1944]; Hawtrey, 1952). Dessa materialização do trabalho social deriva o caráter territorial das soberanias e autonomias que impregnam as concepções políticas do Estado nacional, que se funda no exercício do poder soberano sobre um território claramente demarcado (o território Westphaliano[7]). A legitimidade do mapa político do mundo é ancorada na “territorialidade estatal” (Moraes, 2006), porém internamente, os territórios nacionais não acolhem compartimentações exclusivamente estatais, há formas alternativas ao poder do Estado que também se territorializam. Assim, os compartimentos internos têm importância considerável, pois revelam a territorialidade das políticas, historicamente elaboradas por meio dos controles físicos e simbólicos dos territórios (Sack, 1986; Raffestin, 1993; Castro, 2005).

Um espaço nacional é um palimpsesto de compartimentos que podem ser apresentados a partir de duas matrizes analíticas, do “território como recurso” e do “território como abrigo” (Santos, 2000). A primeira matriz orienta compartimentos hierárquicos, obedientes às ordens dos atores hegemônicos da globalização, tendo poder de regionalização de extensas áreas nacionais e mesmo continentais. Orientados pela economia global propõem uma nova divisão internacional do trabalho – a exemplo dos blocos econômicos que despontam como regionalizações para a ação hegemônica das empresas transnacionais. Nesta matriz também reconhecemos o poder do Estado em compartimentar “seu” território, a exemplo das divisões político-administrativas estaduais (provinciais) e municipais, que representam as divisões do poder político-estatal, e a exemplo também das grandes divisões geopolíticas do globo a serviço dos Estados do Norte. Assim, um compartimento político-estatal pode ser definido como uma entidade territorial, com fronteiras juridicamente demarcadas, no interior das quais se exerce a ação do Estado ou daqueles que são legitimamente reconhecidos pelo Estado. Nesta matriz, tanto Estado quanto mercado hegemônico (representado pelas empresas transnacionais) respondem por ordenamentos dominantes do espaço.

Contudo, os compartimentos do espaço não se reduzem às dimensões econômica e jurídico-política, tampouco poderíamos restringir as esferas política e econômica às dimensões estatal e empresarial, por isso outra matriz de compartimentação do espaço é aquela que responde pelo “território como abrigo”. Estes são os compartimentos produzidos localmente por solidariedades contra-hegemônicas, por atores não-estatais que também fundem suas economias e culturas ao território, ainda que sem o caráter jurídico e dominante das territorialidades do Estado e do mercado hegemônico. Os territórios quilombolas no Brasil e os territórios indígenas em toda América Latina, como “los caracoles” no México, são compartimentos do espaço a serviço de ordens que fogem à racionalidade instrumental dominante. Dessa forma, reconhecemos uma pluralidade de usos não hegemônicos do território que buscam aproximar política e território, que constroem estratégias de autonomia a partir de lutas territorializadas.

Para Sousa Santos (2007), haveria hoje uma “neoterritorialidade”. A idéia de que com a globalização tudo seria desterritorializado, tudo seria global, se vê desbotada pela repentina importância que cobra o território como aspecto central das lutas de resistência. Hoje a reivindicação e demanda por território são muito fortes na América Latina, África e Ásia, tanto no campo quanto nas cidades, como os casos de Oaxaca (México), dos “piqueteros” (Argentina) ou em El Alto (Bolíva). São novas formas de territorialidade que não constavam dos tradicionais esquemas estatais e mercantis.

Buscando a identificação com seu meio geográfico, as lutas territorializadas compartimentam o espaço, todavia esta ação de limitar os territórios do abrigo, não se restringe à delimitação geométrica do espaço. A delimitação se efetua em distintas escalas segundo o espaço útil (George, 1972) destinado à atividade do grupo. Um território nacional, por exemplo, é o espaço útil do Estado e é fracionado obedecendo aos critérios dos jogos de poder entre as elites políticas e econômicas, porém nem sempre as divisões locais podem ser efetuadas por um escalão superior. Quando a organização dos espaços locais estriba-se sobre processos históricos de longo curso, como as territorialidades indígena e afro-latina, o tempo atual se defronta com o tempo passado – as rugosidades (Santos, 1985) –, e as forças de inércia agem como freios às ações hegemônicas do mercado e do Estado. Para Gottmann (1952) os compartimentos políticos são necessários inclusive de um ponto de vista psicológico, para salvaguardar as identidades dos grupos, limitando os excessos de interferências nas comunidades pelos sistemas de movimento que se pretendem universais. Ao propor uma compartimentação do espaço que seja o seu abrigo, os grupos sociais subalternizados usam o território para ocupar seu lugar nos jogos do poder. Seu compartimento, isto é, seu lugar no mundo, é seu acervo cultural e sua estratégia de sobrevivência.

Os compartimentos do espaço estão permanentemente envolvidos nas estratégias sociais, econômicas, culturais e políticas. A cada nova forma da organização dessas esferas e das complexas tramas que resultam de suas coerências e conflitos, correspondem novos usos do espaço e, conseqüentemente, novas tentativas de delimitação do espaço útil atribuído a cada esfera. Para Braudel (1998) uma esfera nunca é isolada da outra, pois todas as ações dos homens comportam aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos. Todas estas realidades intervêm, cúmplices ou hostis, incessantemente na construção dos compartimentos.

Com a globalização a Terra é inteiramente compartimentada, e todo e qualquer pedaço da superfície se torna funcional às necessidades, usos e ambições de Estados e empresas (Santos, 2000). Redefinida em função dos atributos do atual período técnico-científico e informacional, a compartimentação atual distingue-se daquela do passado na medida em que hoje, à compartimentação associa-se a fragmentação (Santos, 2000), que é um outro nome para a compartimentação do espaço proveniente de interesses particulares, excludentes e promotores de maiores desigualdades.

A tentativa de homogeneização das sociedades, inerente à unificação da economia mundial, tem como corolário a fragmentação das mesmas, pois entre a razão mercantil que se expande e as culturas com seus desejos de afirmação e de pertença, as diferenças aumentam (Mattelart, 2000). A vocação transfronteiriça do mercado global se dá mediante processos que buscam a unificação de pontos de interesse do capital e não propriamente a união da totalidade do território. Por estas razões, os conflitos marcados pelas territorialidades e suas compartimentações se exacerbam e a coexistência se torna conflitiva. De um lado espaços extrovertidos, “luminosos”, guiados pelos princípios do mercado global, e, de outro lado, a criação de novas formas de solidariedades domésticas, orientadas por princípios que escapam à racionalidade hegemônica. Essa dialética entre “uma razão global e uma razão local” (Santos, 1994b) é motivo de tensões permanentes entre a emergente “compartimentação popular” (indígena e afro-latina), a tradicional compartimentação estatal e os espaços dos fluxos que, compartimentando o território, servem aos interesses mercantis globais.

Compartimentação mercantil do território: o caso do campo brasileiro

Paralelamente a esses novos usos do território, que derivam em novos compartimentos, aqui chamados de “horizontais” ou “populares”, instala-se no território brasileiro uma agricultura científica, aquela que incorpora os principais paradigmas da produção e do consumo globalizados – amplo emprego de máquinas, atrelando a agricultura à indústria, à pesquisa e ao sistema financeiro globalizado. Tudo isto leva à multiplicação dos compartimentos destinados à produção e à circulação das mercadorias do campo, tanto aquelas oriundas das fazendas, quando aquelas provenientes das agroindústrias.

Elias (2006) considera três aspectos fundamentais do incremento do agronegócio e da agricultura científica no Brasil. Um deles é a mudança dos sistemas técnicos produtivos agrícolas, com a expansão do uso de agrotóxicos, fertilizantes, corretivos, tratores, arados, colheitadeiras, etc. Outro aspecto é a apropriação do processo de produção agropecuária brasileira pelas grandes corporações transnacionais, configurando-se uma ampla implantação de indústrias de insumos e ramos transformadores dos produtos agropecuários. Sendo dominado pelo padrão de acumulação industrial, a dinâmica da agricultura centra-se nos complexos agro-industriais (CAI’s). O terceiro é referido ao aspecto da integração de capitais a partir da centralização de capitais industriais, bancários, agrários, etc., expansão de sociedades anônimas e cooperativas agrícolas, bem como fusões, cartéis, trustes e a organização de holdings. Essa reorganização produtiva do campo resulta na formação de redes agroindustriais globais, associando empresas agropecuárias, produtores e distribuidores de insumos químicos e implementos mecânicos, laboratórios de pesquisa biotecnológica, empresas de marketing, cadeias de supermercados, além de empresas de fast food.

Como é próprio da seletividade do capital produtivo, as áreas da produção (propriamente dita) do agronegócio não se distribuem homogeneamente em todo território brasileiro. Elas se difundem especialmente ao longo dos principais eixos de circulação, pois essa moderna produção, a serviço das grandes empresas de atuação mundial, desenvolve-se sob a égide da fluidez, tanto material quanto informacional. Intensifica-se a exigência de fluidez para a circulação de idéias, mensagens, produtos e dinheiro de interesse dos atores hegemônicos da globalização.

A distribuição dos equipamentos destinados à circulação é seletiva, são pontos, uniões verticais de interesse do mercado mundial, por isso criam-se no território arranjos organizacionais, áreas de maior densidade viária e infoviária. A fluidez do período atual está baseada em redes (físicas e informacionais), que são o suporte do imperativo da competitividade[8]. Todavia, nunca uma rede é só técnica, especialmente as redes que dão sustentação à economia global, exigentes em normas e leis para regular seu funcionamento local, regional, nacional e global. É por isso que o Estado também é chamado a participar desses nexos circulacionais seletivos, sendo arrastado pela política das empresas na viabilização de um território fluído.

Em razão da agricultura científica e do agronegócio serem atividades realizadas no campo, porém, reguladas pelas cidades (Elias, 2006), assistimos nestas áreas de modernização e difusão do meio técnico-científico e informacional, um intenso processo de urbanização com a expansão das cidades existentes e a criação de muitas outras. Como afirma Elias (2006), a cidade, sobretudo a “cidade do agronegócio”, é o lócus de regulação, gestão e normatização da racionalidade operacional que se impõe sobre o campo tecnificado e cientificizado. Paralelamente à difusão do agronegócio, com a agricultura científica, processou-se a expansão das áreas urbanas também no campo, daí Becker (2004) ressaltar que a fronteira agrícola brasileira, sobretudo na região Centro-Oeste, já nasceu urbana.

A urbanização vetorizada pelo campo modernizado implica em nexos diretos e indiretos entre as compartimentações técnico-científicas requeridas pelas empresas (como a localização estratégica de portos, eixos de circulação rodoviários, ferroviários, hidroviários e aeroviários, silos, centros de pesquisa, etc) e os compartimentos políticos do estado. De acordo com Becker (1990), distinguem-se no Brasil “territórios corporativos”, que se traduzem em municípios altamente organizados e controlados, “verdadeiros miniestados” comandados pelo grande capital comercial-especulativo. Sem dúvida há limites à ação do município em favor do mercado, todavia, há interseções claras entre o planejamento privado e o planejamento público do espaço público. A criação de novas cidades e municípios acaba por produzir uma socialização capitalista (Santos, 1996), ou seja, uma socialização das perdas, já que é o poder público quem deve regular o trabalho coletivo, para tornar as cidades minimamente habitáveis. Esse conflito entre as ações do Estado e as ações do mercado (Silveira, 1999), produz um novo tecido social, fazendo com que as ações hegemônicas sejam orientadas para o exterior e as ações hegemonizadas orientadas para o movimento endógeno.

Nas áreas de expansão do agronegócio no Brasil, especialmente na região Centro-Oeste, há municípios inteiros submetidos a uma “duplicidade de atores normativos” (Estado e empresas), disso resultando uma tensão permanente. Esta dinâmica política obriga a questionar quem tem poder sobre o território, e, em que medida o território é alienado à política das empresas? A complexidade das contradições nos territórios de “modernização periférica” solicita considerações analíticas trans-escalares, desde o lugar até o mundo, passando, nas explicações particulares, pela mediação da formação sócio-espacial.

Referindo-se às articulações entre espaço econômico e espaço político nas cidades, Di Méo (1991: 275), afirma que não basta ser núcleo urbano, “mesmo se a instância econômica, própria a toda formação social, fornece o impulso primeiro das fundações territoriais, ela requer quase simultaneamente, para assegurar sua organização e autorizar sua regulação, a intervenção de um poder político”. A dominação ordenada do território, por meio de leis legitimamente aceitas, e a regulação das relações entre as pessoas não pode ser feita pelo mercado, pois uma comunidade política só existe quando ela não é uma simples comunidade econômica, ou seja, quando possui ordens que regulamentam outras esferas além da disposição diretamente econômica sobre bens materiais e serviços (Weber, 1999). O mercado não é capaz de dar respostas sociais às demandas sociais locais ou cotidianas, ele é surdo para informações cuja linguagem não seja a dos preços (Habermas, 2001). Por isso o Estado é chamado para regular os atritos decorrentes das contradições inerentes à expansão do capital, ou, em outras palavras, o agronegócio compartimenta economicamente o espaço em áreas de produção extremamente modernas, mas em seguida o Estado é invocado a socorrer o mercado compartimentando politicamente o espaço[9].

É nesse sentido que Estado e mercado constituem-se num par dialético das normatizações verticais, impondo aos territórios compartimentações que respondem pelo imperativo da competitividade.

Coexistências territoriais: os compartimentos populares

Não destinamos este texto ao escrutínio da vasta literatura sobre as territorialidades indígena e afro-latina (conhecida no Brasil como quilombola, na Colômbia como cimarrone e na América Central, como garífunas e creoles). Aqui, nosso objetivo consiste apenas em afirmar a importância que tais territorialidades alternativas têm para a organização política dos espaços nacionais, e para a construção de novas formas de convivência nacional sob múltiplas formas de apropriação do território.

Costa (2001) observa que a realidade brasileira é resultado de uma variegada combinação de determinações, nas quais a participação do Estado, em determinadas épocas, se não foi nula, porque foi destacada em período recente (1930-1980), também não chegou a credenciá-lo como principal protagonista da história brasileira. A essa arguta assertiva, hoje podemos dizer que também o mercado hegemônico não assume sozinho o papel de construção dos principais processos de organização do espaço nacional, a despeito dos discursos que pregam a entrega da regulação social ao mercado.

Ocorre que do ponto de vista formal, só os compartimentos estatais impõem-se no processo de representação política no Brasil, contudo do ponto de vista fático, os territórios indígenas e afro-latinos também são protagonistas políticos, ainda que sem os canais político-institucionais de participação e representação disponíveis aos entes formais do Estado. Assim, novos desafios são abertos à construção da nação, à “comunidade desejada” (Anderson, 1989), pois novos protagonistas entram em cena e solicitam participação.

No caso do Brasil os compartimentos indígenas também são definidores de limites jurídicos de existência, pois sua delimitação consta da Constituição, orientada pela implementação da legislação especial protetora da cultura indígena. De acordo com a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) há hoje no Brasil 611 territórios indígenas ocupando aproximadamente 12% do território. Dos 611 territórios, 488 encontram-se em processo de demarcação (fase administrativa do processo de instituição de um território) e outros 123 estão sendo identificados. A existência destes compartimentos levanta questionamentos quanto ao uso político dos tradicionais recortes estatais. A superposição de dois tipos de compartimentos, estatal e indígena, torna a regulação do território uma atividade que exige novos tipos de compromissos e articulações políticas entre os tradicionais e os novos atores da “cena” político-territorial. Becker (2006) lembra que há inúmeros casos em que um território indígena é mais amplo que municípios inteiros, podendo inclusive ultrapassar fronteiras estaduais (provinciais), portanto prefeitos e governadores, além de terem suas circunscrições reguladas por legislação especial, ainda cedem poder de regulação política e administrativa para os escalões políticos responsáveis pelas políticas territoriais indígenas.

Mas a questão não é meramente formal. Estas novas territorialidades estão sinalizando o esgotamento dos projetos de modernidade. As lutas territorializadas indicam que a representação política formal e o planejamento territorial deixaram de ser os instrumentos, por excelência, da ação dos Estados nacionais. Este apagamento do Estado faz do território uma dimensão essencial da práxis, desafiando assim tanto as teorias políticas clássicas quantos os programas dos partidos políticos. Política e território usado se aproximam, bem como se aproximam práticas sociais e práxis, cultura e cultura política, saberes tradicionais e educação política (Ribeiro, 2005).

Em agosto de 2003 foram inaugurados no México “los Caracoles”, que física e simbolicamente representam a territorialidade dos povos indígenas de Chiapas, sob a bandeira do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em prol de suas autonomias[10]. Os “caracoles”, agrupamentos solidários de municípios autônomos, não estão ao abrigo dos marcos legais mexicanos, eles são instituições paralelas, são “municípios autônomos rebelados”. Como afirma Casanova (2003), é uma forma de estruturar o poder procurando caminhos alternativos ao Estado e mercado, tendo consciência das limitações e possibilidades que o projeto tem, mas juntando forças contra a força do mercado e a colonização mercantil da vida. Os “caracoles” são compartimentos políticos que agrupam municípios segundo alguns princípios. Para Casanova (2003), “o método de pensar” obedece (i) mais a combinações que disjunções; (ii) busca generalizações que visam colocar os problemas da unidade na diversidade cultural dos povos agrupados; (iii) permite reconhecer as linhas de resistência, solidariedade e debilidades que fundam o agrupamento; (iv) identifica as escalas do poder e como os poderes do Estado e das empresas mudam de escala segundo os objetivos e os objetos de suas políticas, ou seja, reconhecem os limites do poder local. Como corolário desse princípio, (v) admitem a necessidade de ampliar as articulações de forças solidárias, desde o lugar, passando pelo México até a escala do mundo; (vi) compreende que é necessário superar debilidades do passado, mas mantém ao mesmo tempo a força que no passado construiu alternativas; e por fim, num escrutínio sempre incompleto, distingue utopias, que se expressam e se realizam entre contradições.

Como afirma Harvey (2004), as resistências são universalizantes na medida em que apelam ao conceito de dignidade e ao direito humano universal de tratamento marcado pelo respeito. Por outro lado são locais, alguns também regionais, na medida em que fazem afirmações fundadas no plano local, na inserção e na história cultural que enfatizam sua posição ímpar e particular como grupo social e territorial. Aqui, afirma-se a dialética universal/particular.

Concomitante a esses novos usos indígenas do território, também os compartimentos afro-latinos entraram na cena político-territorial. Além do Brasil, Colômbia, Equador, Suriname, Nicarágua, Honduras e Belize possuem grupo sociais que se identificam como “afro-latinos” e praticam resistências territorializadas (Thorne, 2003). Destes países, a Nicarágua em 1987, a Colômbia em 1991 e o Equador em 1998, fizeram constar em suas Cartas Magnas o direito dos povos identificados como afro-latinos às suas terras ancestrais. Estaríamos diante de uma “multiterritorialidade” como defende Haesbaert (2004).

No Brasil o reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas sobre as terras que historicamente ocupam foi previsto pela Constituição de 1988. A regularização dos territórios quilombolas fez parte das ações do Programa Brasil Quilombola (PPA, 2004-2007) e também das ações do Plano Plurianual (PPA 2008-2011), com o destino de R$ 2 bilhões para regularização fundiária, projetos de infra-estrutura e ações para estimular o fortalecimento das comunidades remanescentes de quilombos. Dentre as comunidades quilombolas oficialmente registradas pelo governo federal, até hoje 390 passaram por processo de titulação (Projeto de Lei do Plano Plurianual 2008-2011). De acordo com o Segundo Cadastro Municipal dos Territórios Quilombolas do Brasil (publicado pelo Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília, 2005), o Brasil possui 2.228 comunidades quilombolas. Dessa forma, os territórios quilombolas vêm ampliar o cânone dos compartimentos políticos que tem legislação especial e derivam de solidariedades orgânicas. Esse “direito à diferença”, instituído como Direito, amplia o universo federalista brasileiro.

Estas formas de uso e compartimentação do território, referidas ao “direito à diferença” são a personalidade das horizontalidades (Santos, 2000), obtida mediante solidariedades sociais, econômicas e culturais, que fazem com que os grupos sobrevivam em conjunto. Em territórios de “modernização periférica” (Souza, 2006), como é o caso do Brasil, as forças centrípetas não são determinantes para a construção dos compartimentos, pois esses espaços também recebem os influxos da globalização hegemônica. Porém, as temporalidades internas, ou, as contra-racionalidades criadas a partir do repertório de estratégias que os grupos desenvolvem ao usar seus espaços, definem formas diversas de convivência com o meio geográfico[11]. A identificação do grupo com seu meio, em permanente tensão com as forças da circulação, alimentou a formulação dos conceitos de ”força de coalescência” (Sorre, 1984) e “iconografia” (Gottmann, 1952). As iconografias e as forças de coalescência definem-se como forças de agrupamento que jogam o papel de cimento entre os membros de um grupo, e destes com seu meio.

As forças de permanência de um grupo, em coalescência com seu meio, continuam resultando de ordens internas, mas hoje, em face às interdependências globais, também são externas. Parte da força política das resistências indígenas e afro-latinas tem origem nas mobilizações internacionais, nas idéias que, apesar de serem realizadas localmente, compartilham de fundamentos mundiais do “direito à diferença”. Becker (2006) lembra que a delimitação das terras indígenas e das unidades de conservação no Brasil acelerou-se a partir da segunda metade dos anos 1980 em razão dos desmatamentos, das queimadas e da violência no campo, que causaram impacto midiático mundial, por isso as pressões pelas demarcações territoriais também foram internacionais. Assim, nunca é demais repetir, as forças de circulação de que falava Gottmann (1952), têm um caráter de dissolução de hábitos, costumes e tradições que desorganizam a vida dos lugares, mas também são fonte de proposição de novas formas de convivência. “A dialética construção/destruição (de bases culturais, de modos de vida, de hábitos e comportamentos, de formas de acesso a meios de subsistência, de recursos naturais) constitui, atualmente, um irrecusável compromisso analítico” (Ribeiro, 2000: 241).

Para Gottmann (1952), o sistema de movimento, que propõe mudanças, divide-se em duas ordens. Uma é a ordem política, representada pelo deslocamento de homens, exércitos e idéias, e outra é a ordem econômica, representada pelo deslocamento de mercadorias, técnicas, capitais e mercados. Esse recorte analítico orienta a distinguir as forças do mercado global, desorganizadoras da vida de relações, e a força das idéias veiculadas pela “altermundialização”, que podem contribuir para uma construção “progressista dos lugares” (Massey, 2000). Nesta aceleração contemporânea parte substancial do edifício das horizontalidades deriva das verticalidades da globalização hegemônica, mas parte também é proveniente da globalização alternativa. Para Santos (1996) uma das razões da diferenciação entre os lugares vem do fato de eles serem diversamente alcançados, qualitativa e quantitativamente, pelos tempos do mundo.

Um único espaço, o espaço banal[12], cindido por duas ordens provenientes de diferentes atores e distintas escalas admite dois recortes analíticos, as verticalidades e as horizontalidades (Santos, 1996). De um lado, há pontos no espaço que, separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da sociedade e da economia. Estas são as verticalidades. Elas referem-se às variáveis exógenas, sem referência direta com o cotidiano daqueles que vivem no lugar. Sendo o veículo de uma cooperação mais ampla, as verticalidades são os vetores da modernização entrópica, trazendo desordem aos lugares onde se instalam, pois a ordem que criam é setorial e seletiva. De outro lado, arranjos espaciais formados por pontos que se agregam sem descontinuidade, a partir de parâmetros internos de organização, tendo como referência o próprio meio apropriado a partir da cooperação entre os atores, criando um “cotidiano da contigüidade”, estas são as horizontalidades. Verticalidades e horizontalidades nos dão a conhecer o território em toda sua complexidade, incorporando todos os agentes em todas as escalas de existência de um território. Esse compromisso analítico pode representar uma ferramenta teórica adequada para o reconhecimento de todos agentes que constroem os espaços das nações.

Considerações finais

Se a realização da história, a partir dos vetores verticais, hierárquicos, é ainda dominante, a realização de outra história a partir das horizontalidades, das solidariedades domésticas é tornada possível no período atual (Santos, 2005).

O recuo do Estado na defesa do domínio público é um objetivo, um fim em vista à “unicidade do motor” (Santos, 1996) da globalização. Essa finalidade desenvolve suas próprias “vantagens” (para poucos) e “inconvenientes” (para muitos) como uma série de contradições. Em sociedades cindidas por imensas desigualdades, a partir de condições “positivas” – como o desenvolvimento tecnológico e o aumento da produtividade do trabalho – são produzidas conseqüências extremamente negativas – como o aumento da pobreza, da exclusão e do desemprego. Esta complexidade do prático-inerte (Santos, 1996) é acionada para designar a necessária hibridez entre os grupos sociais subalternizados e o território usado. Os compartimentos populares são uma contrafinalidade (Sartre, 2002[1960]) à globalização hegemônica, assim como são finalidade para culturas alternativas ao mercado e às imposições do Estado.

Como sugere Porto Gonçalves (2002: 246), nas tensões de territorialidade “devemos atentar, também, para outros conhecimentos produzidos por outros protagonistas com outras matrizes de racionalidade”. Assim, estaríamos apreendendo as geo-grafias das resistências culturais e das lutas políticas que, marcando as trajetórias dos “homens do tempo lento” (Santos, 2005), abrem caminho para a elaboração de novos usos do território em confronto com Estado e mercado.


Notas

[1] O autor agradece ao CNPq pelo financiamento da pesquisa que originou este texto.

[2] São comuns as notícias de conflitos fronteiriços envolvendo territórios nacionais, assim como também são habituais as notícias sobre prisões e deportações de imigrantes ilegais em aeroportos europeus e norte-americanos. Esses fatos representam a empiricização dessa dialética obstáculo/aceleração, pois a aduana é um obstáculo a uma determinada situação política, mas ao mesmo tempo serve à agilização da circulação dos homens de negócios e altos executivos internacionais. É importante notar que os funcionários da diplomacia internacional não têm as aduanas como obstáculos, pois têm livre trânsito, assim como suas malas diplomáticas.

[3] “A ordem global é ‘desterritorializada’, no sentido de que separa o centro da ação e a sede da ação. Se ‘espaço’, movediço e inconstante, é formado de pontos, cuja existência funcional é dependente de fatores externos” (Santos, 1996: 272).

[4] Reconhecemos que apesar de representarem territorialidades verticais, Estado e mercado hegemônico têm formas distintas de realização de seus espaços. A territorialidade estatal diz respeito à totalidade de “seu” território, enquanto que a territorialidade do mercado é formada pela união setorial e vertical de pontos, formando um espaço de fluxos que não cobre a totalidade de um território nacional. Neste texto não exploraremos as distinções teóricas e práticas entre as duas territorialidades.

[5] Optamos pelo termo “afro-latino” em alusão à obra de Ciro Flamarion Santana Cardoso (A Afro-América: a escravidão no novo mundo. São Paulo: Brasiliense, 1982), pois o termo “afro-descendente” poderia sugerir ideologicamente que a construção das identidades seria orientada por caracteres biológicos herdados e não por construção social a partir das lutas de resistência. Também é importante destacar que não estamos resumindo as territorialidades às suas formas indígena e afro-latina, pois estes são dois casos particulares da questão geral da territorialidade alternativa.

[6] Conhecemos a polêmica a respeito das definições e distinções entre os conceitos de espaço e território. Neste texto, não entraremos nesta polêmica, assim partimos do princípio de método de que o espaço geográfico é sinônimo de território usado, tal qual propõem George (1972) e Santos (1994a). Como este texto trata das compartimentações internas às unidades territoriais nacionais, estamos afirmando a sinonímia dos termos, por isso falar em compartimentação do espaço como uma compartimentação de um território nacional ou espaço nacional.

[7] Não desconhecemos as proposições que pregam o fim da soberania, das fronteiras e dos territórios Westphalianos. Dentre muitos autores que se filiam a essa corrente de pensamento podemos citar B. Badie (1995; 1999), P. Lévy (2001) e O. Ianni (2003; 2004). Porém, apesar do relativo enfraquecimento do Estado nacional, é dentro de seu quadro normativo que ainda hoje se operam as relações internacionais (Costa, 2001), e nem as empresas transnacionais, nem os organismos supranacionais dispõem de força normativa para impor, sozinhas, dentro de cada território, suas vontades políticas ou econômicas (Santos, 2001). O Estado continua importantíssimo e com poder de ação, ainda que seja em favor do mercado, pois segundo Wallerstein (2002), o capitalismo nunca foi e não é hostil aos sistemas interestatais.

[8] Como sustenta Gorz (2004), o imperativo da competitividade baseia-se no afrouxamento das coerções sociais, colocando o Estado a serviço da competitividade das empresas e das idéias da supremacia das leis do mercado global. Esse imperativo conduziria ao divórcio territorial entre os interesses do capital transnacional e aqueles do Estado nacional. O espaço político do Estado (que deveria ser referido à totalidade do território nacional) e o espaço econômico (referido aos pontos, aos fragmentos de interesse do capital transnacional) não coincidiriam neste período da globalização.

[9] A expansão do agronegócio na região Centro-Oeste brasileira veio acompanhada de importante processo de urbanização, motor das solicitações de emancipação municipal (Lavinas, 1987; Cataia, 2006). Os municípios, “verdadeiros miniestados” (Becker, 1990) comandados pelo grande capital comercial-especulativo na região em questão, localizam-se justamente nas “manchas” de produção do agronegócio, distribuindo-se ao longo dos principais eixos de circulação (Silva, 2007). Também nestes eixos encontramos hoje quase a totalidade das propostas de emancipação municipal no estado (província) do Mato Grosso.

[10] Em 2003 a foram criados cinco “caracoles” agrupando 27 municípios: a) Caracol de la Realidad: quatro municípios agrupados; b) Caracol de Morella: seis municípios; c) Caracol de la Garrucha: quatro municípios; d) Caracol Roberto Barrios: sete municípios; e) Caracol de Oventic: sete municípios. Um município (Francisco Villa) foi dividido e agrupado em dois Caracoles. Todos os Caracoles são contíguos em Chiapas, sul do México. (Carolina, 2005)

[11] De acordo com Sousa Santos (2006: 306) “A chamada ‘revolução biotecnológica’ e a engenharia genética [conferiram] aos recursos biológicos das comunidades indígenas e rurais um valor estratégico /.../ e um potencial de valorização capitalista quase infinito. Por esta via, os territórios e os conhecimentos indígenas/rurais/tradicionais vão sendo integrados no processo de acumulação capitalista à escala mundial”. Os territórios indígenas e quilombolas, nesta perspectiva, são matéria-prima para o exercício do conhecimento científico e realização do “imperialismo biológico” das grandes empresas. A emergência da “revolução biotecnológica”, que tem como atores as empresas transnacionais, requalifica os espaços de sua ação, por isso precisamos ser cuidadosos com as análises da constituição interna dos compartimentos políticos em áreas que são privilegiadas pelo capital internacional.

[12] “O espaço banal seria o espaço de todos: empresas, instituições, pessoas; o espaço das vivências. Esse espaço banal, essa extensão continuada, em que os atores são considerados na sua contigüidade, são espaços que sustentam e explicam um conjunto de produções localizadas, interdependentes, dentro de uma área cujas características constituem, também um fator de produção. Todos os agentes são, de uma forma ou de outra, implicados, e os respectivos tempos, mais rápidos ou mais vagarosos, são imbricados" (Santos, 2000: 109).


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