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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIV, núm. 331 (27), 1 de agosto de 2010
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

A PARTICIPAÇÃO NA REVISÃO DO PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO DE SÃO PAULO: APROPRIAÇÃO E CONSUMO NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

Márcia Saeko Hirata
Universidade de São Paulo
marciasaekohirata@gmail.com

Paulo Cesar Xavier Pereira
Universidade de São Paulo
pcxperei@usp.br

A participação na revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo: apropriação e consumo na produção do espaço urbano (Resumo)

A cidade de São Paulo, como muitas das grandes cidades do mundo, tem sido o espaço dos interesses da reprodução do capital financeiro mundial. A recente revisão de seu Plano Diretor Estratégico tornou-se palco de conflitos de interesses entre esta forma de produção da cidade e a população local que participou de sua elaboração em 2002. Este conflito mostrou-se um momento propício de reflexão sobre os limites e a potencialidade de atuação de sujeitos políticos, a partir da análise da experiência de participação por seus próprios moradores na definição do planejamento da cidade, cujo processo fez emergir elementos que auxiliam a crítica e fazem avançar possíveis formas de superação das crescentes desigualdades sociais.

Palabras chaves: participação, produção do espaço, plano diretor, experiência, representação.

Participation in the revision of strategic Master Plan of São Paulo: appropriation and consumption  in the production of urban space (Abstract)

The city of São Paulo, as many of the mayor cities in the world, has been the area of interest for the reproduction of global financial capital. The recent revision of its Strategic Master Plan turned into a stage of conflicts of interest between this way of producing the city and the local population that participated in its elaboration in 2002. This conflict showed to be a good moment to reflect on the limits and potential of action of the political subject, by analyzing the experience of local inhabitants’ participation in defining city planning, in which process surged elements that feed a critical stance and bring about possible ways to overcome growing social inequality.

Key words: participation, production of space, master plan, experience, representation.

Este texto analisa a experiência recente do conflito em torno da revisão do Plano Diretor Estratégico - PDE do município de São Paulo, com o objetivo de refletir sobre os limites e potencialidades da participação da população como sujeitos políticos na produção do espaço urbano. O atual PDE foi aprovado em 2002 e sua revisão de 2006 a 2009 é um processo que expõe a dimensão política dos conflitos surgidos em torno da produção do espaço, particularmente nas grandes cidades pressionadas pelo atual contexto de interferência e fortalecimento das relações econômicas à escala global. Pretende-se com esta discussão sobre um processo político-urbano de uma cidade, em um país que é reconhecido no mundo pelos avanços na legislação urbana, contribuir para o conhecimento dos atuais impasses políticos e dos limites das propostas e das análises que discutem a possibilidade de construção de sujeitos políticos.  Deixa-se, assim, para outra oportunidade a discussão dos limites do planejamento urbano, sobretudo no contexto da urbanização latino-americana que é bastante influenciada pela produção globalizada de desigualdades sócio-espaciais, que parecem reduzir ainda mais as possibilidades de uma cidade - mesmo que grande metrópole planejar o seu futuro.

A abertura para esta participação da população no planejamento urbano das cidades latino-americanas apresenta diferentes caminhos: no Brasil, deu-se no contexto de discussão política que definiu a Constituição Federal de 1988. Esta mobilização definiu artigos importantes da política urbana, e precisou de outros 12 anos de pressão popular para conseguir a aprovação do Estatuto da Cidade, lei no. 10.257 de 2001, que os regulamentaria. A partir de sua aprovação os municípios com população acima de 20 mil habitantes estariam obrigados a elaborar seus respectivos planos diretores, com diretriz expressa de envolvimento da população, como um dos meios para se garantir a determinação constitucional de “função social da cidade e da propriedade urbana”[1]. Assim, propõem-se políticas sociais e participativas na gestão urbana fazendo constar como uma das diretrizes do Estatuto, no seu segundo artigo, inciso II a:

“gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”.

Na cidade de São Paulo tal participação na gestão se abre somente a partir de 2000, já em um contexto de necessária reformulação da política urbana, pois a política local do último quartel do século XX foi regida por planos diretores considerados tradicionais. Ou seja, o planejamento urbano até então esteve marcado por um típico plano latino-americano dos anos setenta, estabelecido em pleno regime militar com forte visão autoritária e centralizadora ou por pequenas negociações sem “debate aberto”.  E tal como ocorreu no planejamento de muitas outras cidades da América Latina, os planos permaneceram sob forte influência das ditaduras que assolavam todo o continente[2].

Configura-se assim que este texto trata da revisão do Plano Diretor vigente em 2009, um dos primeiros planos elaborados após o restabelecimento do regime democrático no Brasil[3]. Em 13 de setembro de 2002 é então aprovada a Lei no. 13.430, que institui o Plano Diretor Estratégico. Complementa este instrumento de planejamento urbano a Lei 13.885 de 25 de agosto de 2004, que reuniu os Planos Regionais Estratégicos para as subprefeituras e as regras de Uso e Ocupação do Solo, este mais conhecido como zoneamento[4].

Histórico da elaboração e revisão do Plano Diretor Estratégico: 2002 a 2009

Este histórico contextualiza a participação da população durante a elaboração e a revisão do PDE, que são aqui analisadas separadamente, pois se constituem em momentos distintos em relação à correlação de forças políticas que procuravam interferir no plano.

A participação na elaboração do PDE

Conforme descrição detalhada feita por Flavio Villaça (2005), experiente urbanista e acadêmico, a participação da sociedade foi garantida pelo poder público no âmbito do Executivo e do Legislativo.  Foram inúmeros debates e audiências que permitiram colher subsídios e demandas para a elaboração do planejamento da cidade até 2012. Trata-se de um processo que contou com diferentes formas e graus de participação, debatendo-se tanto o planejamento geral da cidade quanto as especificidades de cada subprefeitura e as diferentes temáticas urbanas[5].

Ocorreram outras formas de participação da sociedade: pela via midiática, em jornais e rádios principalmente; por via judicial, suspendendo a tramitação na Câmara ou invalidando algumas audiências; ou nos debates cotidianos das inúmeras reuniões das diversas entidades que procuravam compreender o conteúdo dos planos, bem como definir as demandas a serem apresentadas ao Poder Público.

Segundo Villaça, os conteúdos que geraram maior debate e que evidenciavam divergências de interesses entre os grupos participantes estavam ligados, sobretudo ao zoneamento (Villaça, 2005, p.65). Um dos mais importantes girou em torno do interesse da Prefeitura em definir um coeficiente de aproveitamento[6] básico de valor 1 (um) para toda a cidade, podendo em algumas áreas ser extrapolado até certo limite mediante pagamento de outorga onerosa, ou seja, os proprietários que quisessem construir além deste coeficiente teriam que pagar pelo direito de construir a mais. Obviamente muitos interesses eram atingidos e houve forte reação de grupos empresariais, principalmente os ligados ao mercado imobiliário e de construção, pois isto reduzia tanto o número de negócios imobiliários como a possibilidade de ganhos ao aumentar os custos de construção. A forte reação deste setor alegava – em nome do bem geral - que o aumento dos custos da construção encareceria o preço para os consumidores ou poderia desincentivar a produção no ramo da construção civil, com conseqüente geração de desemprego.

Outro foco dos debates deu-se em torno da proteção das áreas estritamente residenciais, manifestações levadas por grupos de consumidores de classe média e classe média alta defendendo a qualidade de vida dos bairros em que residem, principalmente em questões sobre o tráfego e outros temas relacionados a questões locais.

No entanto é preciso realçar a maior crítica de Villaça relacionada à discussão que interessa a este artigo; a participação da população no planejamento. Segundo sua análise, dá-se uma desigualdade participativa ligada à desigualdade de renda. O que ele notou foi a baixa participação nas audiências públicas da população dos bairros onde predominam as mais baixas rendas, bem como da pouca relação do conteúdo da proposta do Plano Diretor com as reais demandas desta maioria. Notou também pouco domínio técnico nas propostas e que nos poucos momentos em que houve manifestação relacionada a planejamento urbano, ela deu-se em torno da definição das ZEIS – Zonas de Especial Interesse Social, enquanto nas audiências dos bairros de mais alta renda os participantes tinham grande domínio das propostas para o PDE, bem como contavam com maior participação de políticos e técnicos da prefeitura. Segundo sua crítica, isto se deve à pouca relação do Plano com a demanda das classes populares, demonstrando que mais uma vez um plano diretor é definido pelas demandas das pessoas mais articuladas e que conseguem se fazer representar no planejamento. Para ele, portanto a conclusão é uma recusa radical ao Plano Diretor Estratégico: 

“A maioria deve recusar... participar do debate de um plano pautado pela minoria. O debate deve vir de baixo para cima e não ser um evento ao qual a maioria comparece convidada pela minoria. Os problemas e suas prioridades devem ser definidos pela maioria e esta deve recusar qualquer constrangimento por ‘não entender de planejamento urbano’” (Villaça, 2005, p.93).

A participação na revisão do PDE

A revisão do PDE de 2002 estava prevista para 2006 dentro da própria lei que o instituiu. No entanto, foi objeto de intensos debates e até dezembro de 2009 ainda não obteve aprovação pela Câmara Municipal. O que marca este outro momento é a mudança de gestão municipal, do PT – Partido dos Trabalhadores para a coligação PSDB/DEM (Partido Social Democrata do Brasil/Democratas), partidos de centro-direita brasileiro, de ideologia liberal.  As posições partidárias haviam se invertido e a nova gestão é agora ligada ao partido opositor àquela que elaborou e aprovou o PDE. Pelas manifestações por parte da sociedade, contrárias principalmente à falta de abertura à participação efetiva na elaboração dos delineamentos da Revisão, pode-se concluir que, entre os dois momentos, além da inversão dos partidos houve também dos interesses.

As manifestações contrárias à Revisão foram efusivas desde a apresentação da primeira proposta, apresentada pelo Executivo nas audiências públicas iniciadas em agosto de 2006, pois houve muita dificuldade de acesso ao documento da revisão e pouco prazo para avaliação pela sociedade. Esta reação, ocorrida inclusive por via judicial que obrigou à reformulação da proposta, levou o prefeito a solicitar à Câmara Municipal o adiamento do prazo, alterando-o então para 02 de outubro de 2007.

Avaliado o documento pelas entidades civis ligadas à discussão urbana, agora reunidas em uma Frente Popular pelo Plano Diretor Participativo e com apoio de alguns membros do Conselho Municipal de Política Urbana[7], dois principais argumentos foram apresentados: que a revisão na verdade configurava-se como um novo plano diretor, pois alterava conceitos e ações estratégicas, mas principalmente porque grande parte das ações propostas pelo PDE não foram sequer implementadas, quanto mais avaliadas para revisão; que a população não teve condições de participação efetiva no debate sobre seu conteúdo, pois não só houve dificuldade de acesso prévio às informações, mas nas audiências a forma de apresentação era hermética e com pouco tempo para discussão, proposições e outras  manifestações. A conclusão das entidades era que a revisão procurava favorecer atividades e agentes do mercado imobiliário, bem como expulsar a população pobre das áreas centrais mais consolidadas, uma vez que a proposta dos setores hegemônicos era aumentar o potencial construtivo em toda a cidade e, simultaneamente, eliminar ou flexibilizar as Zonas Especiais de Interesse Social-ZEIS destinadas para habitação popular.

Algo que reforçava esta conclusão e que chamou a atenção foi a retirada de uma sequência de artigos sobre o desenvolvimento social da cidade, as Políticas Setoriais. Eram artigos voltados para o interesse social mais geral da população tais como Educação, Saúde, Assistência Social, entre outros[8]. Muitas entidades viram-se ameaçadas diante do desatrelamento do caráter social das diretrizes urbanísticas da cidade. 

Por fim, o Executivo atentou somente às alterações solicitadas pelo Judiciario e enviou sua proposta para aprovação pelo Legislativo, o que se constituiu em nova fase de embates nos gabinetes dos vereadores, nas novas audiências e nas intervenções do judiciário. Desta vez houve maior preocupação em garantir a participação da população, tendo inclusive distribuído documentos e ampliado o tempo de fala. No entanto tais possibilidades de participação não significaram a garantia de que  quaisquer reivindicações fossem ouvidas, pois o documento final foi entregue pelo relator em novembro de 2009[9], sem qualquer alteração da proposta original do Executivo, o que deixa aos vereadores a inserção de conteúdos substitutivos. Até o presente momento não conseguiu ser aprovado e as entidades de representação popular igualmente não emitiram nenhum parecer conclusivo.

Participação: limites e contradições

As diferenças de posicionamento, nitidamente contrárias nas manifestações surgidas entre a elaboração e a revisão do Plano Diretor Estratégico-PDE, expõem um jogo de forças sociais mais profundas. Há uma correlação de forças ligada a grupos sociais que refletem interferências estruturais que marcam o debate sobre a política urbana. Note-se que essas interferências são tanto históricas, como a influência do patrimonialismo da sociedade brasileira sobre as decisões de Estado, como contemporâneas à globalização por corresponderem à atual influência da financeirização da economia mundial sobre o mercado imobiliário nacional.

Limites da participação na produção da cidade

Apesar dessa preocupação crescente da população com o Plano, sobre o modelo de cidade e de desenvolvimento urbano, há determinantes estruturais que em parte explicam o interesse da Prefeitura e de parte dos vereadores em permitir a liberação do potencial construtivo na cidade durante a revisão. Esses determinantes encontram raízes na tradição patrimonialista da cultura política e urbana brasileira e na atual importância do capital fictício ou da chamada financeirização da economia global que, apesar das diferenças, inclusive de origens – patrimonialismo e financeirização - atuam cada vez mais de forma unificada, com interesses próximos e grande sintonia, interferindo no modelo e na forma de produção da cidade contemporânea.

Por tradição patrimonialista brasileira entenda-se as relações de “patronagem/clientela que tecem boa parte do Estado brasileiro [que] estabelecem formas de defesa e negociação de interesses segmentados totalmente estranhos e alheios a políticas e projetos nacionais.” A apropriação patrimonialista das diferentes instâncias do poder estatal – sobretudo o urbano local – é feita  “tecnocraticamente, por elites – tradicionais, modernizantes, não raras vezes híbridas – o fato é que... contribui ela também para a fragmentação política, econômica e, certamente, territorial da nação” (Vainer, 2009, p.5).

Recupere-se aqui as conseqüências territoriais salientadas por Vainer (2009), pois a rede patrimonialista de interesses privados e eleitoreiros impedem a elaboração de um projeto de desenvolvimento de fato democrático, o que elimina qualquer possibilidade de planejamento distributivo e trans-escalar.  Essas resistências conservadoras são, em parte, o que Villaça configura como “ilusão” ao qualificar o Plano Diretor. Após um século de planos diretores, “como regra geral constatou-se que a atuação dos agentes sociais na gestão do zoneamento geral paulistano, esteve sempre restrita às elites sociais e econômicas”[10].

Há que se concordar com Villaça quando ele aponta a maior participação da população dos bairros mais nobres nas audiências de elaboração do PDE, que a maior demanda deu-se em torno das Zonas Exclusivamente Residenciais – ZERs. “As reuniões em torno do Projeto de Lei dos Planos Regionais, fizeram aflorar inúmeros conflitos de vizinhança, a absoluta maioria deles envolvendo população de alta renda e a qualidade ambiental de seus bairros” (Villaça, 2005, p.65). No entanto, observam-se outros elementos que precisam ser considerados.

Se pensarmos em termos de representatividade dos grupos em relação à proposta da revisão de aumento do potencial construtivo generalizado na cidade, mesmo os interesses dominantes de uma possível elite urbana apresentam-se divididos. Evidentemente nota-se uma divisão entre interesses mesquinhos dessa elite, mesmo quando se apega a um discurso universalista, como a defesa da construção de moradias e do uso habitacional do espaço. De um lado se evidencia aqueles moradores, quase sempre proprietários, que procuravam defender seus bairros exclusivamente residenciais, em oposição àqueles ligados ao poder econômico do setor imobiliário que defendem o aumento ou pelo menos a permanência da alta rentabilidade que estas atividades tradicionalmente proporcionaram. Pode-se considerar que a parte do grupo ligado aos negócios do setor imobiliário não será atingida em seu habitat, mas o que está em jogo é a própria escala do negócio e a disparidade do poder econômico de interferir na política urbana.  Esses interesses elitistas estão, cada vez mais, ligados à financeirização e aos processos globais da economia mundial, como se verá a seguir, o que gera e reforça uma lógica distante da realidade dos que vivem na cidade e buscam desfrutar do urbano como ordem próxima. Assim como pela reestruturação desses processos – globais e distantes, e locais e próximos - há um reordenamento escalar do poder das empresas que exige a fusão entre elas, fazendo praticamente desaparecer as empresas familiares, criando-se um grupo representante de capitais vultosos com interesses na definição das regras de uso do solo e da produção do espaço urbano, em que o plano diretor da cidade é somente uma delas.

Assim, o patrimonialismo mostrou sua força e poder de defesa de seus interesses mercantis. Ficou claro que tem o poder econômico de pagar propaganda em órgãos de divulgação nacional[11] e também, como foi divulgado na mídia em outubro de 2009, tem representação política organizada capaz de fazer doações em campanha eleitoral a um grande número de candidatos a vereadores, pertencentes tanto de partidos de direita quanto de esquerda[12]. Contraditoriamente, restou à parte dos que defendiam interesses elitistas nas audiências (mas que não se associa aos seus negócios na cidade, pois priorizam a qualidade urbana do espaço), reunir-se aos demais grupos de  descontentes com o andamento da revisão na Frente Popular pelo Plano Diretor Participativo. Esta coesão de forças permite ganho de escala para que os interesses da ordem próxima possam pautar canais de comunicação e participação em entrevistas ou debates promovidos pela mídia.

A este determinante patrimonialista que encontra raízes na história do Brasil há que se somar a influência externa e atual da financeirização da economia globalizada, segundo Carlos de Mattos uma das formas de modernização capitalista. É notório que houve nas três últimas décadas do século XX transformações da economia, cuja base de crescimento deixou de ser somente industrial para tornar-se também financeira, mas a análise dessas transformações pelo urbanista precisa esta influencia que gera uma nova conformação da cidade latino-americana:

“Uno de los cambios que ha tenido mayor incidencia en la actual revolución urbana es el generado por el aumento de las inversiones inmobiliarias privadas. Este incremento permite afirmar que las ciudades están viviendo una aguda intensificación de la mercantilización del desarrollo urbano”.(Mattos, 2007, p.83).

Como capital econômica do país mais industrializado do hemisfério sul e uma das mais modernas cidades da América Latina, São Paulo é um importante centro de articulação dos processos globais da economia mundial. Tornou-se o principal alvo dos capitais internacionais, com as possibilidades criadas pela abertura do capital das empresas do setor imobiliário ao capital externo. Os dados da Embraesp – Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio confirmam esta afirmação e precisam a valorização que na cidade. Segundo dados de 2008 em 5 anos muitos bairros atingiram valorização acima de 50%, alguns chegando a 78,4%[13].

O problema que decorre das considerações que Mattos apresenta é a dependência estrutural que se cria, pois o modelo de desenvolvimento com base na atração de capitais de investimentos, ao concentrar-se no setor imobiliário pode gerar distorsões sérias, tão graves como foram as ocasionadas pela crise das hipotecas nos Estados Unidos”.(Mattos, 2007, p.88). Mais grave, no entanto, é a desigualdade da configuração socioterritorial” (Mattos, 2007, p.87), pois tais investimentos irão para atendimento de áreas centrais já consolidadas onde vivem as classes de maior renda. Em São Paulo, é para essas classes que estão previstas as mais importantes obras urbanas. Não só as obras aqui já citadas, mas também a ampliação da rede viária e metroviária, ou até mesmo os melhoramentos nas favelas que se encontram mais próximas a elas. Ficam assim as áreas periféricas onde mora a maioria da população de baixa renda fora do circuito desses investimentos e por isso excluídos dessa forma de desenvolvimento urbano com que se aprofunda a fragmentação territorial da cidade, fazendo com que a classe trabalhadora continue localizando a moradia apenas nas periferias mais desprovidas de equipamentos e meios urbanos.

Novas desigualdades, novas contradições

Os embates em torno da revisão do PDE apontam para um conflito político claro entre grupos sociais demarcados por interesses econômicos e urbanos. Por um lado os interesses elitistas do setor imobiliário, que na elaboração do Plano pressionou para ampliar o teto de limitação do potencial construtivo, enquanto na revisão pouco se manifestou pois a proposta apresentada  garantia o aumento desse potencial para quase a cidade inteira. E, por outro lado os grupos mais comprometidos com a ordem próxima e a realidade local de seus bairros, que na elaboração defenderam o PDE da investida do setor imobiliário e na revisão sofreram por sua vez a perda das conquistas obtidas na elaboração do PDE.

Há neste embate nitidamente uma diferença de escala de preocupação e de interesses, evidência que David Harvey chama de “desenvolvimentos geográficos desiguais”, ou seja, há tanto uma produção de escalas espaciais como de produção de diferenças geográficas, as quais permitem “avaliar de modo mais pleno as intensas contradições hoje existentes”, o que “ajuda a definir campos possíveis de ação política”.(Harvey, 2004, p.115).

Na elaboração e na revisão do PDE a rigor não há a identificação de novos atores sociais, mas pode-se falar em novos rearranjos. De um lado a elite ligada ao capital financeiro internacional e interesses no mercado imobiliário;  em oposição à outra parte da elite de classe alta e média alta junto a camadas sociais mais populares, ligados à ordem próxima.

Apesar do poder econômico ser favorável aos interesses situados no grupo do setor imobiliário, prefeito e vereadores são suscetíveis à pressão popular. Considerando que desde 2006 até dezembro de 2009, por mais de três anos, estes últimos interferiram no processo de aprovação da revisão, quer dizer que exerceram uma pressão significativa de oposição aos interesses do capital internacional. Tal fato ocorreu devido à estratégia adotada, a reunião em torno da Frente Popular pelo Plano Diretor Participativo[14], ou seja, um grupo suficiente forte para interferir no processo de aprovação e que conseguiu ampliar a escala do apoio congregando outros grupos sociais e levando o debate urbano à pauta pública, principalmente pela mídia.

Como então essa Frente conseguiu tal coesão? Ou seja, como conseguiu reunir a classe alta que defendia suas áreas estritamente residenciais e a classe baixa, representada por movimentos populares, que defendia a manutenção das ZEIS? A elaboração de uma revisão que atentou contra  o interesse de grande parte dos moradores foi claramente um dos motivos. Mas, na atual fragmentação social em que se estilhaçam várias tentativas de reunião das lutas sociais, há que se considerar outras variáveis.

Uma delas é o contínuo acompanhamento dos debates urbanos por algumas organizações, não só de São Paulo, como também do país e do mundo. Uma delas é o Movimento Defenda São Paulo, Organização Não Governamental de abrangência municipal que existe há 20 anos e reúne diversas associações de bairro, principalmente de classe média e alta, e que conta com técnicos e especialistas que qualificam o debate. Foram muitos de seus membros os protagonistas de um histórico debate urbano em 1995, a ampliação da Avenida Faria Lima, no vetor sudoeste onde vive parte da elite paulistana. Discutia-se ali a perda da qualidade de vida de um bairro predominantemente residencial que seria cortado por uma avenida e respectiva Operação Urbana[15] que lhe alteraria completamente o perfil para comercial e de serviços modernos. Foram meses de mobilização em torno do Executivo e Legislativo, tal como ocorreu durante a revisão do PDE.

O outro grupo que faz a defesa das ZEIS, bem como de outros intrumentos urbanísticos ligados ao cumprimento da função social da propriedade, é mais heterogêneo. Reúne tanto movimentos populares de moradia quanto técnicos, acadêmicos e ONGs, muitos dos quais participam do Fórum Nacional de Reforma Urbana. Este Fórum existe desde 1987 e participou ativamente dos debates que definiram a Constituição Federal de 1988, um acúmulo possível devido à mobilização social e às reflexões sobre as periferias nos anos 1970 e início dos 1980. Parte destas pessoas participou da elaboração do PDE de 2002 e da mobilização em sua defesa durante a revisão.

Estes dois grupos, portanto, têm um histórico de participação na cidade e uma escala de atuação significativa. O primeiro grupo, o Defenda São Paulo, limita-se à escala da cidade, mas estamos falando de uma das maiores cidades do mundo. O segundo grupo, ligado ao Fórum, tem escala de ação nacional e presença política importante em todo debate urbano brasileiro, tal como ocorreu para a  aprovação do Estatuto da Cidade.

Além da atuação destes grupos outros fatores iluminaram o debate em torno da Revisão: a apresentação do Projeto de Lei da Concessão Urbanística (PL 01-0087/2009), já adiantando sua aplicabilidade para a área “Nova Luz”, e as obras de ampliação da via Marginal Tietê. Ambos são propostas de intervenção urbana que, junto à da revisão do PDE evidenciaram os interesses em jogo sobre toda a cidade.

O instrumento da concessão urbanística estava previsto no próprio PDE e significa que “a Prefeitura delega a execução de obras urbanas a empresas ou consórcios, mediante licitação na modalidade de concorrência” (Harada, 2009). No entanto, quando o PL já adianta a regularização da aplicação deste instrumento à área do projeto “Nova Luz”, onde se encontra a Rua Santa Efigênia, o maior e mais tradicional pólo de comércio de equipamentos e acessórios eletrônicos do país, suscitou a preocupação dos comerciantes e moradores da região. Eles indagavam nas audiências públicas o direito de receberem os benefícios da valorização que o projeto traria e que, além disto, o pior prejuízo seria a perda de décadas de história, pois muitos estão ali há muito tempo, próximos do trabalho e de vários equipamentos urbanos, alguns com negócios familiares que passam de pai para filho. Organizaram manifestações no dia das audiências e espalharam cartazes por toda a região com denúncia de que o prefeito colocava a cidade à venda em leilão. Apesar disso a Concessão tanto para a cidade quanto para o “Nova Luz” foram aprovados e hoje seu projeto urbanístico encontra-se em licitação.

A ampliação da Marginal Tietê, uma das principais vias da cidade, não constava do PDE, mas foi anunciada em junho de 2009 em meio a grande polêmica sobre seu objetivo de diminuição dos congestionamentos da cidade. Houve várias manifestações contrárias, inclusive judiciais, questionando a eficiência da decisão e o impacto ambiental da derrubada de centenas de árvores adultas e do aumento da área impermeabilizada, o que exigiu esclarecimentos do próprio Secretário do Verde e do Meio-Ambiente. Participaram dos debates urbanistas, ecologistas, ciclistas, ativistas de vários movimentos sociais, entre outros.

Estes dois projetos geraram grande polêmica e acabaram fomentando o debate em torno do planejamento de um modelo de desenvolvimento da cidade, evidenciando os lados da disputa de uma definição que só pode ser feita pelo Estado. Com maior ou menor realce, estas pessoas passaram a acompanhar as principais audiências da revisão do PDE na Câmara Municipal, realçando dois temas centrais: a especulação imobiliária e o duplo meio-ambiente e mobilidade urbana. Provavelmente sem que tenham muita clareza, o que se interpreta como reflexão destes grupos, é que os moradores sofrem concretamente com os efeitos dos crescentes problemas cotidianos, passando a refletir mais sobre a cidade, seja diante dos processos de expulsão de pessoas de algumas áreas, seja pelas inundações e congestionamentos, questões que somente o Estado pode enfrentar de modo mais estruturado.

A experiência de participação no planejamento

O olhar sobre esta disputa em torno do planejamento urbano de São Paulo mostrou uma dinâmica diferenciada a partir da experiência da participação na revisão do PDE. Essas dinâmicas aparecem aqui como expressão das diferenças entre as concepções do planejamento e o vivido pelos moradores da cidade, o que aponta mudanças substantivas na concepção tradicional do planejamento elaborado pelo Estado. Faz assim emergir questões fundamentais da participação na produção do espaço urbano no Brasil atual, uma experiência que traz reflexões sobre a potencialidade da constituição de sujeitos políticos e da cidade como um direito.

Participação, Estado e o urbano

Este debate evidencia as dificuldades atuais do planejamento e o papel que hoje o espaço, na política e na cidade, adquire nos conflitos sociais. Trouxe concretamente a expressão social política de grupos sociais que se opõem e se reagrupam como sujeitos que buscam interferir no desenho e na produção da cidade.

Atualmente se reconhece que “o capitalismo não pode sobreviver sem seus “ajustes espaciais” (Harvey, 2005, p.91-97), e a revisão do Plano tornou evidente os conflitos presentes nessa relação tensa entre espaço e a forma como se dá o desenvolvimento dessa economia. Não é  acaso ou acidente dessa tensão, mas por necessidade estratégica de sobrevivência das relações sociais e interesses sob o capitalismo: “criterios de subsidiariedad estatal y el consiguiente repliegue del intervencionismo en la gestión urbana contribuyeron a estimular los negocios inmobiliarios en numerosas ciudades latinoamericanas” (Mattos, 2007, p.88). Tais interesses irão assim se localizar e se polarizar a partir do que Gottdiener chamou de uma “coalizão de crescimento”: “uma profunda confluência de interesses do Estado e do capital organizados em torno das atividades e ideologia do crescimento no plano local”, que “se aglutinam em redes que então se tornam agentes ativos no setor da propriedade” (Gottdiener, 1993, p.220).

Por outro lado, é justamente na representação dos interesses em torno da propriedade que se apresentam as necessidades de alguns atores sociais que trazem os anseios próprios da ordem próxima pois, como se disse, o contexto histórico das lutas urbanas em que se insere este debate reflete a escala e o significado que se centra na relativização da sacralidade da propriedade privada, constante da Constituição Federal de 1988, a “função social da propriedade”. Não é insignificante que inúmeras cidades brasileiras passem a discutir o sentido que pode representar essa “função social”; a população organizada começa a se indagar porque a propriedade privada é por vezes considerada um direito superior ao direito à vida e à liberdade política. Mesmo que muitas audiências em muitos municípios tenham contado com a falsa participação populista do apadrinhamento o papel da propriedade surge como uma questão a ser debatida. Não é pouca coisa, pois os problemas urbanos são o elemento concreto que evidenciam cotidianamente a centralidade do problema do território como um bem que é produzido coletivamente, mas apropriado privadamente. A cidade trata-se de uma riqueza social produzida coletivamente, cuja apropriação deve ter como precedente a sua função social.

Muitos autores já haviam chamado a atenção sobre as conseqüências sociológicas da globalização que tem gerado novas territorialidades, que Sassen (2007) denominou  “formaciones sociales globales”[16]. Nessa discussão ela incorpora a visão de Bourdieu sobre as possibilidades de atuação dos atores sociais e procurará compreender a emergência de novas classes nos limites da estrutura, ao mesmo tempo em que procura os espaços estratégicos de atuação (Sassen, 2007, p.208). Diferente do foco apresentado por ela sobre os trabalhadores internacionais, e ainda não na escala mundial, as disputas territoriais evidentes na revisão do PDE representam os “espaços estratégicos” de pressão sobre o Estado e nesse sentido se relacionam à emergência de novos reagrupamentos sociais na cidade que são conseqüência da globalização, na medida em que há um agrupamento de forças locais, que defendem uma ordem próxima contra a cidade-mercadoria e se opõe aos negócios imobiliários associados à globalização. 

Nos termos de Vainer, esses conflitos são todos projetos territoriais em disputa[17]. Nas cidades os planos diretores são equivalentes e de interesses elitistas, mas é importante notar que os atuais projetos urbanos pensados para São Paulo geraram a reação da Frente Popular em Defesa do Plano Diretor Participativo.  Trata-se de uma mobilização que ecoou entre os proprietários comerciantes e moradores da Luz contra a Concessão Urbanística, bem como nos diversos grupos ecológicos e ativistas da classe média contra a ampliação da avenida Marginal, entre outros exemplos de propostas em que houve resistência e questionamento às intervenções estatais.

“Ali onde a mercantilização do espaço público está sendo contestada, ali onde os citadinos investidos de cidadania politizam o quotidiano e quotidianizam a política, através de um permanente processo de reconstrução e reapropriação dos espaços públicos, estão despontando os primeiros elementos de uma alternativa que, por não estar ainda modelada e consolidada, nem por isso é menos promissora” (Vainer, 2000, p.101).

Experiências da Participação: necessidade e limites

Segundo Lefebvre o urbanismo deve ser uma técnica a serviço da vida cotidiana, a cidade como “um empleo de tiempo y que este tiempo es de los hombres” (Lefebvre, 1978, p.211), em que a participação seria fundamental na resolução de seus problemas, autogestão do urbano por seus usuários como expressão de suas necessidades e desejos, de sua própria “experiencia del habitar”, enfim, a efetiva descentralização do Estado (Lefebvre, 1978, p.213).

A participação no atual planejamento urbano de São Paulo está distante desta definição, e neste sentido Villaça tem razão em falar em “ilusão da participação popular”, em que as audiências abertas para intervenções da população serviriam somente para dar a “aparência de democrática a decisões tomadas sob um jogo totalmente desequilibrado de pressões”(Villaça, 2005, p.50), afinal as relações sociais em relação ao Estado no Brasil ainda são predominantemente patrimonialistas.

No entanto, não há como negar a expressividade da reação da população diante das mudanças propostas posteriormente durante a revisão. O conflito exposto, principalmente quanto ao potencial construtivo e da localização das ZEIS, que têm o intuito de interferir nas dinâmicas sociais em torno da propriedade fundiária, resumida e pejorativamente chamado de “especulação imobiliária” pelos grupos contrários à revisão, expõe os tipos de urbanismo em jogo, expõe a contraposição entre sujeitos políticos a expressar seus respectivos interesses. A contradição apontada anteriormente que gerou um rearranjo social significou a oposição entre aqueles que buscam nas localidades do mundo inteiro as melhores oportunidades de rendimento e de outro os habitantes da localidade São Paulo expressando suas aspirações e formas de apropriação da cidade. No entremeio dessas relações da ordem distante e próxima a mediação do Estado, aqui representado pela Prefeitura e pela Câmara de Vereadores que pende para um lado ou para o outro dependendo das conveniências e forças políticas.

Quando os movimentos populares defendem as ZEIS, principalmente nas áreas mais centrais, expressam a necessidade de disponibilização de terrenos para moradias populares em áreas consolidadas da cidade, a necessidade de não viver sob risco de inundação ou desmoronamento. Quando as chamadas elites comparecem às audiências, expressam o desejo de manter a qualidade de vida de seus bairros, preocupadas com a verticalização e congestionamento crescente da cidade. Quando outros defendem maior atenção ao planejamento da mobilidade urbana, expressam o desejo de morar próximo ao trabalho ou de perder menos tempo no trânsito para poder dedicar seu tempo ao lazer ou aos estudos depois de um dia de trabalho. Enfim, são todas formas de manifestar a “experiência de habitar” de grupos sociais que no PDE expressam-se como sujeitos do desenho da cidade.

Contudo, se houve baixa participação na fase da elaboração do PDE, na inserção destas necessidades e desejos, como se explica tamanha manifestação na revisão? Se lembrarmos que este plano diretor é o primeiro do período democrático, já é um avanço a inserção de instrumentos urbanísticos tais como o zoneamento voltado à habitação popular nas ZEIS ou o IPTU progressivo[18]. Como dito anteriormente, tais avanços na proposta do PDE significam um acúmulo histórico de movimentos sociais organizados em todo o país, entre eles os que compõem o ativo e histórico Fórum Nacional de Reforma Urbana. Mostra-se assim como um movimento progressivo de mudanças na tradição patrimonialista brasileira, hoje defendido inclusive por camadas das classes altas e médias, como os membros do Defenda São Paulo, que por interesses urbanos, não necessariamente elitistas, defendem a exclusividade em suas áreas residenciais.

Isto não quer dizer que tais grupos sociais representam a maioria, principalmente as camadas mais populares. O que é significativo é a ampliação dos interesses e dos grupos sociais representados que se envolveram no debate da revisão e que passaram a participar da discussão sobre a cidade, sobre o urbano. Já não se pode dizer que o planejamento da cidade é exclusividade da elite, pois mais pessoas se mobilizam em torno dos problemas ambientais e de mobilidade urbana. Esta ampliação da participação significa que o planejamento participativo pode ser  algo mais que um conceito abstrato ou ideológico. A trajetória das lutas urbanas, tanto do Fórum quanto do Defenda, traz algo de concreto.

Cabe ainda retomar Lucio Kowarick (2000) e Atílio Borón (1994), o primeiro sobre a importância dos processos cotidianos que geraram uma “fusão de lutas sociais” dos moradores dos bairros e dos trabalhadores das fábricas, e Borón sobre o distanciamento atual entre os que pensam um projeto político de país e as manifestações pragmáticas dos movimentos populares. O que ambos apontam é uma perspectiva de mão-dupla em que não se pode ignorar o peso das estruturas e nem do cotidiano das experiências na construção de sujeito que atuam nos interstícios da sociedade em que concretamente se formam os sujeitos políticos da  transformação social.

Nessa direção insiste o pensamento lefebvriano quando argumenta que no processo “el movimiento dialéctico entre la vivencia y lo concebido nunca cesa. ¿El gran momento? El de la unidad momentánea y/o el de la contradicción descubierta” (Lefebvre, 2006, p.70). E nesse movimento, “las representaciones que se vinculan con valores se consolidan. Se vuelven éticas o estéticas; guían la acción, suscitan conflictos” (Lefebvre, 2006, p.91), ou podem degenerar seu sentido e, consequentemente, paralisar a prática. Trata-se de uma direção em que se pode entender o manifesto da Frente  como uma denúncia de falsa abertura populista à participação nas audiências promovidas pelo Poder Público, e ao mesmo tempo em que atua para efetivá-la como realidade política, solicitando interferência do Poder Judiciário, obtendo espaço de ampliação de sua voz na mídia, e também por outros meios. Por outro lado, apresentar propostas nas audiências e as descobrir ignoradas pelos aparelhos de decisão do governo só vem ratificar o populismo e o peso das antigas relações clientelísticas da tradição política brasileira, esvaziando o significado político da participação.

Trata-se assim de duas representações sobre a participação que disputam o sentido e a linguagem da política urbana contemporânea. A possibilidade de experimentar, de vivenciar a política da participação durante a elaboração do PDE (subentendido dentro de um contexto histórico de mobilização social), contribuiu para interferir no sentido da própria participação, pois como se viu durante a revisão fomentou o debate da política urbana em toda a cidade, em torno do que concretamente muitas pessoas sentem. E desta maneira essas representações heterogêneas sobre a participação passam a disputar, também, o espaço político, não só o de uma cultura urbana, mas da necessidade de uma política de atuação do Estado na cidade. A consciência da necessidade e, principalmente, dos limites dessa participação popular não pode levar a sua recusa, inclusive porque é a partir dela que se pode pensar que esses embates se tratam de uma reelaboração da tradição predatória de construção da cidade, até porque esta sempre foi vista como mercadoria e negócio para a classe dominante. 

Experiências para a cidade como um direito: como seria possível?

Todas estas experiências de mobilizações apontam, assim, para um repensar das formas de produção da cidade, questionam a técnica do planejamento, salientam o papel social do território, pressionam politicamente o Estado e fazem despontar elementos para uma cidade futura com a participação de sujeitos. Como nos diz Vainer “são os movimentos sociais territorializados que elaboram, embora muitas vezes de maneira ainda insuficiente, novos projetos para suas regiões” e que, “em síntese, a construção de um novo projeto territorial é também, e, sobretudo, um projeto político” (Vainer, 2009, p.10).

Vale lembrar mais uma vez Lefebvre e Harvey quando apontam para a necessidade de olhar o processo de produção do espaço porque se esses conflitos sócio-espaciais apresentam limites, contraditoriamente o processo dessas lutas traz o potencial de novos sujeitos políticos que nos leva a repensar as antigas análises de classe.  Diferente dos anos de 1970 e 1980 em que a hegemonia da acumulação do capital industrial, que combinando espoliação e exploração fazia da periferia da cidade um espaço privilegiado para reprodução dos trabalhadores; hoje, o domínio do capital financeiro sobre a produção imobiliária, avança sobre a totalidade do espaço da metrópole de São Paulo, não apenas do município, e ameaça o espaço da moradia urbana. A revisão do Plano, mesmo que de âmbito municipal, surge como indício de um novo momento dos conflitos urbanos e do habitar frente à crescente produção de desigualdades sociais e espaciais nas cidades contemporâneas.

A abertura da participação no PDE em São Paulo, se formalmente mostrou-se uma máscara democrática composta por uma nova “coalização de crescimento” tradicionalmente dominante, mostrou-se também como algo diferente da retórica liberal. Mostrou-se formada com base em elementos espaciais concretos e em um histórico participativo de força representativa,  a Constituinte de 1988, oportunidade de abertura do espaço às  necessidades de grupos sociais contra as investidas da ordem dominante.

Desta maneira, este conflito aflora elementos para a reflexão sobre a constituição de sujeitos políticos. Um deles refere-se à diferença escalar da coesão social na Frente Popular fortalecida a partir de uma cisão da elite. Uma cisão entre aqueles que se relacionam com a ordem próxima (e que defendem o habitar na cidade) e os da ordem distante (e que vêem a cidade-mercadoria apenas como negócio. Se hoje já não faz tanto sentido falar em divisão de classes polarizada entre burguesia e proletariado, para os conflitos sócio-espaciais faria menos ainda porque nesse âmbito diferentes divisões e novas coalizões sociais continuam sendo ensaiadas.

Também ligada a esta tensão das relações entre as diferenças escalares há aquela em torno da propriedade, que se mantém elemento central da valorização imobiliária mesmo quando se renova pela associação ao capital financeiro na produção da cidade. Nesse confronto são reviradas as representações em torno da propriedade imobiliária, como valor de uso ou como valor de troca. Para o capital financeiro a fragmentação espacial (da cidade ou da metrópole) em inúmeras propriedades, que aguardam valorização (do imóvel desocupado ou não), torna-se um entrave para a continuidade dos negócios imobiliários, daí os instrumentos aplicados no “Nova Luz”, em que a Concessão Urbanística e outros meios são utilizados para facilitar a desapropriação para tornar viável os negócios e principalmente os grandes empreendimentos. Por isso mesmo os atuais pequenos proprietários vêem ameaçado o uso tradicional de sua propriedade como reserva de valor ou ainda a  valorização de um espaço marcado por referências históricas familiares e urbanas. Assim, a emergência desses conflitos entre a expectativa da cidade-mercadoria para a ordem distante e do habitar a cidade para a ordem próxima vem  reforçar o debate em torno da “função social da propriedade” e mais: abrir a possibilidade de que esta fusão de forças sociais urbanas possam defender a cidade e reelaborar os valores dominantes do acesso  à qualidade urbana.

Estes elementos aqui discutidos buscam demonstrar que não se pode caracterizar a participação como sendo mais uma área tomada pela acumulação do capital, que só vem reforçar a hegemonia da burguesia, mas que  a participação é sim um campo de conflitos onde a resistência a esse domínio pode e deve estar presente como enfrentamento e alimento para uma nova cultura urbana. A participação coesa de forças sociais urbanas em defesa do habitar a cidade foi mostrada como construção de uma oposição à tradição dominante, que poderá se tornar uma direção social para unidades mesmo que momentâneas, e reelaboração  do sentido dos conflitos urbanos e do planejamento, quando apontou para a potencialidade da construção de sujeitos políticos (a Frente Popular) na produção da cidade como tempo dos homens: a cidade como um direito para quem nela quer habitar e não apenas mercadoria para quem busca negociar.

 

Notas

[1] Segundo Cartilha elaborada pelo relator da lei do PDE, Vereador Bonduki, a função social da propriedade:  “significa que o direito à propriedade não pode estar acima do interesse coletivo, de toda a cidade. O dono tem que usar e cuidar da propridade, senão o imóvel será considerado não utilizado ou subutilizado. Um terreno na cidade se valoriza com os investimentos que são feitos pelo poder público, com obras em infra-estrutura, utilizando dinheiro de todos. Por isso, um terreno vazio tem custo social e não deve ficar sem uso” (Gabinete do Vereador 2003, p.12).

[2] “Os planos diretores fracassaram não só em São Paulo, mas em todo o Brasil e América Latina. Fracassaram não só porque eram falhos, mas porque tomaram os desejos pela realidade. Não obstante, a fé nos planos diretores continuou sendo muito forte durante a década de 80.” (Singer. 1995, 177)

[3] Mais exatamente regia a cidade o PDDI - Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado - Lei nº 7.688/71. Houve outras tentativas enviadas do Executivo ao Legislativo, em 1985, 1991 e 1998 (Gabinete do Vereador, 2003). Em 1988 foi aprovado um Plano Diretor,  que, na prática, generalizava a outorga onerosa antes limitada às operações interligadas, ou seja, toda a cidade tornou-se passível de construção em até 4 vezes a área do terreno mediante pagamento à prefeitura na forma de habitações populares (Cf. Villaça. 1998, p. 5 e 6).

[4] Deve também ser complementado pelo Plano de Circulação e Transporte e pelo Plano de Habitação.  Estes Planos, ainda encontram-se em elaboração.

[5] Essas reuniões tratavam de aspectos gerais; uso residencial e incômodos; sistema viário, transportes e uso do solo; adensamento e uso do solo; operações urbanas; habitação; meio ambiente; avaliação das audiências.

[6] Coeficiente de aproveitamento (CA) é um índice que define a área de construção passível de construção em um lote. Por exemplo, um CA de valor 1 indica que o proprietário pode construir uma vez a área do lote.

[7] Este Conselho (CMPU) é composto por representantes de órgãos de classe, da sociedade civil, de universidades e por técnicos da Prefeitura. Por ele devem passar as principais decisões sobre a política urbana. O apoio aqui citado deixou de existir quando em uma nova eleição, pouco divulgada e de prazo exíguo, não foi possível apresentar os candidatos ligados à Frente Popular.

[8] São os artigos 17 a 53, dentro do capítulo das Políticas Públicas Setoriais.

[9] São Paulo - Câmara Municipal 2009.

[10] Nery Jr., José Marinho. Um século de política para poucos: zoneamento paulistano, 1886-1986, tese de doutorado defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2002, p. 295; cit. por Villaça (2005, p. 48). “Zoneamento” e “plano diretor” são de fato elementos diversos, e Villaça aponta para a confusão comum que os iguala (Villaça. 2005, p.8). Zoneamento aparece aqui como a parte do plano diretor que recebe maior interesse das elites.

[11]  Como lembrou Villaça ( 2005, p. 58 a 61) houve propaganda paga em um jornal de divulgação nacional com 4 páginas inteiras.

[12] Doações de campanha foram feitas pela AIB – Associação Imobiliária Brasileira para as eleições de 2008 a 29 dos vereadores eleitos, além dos que não o foram, em um total de 10,6 milhões de reais.

[13] (Embraesp/Secovi. 2008). Esta é a valorização referente à Móoca, bairro da região central com áreas abandonadas extensas onde se localizavam as antigas indústrias do começo do século XX. Justamente nesta área foram definidas inúmeras ZEIS, que estão ameaçadas não só pela revisão do PDE, mas por inúmeras pequenas leis apresentadas por vereadores. http://economia.uol.com.br/infografico/2008/04/18/ult4539u22.jhtm.

[14] É claro que outras variáveis influenciaram no processo, como as disputas entre os partidos que apóiam o governo, o que adiou a votação da revisão em dezembro de 2009, mas que . não retira o mérito do papel que a Frente exerceu.

[15] É um conjunto de intervenções em áreas definidas em lei que objetiva promover transformações urbanísticas e estruturais.

[16] Ela se refere à formações sociais ainda ligadas à classe dos trabalhadores, que tanto pode ser composta pelos executivos das grandes corporações internacionais ou de funcionários “públicos” de entidades multinacionais (como  do FMI, ONU ou OIT) quanto pelos imigrantes que deslocam-se entre países (Sassen. 2007, p. 205).

[17] No Brasil, tradicionalmente o pensamento hegemônico no planejamento estatal apresenta o seu projeto: como a construção de barragens ou a ocupação de reservas indígenas por interesses de mineração ou agronegócio, todos contrapostos por movimentos sociais organizados, como o Movimento de Defesa da Transamazônica e do Xingu ou os movimentos de populações atingidas por barragens. Vainer. 2009, p.10

[18] É o Imposto Predial e Territorial Urbano que aumenta ao longo dos anos caso não se cumpra sua função social. Pretende-se assim desestimular a especulação que deixa imóveis vazios por anos à espera de valorização.  No entanto, necessita que seja regulamentado por lei específica, a qual está em tramitação no Legislativo.

 

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Ficha bibliográfica:

HIRATA, Márcia Saelco y Paulo Cesar Xavier PEREIRA. A participação na revisão do plano diretor estratégico de São Paulo: apropriação e consumo na produção do espaço urbano. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2010, vol. XIV, nº 331 (27). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-331/sn-331-27.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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