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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIV, núm. 331 (30), 1 de agosto de 2010
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

MORAR E HABITAR EM ÁREAS PORTUÁRIAS NA CIDADE DO RIO GRANDE-RS, BRASIL

César Augusto Ávila Martins
Universidade Federal do Rio Grande
cavilamartins@yahoo.com.br

Morar e habitar em áreas portuárias na cidade do Rio Grande-RS, Brasil (Resumo)

A aceleração das trocas internacionais está combinada com a reorganização de áreas consideradas como portuárias pelos Estados nacionais. Em diversas áreas portuárias do Brasil há conflitos entre os órgãos de planejamento e gestão das áreas portuárias com os diversos usuários como empresas de diferentes naturezas, ambientalistas ou moradores. O trabalho analisa as áreas de moradia em terrenos da Superintendência do Porto do Rio Grande (SUPRG) no município do Rio Grande no sul do Rio Grande do Sul. O porto do Rio Grande é o mais meridional do Brasil e após as obras de regularização de sua barra e a construção do cais de atracação contribuiu para constituir um distrito industrial a partir da década de 1970 que se combinou com indústrias que estão na gênese da industrialização do sul do país. As movimentações nos terminais públicos e privados colocam o porto entre os principais do país. Também será apresentada a trajetória das ligações entre o porto e a cidade através dos resultados de uma pesquisa realizada em áreas da SUPRG usadas como moradia passíveis de remoção para a ampliação das atividades portuárias e industriais.

Palavras chave: moradia, cidade, porto.

To live and to dwell in port areas in Rio Grande, RS, Brazil (Abstract)

The increase in international trade is associated with the reorganization of certain zones which are considered to be port areas by nacional States. There are conflicts among port planning and management institutions and different kinds of companies, environmentalists, and dwellers in several Brazilian port  areas.This paper analyzes the dwelling places on lots that belong to the Superintendência do Porto de Rio Grande (SUPRG) in Rio Grande, a town located in the south of Brazil. The southernmost port in the country has contributed to develop an industrial area in this region since the 1970's, mainly after its bar met the compliance norms regarding several constructions such as new berths. Since companies which spearhead the industrialization process in the south of the country have used it, the movement in both public and private terminals has enabled it to become one of the main ports in Brazil. This paper also aims at showing how the port and the town are connected by presenting the results of a survey carried out in the SUPRG areas which are used as dwelling places and may have to be removed in order to broaden industrial and port activities.

Key words: dwelling, town, port.

Os Estados através de diferentes instâncias, utilizam diferentes marcos regulatórios para planejar e realizar a gestão de áreas definidas como portuárias. Nestas, empresas estatais e grupos econômicos nacionais e transnacionais operam terminais, fábricas, sistemas de transporte e regulam as relações de trabalho. As ligações entre cidade e portos ao longo da História com suas conformações combinadas e contraditórias tem sido objeto de preocupações de pesquisadores indicando a necessidade da construção de pactos entre os diversos agentes. As reconfigurações das embarcações e das estruturas portuárias obrigam aos diferentes atores dos sistemas portuários a propor e impor novos usos das áreas portuárias mais antigas e a criação de novas (Silva e Cocco 1999; Monié e Vidal 2006; Ornelas 2008). Em Rio Grande, no sul do Rio Grande do Sul, localiza-se um dos maiores portos brasileiros e as áreas portuárias são administradas por um órgão do governo estadual: a Superintendência do Porto do Rio Grande (SUPRG). A SUPRG prevê a instalação de empreendimentos industriais e portuários de grupos econômicos nacionais e/ou internacionais em áreas que nas últimas décadas foram ocupadas por moradias de populações de diferentes características. O texto analisa as características dos moradores de áreas portuárias administradas pela SUPRG e apresenta algumas estratégias para o estabelecimento de pactos para evitar as remoções forçadas e a manutenção das moradias. Para responder o questionamento o artigo está divido em três partes: na primeira, as áreas portuárias são apresentadas como uma das partes da hegemonia do capitalismo no sistema mundial; a seguir são expostas algumas das ligações entre o porto e o município do Rio Grande; a última parte, com base em uma realizada entre 2007 e 2009, são discutidas algumas características que indicam a vulnerabilidade dos moradores em áreas portuárias e dos resultados de suas ações em relação as demandas da administração portuária.

Os portos como parte da hegemonia do capitalismo no sistema mundial

Uma das características do atual período histórico e geográfico é aceleração dos fluxos internacionais, nacionais e regionais. A tendência observada desde a hegemonia da combinação dos processos de reestruturação e de desregulamentação a partir da década de 1990 é uma manifestação da circulação que “se presenta como proceso esencial del capital” (Marx 1972, p. 25). Entre 2007 e 2008 o crescimento do comércio mundial foi de 19,6% em valores em dólares sendo 20,5% em bens segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC). Apesar das pequenas oscilações da participação do Brasil no comércio internacional nas últimas décadas (em torno de 1% dos totais mundiais), como parte das políticas de reestruturações iniciadas na década de 1990 que incluíam as flexibilizações do mercado laboral e facilitação das regras do comércio exterior, as importações brasileiras passaram de U$ 51,4 bilhões em 1998 para U$ 197,9 bilhões em 2008 e as exportações cresceram de U$ 61,1 bilhões para U$ 182,4 no mesmo período. As acelerações dos tempos que é apresentada como ideologicamente neutra e responsável por novos significados para os diferentes pontos do mundo não é um processo recente como demonstrado por Michelet (1984) e Batista Jr.(1998) que partindo da gênese dos Estados nacionais e a ascensão das burguesias no século XVI analisam seus entrelaçamentos na formação do sistema mundial. Os entrelaçamentos reorganizaram o sistema interestatal e foram hegemonizados pelas companhias de comércio e navegação holandesas do século XVII, pelos fabricantes ingleses do século XIX e pelas empresas transnacionais estadunidenses do século XX (Arrighi, Barr e Hisaeda 2001). É com este sentido que alguns pontos e áreas foram e são construídos, reconstruídos, conectados, desconectados e reconectados ao longo do tempo em redes de diferentes densidades e escalas. As lógicas das implantações das descobertas e invenções aumentaram a produção nos campos, no interior das fábricas e no setor terciário, mas ainda ficaram sujeitas aos problemas do transporte e das comunicações. Os pontos e as áreas aqui considerados são algumas cidades com portos, pois “com um pouco de água, e tudo se anima no interior das terras” (Braudel, 1970, p. 348).

Após as independências do Brasil, da Argentina e do Uruguai confirma-se que “sob o capitalismo o mercado interno está inevitavelmente entrelaçado com o externo” (Lenin, 1984, p. 347). O que entrelaça? A existência de condições materiais e não materiais para viabilizar que a ciência, a técnica e a informação se implante para acelerar os entrelaçamentos para “el mejoramiento de los medios de transporte y comunicación cabe asimismo en la categoria del desarrollo de las fuerza productivas en general” (Marx 1972, p. 11).

Desde o século XV as embarcações aumentavam de tamanho e a partir de 1815 a propulsão a vapor eliminou gradualmente a navegação a vela, permitindo o aumento do volume das cargas transportadas por barcos construídos em aço que tinham maior durabilidade, segurança e exigiam menos manutenção. Administradores, operadores e trabalhadores dos portos antigos ou dos novos portos foram chamados a adequações. Uma longa transição manteve a eficácia de navios menores que exigiam menores calados e atracadouros, pois muitos portos não foram adaptados imediatamente para as novas exigências.

O Brasil forjado na hegemonia de uma economia agro-exportadora baseada no trabalho escravo teve na formação de áreas portuárias estrategicamente localizadas em alguns pontos do litoral a gênese de algumas de suas mais importantes cidades, onde transitavam as mercadorias e o controle estatal, pois a “a arrecadação aduaneira constituía a base do sistema tributário, representando mais da metade da receita pública” (Sodré 1971, p. 254). Depois do controle estatal de três séculos, a coroa portuguesa com a abertura dos portos de 1808, transforma o comércio exterior em negócio privado controlado por estrangeiros, especialmente por ingleses (Sodré 1964).

A cidade, a economia e o porto Rio Grande

No litoral sul do Brasil, a partir da Ilha de Santa Catarina e de Laguna, no atual território do estado de Santa Catarina, as disputas fronteiriças entre as coroas portuguesa e espanhola impunham fronteiras móveis até o Estuário do Prata balizado por Buenos Aires na margem ocidental e Montevideo e Sacramento na margem oriental. Apesar de conhecido pelo menos desde o primeiro quartel do século XVI, o canal que liga a Laguna dos Patos ao Oceano Atlântico foi incorporado formalmente pelos portugueses a partir das primeiras décadas do século XVIII. Nesta área irá se formalizar a posse portuguesa com a fundação da futura Vila do Rio Grande em 1736 e que será ameaçada nas próximas décadas, incluindo a ocupação espanhola entre 1763 e 1776. 

A área onde foi instalado o atual município do Rio Grande encontra-se no contato Sudoeste do Oceano Atlântico e o Estuário da Laguna dos Patos com suas águas mixalinas, marismas, banhados e dunas que faziam a ligação com o interior do “continente” considerado como a área de campos ao sul das serras florestadas que se estendia por todo o pampa. Ao mesmo tempo em que o sul da América era uma área aberta foi sendo fechada, protegida da disputa geopolítica no Sul da América do Sul com fortes portugueses e espanhóis que fixaram pontos. Os pares da então Vila do Rio Grande de São Pedro foram se tornando antagônicos: Buenos Aires, Colônia do Sacramento e Montevidéo ao mesmo tempo em que significavam a afirmação dos projetos coloniais e a seguir dos Estados nacionais, foram cidades e portos complementares e adversários na disputada por cargas.   

A frágil estabilidade política até a metade do século XIX (incluindo a revolução farroupilha entre 1835-45 e a federalista entre 1893-95), a inexistência de mercadorias de alto preço no mercado mundial, as condições naturais da barra do Rio Grande que entre 1737 e 1883 impuseram profundidades entre 1,98 e 4,62 metros e a proximidade da hinterlandia pastorial com o porto de Montevideo deram sinais da pequena relevância do porto e da cidade no concerto regional e nacional.  As alterações das profundidades obrigavam ajustar os calendários de entrada e saída de navios de acordo com a dinâmica natural dos ventos e da entrada da barra (Menz 2006). Em 1846 foi criado o Serviço de Praticagem da Barra dirigido pela Marinha e a seguir a criação da Companhia Rio-Grandense de Navegação a Vapor com os serviços de rebocador. Na década de 1850 estudos sistemáticos e a possível construção de um canal entre o rio Mampituba e o rio Guaíba através do conjunto de lagoas da planície costeira sinalizavam o fim do porto do Rio Grande (Neves 1995; Vianna 2007). Por outro lado, confirmando a tese de uma fase transitória entre as novas imposições de calado e de atracação é possível afirmar que “a maioria das cidades-portos do Sul do Brasil, no século XVIII, estava em plena atividade” (Neu 2009, p. 24) e até meados do século XIX o porto gaúcho ocupou a terceira posição em termos de movimentação de navios com Salvador e Rio de Janeiro e integrava redes mercantis que cobriam o comércio do Atlântico do Sul (Kunioschi 2007). O valor das trocas internacionais entre 1840 e 1875 aumentou seis vezes e “a rede do mundo visivelmente apertava” (Hobsbawn, 1988, p. 69).

O porto do Rio Grande firmou-se como um dos maiores portos brasileiros, após as negociações entre empresas estrangeiras e o Estado brasileiro a partir da metade do século XIX, para a construção dos molhes da barra e a organização dos cais de atracação. As obras finalizadas pela "Compagnie Française du Port du Rio Grande do Sul" permitiram o fluxo de embarcações de maior calado a partir de 1915. Com outras obras o calado atualmente é de aproximadamente 14 metros. Comerciantes de importação e de exportação, industriais e trabalhadores fabris e portuários formaram  com pescadores e um número impreciso de pessoas que exerciam uma variada gama de atividades urbanas o mosaico da cidade, pois “o termo comércio representa não só a barganha motivada pelo lucro dos comerciantes, mas a vitalidade das cidades”. (Rosenberg e Birdzell 1986, p. 90).

No município do Rio Grande, local de uma das bases da industrialização estadual com indústrias de imigrantes e de comerciantes de exportação e importação como a Rheingantz e Ítalo-brasileira (têxteis), a Leal Santos e a Cunha Amaral (alimentos) e a Ipiranga (refinaria de petróleo), está grande porto estadual suplantando definitivamente em termos do volume de cargas movimentadas os portos de Pelotas e de Porto Alegre. Também ocorreu o saneamento da cidade, a instalação de redes de energia, de água, de cabo submarino, telefone e de transporte urbano. O alargamento da “cidade velha” ao redor do porto dos trapiches no canal do Norte cercado pelas escassas ruas, dunas e alagados é revelado pelos mapas de 1904 que demonstram a “cidade nova” para além das antigas trincheiras. Nos mapas da década de 1920 a “cidade velha” e a “cidade nova” são acompanhadas das novas áreas para além da segunda e especialmente do aterro de baixios, alagadiços e extinção de pequenas ilhas para a formação do “Terrapleno Oeste” onde serão instalados os terminais do Porto Novo, fábricas como a Companhia Swift e que serão ocupados por famílias de trabalhadores que encontraram ali áreas próximas ao centro e dos locais de trabalho (Oliveira 2000; Martins 2006).   A imagem da cidade ainda concentrada no extremo de um pontal do estuário, local do principal forte lusitano na primeira metade do século XVIII, passa a comportar o casario dos comerciantes de exportação e de exportação do centro, os prédios religiosos, estatais e dos clubes sociais com a silhueta das fábricas e suas chaminés, com as moradias dos “capitães de fábricas”, as vilas operárias e habitações precárias no centro e nas áreas aterradas e de fixação de dunas. Na orla do Oceano Atlântico empreendedores privados organizaram a partir do final do século XIX a Vila Sequeira (atual Balneário Cassino), uma estação balneária ligada a cidade por via ferroviária e que abrigava hotel e moradias de verão das famílias de comerciantes, industriais e proprietários rurais do município e do sul do estado do Rio Grande do Sul (Pinheiro 1999; Pereira 2005). Nas áreas portuárias próximas ao centro histórico da cidade, a partir dos últimos anos oitocentistas e começo do século XX, uma série de obras criam os armazéns portuários e as embarcações cada vez maiores que exigem maiores profundidades e áreas de manobra. As atividades portuárias vão se afastando do Porto Velho para o Porto Novo de na década de 1970 para o “SuperPorto”. O deslocamento é também das proximidades das áreas de moradia em direção ao canal da barra distante cerca de dez quilômetros do centro.

A distância do trabalho na beira do cais afastava não somente os trabalhadores de suas moradias, mas também de todos os rituais, como a observação da chegada e saída do navios e do ir e vir pelas ruas do centro e especialmente da Vila do Cedro (atual bairro Getúlio Vargas), limítrofe ao Porto Novo com suas moradias auto-construídas e toda uma riqueza cultural (Oliveira 2000). As novas racionalidades impostas pela técnica e pela informação para as atividades portuárias, diminuem o número de trabalhadores, os tempos de navegação e de permanência nos portos como por exemplo, com o fim da sacaria e das cargas encaixotadas e a supremacia das esteiras e dos aspiradores  e sobretudo do container.  Mauro (1977) informa que a travessia do Atlântico entre a Europa e Estados Unidos da América caiu de 12 dias em 1870 para seis dias nos anos da década de 1910. No porto do Rio Grande no final dos anos de 1980 um navio considerado grande possuía cerca de 160 metros de comprimento e levava 10 dias até portos do Norte da Europa. Em 2010 a metragem das embarcações chega a 300 metros e tempo de travessia caiu para sete dias com um tempo de operação em terminal de containers que pode ser de oito horas desde a atracação, operação e desatracação.

Ora se é impossível negar a inexorabilidade da contração dos tempos e os necessários ajustes dos portos e das áreas portuárias como pontos e nós de articulações de redes mundiais como proposto como Silva e Coucco (1999), é indispensável insistir que as projeções e execução de ações para os novos processos ocorre com maiores ou menores conexões com as regulações estatais e a capilaridade e a permeabilidade com as pessoas que trabalham e moram nas cidades. Assim, não possível é considerar que “as cidades-portuárias na plena acepção do termo – cidades do comércio marítimo internacional – impõem-se como protagonistas centrais da globalização” (Silva e  Coucco 1999, p. 31), pois a sua reprodução é nas múltiplas escalas.

A localização geográfica do município é uma das determinações para a estruturação da sociedade ali localizada, mas que está sujeita a implantação de projetos e execução de ações que conectam a escala local com os processos regionais, nacionais e mundiais. Neste sentido, a partir das primeiras décadas do século XX são implantados grandes investimentos de capitais internacionais, como o frigorífico da Swift e de capitais nacionais associados como a Refinaria Petróleo Ipiranga (atual Refinaria Riograndense). Com os empreendimentos industriais do século XIX e começo do século XX faziam do Rio Grande a cidade das chaminés no dizer de Érico Veríssimo. Entre os esforços do aparato estatal de gestão e controle está a criação em 1951, do Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais (DEPREC), como uma autarquia que englobou uma série de serviços concedidos, entre eles o Porto do Rio Grande.

A condição urbana do município com atividades industriais, comerciais e de serviços relevantes é precoce em relação ao país. O município em 1940 tinha 76,73 % de população urbana, enquanto no país esta taxa era de 31,23%.  Esta determinação é revelada pelo fato que 65,52% dos trabalhadores estavam empregados em atividades do comércio e da indústria enquanto no Brasil está taxa era de 24,12 %. Os riograndinos necessitavam morar em áreas urbanas. A questão a ser estudada é onde, como e quem são os moradores dos cortiços no centro e nas suas proximidade, nas vilas de imóveis de aluguel e nas áreas aterradas, drenadas e aplanadas das dunas da formação da restinga. Uma parte desses munícipes ocupara áreas destinadas originalmente para instalações portuárias e industriais e ali transformaram seus habitats em moradias.     

A consolidação do espaço nacional a partir da década de 1950 coordenada pela hegemonia da aliança dos capitais que articulavam os setores industriais e bancários com as políticas de Estado era componente da afirmação da sociedade urbano-industrial no Brasil. Redefine-se as funções das economias locais e/ou regionais em todo o país e Rio Grande configurasse como área de interesse da política de segurança nacional. Em Rio Grande, uma das marcas é o reforço dos aparatos estatais e o fechamento de empreendimentos que não tinham escala e escopo para a concorrência facilitada pela eliminação dos impostos entre as unidades federadas e pela melhorias das redes de transporte e comunicações.

Com base nos bancos de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é possível apresentar um quadro da economia do município. Em Rio Grande a taxa de crescimento populacional que caiu de 3,52% entre 1940-50 para 2,87 entre 1950-60 e 1,73% entre 1960-70, crescerá 2,81% entre 1970-80 com a urbanização subindo de 93,83%. Do ponto de vista da ocupação, há a manutenção da hegemonia dos postos de trabalho em atividades secundárias e terciárias com a redução dos empregos industriais de 7.052 entre 1931-40 para 5.903 em 1961-70 com aumento dos 1.134 empregos vinculados ao comércio e aos serviços para 1931-40 para 5.935 em 1961-70. A retomada virá com os investimentos no período 1971-1980 gestados na década de 1960.

A partir dos anos de 1960 a localização do Rio Grande e a conjugação de políticas de Estado, auxilia a alavancagem de dois setores industriais: o pesqueiro e o de fertilizantes. O primeiro, já possuía uma base fabril e de trabalhadores e, com o decreto 221-67, o governo federal objetivava transformar a indústria da  pesca em uma indústria de base.  A riqueza biológica do Estuário e do litoral adjacente é somada as possibilidades de realizar capturas com embarcações industriais nas águas distantes e profundas do sul do Oceano Atlântico. A combinação de políticas estatais para financiar embarcações e fábricas, uma base empresarial, de trabalhadores da pesca e das fábricas e as melhorias nas condições de transporte e conservação do pescado, produzem em Rio Grande até o começo dos anos de 1990, o maior e mais completo complexo industrial pesqueiro do país (Martins 2006). Esta característica pode ser mensurada tomando por base o ano de 1980: cerca de 17.000 dos 146.000 moradores de Rio Grande eram trabalhadores do setor pesqueiro Dos 17.000 trabalhadores do setor apenas aproximadamente 5.000 eram formalizados enquanto o restante era contrato no regime de tarefas diárias inviabilizando a estruturação de estratos de renda média (Martins 1997). Com as reestruturações e ajustes da década de 1990 o setor empregava nos primeiros anos do século XXI cerca de 1.500 trabalhadores entre os 194.000 habitantes do município. O segundo setor (o de fertilizantes), articulou o projeto de modernização da agricultura com a elevação do patamar tecnológico e a criação de uma categoria de empresários rurais (como no arroz  e na soja). Rio Grande, confirma sua posição como um ponto de uma rede mundial de fluxos onde são reestruturadas e/ou instaladas modernas fábricas que utilizam matéria-prima importada e também grandes terminais de grãos para receber a produção e realizar a exportação com condições de competitividade internacional. As empresas que até a década de 1990 ainda possuíam fábricas de fertilizantes nas proximidades das áreas de moradia do centro da cidade, atualmente estão localizadas no Distrito Industrial na área da Barra (Bunge Fertilizantes, Rio Grande Fertilizantes, Timac AgroBrasil do grupo Roullier e Yara Fertilizantes).  Com um crescimento populacional de 2,81% entre 1970-80, o pessoal ocupado em todos os setores cresce 30,42% sendo 40,08% na indústria e 32,07% no comércio e nos serviços.

A década de 1980, considerada como a “a década perdida” no país, para Rio Grande ainda que com as marcas do choque do petróleo da década de 1970, é um período de consolidação das grandes obras advindas do II Plano Nacional de Desenvolvimento que reforça os investimentos na área portuária (Domingues 1995). Também ocorreu a federalização da Fundação Universidade do Rio Grande, atual Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e instalação do Comando do 5º Distrito Naval, transferido de Florianópolis no estado de Santa Catarina.

As políticas de ajuste fiscal da década de 1990, atingiram diretamente a estrutura industrial e estatal instalada em Rio Grande. Em números absolutos, ainda com resquícios das décadas anteriores em 1990 eram 35.802 empregos formais chegando a  cerca de 33.261 em 1994 e caindo para 26.968 empregados em 1998 segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Os exemplos são vários: a extinção do Anexo C do Banco Central em 1990 que permitiu a entrada de pescado sem tarifas aduaneiras atingiu as indústrias locais; os ajustes na estrutura do emprego público, achatou os salários, extinguiu cargos e fechou empresas instaladas no município, como a Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e estatais como a Companhia Rio Grandense de Telecomunicação (CRT). A lei 8630/93 modificou a estrutura do trabalho na orla portuária, introduzindo e consolidando a presença de terminais privados e reduzindo a capacidade de negociação de trabalhadores como estivadores, arrumadores, consertadores e conferentes e com a tecnificação permitida pelo contêiner ocorreu a diminuição do peso do capital variável nas atividades portuárias como observada pelo menos desde o final da década de 1940 (Vivero e Mateos, 2001). Atualmente o porto do Rio Grande que movimenta cargas de 21 estados brasileiros, ocupa a quarta posição nos valores de importação e exportação (7,1% do comércio exterior brasileiro, atrás de Santos com 34,8%, Vitória com 9,1% e Paranaguá com 8,8%) e é considerado o sexto porto do país (Campos Neto et a, 2009).

Em conjunto com este pequeno balanço, pesquisas identificavam que desde a década de 1980 havia índices preocupantes de comprometimento das águas que contornam o município (Niencheski et al 1980) que foram confirmadas pelo meticuloso estudo de Almeida et al (1993) que identificou doze áreas comprometidas quanto a qualidade ambiental nas margens de áreas com moradias.

Na década de 1990, as administrações portuárias passaram a implantar uma série de medidas objetivando transformar as instalações e as operações portuárias seguras do ponto de vista do risco de acidentes ambientais. Pode considerar como marco dessas iniciativas, o vazamento de produtos químicos ocorrido no navio de bandeira malteza Bahamas em agosto de 1998. Após uma série de medidas para evitar danos maiores ao ambiente, o navio foi removido em setembro de 1999, restando uma série de ações judiciais que devem se prolongar por alguns anos. O porto do Rio Grande foi pioneiro na licença de operação emitida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), na realização de Estudo e de Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) e através da Divisão de Meio Ambiente, Saúde e Segurança elaborou e executa com empresas que trabalham na orla portuária, Prefeitura Municipal e instituições como a Universidade Federal do Rio Grande, planos e ações como o Programa de Educação Ambiental e o Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos. Assim, a SUPRG ameniza não somente os impactos das atividades portuárias, mas sinaliza aos investidores que suas ações devem ser pautadas por regulamentações e protocolos de proteção ambiental.    

Os moradores das áreas de interesse da administração portuária

A rica literatura brasileira sobre moradia não encontra similar para Rio Grande. Apesar de não existirem estudos analíticos sobre as condições de moradia em Rio Grande, há trabalhos sobre a expansão horizontal da mancha urbana desde o século XVIII até o começo da década de 1980 (Salvatori, et al, 1989) e a década de 1990 (Martins 2006) identificando especialmente os loteamentos e os incorporadores públicos ou privados. Neste trabalho, adota-se a premissa que os seres humanos transformam suas habitações em moradias. Seres humanos habitam, no sentido de que assegurar uma das condições da reprodução biológica especialmente para a proteção, o repouso e a reposição das energias vitais, mas moram onde a necessidade é mantida e satisfeita e contêm as dimensões simbólicas de individuação. 

Rio Grande, município cercado por águas doces e salgadas em um ambiente mixoalino, cidade média, pólo com Pelotas na Aglomeração Urbana do Sul (AUSUL) do estado do Rio Grande do Sul (Soares 2006) inaugura o século XXI com um lento processo de desaceleração econômica e de crescimento populacional (as taxas ficam entre 0,5 e 1,0 % ao ano). A imagem que esta registrada do município é a da concentração urbana e da posição privilegiada no ranking dos maiores Produtos Internos Brutos e da renda per capita entre todos os municípios do Rio Grande do Sul: os dados quantitativos do município do Rio Grande indicam uma posição constante entre os dez melhores resultados do estado. A retomada de investimentos elevou os postos de trabalho de 26.968 em 1998 para 33.015 em 2004 para 36.334 em 2008 e uma estabilidade em cerca de 4.900 trabalhadores na indústria de transformação com um crescimento nos setores do comércio e serviços de 19.921 para 23.913 empregos (em 2008 representavam 65,81% do total dos vínculos enquanto na década de 1970 esses setores eram responsáveis por menos que 50 %  dos empregos). 

O reaquecimento da economia brasileira a partir da metade da primeira década do século XXI, é acompanhada por iniciativas de planejamento e de ações do Estado brasileiro para romper alguns gargalos do desenvolvimento. Entre as ações está a adoção do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) que entre outras iniciativas propõem a reativação da indústria de construção naval e dos sistemas de engenharia responsáveis pelas articulações com diferentes mercados.

Em Rio Grande, a Superintendência do Porto do Rio Grande (SUPRG), criada em 1996 como sucessora do DEPREC é o órgão do governo estadual responsável pela administração dos usos das áreas portuárias. O longo período de lento crescimento, de reesstruturação das atividades econômicas e o fracasso das políticas habitacionais públicas, empurrou parcelas da população riograndina de baixa renda para a ocupação das amplas áreas de responsabilidade da administração portuária. Estas parcelas somaram-se aos moradores de áreas limítrofes aos corpos de água que tinham na atividade pesqueira uma das fontes de alimentação e de renda.

As informações sobre a efetiva ocupação das áreas administradas pela SUPRG e no Distrito Industrial indicam investimentos de vários milhões de dólares: em 10 de abril de 2008 o jornal Agora do Rio Grande listou sete empresas que investiriam cerca de R$ 387 milhões para gerar 872 empregos; em 03 de março de 2010 o jornal Brasil Econômico de São Paulo teve em sua capa a manchete “Investimentos de R$ 14 bilhões agitam a cidade de Rio Grande- os recursos vêm a reboque de um pólo naval que inclui a construção de quatro estaleiros para a indústria petrolífera”. Ambos os valores são superiores as receitas correntes realizadas em 2007 pela prefeitura que foi de cerca de 187 milhões de reais segundo o IBGE.

Estas informações confirmam a posição da direção da SUPRG que a partir de 2006 apresentou publicamente o interesse em utilizar algumas áreas que estavam ocupadas por moradores para a instalação de novos empreendimentos. A ação mobilizou moradores, associações de moradores, lideranças formais e não formais, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e a Prefeitura Municipal do Rio Grande (PMRG). A FURG através do Núcleo de Análises Urbanas (NAU) passou a fazer parte das discussões colaborando com a delimitação e mensuração com o uso de imagens Quickbird e técnicas de topografia para a realização de levantamentos socioeconômicos nas áreas indicadas pela SUPRG. A equipe formada no NAU entre 2007 e 2009 construiu um longo processo de discussão e negociação em cada localidade indicada para viabilizar a realização dos levantamentos que são acompanhados pelas lideranças e moradores. A participação dos moradores aumenta a credibilidade e permite a validação dos dados que são organizados em forma de relatórios disponibilizados para a SUPRG e para os moradores. Estas informações são a base do texto.

As demandas por áreas da SUPRG, atendendo as concepções das esferas do governo federal e estadual, recaem sobre faixas de terra próximas ao entorno banhado pelas águas do Estuário da Lagoa dos Patos. Considerando que segundo a amostra do IBGE de 2001 havia em Rio Grande 56.881 domicílios particulares permanentes onde residiam 194.351 pessoas (estimativa para 2007), as seis áreas pesquisadas são habitadas por 2,43% (4.729 pessoas) dos riograndinos que moram em 3,38% das moradias do município com a seguinte distribuição: Bairro Getúlio Vargas, 379 moradias e 1.250 pessoas; Vila Santa Tereza, 246 moradias e 712 pessoas; Barra Velha, 77 moradias e 2.306 pessoas; Barra Nova, 180 moradias e 493 pessoas; Barraquinhas 9 moradias e 29 pessoas; Vila Mangueira, 325 moradias e 4.729 pessoas

Para fins de delimitação deste texto não serão apresentadas as características das localidades da Barra Velha e das Barraquinhas. A primeira tem sua gênese na construção dos molhes da barra e como área de moradia de ex-trabalhadores da administração portuária e de pescadores e hoje é uma localidade que congrega uma complexa tipologia de moradores (Santana 2010). Após décadas de negociações, além da manutenção das moradias e das atividades que envolvem a pesca como atracadouros, fábricas e depósitos, bem como comerciais, religiosas e culturais, não haverá remoções e ocorrerá  um processo de regularização envolvendo os moradores, a Superintendência do Porto e a Prefeitura Municipal. Desde 2008 estão sendo construídas casas e trapiches pela municipalidade para moradores que foram e serão removidos de outras áreas para a expansão das atividades portuárias e industriais.  

A vila das Barraquinhas nas margens do canal da barra, é uma área de moradia de famílias com forte vínculo com a pesca realizada com pequenas embarcações. Houve um processo complexo de retirada de parte de seus moradores para implantação das obras de construção do “Dique seco” que objetiva construir e realizar manutenção de embarcações de grande porte e o aumento das instalações da Bunge Fertilizantes. Em 2007 foram colocados em precárias moradias nas proximidades de suas casas e uma parte dos moradores da área que vive da pesca, aceitaram a remoção para casas construídas na Barra Velha, pois há a garantia da proximidade com o atracadouro de seus barcos (Cardoso 2010). Uma outra parcela dos moradores das Barraquinhas resiste na remoção e negocia com o Ministério Público Federal o deslocamento para casas na Vila Mangueira, localidade próxima e com condições de abrigar suas embarcações.   

A pesquisa traçou um perfil dos moradores das localidades indicadas pela SUPRG e confirmou a existência de fortes laços de pertencimento entre os moradores e dos moradores com as localidades. Uma variável mensurável é que sabedores da condição ocupantes (por vezes identificam-se como “invasores de terrenos do porto”, mas a maioria informa que é proprietário) encontraram em seus vizinhos e próximos a identificação para conquistar equipamentos de uso coletivo e assim consolidam a sua permanência nas áreas.

O Bairro Getúlio Vargas, conhecido como BGV ou “Cedro” e a Vila Santa Tereza são áreas de moradia antigas vinculadas as obras de construção no porto e próximas ao centro da cidade. As dificuldades de organização e de enfrentamento da possível desapropriação esta ligada ao fato de que apenas algumas áreas de cada localidade é indicada como passível de remoção e ao mesmo tempo há a lembrança de remoções sem negociações nas décadas de 1960 e 1970. As lideranças trabalham com moradores divididos entre aqueles que estão em áreas passíveis de remoção e aqueles que tem a garantia de manutenção em suas moradias e as lembranças dos deslocamentos em um passado próximo como um fato e não como um processo.  Uma característica importante destas localidades é o vínculo com atividades portuárias: no BGV 23% dos entrevistados desempenham atividades portuárias e na Vila Santa Tereza este índice é de 10%.

Na Barra Nova, considerada nova em relação a Barra Velha nas proximidades dos molhes da barra e cercada por instalações da Marinha brasileira, pela  fábrica de pescado Leal Santos do grupo Arcor e pelo terminal de containers TECON-Rio Grande S.A., é chamada de “rocinha”. O termo relacionado a favela carioca é considerado pejorativo pelos moradores. O estigma cresceu quando a SUPRG em 2006 cercou áreas da Barra Nova para evitar novas ocupações na área. Com 38% das pessoas que trabalham desempenhando atividades ligadas a pesca e o surgimento de uma liderança do MNLM, os moradores se organizaram para debater a possível instalação de um terminal para cargas de celulose e conseguiram garantir não somente a retirada dos arames, mas canais de comunicação e visibilidade, pois ligam suas moradias ao trabalho na pesca. 

Na Vila Mangueira, a instalação de equipamentos de uso coletivo é do final da década de 1990, pois as administrações portuárias e municipais advogam que a área oferece risco em função da proximidade de terminais e dutos de cargas perigosas. A proximidade do centro da cidade e do acesso a BR-392 que corta o Distrito Industrial, a construção da escola em 1997, a instalação da energia elétrica em 1998 e da água em 2000 com linha de ônibus urbano em 2003 e a inexistência da formalização de projetos para ocupação da área pela SUPRG contribuíram para a intensificação da ocupação e o fracionamento dos terrenos. Um dado relevante é que 12% das moradias tem sua renda proveniente da pesca.

Nas localidades em suas especificidades há três indicadores que sinalizam as dificuldades cotidianas e de inserção de seus moradores nas possíveis possibilidades abertas pelos novos investimentos em caso de remoção. O quadro 1, sistematiza as baixas taxas de empregos formais e de escolaridade. 

 

Quadro 1.
Características selecionadas dos moradores do Bairro Getúlio Vargas, Vila Santa Tereza, Barra Nova e Vila Mangueira em Rio Grande (RS)

Localidade

Moradores em áreas de interresse da SUPRG

Porcentagem dos moradores na área de interesse da SUPRG em empregos formais

Porcentagem das famílias na área de interesse da SUPRG com renda até um salário mínimo

Porcentagem dos na área de interesse da SUPRG com escolaridade até o ensino básico

Porcentagem dos chefes de família que residem a mais de 10 anos em cada localidade

Bairro Getúlio Vargas

1.250

30

40

61

78

Vila Santa Tereza

712

30

20

60

84

Barra Nova

493

29

40

59

75

Vila Mangueira

968

26

39

59

36

Fonte: Fonte: MARTINS, C. A. A. et al. Relatórios da Expansão Portuária em Rio Grande. Rio Grande:FURG/SUPRG, diversos anos.

 

Com exceção dos moradores da área na Vila Santa Tereza, nas outras localidades a porcentagem de famílias que possuem renda até um salário mínimo é superior aquelas taxas estaduais (24,5%) municipal (25,3%). Este quadro é completado e aponta sinais de vulnerabilidade em função das possíveis exigências formativas dos novos empreendimentos quando observado que 60% dos moradores possuem apenas o ensino básico. Estes índices estão combinados com a informalidade nas relações de trabalho vivenciada por essas pessoas, onde o máximo de moradores com empregos formais é de 30% com o mínimo de 26% na Vila Mangueira, onde há importante presença de pescadores artesanais e o tempo médio de moradia é menor. Ou seja, o quadro das ocupações informais é maior do que o apontado por Veleda da Silva (2003), quando no Brasil esta taxa foi de 43% em 1979, 46% em 1990 e 60% em 2000 e que em 2003 era de 37 % e mais elevadas em relação as taxas de formalidade do estado do Rio Grande do Sul que é de 73,8% e de 71,9% em Rio Grande.

Apesar dos indícios de vulnerabilidade social, os moradores das áreas de interesse da Superintendência do Porto, com diferentes graus de organização e com lideranças de diferentes matrizes políticas e relações com os partidos de apoio aos governos municipal, estadual e federal, estabeleceram a partir de 2007 articulações com movimentos sociais como o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), organizações dos direitos humanos como a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma DhESCA-Brasil), bem como com a Comissão Especial de Habitação Popular e Regularização Fundiária da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, criando condições para a realização de audiências públicas na Câmara de Vereadores para debate das concepções e demandas dos atores envolvidos. Estas ligações e a falta de confirmação dos investimentos além de darem visibilidade aos interesses dos moradores em permanecerem em suas moradias, impediram que houvesse alguma remoção forçada até junho de 2010.

Considerações finais

O processo de reaquecimento da economia brasileira e da intensificação da sua inserção mundial tem como uma condição e condicionante a existência de portos com diferentes características. Esses portos por vezes estão instalados e foram criados pela conjugação de fatores localizacionais, institucionais e sociais. Em Rio Grande o  reaquecimento da economia e inserção multipolarizada do Brasil no sistema mundial indica o aumento dos índices quantitativos do município e das movimentações portuárias. Porém, nas décadas de desaceleração não somente muitas áreas concebidas para diversos investimentos foram ocupadas, mas seus ocupantes ao habitá-las foram responsáveis por dar-lhes uso e vida.

A marca das concepções está nos planos e possibilidade, mas registrada na memória dos riograndinos que tiveram casas removidas e foram alocados em áreas sem infra-estrutura em décadas passadas. Atualmente a Prefeitura Municipal e a SUPRG são parceiras em minimizar os possíveis conflitos provocados pelas exigências de alocação de áreas usadas para moradia para a implantação de novos investimentos. Para a prefeitura há as marcas do fracasso do modelo habitacional simbolizado pelo loteamento “Cidade de Agueda” distante 14 quilômetros do centro da cidade que tem 564 lotes ocupados com casas com aproximadamente de 25 metros quadrados com  graves problemas estruturais que levaram a várias disputas judiciais (Rocha, 2010). Para a SUPRG além das marcas das remoções em décadas anteriores, há a certeza de movimentos recordes a cada mês com um orçamento que é garantido pelo trabalho de muitos riograndinos no passado e no presente e que muitos deles podem ser atingidos pelas remoções.

O Estado brasileiro representado por diferentes órgãos e instituições, tem na Superintendência do Porto o maior representante da concepção de que as áreas portuárias devam ser organizadas para agilizar as articulações do sistema mundial de produção e de trocas de mercadorias. Porém, o processo em curso tem a marca dos moradores e das lideranças. Em suas diferenças e eventuais disputas tem demonstrado capacidade de mobilização, de construir redes de apoio entre as localidades, dentro e fora do município e garantiram que até o momento nenhum morador fosse removido forçadamente.  A complexidade do processo e a articulação acadêmica e política, permite concluir com a elaboração de uma questão: em que medida moradores de áreas irregulares de cidades médias com dinâmica econômica baseada na inserção em redes de circulação de agentes econômicos mundiais são capazes de evitar a vulnerabilidade socioeconômica e civil? A dinâmica dos diversos agentes envolvidos é que seguirá escrevendo a História e a história em suas múltiplas escalas.

 

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Ficha bibliográfica:

MARTINS, César Augusto Ávila. Morar e habitar em áreas portuárias na cidade do Rio Grande-RS, Brasil. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2010, vol. XIV, nº 331 (30). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-331/sn-331-30.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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