Menú principal

Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIV, núm. 331 (29), 1 de agosto de 2010
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

A CONTRIBUIÇÃO DA CARTOGRAFIA SUBVERSIVA PARA O PLANEJAMENTO DO ESPAÇO SOCIAL. CAMINHOS PARA UMA REFLEXÃO A RESPEITO DE “SUBVERSÕES” CONCRETAS

Rainer Randolph
Universidade Federal de Rio de Janeiro
rainer.randolph@gmail.com

Pedro Henrique O. Gomes
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
geopeaga@gmail.com

A contribuição da cartografia subversiva para o planejamento do espaço social. Caminhos para uma reflexão a respeito de “subversões” concretas (Resumo)

Dando prosseguimento a uma reflexão referente ao planejamento subversivo, debate-se aqui como uma vertente da cartografia crítica pode servir como instrumento e sustentação para a consolidação dessa proposta anteriormente apresentada. Há a necessidade de retomar a trajetória do planejamento desde suas formas tradicionais, da modalidade comunicativa até a abordagem subversiva. Uma discussão acerca de mudanças sociais em forma de revolução, insurreição e subversão procura esclarecer porque se justifica falar aqui de um planejamento subversivo. Finalmente, será apontado como formas de mobilizações sociais podem produzir alternativas à globalização neoliberal e ao capitalismo global. Destaca-se, neste contexto, a necessidade de avançar de uma “razão indulgente” para uma “razão cosmopolita” que não está limitada à razão comunicativa, nem a qualquer forma de racionalidade científica; ela deve incorporar dimensões psicológicas, estéticas, artísticas etc. E, assim, explorar a “força subversiva” do dia-a-dia das pessoas.

Palavras chaves: planejamento, racionalidade cosmopolita, revolução, insurreição, subversão.

Contributions of subversive cartography to social space planning. Paths towards reflections about concrete "subversions (Abstract)

Giving continuation to a reflection about a subversive planning model, we shall debate here one specific form of the critical cartography that may serve as instrument and sustentation for the consolidation of our proposal previously presented. It will be necessary to go back to the trajectory of planning models since its traditional forms, the communicative modality until the subversive approach. A discussion concerning social changes in form of revolution, insurrection and subversion looks to clarify the reasons because we speak here of subversive planning. Finally, it will be pointed out how forms of social mobilizations can produce alternatives to the neoliberal globalization and the global capitalism. It is highlighted, in this context, the necessity to advance from a “indulgent reason” to a “cosmopolitan reason” which is not limited to a communicative reason, nor to any form of scientific rationality; it must incorporate psychological, aesthetic, artistic etc. dimensions and, thus, explore the “subversive force” of the day-by-day of the people.

Key words: planning, cosmopolitan rationality, revolution, insurrection, subversion.

A discussão no presente trabalho procura valer-se de uma nova conjuntura ao nível mundial que aponta para a oportunidade de repensar a relação entre Estado e sociedade. Neste contexto pretende levar adiante um esforço de reflexão (Randolph 2007a, 2008) em particular a respeito de uma forma de planejamento (espacial) que chamamos de “subversiva” e elaboramos a partir da identificação de possibilidades de produzir alternativas à globalização neoliberal e ao capitalismo global na base da luta de movimentos sociais e organizações não governamentais contra exclusão e discriminação; a partir de baixo, por assim dizer (Santos 2003, Randolph 2007b). Atualmente, nosso objetivo é incorporar às reflexões e analises anteriores uma dimensão que se impõe pelo próprio caráter da proposta: a da representação do espaço e dos instrumentos disponíveis para uma modelagem espacial abstrata.

Para trabalhar melhor o caráter tanto dessa nova forma de planejamento quanto  da apropriação de tecnologias de mapeamento, será necessário retomar, brevemente, a própria trajetória do planejamento de uma forma que permita compreender mais facilmente porque estamos falando da sua propriedade subversiva – e não de resistência, de revolta ou mesmo de insurreição. Para isto, nos primeiros itens do nosso ensaio, será  desenvolvida, breve e superficialmente, uma idéia acerca da articulação entre Estado, planejamento e sociedade que facilitará, futuramente, identificar as origens de um possível planejamento subversivo e de seu instrumento cartográfico.

Para tal, os modos (ou modelos) de planejamento serão, a seguir, analizados dentro de uma abordagem social que compreende as sociedades contemporâneas profundamente cindidas em uma parte que segue uma racionalidade comunicativa; e outra que está preponderantemente determinada por um racionalidade instrumental.  Essas duas racionalidades encontram-se numa relação antagônica e, durante certo período do desenvolvimento (modo industrial) do capitalismo, parecia impossível imaginar qualquer forma de articulação entre elas.

No entanto, as transformações sócio-políticas mais recentes – Castells fala do advento de um modo de desenvolvimento informacional (Castells 1996) e da sociedade em rede - parecem resultar numa certa “aproximação” entre essas esferas ou permitir determinadas formas híbridas de articulação cuja análise pode nos levar à identificação do procurado potencial subversivo tanto do planejamento como da apropriação do instrumental do mapeamento.

Esse potencial ainda não se revela, como veremos posteriormente, no âmbito de uma nova concepção do planejamento que resulta de uma "guinada argumentativa" ou "comunicativa”. Pois, como já apresentado em outro lugar (vide Randolph 2007a, 2008), a proposta que surgiu dessa “guinada” - o planejamento comunicativo ou colaborativo - supera o caráter formal e abstrato das formas anteriores de planejamento apenas em casos excepcionais. E mesmo quando a prática do planejamento pretende se aproximar à “práxis” (vivência) daqueles que são seu objeto-sujeito ou por ele afetados, há o perigo que, com o deslocamento da intervenção para o nível simbólico, a “participação” ser concebida como um mero exercício lingüístico. Conseqüentemente, a produção de discursos e de representações espaciais por parte daqueles que começam a “participar” corre o risco de utilizar as mesmas técnicas como o fazem os próprios planejadores.

Assim, o “mapeamento social” e a apropriação de técnicas de geo-processamento para gerar representações de espaços “próprios” das comunidades envolvidas correm o risco de produzir discursos que apenas “competem” num tipo de luta simbólica com aquelas representações elaboradas pelos planejadores e seus auxiliares; mas não significam nenhuma ruptura na produção do conhecimento. É essa ruptura que se está procurando no presente ensaio.

E, para explicitar melhor a qualidade dessa ruptura que significa supostamente a proposta de um planejamento subversivo torna-se necessário discutir a diferença entre revolução, insurreição e subversão a partir de uma determinada percepção da dinâmica social. Essa apresentação e a incorporação de uma reflexão sobre as diferentes formas de produção de representações do espaço e de espaços de representação permitirão esclarecer a posição assumida nesse ensaio a favor de um planejamento com fins subversivos.

E a partir desse posicionamento procura-se, na última parte do trabalho, ilustrar em que medida esse planejamento pode ser uma utopia possível. Para isto serão investigadas  possíveis contribuições de uma abordagem cartográfica que se autodenomina subversiva. Não basta, como já mencionado há pouco, confrontar mapas elaborados pelos espe(a)cialistas em representação espacial com aqueles que procuram representar os espaços vividos por uma comunidade ou grupo de pessoas. Pode ser útil, é claro para identificar diferentes pontos de vista e perspectivas a respeito do próprio espaço social do objeto/sujeito de uma possível transformação planejada. Mas, na medida em que a técnica não é neutra, a adoção do mesmo instrumento – criado para atender aos interesses dos planejadores – pode mais escamotear do que evidenciar as diferenças – ou mesmo conflitos e contradições - que podem estar presentes no processo. Por isto será necessario compreender a elaboração de mapas a partir dos espaços de representação dos envolvidos no planejamento que tem seu fundamento numa determinada lógica “underground” e subversiva que – apesar de muitas vezes silenciada pelo discurso competente dos mapas oficiais - sempre questionou e até se opus às formas oficiais da representação do espaço.

Vamos dar início a essa argumentação com uma rápida retrospectiva ao planejamento na segunda metade do século passado como se apresentou principalmente  nos países industrializados. Encontram-se traços semelhantes no Brasil, mas o debate neste país não segue exatamente a mesma trajetória.

O planejamento como instrumento de “colonização”

Nas últimas décadas do último século o debate sobre o planejamento foi inserido em discussões mais abrangentes a respeito de suas características principais e do lugar que o planejamento ocupa na relação entre Estado e sociedade (como podemos falar simplificadamente por ora). O planejamento, em determinado instante e contexto, parecia um instrumento do Estado, baseado numa lógica científico-formal de aumentar a “racionalidade” das decisões dos governos para assegurar a eficácia e eficiencia de sua atuação; ou como dizia Habermas na década de 1960: um tipo de “racionalização da racionalização” de sua atuação.

A partir do aprofundamento da investigação dessa “racionalidade” - da ação de uma racionalidade única – os principais autores que se dedicaram à revisão de diferentes modelos de planejamentos nos países democráticos industrializados começaram a adotar uma concepção – apresentada detalhadamente por Habermas no início da década de 1980 em sua Teoria da Ação Comunicativa (Habermas 1981) - de que havia uma profunda cisão entre duas formas de racionalidade no seio dessas sociedades: uma chamada de comunicativa e voltada para o entendimento e a (re)produção de formas de convivência entre membros de uma sociedade orientada pela tradição,  socialização e formação da personalidade. E uma outra racionalidade instrumental e abstrata onde a troca de informações preponderantemente quantitativas não merece ser chamada de comunicação e onde a ação se orienta exclusivamente para o alcance de metas e objetivos pré-estabelecidos através de cálculos entre meios engajados e resultados esperados. Tendencialmente, essas raionalidades dariam origem a duas esferas na sociedade cada uma subjugada a uma dessas lógicas: uma esfera onde tradição, socialização e formação de personalidade acontece sob forte influência de processos comunicativos baseados em compreensão e reconhecimento; mas, que não é alheia, totalmente, a uma certa instrumentalização que está originada numa segunda esfera onde dominam processos de racionalidade instrumental (mercado, economia, administração, Estado etc.); esse lado foi chamado por Habermas de “sistema” (Habermas 1981).

O planejamento como racionalização da racionalização expressou desde o princípio os imperativos de uma lógica instrumental-abstrata que retrata exatamente esse mesmo caráter (abstrato) das esferas da sociedade responsáveis pela sua formulação. Faz parte da proposta do planejamento, ou seja, é mesmo um de seus principais objetivos, impor essa racionalidade seja da lógica instrumental, seja a da mercadoria ou da burocracia nas esferas que ainda mantêm outras formas de “integração” social. Referindo-se a Marx, Habermas chama essa instrumentalização de lógicas comunicativas de “colonização”; é um processo interno de permanente ampliação de relações abstratas em detrimentos de formas comunicativos e concretas de convivência entre membros de uma sociedade. Nesta sua ação “colonizadora” o planejamento revela seu caráter profundamente ambíguo: é o próprio discurso de eficácia e eficiência que fornece as bases legitimadoras para a função ideológica do planejamento de propagar a lógica instrumental em esferas da vida fora dos sistemas econômicas e burocracias administrativas – assim, pode ser compreendido como um dos principais instrumentos de colonização das sociedades capitalistas tardias.

A uso da cartografia – a produção de mapas – acompanha, desde o princípio, os processos de planejamento espacial como um importante instrumento de representar o espaço considerado objeto de uma futura intervenção.

Numa obra clássica da cartografia, Arthur Robinson atribui à introdução de uma abordagem mais rígida e científica um caráter “revolucionário” logo após a Segunda Guerra mundial (Crampton 2001). Interesses tradicionais com a estética de mapas são cada vez mais tornados secundários com a valorização da capacidade funcional de suas propriedades. Começa a ser a função que determina o desenho do mapa. Os mapas “qualificam”-se, assim, como mais um elemento de promover uma representação pretensamente neutra de determinados fenômenos espaciais sem nenhuma problematização; a cartografia é a-teórica e muitas vezes suspeita de uma racionalidade instrumentalista.

Tornam-se, assim, os mapas instrumentos perfeitos para os sistemas promoverem sua concepção dominante sobre o espaço em determinada sociedade.

Não obstante, essas determinações do planejamento em geral pela lógica da mercadoria e burocracia e do planejamento espacial pela representação dominante do espaço nunca conseguem, nem irão poder conseguir, a submissão total da esfera da comunicação (mundo da vida, cotidiano) à esfera dos sistemas. Na verdade, os sistemas dependem das outras esferas porque têm uma relação “parasitária” com as formas de integração social: não conseguem produzir exatamente aquilo que necessitam para a sobrevivência e reprodução da sociedade enquanto capitalista na sua totalidade. Por isto trabalhamos com a hipótese que os esforços de “colonização” sempre encontram(arão) forças sociais que a eles se opõem e resistem a um avanço da instrumentalização, mercantilização e burocratização da sociedade. Se as esferas de comunicação sucumbem aos sistemas, o capitalismo não terá mais como se reproduzir.

Adotando essa perspectiva - tanto conceitual, como também na sua observação de experiências do próprio planejamento (espacial) -  há uma outra trajetória paralela de reflexões e investigações que procuraram identificar algum potencial transformador no planejamento que se possa contrapor aos processos de dominação e colonização pelo Estado (capitalista).

Já discutimos em outros momentos (desde Randolph 1999) propostas de planejamento que buscam incorporar algum potencial “emancipador” a partir da contemplação de forças sociais (políticas) não estatais que se fazem presentes nesses processos. Retomamos esse debate  no próximo item.

A inversão de uma perspectiva (1): a guinada comunicativa

A conceituação de outros modos de planejamento que possam contribuir para uma transformação profunda da sociedade pressupõe que haja mesmo concreta ou empiricamente um potencial de contestação nas sociedades atuais; manifestações desse potencial podem ser identificadas, como falamos antes, desde sempre nos processos de colonização e no planejamento – elas limitam, de diferentes maneiras, o avanço dessas formas de transformação social e, assim,  a instalação da racionalização instrumental em todas as esferas da vida.

Muitas das proposições a respeito de uma “participação” no processo de planejamento por parte das populações envolvidas pode-se entender neste sentido. Pois, mais ou menos explicitamente, esta intenção já aparece na discussão sobre essa forma de planejamento desde a década de 1970. Mais tarde, nos anos 1980 e 1990, o potencial de o planejamento ser um mediador entre Estado e sociedade vai ser trabalhado com maior profundidade pelos autores que formulam um modelo “comunicativo” ou “colaborativo” do planejamento (Forester, Healey, Innes).

Nota-se, como guinada “argumentativa” e “comunicativa”, nestes autores uma certa inversão de perspectiva em relação ao planejamento anterior que teve como fundamento conceitual o pensamento de Habermas. Essa guinada está inscrita numa tendência do planejamento de separação entre uma visão “processualista” e uma “intervencionista” (voltada para resultados)  como característica principal do debate atual.

No entanto, como já argumentamos anteriormente, o caráter formal e abstrato do planejamento não foi superado, em muitos casos:

“Em nome do discurso, da argumentação, da comunicação e da busca por consensos, a modalidade do planejamento participativo supera apenas em casos excepcionais a lógica instrumental e, ao se aproximar à ´práxis” (vivência) daqueles que são seu objeto-sujeito ou por ele afetados, se constitui como verdadeiro exercício de uma racionalidade diferente a da instrumental; poderia ser compreendida como racionalidade comunicativa no sentido de Habermas ...” (Randolph 2007a).

Encontramos no desenvolvimento da cartografia também algo semelhante que se pode chamar de “ruptura epistémica” (Crampton 2001). Essa ruptura dá-se “between a model of cartography as a communication system, and one in which it is seen in a field of power relations, between maps as presentation of stable, known information, and exploratory mapping environments in which knowledge is constructed”. Quando o autor fala de “sistema comunicativo” refere-se claramente ao uso instrumental de mapas.

A visão da cartografia dentro de um campo de relações de poder como ambiente de mapeamento exploratório no qual conhecimento é produzido poderia ser aproximada a uma perspectiva do planejamento onde este é um processo dialógico para produzir conjuntamente informações e posicionamentos compartilhados pelos envolvidos. Assim será possível, como diz Crampton, apoiar a tentativa da cartografia a teorizar relações de representação e poder desestabilizar certas práticas de mapeamento. Ao fazer isto, o objetivo é re-estabelecer um diálogo entre cartografia e geografia humana crítica com primeiro passo de um relacionamento renovado.

Numa breve passagem do texto de Crampton (2001), onde faz referência a outros autores, encontramos uma resenha ilustrativa da disciplina da cartografia onde apresenta os maiores princípios do modelo comunicativo de mapas:

“First, there is a clear separation between the cartographer and the user.

Second, the map is an intermediary between the cartographer and the user. Third, the map communicates information to the user from the cartographer. And fourth, it is necessary to know the cognitive and psycho-physical parameters of the map user´s abilities to comprehend, learn and remember information communicated by the map. This last point was repeatedly emphasized by Robinson and other cartographers from the 1950s on and represents a major contribution to the discipline”.

Em analogia a uma constatação de George Orwell que aponta que a linguagem política não apenas transmite meramente idéias humanas, mas é usada por interesses particulares, os cartógrafos começaram a se questionar, durante as décadas de 1980 e 1990, se não há uma política análoga de representação de mapas e de mapeamentos. Se teve naquele momento alguma “teoria” na cartografia, essa poderia ser encontrada no modelo de comunicação de mapas ou na abordagem estrutural do mapa como sistema semiótico.

A “guinada comunicativa” parece, portanto, não suficientemente radical para explorar as potencialidades tanto das capacidades de contribuir para transformações mais profundas do planejamento espacial, como do potencial de outras formas de produção de mapas contrários às representações dominantes do espaço que uma relativamente nova realidade social parece oferecer.

A inversão de uma perspectiva (2): entre revolução e insurreição

The slogan ´Revolution!´ has mutated from tocsin to toxin, a malign pseudo-Gnostic fate-trap, a nightmare where no matter how we
struggle we never escape that evil Aeon, that incubus the State, one State after another, every ´heaven´ ruled by yet one more evil angel

Hakim Bey, The temporary autonomous zone. <http://hermetic.com/bey/taz3.html#labelThePsychotopology>

Se a guinada comunicativa não foi radical o suficiente, será que se poderia pensar em uma “guinada revolucionária” do planejamento? Ou compreender o planejamento como forma de insurreição?

Em outras palavras, será que o planejamento espacial poderia ser visto como uma ação (sócio-política) com a capacidade de levar a uma transformação mais profunda (revolução) nas relações sociais e políticas? Ou, ao menos, que poderia contribuir para movimentos de rebelião ou revolta? Ou à insurgência e resistência? Ou, como nos acreditamos, poderia ser apropriado para apoiar um processo lento e durador (“sustentado”, sic!!) de subversão das sociedades atuais?

No atual item do nosso ensaio vamos refletir sobre uma discussão a respeito de revolução e insurreição e a possibilidade de se pensar nessa “virada revolucionária ou insurgente” do planejamento. Recorremos para isto a um ensaio de Bey (s.a. - 1985). Hakim Bey é o pseudônimo de US-americano Peter Lamborn Wilson; seu texto que se segue é uma tradução e apropriação livre de trechos dessa publicação na internet e parte de preocupações semelhantes às nossas, mas discute a relação enter revolução e insurreição em contextos diferentes.

O autor revela logo sua descrença em relação à possibilidade de revoluções realmente contribuírem para transformações duradouras (“sustentáveis”) nas sociedades contemporâneas. Pois, se pergunta como é possível que “o mundo virado de baixo para cima” sempre consegue se “revirar” depois? Porque a reação sempre segue a revolução como diferentes estações no inferno?

Ou então devemos apostar na “insurreição” (up-rise)? Termo que se usa, como ele diz, para caracterizar revoluções fracassadas; movimentos que não alcançaram um resultado esperado, uma trajetória que tinha sido aprovada por consenso. Se História é tempo, como se geralmente imagina, o levantar (uprising) é um momento que salta para fora do tempo, que viola o “lei” da história. Se o Estado é História – como ele próprio reivindica –, a insurreição é o momento proibido. A Historia diz que a Revolução deve alcançar permanência ou ao menos duração; diferentemente, o levante, a insurreição são temporários. Neste sentido, um levante é como uma experiência de pico (peak experience): oposto à consciência e experiência “ordinárias”. Como festivais, os levantes não podem acontecer a cada dia – senão não seriam “não-ordinários”.

Mas estes momentos de muita intensidade dão forma e sentido à totalidade da vida. O mago volta – você não pode ficar no topo do telhado para sempre –, mas as coisas mudaram, deslocamentos e integrações ocorreram – uma diferença foi realizada.

Pode se encarar essa expressão, conforme nosso autor, como a de uma desesperança. Perguntamo-nos:  o que aconteceu com o sonho anarquista do estado sem Estado, da comuna, da zona autonoma com duração, uma cidade livre e cultura livre? Precisamos abandonar essas esperanças para voltar a algum ato existencialista gratuito? O ponto é não mudar a consciência, mas o mundo.

Aceitando essas críticas, Bey (s.a.) argumenta que, por um lado, nenhuma revolução jamais tem realizado esse sonho. A visão de vida fica plena apenas no momento do levante, da insurreição; mas assim que “a revolução” triunfa e o Estado volta o sonho e o ideal já foram traídos.

Por outro lado, diz o autor, mesmo substituindo uma abordagem revolucionária por um conceito de insurreição que aflora espontaneamente numa cultura anarquista, nossa situação histórica não é propícia para uma empreitada abrangente. Nada além de um futil martírio pode ser atualmente o resultado de uma colisão confrontal com o Estado terminal, o Estado informacional das mega-corporações, o império do espetáculo e da simulação. Suas armas estão todas voltadas contra nos enquanto nosso armamento não conta com nenhum apoio.

Mas, com isto Bey não descarta a possibilidade da insurreição. Propõe, para que ela não leve à violência sem sentido e martírio, a organização de zonas com autonomias temporárias (TAZ – temporary autonomous zone, em inglês). Nessas zonas a insurreição não se engaja diretamente com (ou contra) o Estado; funciona como uma operação de guerrilha que liberta uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e então se dissolve para formar-se de novo em qualquer outro lugar ou outro tempo antes que o Estado tenta esmagá-la. Como o Estado é interessado em primeiro lugar na simulação e não na substância, essa zona pode “ocupar” clandestinamente essas áreas e perseguir suas finalidades durante um certo tempo em relativa paz.

Ou, em outras palavras, como o Estado toma suas abstrações como realidade, essas zonas podem surgir e existir precisamente dentro de uma margem de error. Sua força manifesta-se na sua invisibilidade. O Estado não pode reconhecé-las porque a História não tem uma definição para ela. Assim que a zona é nomeada ela precisa desaparecer; e ela vai desaparecer.

Essas zonas são, assim, táticas perfeitas para uma era na qual o Estado é omnipresente e todo poderoso; mas mesmo assim, ao mesmo tempo, ele é um crivo com quebras e furos. As TAZ podem ser compreendidas, assim, como um microcosmo do sonho anarquista de uma cultura livre.

Conclue o autor, que

“realism demands not only that we give up waiting for ´the Revolution´ but also that we give up wanting it. ´Uprising´ yes--as often as possible and even at the risk of violence. The spasming of the Simulated State will be ´spectacular´ but in most cases the best and most radical tactic will be to refuse to engage in spectacular violence, to withdraw from the area of simulation, to disappear”.

The TAZ is an encampment of guerilla ontologists: strike and run away. Keep moving the entire tribe, even if it's only data in the Web. ” (Bey s.a.; destaque nosso).

Fica claro que, quando fala de “máquina de guerra nomade” que conquista sem ser notada e que se desloca antes que o mapa possa ser ajustado, essa tática de uma guerrilha insurgente deve se opor profundamente a qualquer tentativa da cartografia tradicional de representar sua ação espacialmente o que pode não apenas denunciar sua existência, mas também sua localização.

Em síntese, para nosso propósito de identificar o potencial de novas formas de planejamento (que, de alguma forma, devem envolver alguma relação entre sociedade, Estado e espaço) uma vertente revolucionária não parece possível – mesmo quando não concordamos com a opinião do autor que não se deva mais nem querer a revolução.

O mesmo vale para o conceito de insurreição como Bey o apresenta. Permitiria, certamente, uma radicalização daquela guinada comunicativa da qual falamos antes. Mas é difícil de imaginar que a geração daquelas zonas de autonomia possa ter uma ligação com um esforço de planejamento. Essa discussão mostra como formas de transformação profunda da sociedade (eventualmente dirigidas contra o Estado ou os sistemas econômicos) podem ter seu próprio potencial de transformação social.

Não obstante, a visão de Bey não apenas não compartilha nossa preocupação de procurar uma nova perspectiva para o planejamento (espacial); mas, ao contrário, questiona se realmente esse nosso esforço faz sentido numa situação caracterizada por uma certa renascença do Estado (que salva o sistema) e pelo poder inquestionado das mega-corporações. É sobre isto que vamos ter que refletir no próximo item.

De qualquer modo, o nosso questionamento não diminue a importância das idéias apresentadas por Bey na luta para uma outra sociedade.

A inversão de uma perspectiva (3): para uma subversão “sustentada”

"You're Fucking Around With Us? - Not For Long!"
Vaneigem, R., 1967

Uma outra proposta de “reversão de uma perspectiva” encontramos em autores de uma corrente de pensamento da década de 50 e 60 do século passado. São os assim chamados situacionistas que formaram um movimento europeu de crítica social e política que reuniu cientistas, artistas, arquitetos e outros profissionais apoiado por teorias críticas à sociedade de consumo e à cultura mercantilizada.

Seus interlocutores foram utopistas como Charles Fourier e Saint-Simon, Feuerbach e o jovem Marx, Lukács, pensadores da Escola de Frankfurt e Henri Lefebvre que participou durante um certo período do movimento. Próximo a certas idéias anarquistas que encontramos no pensamento de Bey, os situacionistas recusam radicalmente o autoritarismo do Estado e da burocracia. Vêem a alteração da ordem social a partir de de uma reinvenção da vida cotidiana.

È assim que podemos retomar a partir da obra de um dos mais famosos membros do grupo, o belga Raoul Vaneigem – ao lado do mais conhecido Guy Debord que o expulsou em 1970 da Internacional Situacionista -, o debate do nosso ensaio sobre revolução, insurreição e subversão. Vaneigem, conforme consta na Wikipédia (acréscimo e destaque nosso), questiona “ .. em seu livro ´A arte de viver para as novas gerações´ <The revolution of everyday life, na tradução em inglês>, publicado em 1967, todos os pilares desta sociedade .... A inversão da perspectiva foi sistematicamente exposta como o momento em que a subversão constrói um novo mundo”.

A “revolução” agora não parece mais se dirigir ao ou contra o sistema (economia, Estado). Ela teria como origem e objeto a vida cotidiana de todos, como anunciado no  livro acima citado. Será que em breve essa revolução vai permitir uma nova sociedade que já está aqui, mas ainda precisa ser inventada, como dizia Vaneigem naquela época  (Vaneigem 1967)? Passaram-se quase cinqüenta anos e a revolução que o autor via acontecendo em Watts, Praga, Estocolmo, Stanleyville, Gdansk, Turino, Cordoba, Port Talbot, Cleveland, Amsterdam e outras cidades não conseguiu que deixassem “… fucking around with us ”.

Será que aquela luta não se intensificou, mesmo quando a miséria se mostrou universal porque não se superou as razões particulares das lutas - “hunger, restrictions, boredom, illness, anxiety, isolation, deceit”? E, assim, não foi revelada ou reconhecida a profunda racionalidade dessa miséria, seu vazio onipresente, sua chocante abstração opressiva? Como diz Vaneigem, devem ser responsabilizados pela miséria “the world of hierarchical power, the world of the State, of sacrifice, exchange and the quantitative - the commodity as will and representation of the world”.

O reconhecimento dessa responsabilidade teria levado, como segue nosso autor, a uma praxis revolucionária:

“All over the globe, revolutionary praxis, like a photographic exposer, is transforming negative into positive, lighting up the hidden face of the earth with the fires of rebellion to ink in the map of its triumph” (Vaneigem, 1967, Cap. 25).

Com exceção de alguns curtos períodos – especialmente em fins da própria década de 60 do século vinte – os “fogos de rebelião” iluminaram por pouco tempo a face escondida da terra; nenhuma praxis revolucionária se instalou em maior escala.

Essa experiência histórica pode ser um indício que, talvez, não devêssemos apostar mais em “revoluções” sejam elas cotidianas, urbanas ou de outros tipos? Como vimos no item anterior, Bey recomenda de nem querer mais a revolução.

O posicionamento, reversão de perspectiva dos situacionistas, aponta em uma direção onde “revolução” e “subversão” parecem possíveis, simultaneamente. Vaneigem afirma que apenas uma praxis genuinamente revolucionária pode evitar que mesmo a melhor proposta permaneça parcial e tentativa. Mas essa mesma praxis é rapidamente corrompida quando rompe com sua própria racionalidade que não é uma abstrata mas concreta substituição da forma universal e vazia, da mercadoria. É a realização da arte e da filosofia na vida diária de todos que permite uma objetificação não alienante.

E continua:

“Such a rationality's line of force and extension is born of the deliberate encounter of two poles under tension. It's the spark struck off between subjectivity, extracting the will to be everything from the totalitarianism of oppressive conditions, and the historical withering way of the generalized commodity system.

Existential conflicts are not qualitatively different from those inherent in the whole of mankind. That's why men can't hope to control the laws governing their general history if they can't simultaneously control their own individual histories. If you go for revolution and neglect your own self, then you're going about it backwards, like all the militants. Against voluntarism and the mystique of the historically inevitable revolution, we must spread the idea of a plan of attack, and a means, both rational and passionate, in which immediate subjective needs and objective contemporary conditions are dialectically united.” (Vaneigem 1967, Cap. 25; destaques nossos).

Essa abordagem – essa inversão de perspectiva em relação àquelas que discutimos antes – aposta numa procura coletiva por uma coerência revolucionária numa situação de passagem entre uma velha sociedade crescentemente desorganizada e uma nova sociedade ainda a ser criada.

Para Vaneigem – indo contra uma visão muito difundida hoje – exclusão e ruptura são as únicas defesas da coerência em momentos de perigo. O movimento tem uma função de fungir como eixo: ser um eixo no qual a agitação popular pode se apoiar e que, em contrapartida, amplia seu movimento inicial.

Finaliza o seu livro com as seguintes observações:

“The moment of revolt, which means now, is hallowing out for us in the hard rock of our daily lives, days that miraculously retain the delicious colours and the dreamlike charm which - like an Aladdin's cave, magical and prismatic in an atmosphere all its own - is inalienably ours. The moment of revolt is childhood rediscovered, time put to everyone's use, the dissolution of the market and the beginning of generalised self-management.

The long revolution is creating small federated microsocieties, true guerilla cells practising and fighting for this self-management. Effective radicality authorises all variations and guarantees every freedom. ...” (Vaneigem 1967; destaque nosso).

Encontramos aqui, já no pensamento situacionista, a idéia da criação de pequenas micro-sociedades federadas como verdadeiras células guerrilhas que praticam e lutam pela auto-administração. Mas, diferentemente da proposta insurgente, o autor vislumbra aqui uma dialética entre parte e totalidade onde a inclinação revolucionária é o projeto de construir a vida diária, o cotidiano, dentro e através da luta contra a forma mercadoria. Assim, cada fase da revolução está levada adiante no estilo do resultado final. Não há programa máximo, nem mínimo, nem de transição: o que se precisa é uma estratégia completa baseada nas características essenciais do sistemas que se quer desmantelar.

Eis o processo de uma subversão que não confronta ou se levanta contra o sistema, mas que cria na praxis cotidiana formas duradouras que não se submetem às forças colonizadores dos sistemas e que, de alguma forma, não estão acessíveis às lógicas. A “falta de percepção” dessas formas subversivas por parte do sistema está baseada na sua própria ignorância de reconhecer a integração social como elemento estrutural para sua sobrevivência; é sua relação parasitária com as esferas (da racionalidade comunicativa) para cuja produção/reprodução não contribue.

Não se vê, portanto, tanto um perigo de confrontamento e violência entre experiências subversivas e o Estado e a burocracia; ao contrário: o maior perigo parece ser do sistema acionar seus mecanismos de colonização ao tentar absorver essas experiências dentro de sua lógica instrumental e abstrata.

Por isto, uma articulação entre subversão e inclusão ao sistema parece perfeitamente possível; a atenção deve ser voltada, então, à questão como fortalecer esses movimentos de subversão – assegurá-lhes sua certa autonomia – para que sejam “imunes” ás tentações e seduções dos sistemas. Fortalecer a praxis concreta (subversiva) significa fortalecer a vivência concreta contra concepções abstratas dominantes; os espaços de representação contra a representação do espaço dos arquitetos, urbanistas e planejadores. É aqui onde a “cartografia subversiva” assume sua importância fundamental na preservação e fortalecimento da subversão social.

Representação do espaço, espaços de representação e cartografia subversiva

Há uma interessante relação entre a abordagem de uma cartografia subversiva e o conceito de “dérive” dos situacionistas que não pode ser explorada no presente ensaio. Como dizem Paraskevopoulo; Charitos e Rizopoulos (2008, p.5):

“The dérive is a method of subversion, of remapping the world and of identifying the implicit flows of capital and power below the surface of the city. One strategy Debord cites is the production of psychogeographic maps. In reaction to the rational city models, he and his colleagues constructed alternative geography that privileged the marginalized and often threatened spaces of Paris”.

Os mesmos autores afirmam que o termo “cartografia subversiva” está relacionado a abordagens críticas e táticas da cartografia que tem uma de suas expressões em “mapas psicogeográficos”. Essas abordagens críticas e táticas posicionam-se contra o processo tradicional do mapeamento por ser inerentemente problemático. São usados os seguintes argumentos para sustentar essa crítica: (i) o mapeamento conventional parte do pressuposto de uma realidade objetiva à qual o processo de mapeamento pode se basear sem problemas; (ii) mapas estão sendo usados como expressão da dominância e de poder durante a história política. São criados por aqueles que tem autoridade e poder; e é essa propria produção de mapas que os torna poderosos.

Essa crítica e o sentimento da necessidade de uma abordagem crítica levou a um movimento artístico recente para experimentar outras formas de mapeamento que permitem enxergar aspectos da realidade (até invisíveis) que a forma tradicional ocultava. Assim, um dos objetivos importantes da cartografia subversiva é o de desvendar nossas crenças sobre o mundo e provocar novas percepções.

Já, como nota Crampton (2010), cartógrafos e aqueles que praticam o GIS têm pouco a dizer sobre política, poder, discurso, resistência postcolonial e outros tópicos  das grandes áreas de geografia e das ciências sociais. Quando se abre qualquer livro didático da cartografia ou do GIS vai ser encontrar um profundo silêncio a respeito desses assuntos. Mesmo assim, não se deve achar que uma visão crítica a respeito do mapeamento já não existe há bastante tempo.

“This is what Foucault means by subjugated knowledges; ones that for whatever reason did not rise to the top, or were disqualified (for example, for not being scientific enough).  … , Foucault suggests that it is the reappearance of these local knowledges alongside the official grand narratives that actually allows critique to take place” (Crampton 2010, p.4.).

E há claros indícios que a geografia tem-se posicionado a respeito dessa forma crítica de mapeamento como mostra a realização de uma sessão temática sobre “subversive cartographies for social change”, organizado por Perkins e Seemann no Encontro de 2008 da Association of American Geographers in Boston. Na chamada de trabalhos encontramos a seguinte reflexão sobre o tema:

“To be subversive, is to wish to overthrow, destroy or undermine the principles of established orders. As such subversive cartographies offer alternative representations to established social and political norms. Maps are no longer cast as mirrors of reality, instead they are increasingly conceived as diverse ways of thinking, perceiving and representing space and place which express values, world-views and emotions. Maps are no longer part of an elite discourse: they can empower, mystify, and enchant. More critical assessments of mapping increasingly explore subversive contexts strongly associated with innovative methodological approaches, with mapping seen as an explicitly situated form of knowledge. ….” (destaque nosso). (Fonte: http://makingmaps.net/2008/01/03/subversive-cartographies/).

Mapas são, então não apenas representações; eles formam argumentos. Quando indivíduos são envolvidos no mapeamento, eles vão incluir tudo o que lhes parece importante e o que lhes interesse (Paraskevopoulo et alii 2008).

Chegamos, com isto ao ponto que interessa para nossa discussão da apropriação da cartografia subversiva para uma nova forma de planejamento. São as características dessa cartografia, aqui brevemente debatidas, que podem viabilizar um passo crucial que necessita ser vencido quando o planejamento precisa superar o nível de uma prática discursiva e incorporar os contextos espaço-temporais na sua praxis (vide Randolph 2007a): “Uma prática do planejamento … que quisesse se constituir como ´práxis´ precisa contemplar e incorporar aquele espaço social em sua totalidade que está relacionado ao processo (prática, trabalho) de planejamento (não se confunde com o ´planejamento compreensivo´) de uma forma que, até certo ponto, permita sua incorporação para além de meras representações e do simbólico (do espaço)”.

Aí uma distinção entre duas formas de representação torna-se decisiva para nossa argumentação: por um lado, a representação do espaço (objeto-sujeito do planejamento) como realizada pela cartografia tradicional que nada mais reflete do que a perspectiva dominante do espaço numa sociedade. Por outro lado, a produção “subversiva” de mapas por aqueles que partem de sua própria vivência e seus “espaços de representação” para compreender o espaço social que os cerca (e para cuja produção contribuem). Conforme vimos, a cartografia subversiva poderia possibilitar para que esses “mapas” sejam construidos sem serem corrompidos pelos vícios das técnicas oficiais.

Potencial e possibilidade do planejamento subversivo: contra o desperdício e a favor do resgate da experiência social

Ao final da caminhada desse ensaio, retomamos a idéia do início que nas nossas sociedades – apesar de todas as tentativas de subordinar a lógicas instrumentais e abstratas aquelas esferas da vida que são caracterizadas pela convivência de pessoas e grupos de pessoas com experiências comuns (sejam ao nível de tradições, modos de socialização ou formação de personalidades) – continua havendo um potencial de contestação exatamente nessa vivência do cotidiano por parte de determinadas grupos ou segmentos de populações (classes sociais?).  

É exatamente no decorrer de processos de planejamento que se nota sinais de uma incompatibilidade profunda, como mostra a experiência em muitos casos, entre a perícia discursiva dos planejadores com suas concepções, lógicas e modelos abstratos e as ricas vivências dos “participantes” que procuram fazer valer suas experiências concretas no processo do planejamento que se esquivam de uma fácil verbalização e representação dominantes.

Na concepção do espaço social de Lefebvre (1991) e sua diferenciação entre concepção e vivência do espaço encontramos uma idéia semelhante (mas bem anterior) àquela do Habermas do confronto entre esferas com duas racionalidades opostas. As representações do espaço expressam uma perspectiva ideológica (dominante) dos sistemas econômicas e burocráticas a respeito do espaço social sempre relacionadas às relações de produção e às ordens que nelas tem sua origem. É um espaço vazio, abstrato, quantificado; o reino do valor de troca. Essas representações procuram-se impor – num movimento de colonização - às vivências sociais que formam  espaços de representação muitas vezes em desacordo das formas oficiais da representação do espaço.

Por outro lado, os espaços de representação estão vinculados a um lado mais clandestino e subterrâneo (“underground”; artístico) da vida social que não obedecem às regras de consistência e coesão; não envolve tanto o pensamento, mas mais os sentimentos. Como diz Lefebvre, esses espaços têm um núcleo afetivo e abrangem os lugares de paixão, da ação e da situação vivida e, portanto, implicam o tempo (Merryfield, 2002, p. 90).

Instauram-se, então, os conflitos entre concepção e vivência do espaço que, sob domínio do sistema, geralmente é vencido pelas representações dominantes do espaço abstrato e vazio. Na concepção de Lefebvre há um terceiro termo que está imbricado nesse jogo de poder entre concepção e vivência: é a prática espacial e a percepção do espaço. É essa prática que, segundo nosso autor, faz com que os outros dois elementos convivem numa unidade dialética.

“Spatial practices invariably relate to perception, to people´s perceived take on the world, on their world – particularly their everyday world. Spatial practices make sense (and nonsense) of everyday reality, and include routes and networks, patterns and movements that link together spaces of work, play, and leisure. … They maintain societal continuity and ´spatial competence´, and somehow mediate between the conceived and the lived, keeping representations of space and representational spaces together, yet apart …” (Merryfield, 2002, p. 90, destaques do autor).

Um novo planejamento como uma forma de “subversão” das representações e concepções abstratas não pode ocorrer de uma maneira formal ou abstrata. É necessário observar os conteúdos dos mencionados momentos da tríade (Lefebvre) da produção social do espaço social para avaliar o potencial de subversão das práticas espaciais.

E a questão do conteúdo está intrinsecamente vinculada à identificação das forças sociais que poderiam levar um projeto (contra-hegemônico) de subversão adiante.

Para obtermos ao menos uma primeiro indicação de possíveis “agentes de subversão” recorremos a uma reflexão do sociólogo português, Boaventura de Souza Santos, acerca de uma “reinvenção da emancipação social” (Santos 2003, 2004). Como um dos resultados de suas investigações, o autor apontou certas limitações da ciência ocidental como responsáveis para um enorme desperdício da experiência social na medida em que esconde e desacredita alternativas à globalização neoliberal e capitalismo global produzidas por movimentos sociais e organizações não governamentais. Para mudar essa situação, é necessário trabalhar com “um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante durante pelo menos nos últimos 200 anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito” (Santos 2003: 2s).

É particularmente intressante no contexto do atual trabalho que Santos vê a característica fundamental da concepção ocidental da racionalidade no fato de,

“por um lado, contrair o presente e, por outro, expandir o futuro. A contração do presente, ocasionada por uma peculiar concepção de totalidade, transformou o presente num instante fugido, entrincheirado entre o passado e o futuro. Do mesmo modo a concepção linear do tempo e a planificação da história permitiram expandir o futuro indefinidamente. Quanto mais amplo o futuro, mais radiosas são as expectativas confrontadas com as experiências do presente” (Santos 2003: 3; destaque nosso).   

O argumento central para nossa discussão é a proposição do autor que uma outra racionalidade - que chama “cosmopolita” e que deve substituir a “indolente” - deve seguir, “nesta fase de transição, … a trajetória inversa: expandir o presente e contrair o futuro. Só assim será possível criar um espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje”. Para “expandir o presente”, Santos (2003: 4) propõe uma sociologia das ausências; para “contrair o futuro”, uma sociologia das emergências. Não será possível, aqui, seguir mais detalhada e aprofundadamente o raciocínio e a argumentação de Santos; a crítica que o autor desenvolve a respeito da razão indolente e, particularmente, das suas formas da Razão Metonímica (Santos 2003: 6ss.) e da Razão Proléptica (Santos 2003: 20ss.) podem dar indicações valiosas a respeito da força subversiva do planejamento aqui desenhado em primeiros traços.

O próprio processo do planejamento subversivo precisa ser compreendido como uma das maneiras de realizar, na prática, a expansão do domínio tanto das experiências sociais já disponíveis (pela sociologia das ausências; aumentando o presente), quanto das experiências sociais possíveis (pela sociologia das emergências, retração do futuro).

“A multiplicação e diversificação das experiências disponíveis levantam dois problemas complexos: O problema de extrema fragmentação ou atomização do real e o problema, derivado do primeiro, da impossibilidade de conferir sentido à transformação social. Estes problemas foram resolvidos, como vimos, pela razão metonímica e pela razão proléptica através do conceito de totalidade e da concepção de que a história tem um sentido e uma direção”. (Santos 2003: 29).

Diante de atomização e fragmentação do próprio cotidiano das pessoas e o perigo de um esvaziamento de sua força subversiva, compreendemos, enfim, o “planejamento” – envolvimento de agentes que não fazem parte desse cotidiano - como uma necessidade de apoiar uma “tradução” que

“ permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a sociologia das emergências. Trata-se de um procedimento que não atribui a nenhum dos conjuntos de experiências nem o estatuto de totalidade exclusiva nem o estatuto de parte homogênea.” (Santos 2003: 29).

O planejamento subversivo apropria-se daquelas “falhas” sistemáticas do (no) sistema e sustenta o avanço de lógicas não instrumentalistas e abstratas que partem do cotidiano em direção ao sistema (sob a “superfície”). A cartografia subversiva joga um papel decisivo nesse processo ao tornar as experiências inteligíveis – no âmbito de seus espaços de representação - para aqueles que a vivenciam. Mapas tem uma capacidade impar de dar accesso a complexas relações de fenômenos.

 

Bibliografia

BEY, H. The temporary autonomous zone. [Em linha]. s/a.; 1985. <http://hermetic.com/bey/taz3.html#labelThePsychotopology>.

CASTELLS, M. The rise of the network society. Malden, Mass.; Oxford: Blachwell Publ., 1996.

CRAMPTON J. W. Maps as social constructions: power, communication and visualization. Progress in Human Geography, 2001, 25, p. 235-52.

CRAMPTON, J. W. Mapping: critical introduction to cartography and GIS. Malden, MA; Oxford, UK: Wiley-Blackwell, 2010.

HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt/M.: Surkamp, Vol. I e II, 1981.

LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford, UK; Cambridge, Mass.: Blackwell Publishers, 1991

MERRIFIELD, A Metromarxism. A marxist tale of the city. New York, London: Routledge, 2002.

PARASKEVOPOULO, O., CHARITOS,  D., RIZOPOULOS,  C. Location-specific art practices that challenge the traditional concept of mapping. Artnodes. E-journal on art, science and technology. [Em linha]. Barcelona: Universitat Oberta de Catalunya, 2008. <http://artnodes.uoc.edu>.

RANDOLPH, R. O planejamento comunicativo entre as perspectivas comunitarista e liberal: há uma ´terceira via´ de integração social? Cadernos IPPUR, 1999 jan-jul, vol. XIII, no. 1, p. 83-108.

RANDOLPH, R. Do planejamento colaborativo ao planejamento “subversivo”: Reflexões sobre limitações e potencialidades de Planos Diretores no Brasil. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [Em linha]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 2007a, Vol. XI, num 245(17). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-24517.htm>.

RANDOLPH, R. From collaborative to “subversive” planning: Remarks to overome conflicts between planners´expertise and the daily life experiences of envolved population. Trabalho a ser apresentado na Conferência Internacional “New concepts and approaches for urban and regional policy and planning?”, SP2SP project ESDP-network, Universidade Católica, Leuven, Bélgica, 2-3 de abril de 2007b.

RANDOLPH, R. Uma nova noção de práticas sociais subversivas e suas implicações para formação e pesquisa em planejamento urbano e regional. O caso brasileiro. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [Em linha]. Barcelona: Universidad de Barcelona, Vol. XII, num. 270. <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-270/sn-270-98.htm>.

SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In SANTOS, B. S. (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: "Um discurso sobre as ciências" revisitado. [Em linha]. Porto: Afrontamento, 2003. <http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf>.

SANTOS, B. S. A critique of lazy reason: Against the waste of experience. In WALLERSTEIN, I. (Ed.), The Modern World-System in the Longue Durée. [Em linha]. Londres: Paradigm Publishers, 2004, p. 157-197. http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/A critique of lazy reason.pdf>.

VANEIGEM, R. The revolution of everyday life: the reversal of perspective, 1967 <http://library.nothingness.org/articles/SI/en/pub_contents/5>.

 

© Copyright Rainer Randolph y Pedro Henrique O. Gomes, 2010. 
© Copyright Scripta Nova, 2010.

 

Ficha bibliográfica:

RANDOLPH, Rainer y GOMES, Pedro Henrique O. A contribuição da cartografia subversiva para o planejamento do espaço social. Caminhos para uma reflexão a respeito de “subversões” concretas. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2010, vol. XIV, nº 331 (29). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-331/sn-331-29.htm>. [ISSN: 1138-9788].

Volver al índice de Scripta Nova número 331
Índice de Scripta Nova