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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIV, núm. 331 (31), 1 de agosto de 2010
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

O PROJETO DE REVITALIZAÇÃO DA ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: OS ATORES SOCIAIS E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

Alvaro Ferreira
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
alvaro_ferreira@puc-rio.br

O projeto de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro: os atores sociais e a produção do espaço urbano (Resumo)

O espaço como constructo social, ou seja, socialmente produzido, refere-se à estrutura, que define as determinações do modo de produção, mas refere-se também, simultaneamente, à ação dos agentes locais em associação com grupos de ação, muitas vezes de âmbito global. Dessa maneira, o espaço produzido pode contribuir não só para revelar mais também para ocultar. Acreditamos que relações sociais são sempre espaciais e existem a partir da construção de certas espacialidades; o que nos leva à compreensão de que o espaço é produzido a partir de certas intencionalidades. Nesse contexto, ao debruçar-nos sobre as diferentes frações do espaço urbano, estamos observando um espaço social associado a uma prática espacial que se expressa através de sua forma de uso. Assim, é possível percebermos que os fenômenos espaciais são produtos, mas também contribuem para a reprodução das condições de dominação. Atualmente, presenciamos o início da execução do projeto de revitalização da zona portuária carioca; assim, objetivamos apontar, ligeiramente, como os agentes envolvidos no projeto de transformação da área do porto da cidade do Rio de Janeiro o fazem quase sempre desconsiderando os anseios dos cidadãos envolvidos; e que formas de mobilização social têm se apresentado frente a tal projeto. Em meio a tais propostas de transformação e movimentos dispersos que questionam o encaminhamento do projeto, é possível observarmos que a atuação dos agentes se dá a partir de relações construídas em múltiplas escalas.

Palavras chave: zona portuária do Rio de Janeiro, produção do espaço, movimentos sociais, revitalização.

Revitalization project of the port zone of Rio de Janeiro: social actors and the production of the urban space (Abstract)

Space is socially produced, and refers to the structure defining the determinations of the production, but also refers to both the action of the agents in combination with local action groups, often globally. Thus, the space that can contribute not only to reveal more also to hide. Social relations are always spatial and build certain spatiality, which leads us to the realization that space is produced from certain intentions. In this context, we are seeing a social space associated with a spatial practice that is expressed through its manner of use. Thus it is possible to realize that the phenomena are the product space, but also contribute to the reproduction of the conditions of domination. We are now seeing the start of the project to revitalize the waterfront Rio, so we aim point as those involved in the project to transform the port area of Rio de Janeiro do often disregarding the wishes of citizens involved, and what forms of social mobilization have been made. It is possible to observe that the activities of agents is given from the relationships built at multiple scales.                        

Key words: port area of Rio de Janeiro, production of space, social movements, revitalization.

O espaço como constructo social, ou seja, socialmente produzido, refere-se à estrutura, que define as determinações do modo de produção, mas refere-se também, simultaneamente, à ação dos agentes locais em associação com grupos de ação, muitas vezes de âmbito global. Dessa maneira, o espaço produzido pode contribuir não só para revelar mais também para ocultar. Isso porque, em geral, não desvela imediatamente o processo de sua produção (tal qual a mercadoria). Sendo assim, é necessário que investiguemos as inúmeras codificações sobre as quais se assenta o espaço produzido e como os agentes produtores colaboram, simultaneamente, para ocultar sua decodificação. A afirmação de que o espaço é socialmente construído não significa a negação de que ele esteja centrado na materialidade do mundo, ou seja, isto afasta-nos da dicotomia objetividade-subjetividade. Importa, então, perceber que o pensamento dialético enfatiza a compreensão dos processos e das relações, para a partir de então entender os elementos, a estrutura e os sistemas organizados. Por isso, argumenta Harvey (1996), a dialética nos força sempre a questionar – seja em relação a uma coisa ou a um evento – qual processo constitui o objeto a analisar e como ele é sustentado. Apenas através da compreensão dos processos e relações que o objeto internaliza é possível entender os seus atributos qualitativos e quantitativos.

Acreditamos que relações sociais são sempre espaciais e existem a partir da construção de certas espacialidades; o que nos leva à compreensão de que o espaço é produzido a partir de certas intencionalidades. Nesse contexto, ao debruçar-nos sobre as diferentes frações do espaço urbano, estamos observando um espaço social associado a uma prática espacial que se expressa através de sua forma de uso. Contudo, não nos podemos equivocar acreditando que as formas espaciais expressam apenas transformações econômicas, sociais, políticas e culturais, temos de ter em conta que uma forma espacial contribui, também, para a redefinição dos processos sociais, políticos e culturais. Assim, é possível percebermos que os fenômenos espaciais são produtos, mas também contribuem para a reprodução das condições de dominação. Seria seguro afirmar que o espaço contém as relações sociais, mas, além disso, contém também certas representações dessas relações sociais de (re)produção, que poderiam ser públicas, ou seja, declaradas ou, por outro lado, ocultas, reprimidas e, por isso, capazes de conduzir a transgressões.

Trataremos, agora, de enunciar nosso objeto: os movimentos sociais e as possibilidades de mudanças na apropriação do espaço através dos projetos de revitalização das velhas zonas portuárias. Ao pensarmos nosso objeto, dirigimo-nos para a relação entre espaço abstrato e espaço social como forma de elucidação das transformações da metrópole carioca. Estamos entendendo espaço abstrato, como a exteriorização de práticas econômicas e políticas que se originam com a classe capitalista e com o Estado. É fragmentado, homogêneo e hierárquico. No que concerne ao espaço social, trata-se do espaço dos valores-de-uso produzidos pela complexa interação de todas as classes no cotidiano. Nesse sentido, podemos afirmar que é a tensão entre valor-de-uso e valor-de-troca que produz o espaço social de usos, produzindo também, simultaneamente, um espaço abstrato de expropriação. Objetivamos apontar, ligeiramente, como os agentes envolvidos no projeto de transformação da área do porto da cidade do Rio de Janeiro o fazem quase sempre desconsiderando os anseios dos cidadãos envolvidos; e que formas de mobilização social têm se apresentado frente a tal projeto. Em meio a tais propostas de transformação e movimentos dispersos que questionam o encaminhamento do projeto, é possível observarmos que a atuação dos agentes se dá a partir de relações construídas em escalas local-local e local-global. O que estamos tentando deixar claro é que vivenciamos um conflito entre interesses engendrados em torno do espaço social – local dos valores sociais de uso e do desdobramento de relações sociais no espaço – e em torno do espaço abstrato – enquanto espaço de desenvolvimento imobiliário e administração governamental, por exemplo.

A proposta de transformação da área portuária carioca não é nova, tendo sido cogitada pelos três últimos prefeitos da cidade; entretanto, atualmente, configurou-se uma conjuntura política que alinhou as três esferas de governo: municipal, estadual e federal. O discurso dessa união foi fortemente utilizado na campanha vitoriosa para o Rio de Janeiro sediar os Jogos Olímpicos de 2016, já tendo sido utilizado anteriormente na campanha para o Brasil tornar-se a sede da Copa do Mundo de 2014. Atualmente o projeto foi posto em curso e as licitações estão sendo abertas. O empresariado se movimenta e o governo tem tido a mídia escrita e televisiva como aliados, sem um debate anterior que pudesse dar voz à população que vive no/do local. Entretanto, como já nos dizia Capel (2005), há inúmeros políticos e técnicos que se negam a ouvir críticas e, dessa forma, afastam-se dos debates acerca da produção da cidade. Há certa insatisfação por parte de pequenos grupos sociais (organizações de artistas e músicos, associação de moradores) e certo silêncio por parte da academia; em contrapartida há muita publicidade no que tange aos possíveis benefícios que tal projeto pode trazer.

Temos de estar atentos quanto a propostas homogeneizantes, que não levam em conta a história dos lugares e seus valores arquitetônicos construídos. É preciso escapar das possíveis armadilhas que propostas vistas como grandes avanços podem representar. A associação Capital-Estado tem usado o espaço de forma a assegurar o controle dos lugares através da homogeneização do todo e a segregação das partes.

Voltando ao passado e pensando o presente

A cidade do Rio de Janeiro teve desde sempre uma história de grandes transformações, que sempre foram decididas autoritariamente pelas instâncias governamentais, pelos especialistas, e pelo que estamos vendo, a história torna a repetir-se. Acreditamos que seja necessário pensar na utilização da velha zona portuária da cidade, entretanto o atual projeto baseia-se em “fórmulas de sucesso” realizadas em outras cidades mundo afora; o foco encontra-se na atividade turística como mobilizadora dessa área. De fato, os governantes têm “vendido” a cidade do Rio de Janeiro no cenário internacional como algo único, um lugar que reúne a modernidade de uma grande metrópole e as belezas naturais incomparáveis. Entretanto, historicamente os recursos adquiridos através do turismo não têm sido investidos nas necessidades mais prementes dos moradores da cidade, assim é questionável o discurso de que os recursos serão utilizados em benefício de todos. A aplicação dos recursos públicos vem desde muito tempo dirigindo-se aos bairros nobres da cidade.

No início do século XXI, percebemos que cada vez mais os governantes procuram construir uma marca para suas cidades; contudo o “sucesso” de uma determinada cidade acaba provocando um movimento que objetiva copiar aquilo que teria dado certo, levando à homogeneização das formas-conteúdo, pois acreditam que assim atrairiam investidores. Contradição. Tem-se, simultaneamente, um discurso que defende a manutenção dos centros históricos – vislumbrando o potencial de exploração turística dessas áreas – e o crescimento do número de condomínios fechados e shopping centers. Os velhos centros muitas vezes não são vistos como opção para habitação, mas como possibilidade para o crescimento de atividades comerciais. Nesse caso, mais a frente falaremos do processo de gentrificação.

Em administrações anteriores, alguns prefeitos falaram da “necessidade de revitalizar a zona portuária”, mas os projetos mantiveram-se apenas nas gavetas; alguns simples, outros mais exuberantes, como a proposta do então prefeito César Maia que quisera construir uma filial do Museu Guggenheim, que teria parte do prédio sob as águas da Baía de Guanabara. Outro prefeito, Luiz Paulo Conde, falara em por abaixo todo o elevado da Perimetral – que tem enorme fluxo viário – para devolver a vista da baía para a cidade, contudo especialistas da engenharia de tráfego afirmavam que tal obra daria um nó no trânsito da cidade e afetaria inclusive a cidade vizinha, Niterói. Tal proposta recebeu essa crítica justamente devido à opção feita pelo automóvel durante o crescimento e expansão da malha urbana; o Rio de Janeiro tem problemas significativos ao que tange ao transporte coletivo. Impossível negar que a construção do elevado da Perimetral é um grande transtorno não apenas no sentido estético, mas também ao que tange à vida dos cidadãos, que é afetada por essa via. O elevado que surgiu como solução para um problema, trouxe outros malefícios para toda a área que ficou sob ele, inclusive a área central e a zona portuária, que se tornaram escuras e vazias. O elevado da Perimetral é uma via expressa de aproximadamente 7 Km de extensão, que liga a Zona Norte à Zona Sul da cidade. O elevado foi construído em partes, tendo sido o primeiro trecho idealizado na década de 1940 e ligava a área do Calabouço – onde se localiza atualmente o Aeroporto Santos Dumont – à altura da Igreja da Candelária; posteriormente continuou pela Praça Mauá, contornando o Mosteiro de São Bento e seguindo sobre a Avenida Rodrigues Alves; apresentando a sua última fase de ampliação em sua ligação com a Ponte Rio Niterói, mas isso já se deu no início dos anos de 1970. A obra visou desafogar o trânsito, já denso na época, permitindo que os veículos atravessassem da Zona Sul a Zona Norte sem ter que passar pelo centro da cidade. Obra tão grande acabou por destruir boa parte das pequenas ruas no entorno do Museu Histórico Nacional, becos que datavam da época da ocupação do Morro do Castelo. Outra construção belíssima que se perdeu foi o Mercado Municipal.

Atualmente, mais uma vez, agora com as três esferas de governo alinhadas, surge um projeto de “revitalização da zona portuária” – chamado pela prefeitura de Projeto de Revitalização Porto Maravilha – e se fala em por abaixo parte do elevado. Com a vitória da candidatura carioca para sediar as Olimpíadas de 2016, já há urbanistas que defendem a utilização da zona portuária para realização de certas competições; entretanto isso significa alterar o projeto aprovado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), visto que grande parte está prevista para realizar-se na Barra da Tijuca. Aliás, uma observação cuidadosa dos vídeos produzidos pelos representantes do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) apresentando a candidatura do Rio de Janeiro ao Júri internacional, permite-nos perceber uma cidade idealizada, um sopro de ilusão, a criação de uma imagem que não corresponde ao real.

Parece-nos que a mercadificação da cidade, o city marketing e a implementação do empresariamento na governança da cidade trazem consequências danosas aos citadinos; estamos de acordo com o geógrafo inglês David Harvey (2005, p. 189), o qual acredita que o fortalecimento da competição de mercado entre as cidades produz impactos regressivos na distribuição de renda e a efemeridade dos benefícios trazidos por muitos projetos. Acredita ainda que “a concentração no espetáculo e na imagem, e não na essência dos problemas sociais e econômicos também pode se revelar deletéria a longo prazo, ainda que, muito facilmente, possam ser obtidos benefícios políticos”.

Acreditamos que se torna cada vez mais necessária a criação de formas de participação, por parte dos cidadãos, nas decisões de produção do espaço da cidade e que tais formas não devem se ater aos marcos institucionais do Estado; estamos pensando em ir além das propostas de orçamento participativo, por exemplo. Participar significa desejo de intervir, significa ter um sentimento de pertencimento a um grupo social, à cidade e vontade de transformar o estado de coisas atual.

City-marketing e a implementação do empresariamento na governança da cidade

Muitas cidades têm seguido as definições de uma política empreendedorista, investindo em infra-estrutura ligada às atividades turísticas, muitas vezes aproveitando-se de eventos internacionais como o fizeram Barcelona (Jogos Olímpicos, 1992 e o Fórum de las Culturas, 2004), Lisboa (Expo'98) ou Sevilha (Expo'92); o Rio de Janeiro vem seguindo o mesmo caminho: Jogos Pan-Americanos 2007, Copa do Mundo de Futebol 2014, Olimpíadas 2016.

A cidade do Rio de Janeiro tem uma especificidade que a diferencia de outras, visto que foi capital da Colônia, do Reino Unido, do Império Brasileiro e depois capital da República. Sem dúvida esse fato fez com que grande parte do acervo cultural do país para ali se destinasse e, obviamente, há ainda reflexos disso: sai do Rio de Janeiro cerca de metade da produção teatral do país, aproximadamente 60% da produção cinematográfica, 75% do conteúdo audiovisual independente, sem falar da indústria fonográfica – visto que a Sony Music-BMG, Universal Music, Warner Music, EMI mantêm sua sede na cidade –, encontra-se na cidade o maior número de museus do país (são 80 museus, segundo o cineasta Sérgio Sá Leitão), a Biblioteca Nacional, considerada pela UNESCO uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo e a maior da América Latina, o Real Gabinete Português de Leitura (com o maior acervo de literatura portuguesa fora de Portugal) etc. Além disso, conta ainda com diversas universidades públicas, das quais saem aproximadamente 38% da produção científica do país. Segundo dados de 2005 e 2006, o Rio de Janeiro foi a cidade brasileira que mais lucrou com cultura no país; o equivalente a 7% do PIB, ou seja, algo em torno de R$4 bilhões por ano.

Em se tratando da morfologia urbana, observando a orla carioca é possível identificar as tendências da arquitetura moderna através do tempo: o Centro da cidade com prédios dos anos de 1910 a 1920, o bairro do Flamengo representando a década de 1940, Copacabana os anos de 1950, Ipanema a década de 1960, Leblon os anos de 1970, São Conrado e o início da Barra da Tijuca a década de 1980 e o resto da Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes os anos de 1990 a 2000.

O casario do Centro do Rio apresenta riqueza incrível, com uma variedade de estilos que vão desde a arquitetura típica colonial portuguesa, com sobrados e azulejos, até as construções inspiradas nos prédios de Paris, como por exemplo o Theatro Municipal (inspirado no Opera de Paris) e a Biblioteca Nacional. Além disso, há inúmeros exemplos de Art Deco, modernismo e pós-modernismo. Tamanha variedade esteve também ligada ao fato de ser a cidade capital por tanto tempo.

Contudo essa capitalidade não trouxe apenas benefícios, e um exemplo disso é o fato de o Rio de Janeiro não ter construído uma oligarquia local estruturada em torno de interesses regionais. A cidade estava acostumada a ser administrada por elites recrutadas em todo o país e as decisões compatíveis com os interesses da nação compunham o quadro de referência para a prosperidade urbana. Isso levou o economista Carlos Lessa (2001, p. 355) a afirmar que “o Rio viu seus interesses locais serem atendidos sempre subordinados e em nome da função política maior da nação. Não se sentia discriminado, pois, pelo contrário, estava acostumado a ser pioneiro nas atenções. Essa displicência, explicável pelo seu longo passado como capital, lhe custou caro quando perdeu a função”.

Ao que parece, a população carioca, sem uma retaguarda econômica regional espacialmente definida, acabou não desenvolvendo uma força política em defesa da cidade, isso porque como o progresso do Rio de Janeiro derivava, em grande parte, de sua capitalidade, os aperfeiçoamentos aconteciam sem competição inter-provinciana. Quando da mudança da capital para Brasília, a cidade viu-se perdida, visto que sua história fora construída praticamente durante toda sua existência baseada em uma realidade que não mais existia.

Entre um breve período em que se transformou em Cidade-Estado (Estado da Guanabara), logo após a mudança da capital para Brasília, permaneceu distante do interior – Estado do Rio. Porém, o golpe militar além de trazer máculas que nos assombram até hoje, promoveu a fusão do Estado da Guanabara e do Estado do Rio, dando origem ao Estado do Rio de Janeiro que conhecemos atualmente. Não é nosso objetivo aprofundar-nos nesse debate, mas ainda hoje surgem vozes que clamam pela “desfusão”. Fato é que, a partir de então, o município teve que lutar por recursos, fato pelo qual nunca havia passado e talvez ainda precise aprender a fazê-lo. Contudo, há problemas que acompanham a cidade desde muito tempo, como a não resolução do sistema de transporte de massas. Se no início do século XX já havia problemas ligados ao transporte coletivo, esse problema continuou existindo, principalmente com a prioridade dada ao automóvel. O Plano Doxiadis (1965) – encomendado pelo então governador Carlos Lacerda – projetou o Rio de Janeiro como metrópole polinucleada e organizada segundo corredores rodoviários. Aliás, o próprio Plano Lúcio Costa para a Barra da Tijuca (1969) corrobora com essa lógica. No Plano Doxiadis já estavam previstas vias expressas, as chamadas Linhas Vermelha, que liga o município do Rio de Janeiro ao município de São João de Meriti; Amarela, que liga o bairro da Barra da Tijuca à Ilha do Fundão; Lilás, a primeira a ser realizada, que liga o bairro de Laranjeiras à Santo Cristo (contudo em alguns pontos perde a característica de via expressa); Azul, não realizada, que ligaria a Zona Sul à Barra da Tijuca; Marrom, também não realizada, que ligaria o bairro do Rio Comprido – passando por vários bairros da Zona Norte – à Santa Cruz, na Zona Oeste; e, finalmente, a Linha Verde, que ligaria a Rodovia Presidente Dutra (conhecida como Estrada Rio-São Paulo) ao Bairro da Gávea, na Zona Sul da cidade. Esta linha não foi concluída, tendo apenas a Avenida Automóvel Clube e o Túnel Noel Rosa sido realizados. Um dos empecilhos para a concretização dessa via foi a pressão dos moradores da Gávea, que acreditavam em uma possível desvalorização de seus imóveis com a concretização da obra. No governo de Carlos Lacerda (1960-1965) deram-se o aperfeiçoamento das avenidas Suburbana e dos Democráticos, além da construção dos viadutos de Benfica e Del Castilho, das avenidas Radial Oeste e Maracanã e, também a construção do Túnel Rebouças (2720 m). A febre do automóvel tem sequência no governo de Negrão de Lima (1965-1970), que concluiu 22 novos viadutos (cinco já estavam em construção anteriormente), alargou a Avenida Atlântica, construiu a Perimetral e duplicou a pista da Lagoa. Por sua vez, na administração do governador Chagas Freitas (1971-1975) foram construídos os dois túneis de acesso à Barra da Tijuca e a totalidade da Estrada Lagoa-Barra, além de inaugurar a Ponte Rio-Niterói.

Todas essas obras, embora importantes, contribuíram para o abandono do transporte sobre trilhos, haja vista que a primeira linha de metrô no Rio de Janeiro é inaugurada tardiamente em março de 1979. Apesar de até agora contar apenas com duas linhas (Saenz Peña-General Osório e Estácio-Pavuna), com aproximadamente 42 Km, é a segunda maior do país em extensão, perdendo apenas para São Paulo. Fato é que essas duas linhas não atendem às necessidades da população e chega a ser absurdo que uma cidade do porte do Rio de Janeiro tenha apenas duas linhas que se tocam apenas uma única vez; não há basicamente entroncamentos para transferência[1]. Contudo, o atual governador tem manifestado-se quanto a construção da Linha 4, que iria até a Barra da Tijuca, até porque seria uma forma de facilitar o deslocamento, visando já a Copa do Mundo de futebol em 2014 e as Olimpíadas de 2016.

A verdade é que a administração pública do Rio de Janeiro priorizou, de fato, por muito tempo, o transporte viário. Para a indignação de Lessa (2001, p. 369), além da prioridade ao automóvel, acabaram utilizando “em seu sistema de circulação de passageiros, outro veículo automotor: o ônibus. Hoje incorpora a van, cuja forma pré-histórica foi a lotação”. Todavia, mais uma vez os governantes voltam a apontar para a necessidade de se repensar tal estratégia e asseguram que agora não é possível resolver o problema do trânsito na cidade sem ter em conta a alternativa do metrô. Curiosamente o ponto de partida não é a necessidade de dar melhores condições de transporte coletivo à população da cidade como um todo, mas “desafogar” o trânsito; isso deixa nas entrelinhas o objetivo de facilitar a vida de quem circula de automóvel.

Mas falamos, há pouco tempo, do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016; isso faz parte de uma estratégia para alavancar o nome do Rio mundialmente e atrair mais capital para a cidade. A todo momento os dirigentes das três instâncias seguem afirmando que estão trabalhando juntos pelo Rio de Janeiro. Entretanto, sediar as Olimpíadas era um sonho anterior a esse governo, visto que a cidade havia concorrido para sediá-las em 2012. Torna-se claro o marketing realizado junto à população carioca e brasileira para apoiar a candidatura da cidade e o trabalho realizado no exterior objetivando convencer os membros do COI (Comitê Olímpico Internacional). Os administradores das cidades têm-se tornado cada vez mais uma espécie de “vendedores de cidades”, em que o mais importante é criar uma imagem vendável da cidade. Os dirigentes cada vez mais procuram adaptar as cidades aos mercados internacionais e um dos meios utilizados é o denominado planejamento estratégico. O geógrafo espanhol Jordi Borja (1996) afirma que o plano estratégico é a definição de um projeto de cidade “que unifique diagnósticos, concretize atrações públicas e privadas e estabeleça um quadro coerente de mobilização e cooperação dos atores sociais urbanos”; cremos que a expressão “projeto de cidade” tem muita força, tal qual a expressão “desenvolvimento”.

O geógrafo espanhol aponta para a necessidade de haver a presença de uma forte liderança para conduzir as ações do plano estratégico e isso vai ao encontro da postura de nossos ex-prefeitos e do atual, que procuram a todo custo deixar uma marca de seus governos, preferencialmente com grande monumentalidade. Caberia também ao prefeito a capacidade de articulação com as outras instâncias de governo (estadual e federal) para a viabilização de grandes projetos, a promoção interna da cidade – criando nos habitantes o desejo de ver o projeto acontecer – e construir uma promoção externa da cidade, visando à atração de investidores.

Para a implementação desses projetos, o city marketing cumpre importante papel, pois como lembra o geógrafo Georges José Pinto (2001, p. 21), “é uma promoção da cidade que objetiva atingir os seus próprios habitantes bem como os possíveis e eventuais investidores, que busca a construção de uma nova imagem de cidade, dotada de um forte impacto social”. Trata-se da espetacularização da cidade e para tanto, projetos com nomes impactantes são importantes: Favela-Bairro, Rio-Cidade e Porto Maravilha são exemplos para o caso do Rio de Janeiro. Certamente, por trás desses projetos há articulações de diversos grupos econômicos, visto que as transformações nas cidades envolvem atores sociais ligados aos setores imobiliário, de transportes, de turismo, de construtoras e de prestadoras de serviços de modo geral. Por tudo isso, o Rio de Janeiro tem se tornado cada vez mais uma mercadoria, um objeto a ser negociado em um mercado competitivo, o que autoriza o professor de planejamento urbano e regional Carlos Vainer (2000) a afirmar que houve uma transposição do modelo estratégico do mundo das empresas para o universo urbano.

Assim, agências multilaterais – BID, Banco Mundial, PNUD, Agência Habitat, dentre outras – e consultores internacionais acabam construindo ideários e modelos que afirmam que as cidades devem comportar-se como empresas e adotar uma postura vencedora em um mundo que é visto como um mercado em que cidades competem entre si. Dessa forma, esse ideário defende que grandes projetos urbanos, recuperação de centros históricos, parcerias público-privadas e revitalizações fomentam a produtividade e competitividade da cidade, assegurando – graças à atração de investimentos, turistas e grandes eventos – uma inserção de sucesso no mundo globalizado. Além disso, surgem também como opção a criação de parques associados a grandes projetos imobiliários de condomínios de alto poder aquisitivo e  de shopping centers. A parte do tecido urbano avaliada pelos empreendedores como degradada ou habitada por grupos sociais de baixo poder aquisitivo, como velhas áreas fabris, armazéns em antigas zonas portuárias, tornam-se áreas potenciais para passar por refuncionalizações e para transformarem-se em novos complexos de consumo. Os governos municipais procuram transformar a cidade em imagem publicitária, em produto-cidade, assim o city marketing cuidará de produzir imagens sínteses, já que não são mais apenas parcelas do solo que são vendidas, mas eles criam uma imagem de cidade que se refere a uma parte da cidade, todavia que é vendida como se valesse para a cidade como um todo. Durante os Jogos Pan-Americanos 2007, no Rio de Janeiro, as imagens que eram veiculadas na TV, pouco antes da entrada dos comerciais, eram as praias, o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Maracanã; as imagens aéreas que se sucediam mostravam um Rio de Janeiro sem favelas, por exemplo.

Grande parte dos projetos de revitalização, que alteram as características do lugar criando novas fronteiras urbanas, acaba levando a processos de gentrificação, que de certa forma não deixa de ser uma forma de espoliação. Cabe, aqui, fazer um breve esclarecimento acerca da expressão gentrificação, que nasce do termo inglês gentrification, cunhado por Ruth Glass (1963), para esclarecer o repovoamento, por famílias de classe média, que vinha acontecendo em bairros desvalorizados de Londres na década de 1960, levando à transformação do perfil dos moradores. Atualmente, usa-se gentrificação para falar da “revitalização”, da “recuperação” ou da “requalificação” (seja lá qual for a expressão) de locais degradados a partir de iniciativas públicas e privadas. Trata-se de um fenômeno de natureza multi-dimensional, que reúne modernização e deslocamento; ou seja, referimo-nos à modernização e à melhoria de antigos prédios associadas ao desenvolvimento de atividades culturais em determinadas áreas residenciais, levando ao deslocamento dos antigos moradores. A questão é que após o investimento em infra-estrutura, há uma maior valorização do lugar; assim, observamos que os antigos moradores não resistem ao encarecimento do local, tendo que buscar outra área com custo de vida mais baixo. Se, inicialmente, a gentrificação ligava-se ao mercado residencial, o enobrecimento dos lugares acabou incorporando áreas de lazer com complexos culturais voltados também para o turismo. Assim, o geógrafo belga Mathieu Van Criekingen (2007) define dois tipos de gentrificação – residencial e de consumo – que levam à produção glamourizada do espaço através da maior sofisticação dos ambientes. A mídia exerce importante papel ao promover esses locais, ajudando a criar discurso hegemônico acerca do lugar, que contribui cada vez mais para a atração de consumidores.

Tornar-se competitiva virou sinônimo de ter capacidade de atrair investimentos internacionais, porém para isso são necessárias grandes reformas estruturais para adaptar as cidades às exigências internacionais, o que leva as administrações públicas a assumirem custos altíssimos que são socializados com toda a população. Os profissionais de publicidade contratados têm importante papel, visto que elaboram discursos que dão sustentação aos projetos propostos. Procuram incutir no imaginário social, inclusive até no dos mais despossuídos e excluídos do seu usufruto, que esses projetos trarão mais “qualidade de vida” aos habitantes.

“Grandes projetos para a zona portuária” e a negociação entre as instâncias de governo e o empresariado

Recentemente, em meados de 2009, foi realizada uma cerimônia no Píer Mauá, centro do Rio de Janeiro, que contou com as presenças do presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, do governador Sérgio Cabral e do prefeito Eduardo Paes, em que foram assinados os acordos que dão andamento, oficialmente, ao projeto. Mais especificamente, os editais definem as regras para execução das obras para o projeto denominado “Porto Maravilha”. A parceria entre as três esferas de governo ainda fez com que a União cedesse oficialmente a propriedade do Píer Mauá para o município, que segundo o projeto seria transformado, recebendo quiosques, chafarizes, pérgulas, anfiteatro e um espaço multiuso, tornando-se mais um parque para a cidade do Rio de Janeiro. Essa parceria mostrou-se importante, visto que a situação fundiária da zona portuária englobava as três instâncias de governo. Entretanto, pouco antes de serem iniciadas, as obras do futuro parque no Píer Mauá já foram alteradas pela prefeitura da cidade. O próprio prefeito afirmou que o projeto anterior dará lugar “a um equipamento público desenhado por um arquiteto de renome internacional”. O arquiteto escolhido para a criação foi o espanhol Santiago Calatrava, que se destaca pelos projetos que se remetem a animais. Acredita o alcaide que o projeto tornar-se-á um marco da Terceira Cúpula da Terra (Rio+20) – evento que acontecerá no Rio, no final de 2012, e que terá como objetivo o engajamento dos líderes mundiais com o desenvolvimento sustentável do planeta (seja lá o que ele entenda por essa expressão!). O desejo do prefeito carioca vai ao encontro dessa máxima que vê esses grandes projetos arquitetônicos de grande monumentalidade como alavancadores de investimentos para as cidades. A prefeitura acredita que a futura Pinacoteca do Estado do Rio juntamente com o Museu do Amanhã – orçados em aproximadamente R$ 150 milhões – podem servir como “âncoras culturais” da iniciativa. Ao se afirmar que os dois museus serão realizados em parceria com a iniciativa privada, significa dizer que as obras serão realizadas com recursos públicos do Ministério do Turismo e da prefeitura; já o conceito, a elaboração e a implantação estariam a cargo da Fundação Roberto Marinho. Além disso, como criado em praticamente todas as grandes obras de transformação das zonas portuárias de outras cidades espalhadas pelo globo, há o projeto do AquaRio, o Aquário Marinho do Rio, que prevê a reutilização do antigo armazém frigorífico da Cibrazem, na zona portuária.

O patrimônio construído, infelizmente, exposto à lógica do capital corre o risco de desaparecer. Principalmente porque essa expressão ou “patrimônio arquitetônico” remete a edificações “com assinatura” ou de caráter monumental, com uma carga simbólica e remetimento ao passado que leva a uma significação histórica indiscutível, como nos lembra o historiador espanhol Francesc Caballé i Esteve (2003). No entanto, o que foge dessa característica leva, muitas vezes, a pessoa comum a não se incomodar com a derrubada de “prédios velhos e sem uso” (expressão usada por vários moradores da cidade ao se referirem aos antigos galpões e fábricas da zona portuária). Se grandes obras não têm recebido o devido cuidado, que dizer daquelas menos emblemáticas? Aliás, ao contrário do que deveria, os valores históricos dos imóveis são vistos pelos proprietários, promotores imobiliários e administração pública como empecilhos para a realização de seus projetos; o que aponta para o risco de perda de uma parte de nossa história. As construções localizadas na zona portuária estão sujeitas a esse risco, visto que a administração pública apresentou o novo projeto de revitalização, denominado Porto Maravilha, e para angariar mais verba para o empreendimento pretende ter a ajuda da iniciativa privada.

Acreditamos que os maiores problemas recairão sobre a população mais pobre que reside nos bairros da zona portuária; o que em princípio pode parecer contraditório, visto que no projeto da prefeitura há lugar para construção de habitações. O que nos assusta é a maneira segundo a qual a prefeitura vai angariar verba para dar sequência à segunda fase do projeto. Os recursos para a obra viriam do lançamento no mercado – por uma empresa municipal chamada Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio (CDURP) – de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), os quais seriam títulos que dariam aos empreendedores direitos de construção gerados pelas modificações na legislação urbanística da área. O próprio prefeito apresentou o projeto dos CEPAC, em que constava a criação dessa companhia, que receberia os terrenos das três esferas de poder localizados na zona portuária. Após a modificação da legislação urbanística, essa sociedade negociaria no mercado os CEPAC. A CDURP, então, será responsável pelo controle da operação financeira de emissão dos CEPAC, os quais serão vendidos a partir do segundo semestre de 2010. A prefeitura acenou com a revisão da legislação nos bairros da Gamboa, Saúde, Cidade Nova, Caju e da zona da Leopoldina, apresentando no projeto áreas de uso residencial, comercial, misto e de habitação social. Assim, ao adquirir os CEPAC os interessados poderiam utilizar-se do potencial de construção gerado pelas alterações. O dinheiro auferido com a venda dos certificados, segundo representantes da prefeitura, financiaria parte das obras de revitalização do Porto do Rio. O prefeito afirmou, também, que o dinheiro gerado pela negociação dos CEPAC financiaria as obras de infra-estrutura urbana, orçadas em R$ 3 bilhões, em uma área de cinco milhões de metros quadrados no entorno do porto. O investimento destinar-se-ia à adequação da área para atrair grandes empresas e grandes empreendimentos residenciais; para isso seriam recuperados – ou em parte criados – 61 quilômetros de ruas e, também, haveria obras de urbanização e implantação de ciclovias, além da ampliação das redes de água e esgoto, energia elétrica, gás e telecomunicações; inclusive, a rede de iluminação seria totalmente subterrânea. A área contaria ainda com duas linhas circulares de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que ligariam o porto à Estação Central e à futura Estação Cidade Nova do metrô.

Assim, é possível imaginar que os investidores esperados pelo governo somente interessar-se-iam pelo investimento nos Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC) se vislumbrassem um retorno financeiro apropriado. Nada mais lógico! E é justamente essa lógica que nos faz acreditar que a mudança na legislação urbanística da zona portuária atenderá aos interesses dos possíveis investidores e não da população mais necessitada. Todo processo tem tido como objetivo a preparação da zona portuária para a demanda por empreendimentos comerciais, de entretenimento e residenciais, a começar pela aprovação da construção de arranha-céus de até 50 andares em determinados trechos, em troca de recursos para investir em infra-estrutura urbana na área, incluindo os bairros de São Cristóvão, Cidade Nova, Saúde, Gamboa, Caju, Santo Cristo e parte da Avenida Presidente Vargas e ruas internas, a partir do uso dos CEPAC. Nos terrenos incluídos no projeto do Porto poderão ser construídos prédios residenciais ou mistos (também com aproveitamento como escritórios), universidades, supermercados, clubes, hotéis, hospitais e igrejas. Repete-se, no Rio de Janeiro, aquilo que temos observado em outras cidades ao redor do mundo, que fazem enormes e custosas obras de infra-estrutura – objetivando o crescimento de entrada de investimentos – e que se vêem obrigadas a fazer novos investimentos para viabilizar aquilo que foi construído inicialmente.

O núcleo central da cidade teve proibido o uso de imóveis para uso residencial até meados da década de 1990, o que acabou promovendo o esvaziamento da área após o horário comercial. A expansão dos negócios em direção da Barra da Tijuca contribuiu ainda mais para a migração de empresas do Centro do Rio de Janeiro, o que levou à alteração da lei, permitindo então o uso residencial na área do núcleo central. A atual proposta de transformação da legislação de uso do solo na zona portuária traz, novamente, o risco de redução do uso residencial, desta vez devido ao crescimento de empreendimentos imobiliários que estejam dirigidos a prédios de negócios, hotéis, restaurantes e de lazer. A pressão da academia e de grupos organizados sobre os administradores públicos fizeram com que a prefeitura apresentasse propostas de uso residencial para a área. Há áreas previstas para uso residencial, para uso misto (residencial e comercial) e para habitação popular, entretanto, a área prevista para esta última categoria já é ocupada por população de baixa renda, que se encontra nos bairros de Gamboa e Santo Cristo. Além disso, o projeto intitulado Segunda Fase de Reurbanização da Zona Portuária prevê que as empresas as quais optarem pela construção de prédios residenciais poderão usufruir de 30% a mais em metros quadrados em comparação com os empreendimentos comerciais. Evidentemente, essa estratégia aponta para a possibilidade de balancear a população da área que sofrerá intervenção, evitando o predomínio de empreendimentos comerciais, entretanto não há garantia de que o empresariado opte por tal opção.

Evidentemente, a zona portuária e suas adjacências precisam ser vistas com mais cuidado e é necessário que se façam investimentos para a melhoria das condições de vida dos moradores do local. Como pudemos perceber, há nessa área várias habitações de população de classe média baixa e de baixa renda. Os moradores mais antigos do bairro, que vivenciaram um período de grande movimentação no porto e de empregos gerados pelas fábricas na década de 1950, são os mais preocupados com o abandono dos bairros. Houve importante êxodo residencial, comercial e industrial da área denominada zona portuária, assim o abandono de galpões e mesmo de residências permitiu a ocupação de vários deles por moradores de rua. Segundo entrevistas realizadas, mais de 40% dos entrevistados reside na área há mais de 20 anos. Contudo, o empresariado só terá interesse em investir nos CEPAC se tiver, no horizonte, um retorno garantido para seu capital. Assim, sem uma organização da sociedade em torno de seus anseios para a área, muito provavelmente a velha zona portuária da cidade transformar-se-á em uma cópia de outras denominadas revitalizações realizadas em outras cidades ao redor do planeta e que podem não estar condizentes com as necessidades da população, pois sabemos que o capitalismo tem se reproduzido produzindo novos espaços, entretanto o faz através de fragmentações e de segregação espacial.

Quem dá ouvidos à população?

Estes questionamentos são de difícil resposta. Passamos, por cerca de duas décadas, por uma ditadura militar que restringiu muitíssimo a participação da sociedade nas decisões do governo e nesse período não eram permitidas as manifestações populares. Durante esse tempo, houve um afastamento da maior parte da população dos assuntos ligados às administrações públicas.

Com o passar dos anos e o fim da ditadura, na primeira metade da década de 1980, havia uma efervescência no povo brasileiro, uma movimentação social grande, que passava pelas associações de bairro, pelo nascimento de novos partidos políticos e pelos sindicatos de trabalhadores. Entretanto, na década seguinte essa mobilização arrefeceu-se. Denúncias de corrupção de políticos, troca-troca de partidos, o empeachment por corrupção do primeiro presidente eleito diretamente após a ditadura – Fernando Collor de Mello – de alguma forma contribuíram para a implementação de um discurso de que política era coisa de pessoas mal intencionadas. É preciso que tenhamos em conta que a política não se limita ao que fazem os políticos eleitos, sendo uma atividade extremamente importante e que diz respeito à atividade do cidadão quando intervém nos assuntos públicos com sua opinião, voto ou por qualquer outra forma de manifestação. Certa vez ouvi uma observação vinda de um motorista de táxi: “a política é importante demais para se deixar apenas nas mãos dos políticos”.

Acreditamos ser necessário reivindicar a função política dos cidadãos, pois toda a vida é política e a transformação somente é possível através da atividade política. É preciso que tenhamos a consciência de que é necessária nossa participação nas questões que dizem respeito à coletividade, é preciso que nos sintamos responsáveis e pertencentes a um grupo social que vive em determinada rua, em determinado bairro, cidade, país...

O marketing e a publicidade de que falamos anteriormente em relação às cidades, são também usados pelos políticos, que cada vez mais afastam-se da população. Os meios de comunicação servem para informar aos políticos os desejos do eleitor. Nesse sentido, os telejornais acabam tornando-se os produtores da agenda política e definem também as conversas que serão travadas na manhã seguinte pelos telespectadores. São esses mesmos órgãos de imprensa que afirmam que a população carioca aprovou a realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, ou que é a favor das Olimpíadas de 2016 na cidade ou, ainda, que aprova o projeto de revitalização proposto pela prefeitura. Para escapar deste labirinto de (in)certezas, é preciso que sejam criadas formas de participação cada vez mais fortes e que contribuam para construirmos cidades que verdadeiramente representem o desejo dos cidadãos. Mas para isso convém trazer para o debate a questão dos movimentos sociais e para que servem eles.

Vivemos em uma grande cidade e é comum ouvirmos falar na necessidade de restabelecer a ordem, inclusive o prefeito Eduardo Paes iniciou sua administração propondo choques de ordem. Quando se fala em restabelecer a ordem, é porque há desordem e aí as (in)certezas do labirinto crescem bastante. Habituamo-nos a entender a ordem através do viés do engenheiro e dos arquitetos, um ordenamento que se mostra na organização dos quarteirões, ruas, sinais de trânsito, nas praças e na segurança pública. Lembra-nos a geógrafa Júlia Berezovoya Assis[2] (2008, p. 15) que para alguns “a desordem pode ser o comércio informal dos camelôs, as moradias populares nas encostas dos morros, a prostituição. Para outros a desigualdade, a densidade demográfica, o desrespeito aos moradores de rua” ou também o preconceito contra os moradores de favelas.

Importa, antes de tudo, ter em mente que para falarmos de movimentos sociais, torna-se necessário partir do cotidiano, que engloba grupos organizados, valores, meios de produção, lugares de encontro e de conflito, diferenças... Assim, afastamo-nos do discurso que associa relações de poder apenas ao Estado; o poder é multidimensional, visto que as relações sociais são relações de poder. Se acrescentarmos a esta afirmação o fato de serem as relações sociais também relações espaciais, o grau de complexidade torna-se ainda maior. Nesses termos, não há dúvida: onde há poder há também resistências. Todavia, o Estado exerce papel diferenciado no jogo de poder, pois é uma instância de poder separada do restante da sociedade por configurar uma divisão estrutural entre dirigentes e dirigidos. Esse fato faz com que o geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2006, p. 39) afirme que associando a forte correlação entre o exercício do poder estatal, a reprodução de privilégios econômicos e a exploração de classe, percebamos que “o Estado é uma instância não somente de poder, mas de dominação”. Neste ponto acreditamos que a sociedade civil tenha um papel fundamental, mas é necessário que ultrapasse apenas a crítica (quando muito...) e constitua-se numa opositora aos projetos conservadores. Sabemos que o espaço é um produto social e, nesse sentido, produzido com certas intencionalidades, o que nos faz acreditar que é preciso que a sociedade civil elabore suas próprias propostas e lute por sua implementação independentemente dos mecanismos elaborados pelo Estado. Alias, Souza (2006, p. 273) acredita que a sociedade deve gestar “suas próprias propostas e, à revelia do Estado, apesar do Estado e contra o Estado, [deva buscar] concretizá-las”.

Em cada período histórico são construídas formas espaciais que dêem sustentação ao modelo vigente; assim, mesmo as decisões sendo econômicas na base, são sempre opções políticas. Neste pequeno artigo não entraremos no debate travado pelas principais correntes teóricas e sua conceituação de movimentos sociais, partiremos da percepção de movimentos sociais urbanos como aqueles que se colocam em oposição à determinada situação do cotidiano, tentando – a partir de sua organização – transformar aquilo que lhes aflige, podendo para isso usar a força ou a coerção. Essa é uma percepção generalista, pois em se tratando da história recente brasileira, os movimentos não têm feito uso da força. Ao que nos tange, as mobilizações têm se concentrado na pressão ao poder público para conseguir suas reivindicações.

Quando nos referimos aos movimentos sociais urbanos, temos de ter em conta sua diferença em relação àqueles de caráter mais universais, já que em geral estão ligados à luta por moradia, pela melhoria de serviços públicos, como transporte coletivo de qualidade, etc. Fato é que não precisaria ser assim; aliás, pelo contrário. Melhor seria pensarmos em movimentos que em sua luta levassem em conta o curto, médio e longo prazo em suas reivindicações pelo direito à cidade. Dessa maneira, incorporaríamos aos movimentos sociais urbanos clássicos outras lutas também fundamentais e complementares, que envolveriam movimentos por direitos universais, ambientalistas, de gênero, étnicos, religiosos... Estaríamos aproximando-nos do verdadeiro direito à cidade e ao direito de pensar e construir uma outra cidade.

Perfeito. Mas como escapar da possibilidade de cooptação dos movimentos sociais pelo governo estabelecido? E no Brasil, saímos na década de 1980 de uma ditadura militar que durou, aproximadamente, duas décadas; ou seja, a própria vivência e construção dos movimentos sociais é frágil. Muitas vezes um partido político que chega ao poder e aponta transformações e possibilidades de participação popular em sua gestão, contribui simultaneamente para a cooptação dos movimentos sociais a partir de sua burocratização. Nesse sentido, não se estaria modificando a estrutura estabelecida. Além disso, é necessário perceber que os problemas que, em princípio, podem parecer locais ligam-se a questões estruturais de âmbito global. A (re)produção do espaço dá-se a partir de intencionalidades construídas pelos e para os grupos hegemônicos. O discurso do localismo contribui para ocultar essas intencionalidades; e a maior parte dos citadinos não se vê ou não consegue participar das decisões sobre o seu cotidiano, além de não perceber sua inter-relação com outros problemas que atingem outras reivindicações. 

Perseguindo ainda a importância da participação da população no planejamento e na transformação das cidades, após muitas negociações e adiamentos, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Cidade. Consta nas diretrizes do Estatuto que os planos diretores devem contar com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos econômicos. O Estatuto criou regras para garantir a função social da propriedade, o que implica dizer que o proprietário precisa dar um uso à sua propriedade, não usando-as, por exemplo, como reserva de valor. Ademais, obriga a prefeitura a fazer audiências e consultas públicas quando for tomar alguma decisão importante para a cidade. O Estudo de Impacto de Vizinhança pode ser solicitado pelos moradores quando uma grande obra é projetada para determinada região. Entretanto, para por em curso o Estatuto da Cidade é necessário que o Plano Diretor seja cuidadosamente elaborado, pois será através dele que encontraremos as determinações quanto ao bom uso das propriedades. Há algumas maneiras de pressionar o proprietário que tem um imóvel que não está cumprindo uma função social: parcelamento e edificação compulsórios (prazo de dois anos para dividir o terreno, construir ou reformar seu imóvel); Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo (caso o proprietário não cumpra a lei, terá seu IPTU dobrado a cada ano enquanto não cumprir a lei); desapropriação (se o dono do imóvel pagar IPTU progressivo durante cinco anos e não der um uso social ao seu bem, perde a propriedade; pago pela prefeitura através de títulos da dívida pública, só recebendo o montante total após dez anos). Há, também, outras possibilidades interessantes, como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que correspondem à reserva de espaço para moradia popular em áreas com boa infra-estrutura. Isso facilita a reserva de terrenos ou prédios vazios para moradia popular, a regularização de áreas ocupadas e de cortiços.   

Quando se fala sobre a importância do Estatuto, é comum ouvirmos que os cidadãos têm o direito e o dever de exigir que seus governantes encarem o desafio de intervir concretamente sobre o território. Em geral, a forma de participação dá-se através da procura de um movimento social, sindicato ou associação de bairro; mas não somente assim, pode também acontecer a partir de coleta de assinaturas com propostas de planos ou de alterações nas leis da cidade. Tais propostas seriam discutidas e votadas na Câmara de Vereadores. 

Em um momento em que boa parte dos pesquisadores aplaude a aprovação do Estatuto da Cidade no Brasil, importa refletirmos até que ponto o “direito e o dever” do cidadão não estariam correndo o risco de serem, utilizando a expressão cunhada por Souza (2006), “domesticados”; ou seja, até que ponto o discurso em defesa dos orçamentos participativos, a participação no âmbito de institucionalidades como conselhos gestores não acabaria por “desarmar” os ativismos? Entretanto o próprio geógrafo afirma também que “as ações do Estado (...) podem representar avanços reais em matéria de conquistas materiais, de disparidades sócio-espaciais e, mesmo, excepcionalmente, de expansão da consciência de direitos e práticas de organização popular” (2006, p. 174). Paradoxos. Contudo, muito antes da aprovação do Estatuto da Cidade, a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (1990) levantava a importância de percebermos a reforma urbana para muito além dos planos diretores; visão premonitória, já que presenciamos uma homogeneização dos planos diretores, indicando a sua própria mercadificação.

Em tempos de mobilizações cada vez mais isoladas, que procuram reivindicar questões extremamente particulares sem nenhum outro desdobramento, talvez fosse importante pensar em novas formas de associação entre as várias mobilizações na busca de uma transformação mais abrangente. Nesse sentido estamos nos remetendo àquilo que o geógrafo David Harvey (1996; 2000) apresentou como o “embate” entre particularismos militantes e lutas de ambição global. Não estamos negando a importância das mobilizações mais próximas do cotidiano dos citadinos; longe disso, já que são movimentos ligados à ordem próxima, apenas acreditamos ser importante irmos para além deles. É preciso escapar das armadilhas que propostas, inicialmente vistas como grande avanço, podem representar. A associação capital-Estado usa o espaço de forma a assegurar o controle dos lugares através da homogeneização do todo e a segregação das partes. Assim, a “organização espacial” representa a hierarquia do poder, que procura fazer as transformações necessárias para dar sequência ao processo. O projeto para a zona portuária carioca trilha a mesma lógica, e faz uso da construção do discurso – fortemente apoiado e divulgado pela mídia – de que as modificações serão benéficas para todos, sejam moradores do local ou não.

Por sua vez, os moradores e os comerciantes da zona portuária dividem-se entre descrença e desconhecimento do projeto Porto Maravilha. Questionado acerca da tal revitalização da zona portuária, um casal de moradores há mais de 45 anos no local afirmava que somente sabia da revitalização pela TV. Outros diziam ouvir falar sobre isso desde muito tempo, mas não sabiam exatamente o que pensar, pois acreditam que “o governo deve demolir e reconstruir tudo; o que deixa todos apreensivos e curiosos”. Em relação à associação de moradores, alguns moradores e comerciantes afirmaram que havia “um cara que tentou montar há um tempão atrás uma associação, mas eu não queria nem quero nada com essas associações, esses caras são muito pilantras”. Outros dizem que até acham importante a existência de uma associação, desde que seja ativa. Entretanto nenhum deles disse participar de qualquer associação para lutar pela implementação de suas idéias. Aqui é possível percebermos como aqueles que se mobilizam e muitas vezes “fazem discursos meio revoltados” (segundo alguns moradores), muitas vezes são vistos como baderneiros. Há uma espécie de “criminalização” das mobilizações... o que contribui ainda mais para seu enfraquecimento.

Todos têm reclamações quando perguntados, entretanto ninguém procura qualquer forma de mobilização, pois acreditam que isso é coisa para os especialistas, afinal “eles se prepararam para isso”... Todavia mostram-se empolgados quando aventam a possibilidade de valorização de seus imóveis, talvez sem saber que a valorização do solo pode contribuir também para a inviabilização de sua permanência  e de seus vizinhos na área.

Mesmo sabendo que no Morro da Conceição houve algumas reuniões na Igreja para se discutir a proposta de transformação da zona portuária, a grande maioria das pessoas disse não ter participado por não acreditar que isso faria alguma diferença. Entretanto, há sinais de alguma forma de organização, que inclusive acontece em um tradicional bar da Gamboa, o Cais do Pão. Reuniões com a presença de moradores acerca do projeto para a zona portuária, mas sem qualquer vínculo com a prefeitura, apontavam para o desejo de participação nas decisões, apesar de não saberem como poderiam se engajar. 

Nas proximidades do Centro Cultural José Bonifácio, foi possível encontrar o antigo diretor do centro e ex-presidente da antiga associação de moradores da Gamboa, Renato Branco, conhecido por todos, professor de música, dança, fundador do Partido Democrático Trabalhista (PDT), o qual acredita que a falta de interesse dos moradores perante os projetos da prefeitura dá-se “de um lado, porque os nordestinos vieram para cá e não se preocuparam em estabelecer um vínculo com o lugar, por outro lado, porque a prefeitura não incentiva nada, nenhuma participação”. Se procurarmos pela existência associações de moradores, é possível encontrar dezesseis do Caju até a Saúde, entretanto, nenhuma ativa.

É possível encontrar, também, alguns traços de participação dos moradores através da existência de reuniões no centro cultural para elaboração de projetos a serem enviados ao Instituto Pereira Passos. No entanto, não há contato formal com a prefeitura ainda, segundo o ex-diretor do centro cultural, “estamos brigando, são só projetos. Como sempre, acredito, tudo será de cima pra baixo”. Grupos de artistas e músicos também têm se reunido, mas são sempre atos isolados, com número muito pequeno de participantes, o que acaba contribuindo para a não continuidade dos encontros, ou, ao menos, para a presença sempre inconstante dos participantes. Evidentemente, todas essas dificuldades estão ligadas à característica – tão metamórfica – do modelo capitalista, que se reproduz produzindo novos espaços, em que a segregação espacial é cada vez mais intensa. A (i)mobilização acaba se dando no âmbito da opção, ainda que inconsciente, pelo direito à cidade “real” (ou àquela que nos é vendida como sendo a cidade real), em que a urgência liga-se às questões da sobrevivência e da falta de tempo, em vez de optar pelo direito à cidade enquanto obra, em que buscamos alcançar a concretização de resultados que reflitam uma cidade mais justa e mais humanizada. Aqui estamos nos referindo ao direito à vida urbana, transformada no lugar do encontro, em que o valor de uso sobreponha-se ao valor de troca e em que a produção do espaço se realiza para os cidadãos.

Retomando o debate acerca do Estatuto da Cidade, convém afirmar que mesmo tendo na proposta (e na aposta) da participação popular sua força, mantém-se preso às racionalidades técnicas e às associações entre o Estado e os proprietários e investidores, já que o “direito à cidade” aparece – como bem argumenta a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos (2005) – através da realização da função social da propriedade e não na sua negação como fundamento da segregação na cidade. Além disso, até mesmo um exemplo enaltecido por todos como o orçamento participativo (em Porto Alegre), que tem dinamizado a sociedade civil, de alguma forma contribui simultaneamente para mantê-la presa a uma agenda que é determinada pelo Estado; e isso é grave, pois faz a sociedade acreditar que as determinações têm partido dela, quando de fato, muitas vezes, não tem.

Talvez o mais importante caminho – para buscar a transformação, o verdadeiro direito à cidade e a justiça social – tenha de ser percorrido guardando múltiplas escalas espaciais e temporais de ação. No que tange às escalas espaciais, é preciso “costurar” os particularismos militantes, mobilizações sem pretensões mais amplas (mas de grande importância para aqueles que àquilo reivindicam) com ações de âmbito global; ou seja, que levem em conta não apenas os problemas conjunturais, mas também os problemas ligados à estrutura. Embora os movimentos sociais tenham seu nascedouro a partir de problemas que acontecem no lugar, é necessário buscar as conexões com escalas espaciais mais amplas, em um movimento do lugar ao mundial e de volta ao lugar. Esse movimento obriga-nos a, também, pensarmos em escalas temporais de ação diferenciadas; ou seja, estaremos trabalhando com ações de curto e longo prazo. A solução não está no curto prazo – e nele é mesmo inalcançável – mas começa nele.

Temos, desde muito tempo falado da importância de resgatar a utopia. O que importa na utopia é justamente o que não é utópico, é o processo de sua busca. É verdade que, muitas vezes, por mais que nos empenhemos nunca teremos absoluta certeza a que resultado chegaremos, e isso acaba sendo um enorme fator de imobilização. Resgatando Harvey (2000, p. 254), a fuga da incerteza acaba fazendo “com freqüência que demos preferência aos males conhecidos em vez de buscarmos refúgio noutros males ignorados”. É preciso resgatar o pensamento utópico para transformar; afinal, estamos falando daquilo a que Marx deu o nome de “o movimento real que vai abolir o estado de coisas atual”.

 

Notas

[1] No entanto, em seu projeto constam mais cinco linhas: São Cristóvão-Botafogo (Linha 1A – Marrom); Carioca-Guaxindiba (Linha 3 – Azul), que cruzaria a Baía de Guanabara; Rio Sul-Alvorada (Linha 4 – Cinza), que já teve a previsão da estação inicial da Zona Sul alterada algumas vezes; Ilha do Governador-Santos Dumont (Linha 5 – Amarela), ligando os dois aeroportos da cidade, além de passar pela Cidade Universitária; e Alvorada-Galeão (Linha 6 – Majenta), ligando a Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional.

[2] A geógrafa desenvolveu interessante dissertação de mestrado na qual discute as estratégias territoriais das associações políticas do bairro de Copacabana na cidade do Rio de Janeiro.

 

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