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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIV, núm. 331 (65), 1 de agosto de 2010
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

RISCOS E VULNERABILIDADE URBANA NO BRASIL

Wagner Costa Ribeiro
Departamento de Geografia – Universidade de São Paulo
wribeiro@usp.br

Riscos e vulnerabilidade urbana no Brasil (Resumo)

País com enorme déficit social, o Brasil está frente a um enorme desafio: acabar com a desigualdade social que predomina no território brasileiro. Parte expressiva da população vive em áreas de risco sem ter clareza dessa situação. Por isso é preciso definir o risco e a vulnerabilidade para subsidiar a elaboração de políticas públicas que permitam mudar esse cenário. Esse artigo analisa diversas posições sobre o risco e a vulnerabilidade a partir de um diálogo com diversos autores que abordaram o tema.

Palavras chave: risco, vulnerabilidade, urbanização brasileira, justiça ambiental.

Riesgo y vulnerabilidad urbana en brasil (Resumen)

País con déficit social enorme, Brasil se enfrenta a un enorme reto: poner fin a la desigualdad social que prevalece en el país. Una proporción significativa de la población vive en zonas de riesgo sin tener la claridad de la situación. Por tanto, es necesario definir el riesgo y la vulnerabilidad para apoyar el desarrollo de políticas públicas para cambiar eso. Este artículo examina los puntos de vista diferentes autores que han abordado la cuestión.

Palabras clave: riesgo, vulnerabilidad, urbanización brasileña, justicia ambiental.

Risks and vulnerability in urban areas in Brazil (Abstract)

Country with huge social deficit, Brazil is facing a challenge: to end social inequality that prevails in Brazil. A significant proportion of the population lives in areas of risk without having clarity of the situation. It is therefore necessary to define the risk and vulnerability to support the development of public policies that change that. This article examines the different views on risk and vulnerability from a dialogue with several authors who have addressed the issue.

Keywords: risk, vulnerability, Brazilian urbanization, environmental justice.

Desigualdades sociais agudas, como as encontradas no Brasil, exigem uma reflexão que possa gerar políticas públicas que atenuem esse cenário. Elevada concentração de riqueza gera um quadro de instabilidade social que se reflete na organização do espaço urbano. A paisagem urbana acaba espelhando as desigualdades sociais por meio de edifícios luxuosos muito próximos a habitações subnormais, como as favelas, cortiços e palafitas, que acabam sendo o abrigo das camadas pobres da população[1].

O rápido processo de urbanização do país foi somado à expropriação da terra no campo, o que resultou em massas de trabalhadores migrantes que, sem alternativa de renda, ou que a conquistam em valores baixos, não conseguem pagar pela moradia nas cidades brasileiras. Como alternativa, ocupam áreas consideradas inadequadas e se expõem com muita frequencia a situações de risco como escorregamentos de vertentes e alagamentos.

Para piorar esse quadro, o relatório do IPCC, de 2007, alerta para a possibilidade de uma intensificação das trovoadas, o que vai acelerar e tornar mais comum, infelizmente, cenas cruéis que envolvem a população pobre que vive nas áreas de risco. Por isso é fundamental adotar o mais rápido possível medidas para resolver esse problema histórico que tende a se agravar.

Neste artigo, apresenta-se uma revisão da literatura sobre conceitos como risco e vulnerabilidade com o objetivo de subsidiar uma análise de riscos urbanos no Brasil. Essa tarefa é necessária dada as desigualdades sociais presentes no país, que expõe de modo desigual a população brasileira aos riscos, que poderão aumentar caso se alterem as condições climáticas apontadas pelo IPCC.

A chamada ambientalização das políticas urbanas é crescente em muitas cidades do mundo. Isso não ocorreu por acaso. A maior parte da sociedade mundial vive em áreas urbanas, conforme foi indicado nos últimos anos por estudos nas Nações Unidas.

Temas como abastecimento hídrico, gestão dos resíduos sólidos, fornecimento de energia, poluição em suas distintas formas (do ar, visual e sonora), áreas verdes e qualidade de vida, entre outros, entraram no sistema de planejamento urbano e devem permanecer. Eles estão vinculados à mobilidade urbana bem como às condições de reprodução do espaço urbano e ao acesso à base técnica que o caracteriza (Capel, 2005), que ainda é muito desigual no mundo e ainda mais no Brasil, o que torna as cidades espelhos da desigualdade social em todo o mundo.

Segundo Calvo Garcia-Tornel (2001), os estudos sobre as mudanças climáticas globais, por exemplo, têm contribuído para o nascimento de uma nova “consciência ambiental” que poderá iniciar um movimento em torno de uma nova ética, pois a realidade socioambiental demanda muito mais do que a gestão dos recursos naturais. A reflexividade que a sociedade de risco permite criar aponta para uma necessária revisão do padrão de consumo e apropriação dos recursos naturais. Outro autor importante é Beck (2006), que afirma que a sociedade contemporânea cria riscos e parece acostumar-se a eles. A naturalização dos riscos debe ser combatida. Do mesmo modo que a transformação do risco em uma mercadoria, como o fazem as companhias de seguro. Assumir essas visões representa, ao mesmo tempo, adotar o risco como algo inevitável e natural, quando na verdade os riscos são criados socialmente nas áreas urbanas e, principalmente, que a garantia de estar “livre” deles ocorre na esfera privada e apenas a quem pode pagar pela “proteção”. Essa visão mercantil dos riscos tem que ser alterada.

É preciso não esquecer que ocorrem manifestações de processos naturais nas cidades, que podem afetar a infraestrutura e, principalmente, a população. Porém, é preciso ter em mente que tais processos afetam de modo distinto a população da cidade e geram riscos desiguais no espaço urbano. Em suma, enquanto para alguns uma chuva forte pode representar a perda de equipamentos domésticos, para outros pode levar à morte.

Indicadores podem apontar áreas carentes de infraestrutura, serviços e qualidade de vida. Em países com elevada concentração da riqueza, como é o caso do Brasil, as áreas mais carentes são ocupadas pelos mais pobres. Por isso um dos aspectos a ser analisado é a distribuição espacial da pobreza nas cidades.

É notório que a temática ambiental adentrou o debate sobre o planejamento urbano. Muitas das ações de comando e controle de órgãos voltados à organização da vida urbana buscam restringir o ir e vir por meio do controle da circulação de veículos, ou mesmo por meio da medição de emissões de poluentes por veículos. Essa visão é a-espacial. Ela não pondera aspectos sociais nem a desigualdade que perdura em cidades brasileiras.

Por isso é preciso buscar a definição de indicadores que apontem com mais clareza como ocorre a distribuição dos riscos nas cidades do Brasil, que esta relacionada com a forma de ocupação das cidades pela população de baixa renda, que vive em áreas de risco por falta de alternativa dada a incapacidade de pagar para morar em condições adequadas.

Um indicador de vulnerabilidade às mudanças climáticas em áreas urbanas no Brasil pode servir para ordenar o espaço urbano de modo a induzir políticas públicas que ponderem, além dos aspectos “ambientais”, as demandas sociais, principalmente. Esse deve ser o modelo de urbanização do século XXI. Do contrário, assistiremos a reprodução da hegemonia do capital que não incorporou a população pobre na reprodução do urbano. Tal modelo terá que ser revisto antes que uma explosão social o faça.

Ainda que nesse texto não sejam definidos tais indicadores, busca-se uma reflexão sobre risco e vulnerabilidade em áreas urbanas no Brasil de modo a permitir aprofundar os aspectos a serem definidos na escolha dos temas a serem ponderados na definição de uma área de risco e avaliar a vulnerabilidade da população. Essa etapa é preliminar e fundamental para, em outro momento, definirem-se os indicadores.

Risco e vulnerabilidade em áreas urbanas

Antes de mais nada é preciso ter clareza de que o risco é uma criação social, mediada pela capacidade de apreensão que cada grupo humano desenvolve sobre ele (Zanirato et al, 2007). Por isso é necessário qualificar o termo risco de acordo com a inserção social do grupo em situação de risco, sem deixar de lembrar do processo de produção do espaço urbano que, em si, é excludente e leva porções expressivas da população à viver em áreas de risco, mesmo que para elas não o sejam...

Trata-se de verificar mais uma vez que a especulação imobiliária, no caso de países de urbanização recente como o Brasil, domina a expansão urbana e deixa grandes vazios sem uso à espera de valorização. Tal dimensão do crescimento horizontal das cidades foi acrescida de um processo de modernização conservadora no qual, apesar de registrarem-se avanços na produção tecnológica e um reposicionamento do país na divisão internacional do trabalho, manteve a exclusão social e a concentração da riqueza.

O resultado é uma combinação dos dois processos: vazios urbanos e população expulsa do campo que migra para as cidades sem qualificação para os postos de trabalho e que acaba sem renda para alugar ou comprar parcela do solo urbano para a moradia. Como alternativa, elege parte dos vazios urbanos menos valorizados, como várzeas e encostas íngremes que se caracterizam como áreas de risco, para edificarem suas moradias precárias que muitas vezes são levadas pelo movimento das águas e de material intemperizado que recobre a rocha, o que acarreta em perdas materiais e, infelizmente, mortes.

Indagar essa população sobre o risco de viver nessas áreas é desnecessário. Um misto entre descrença na possibilidade de ocorrer o evento, aliada à crença em uma espécie de proteção externa conferida por qualquer outra dimensão que não o Estado, geralmente de caráter religioso, leva à permanência da população em áreas de risco.

Mesmo esforços de retirada desse contingente humano expressivo, seja por meio da indenização seja pelo oferecimento de moradia em outro lugar, não impedem o retorno de moradores antigos para as áreas de risco. Mas quais seriam as razões que levariam essa população a permanecer no local, ou voltar a ele mesmo em situação de risco? As redes sociais desenvolvidas no lugar são a causa primeira que desperta a vontade de permanecer no lugar.

É frequente a difusão de redes sociais no interior de favelas, por exemplo. A mais conhecida está relacionada a negócios ilícitos, como o tráfego de drogas. É verdade que em muitas favelas a presença de traficantes é destacada e que eles exercem influência sobre a população por oferecer proteção e por oferecer postos de trabalho, ainda que temporários e que muitas vezes leva o ocupante à morte. É preciso lembrar, porém, que a venda de drogas só ocorre porque há compradores. E que o negócio é mantido como proibido para perpetuar ganhos de diversos outros atores que, longe da favela, são os responsáveis pela chegada da droga aos pontos de venda. Toda essa dinâmica não ocorreria sem a conivência de agentes do Estado que falham na missão de impedir a produção e circulação de drogas ou obtêm vantagens em determinadas etapas do processo. Ao final, o consumidor, que na maior parte das vezes foi induzido ao uso de drogas por terceiros com o fim de torná-lo dependente do produto, fica passivo e se expõe a situações de risco para adquirir a droga enquanto quem a vende é a mais parte frágil do processo. O traficante que comercializa a droga na favela é o elo final de um complexo processo de produção que mobiliza muita gente, alguns com muita influência nos processos decisórios e que mantém o comércio proibido como forma de manter sua influência e ganhos monetários.

Mas não são apenas essas relações que se desenvolvem nas favelas. Muitas atividades econômicas são desenvolvidas nelas para atender parte do processo produtivo, que utiliza a mão-de-obra favelada para montar peças, costurar roupas, entre outras tarefas, que são realizadas em condições precárias pela população que não tem, mais uma vez, nenhuma garantia do Estado. Nesse caso a ilegalidade está na exploração da mão-de-obra e na ausência de pagamento de previdência social pelos “empregadores”, que obtêm mais ganhos do que se contratassem trabalhadores formais para fazer seus artigos, já que se auto isentam de determinados impostos e compromissos previdenciários.

Além disso, as favelas, em geral, estão em áreas que oferecem possibilidades de emprego, o que permite a um morador se deslocar rapidamente para estar no local de trabalho. No entorno da favela ele desenvolve uma outra rede, que sustenta atividades diárias das quais mantêm seu sustento. É comum, por exemplo, mulheres exercerem trabalhos como diaristas em residências e escritórios próximos e homens atuarem na manutenção de edifícios e casas como encanadores, pedreiros, etc.

Por fim, uma outra rede de relações se estabelece nas favelas. São as relações sociais baseadas em formas de sociabilidade caras às camadas mais ricas, pois são baseadas em solidariedade e acolhimento. A população pobre favelada acolhe com muita facilidade parentes e vizinhos quando estão em dificuldades, além de desenvolverem atividades culturais e religiosas que agregam capital social. Não é por acaso que é comum encontrar escolas de samba e igrejas no interior ou junto às favelas que, cada uma a seu modo, emprestam significado simbólico ao morador que se torna muito mais expressivo que o tráfego de drogas. Essas atividades conferem identidade aos habitantes da favela.

Sem considerar esses aspectos não se entende porque a população de uma favela em área de risco não reconhece o perigo a que está submetida. Para ela, as redes sociais, ilícitas ou não, oferecem abrigo e diluem a ausência do Estado, o que resulta em resistência a sair da área ou no retorno após a retirada.

Por isso uma política pública de realocação da população favelada só terá sucesso se recriar as redes de relações sociais no novo local de moradia, o que não é possível muitas vezes. O comércio ilegal de drogas, por exemplo, depende das condições precárias para oferecer melhorias pontuais e efêmeras para atrair jovens vendedores. Os empregadores informais têm seus negócios próximos às áreas de risco e não querem aumentar suas despesas com transporte de materiais. A população que contrata serviços diários não vai se deslocar para o novo local de moradia, o que reduz a oferta de emprego e aumenta o custo de transporte. Essas dificuldades fazem repensar o deslocamento da população como alternativa de evitar prejuízos materiais e mortes de população em áreas de risco. Diante disso, o que fazer?

A alternativa mais adequada, mas também difícil de realizar, é manter a população no local, porém, com melhorias das condições de vida. Nesse caso, projetos de urbanização de favelas ou mesmo a construção de prédios em áreas antes ocupadas por habitações subnormais são os meios mais frequentemente utilizados.

A urbanização de favelas pode melhorar as condições de vida da população, mas ela deve ser realizada considerando a totalidade ambiental na qual os indivíduos estão inseridos. De nada adianta construir prédios inadequados às condições ambientais do lugar, por exemplo, muito menos canalizar corpos d'água sem tratar o esgoto, como parece ter ocorrido no Programa PROSAMIM, realizado em Manaus, capital do Amazonas em meio à Floresta Amazônica.

O Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus – PROSAMIM é um projeto do governo do Estado do Amazonas para o

“saneamento, o desassoreamento e a utilização  racional do uso do solo às margens dos igarapés, com vistas à manutenção do patrimônio natural e melhoria das condições de vida da população envolvida. Com isto, institui um padrão de desenvolvimento socialmente integrado e um processo de crescimento econômico ambientalmente sustentável. Nesse sentido, considerando que o principal aspecto do Programa reside no processo de saneamento dos igarapés, as ações necessárias envolvem um conjunto de atividades que passam pelos aspectos de urbanização, de habitação, pelos componentes técnicos e de engenharia de infra-estrutura viária, sanitária e de recuperação ambiental, e pela avaliação e controle de impactos no meio ambiente (Governo do Estado do Amazonas, 2009:3)”.

Os termos do texto são claros: o principal aspecto é o saneamento dos igarapés e não deixar a população em melhores condições de vida. As fotos abaixo ilustram o que ocorreu.

 

Figura 1. Palafitas em Manaus – AM, em março de 2010.
Foto de Wagner Costa Ribeiro

 

Figura 2. PROSAMIM - edificações de três andares, que utilizam telhas de amianto, com janelas pequenas que não permitem a circulação adequada do ar, março de 2010.
Foto de Wagner Costa Ribeiro.

 

Figura 3. PROSAMIM - Observa-se a presença de equipamentos para uso recreativo por crianças e recipientes para depósito voluntário de lixo reciclável, março de 2010.
Foto de Wagner Costa Ribeiro.

 

Figura 4. PROSAMIM – reproduzindo o comércio informal que estava presente antes da intervenção do Estado, observa-se a presença de um ponto de venda de alimentos instalado ao fundo que utiliza bancos de uso público para servir os clientes, março de 2010.
 Foto de Wagner Costa Ribeiro

 

Figura 5. PROSAMIM – observa-se a presença de lixo no leito do corpo d´água a jusante dos prédios construídos para moradia, o que pode agravar o alagamento no período de cheia natural do rio Negro, em março de 2010.
Foto de Wagner Costa Ribeiro.

 

Observa-se que as edificações não são adequadas às condições geográficas de Manaus. As telhas de amianto e os tijolos usados, bem como a disposição dos prédios e das janelas, resultam em enorme desconforto térmico aos moradores. Apesar da oferta de energia solar na cidade, nada foi feito para gerar energia ou mesmo aquecer a água a partir dessa fonte energética. Também   é possível questionar se o aumento da velocidade da água que a urbanização do igarapé gerou vai ampliar a possibilidade de cheias a montante ou mesmo se as cheias sazonais tipicas da região não vão afetar a circulação do esgoto nas residências.

É fundamental lembrar que essas ações não foram financiadas apenas pelo governo do Amazonas. O principal agente financiador foi o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que destinou U$ 140 milhões ao programa, que contou com mais U$ 40 milhões do governo do Amazonas.

Nesse momento é preciso discutir mais um pouco sobre risco e vulnerabilidade, pois até que ponto ações como a citada acima não transferem riscos e vulnerabilidade? Até que ponto elas não representam a construção de novos riscos?

Valencio (2009:180) alerta que muitas vezes “perigos preexistentes somam-se àqueles que são produzidos a posteriori, incluindo as práticas estabelecidas na própria fixação, sem serem devidamente identificados e discutidos”. Instalar edificações sobre uma área que tradicionalmente é alagada pelo movimento sazonal da água do rio seria a medida mais adequada? Será preciso aguardar as próximas cheias para verificar se o PROSAMIM foi dimensionado para suportar esse ciclo natural ou se ele foi esquecido na parametrização da circulação da água do igarapé.

Mais uma vez recorremos a Valencio (2009:180), que escreveu que “o cálculo coletivo envolvido no risco aceitável (custo/benefício, custo/oportunidade) não raro desconsidera os fatores políticos implicados na forma de decisão”. Esse fator prevalece sobre a melhor técnica ao impor decisões no tempo da sucessão eleitoral ou na escolha de sistemas técnicos menos eficientes e onerosos aos cofres públicos pela pressão que setores como o da construção civil impõem a governantes, como bem demonstrou Santos (1990) ao analisar São Paulo, que classificou como uma metrópole fragmentada e corporativa devido à aceitação de padrões técnicos sugeridos pelas empreiteiras sem discussão política.

Mais grave ainda são as ações que se seguem ao desastre. Medidas emergenciais devem ser tomadas o que justifica a contratação de serviços em caráter de urgência, sem licitação e sem o menor controle político das alternativas técnicas usadas. O resultado é conhecido: o governante escolhe sem condições de discutir preço e qualidade do serviço prestado e fica dependente das alternativas oferecidas pelo contratado, tanto do ponto de vista técnico quanto do preço.

Um dos resultados mais perversos desse processo é a imposição de tecnologias paliativas, que não resolvem o problema, o que gera na população uma descrença do Estado como agente de caráter público e abala a credibilidade nos peritos. A população passa a desqualificar as ações técnicas, cujo discurso é muito semelhante ao das ameaças geradas pela situação do risco, o que reforça sua convicção em permanecer na área.

Calvo García-Tornel (1997:2-3) contribui para discutir esse aspecto ao escrever

“Estos contextos (políticos, institucionales, sociales) determinan en gran medida la respuesta humana a la calamidad, no siempre encaminada hacia una gestión eficaz de futuros episodios. También se ha tratado de poner en evidencia el papel de ciertas instituciones intermedias, con frecuencia de carácter privado (empresas de seguros, promotoras inmobiliarias), que puede ser más relevante que los análisis a macroescala (comportamiento individual) o microescala (condicionantes estructurales) en determinados casos. En resumen,una intensa búsqueda en el amplio campo de los agentes y estructuras sociales de los aspectos que permiten la interpretación geográfica del riesgo”.

A geografia dos riscos tem que associar risco e vulnerabilidade. O risco é socialmente definido e a vulnerabilidade também.

Vulnerabilidade é a capacidade de um grupo humano prever e preparar-se para um desastre. Isso depende de uma série de fatores, como a percepção do risco, a capacidade de prever o desastre e a possibilidade de adotar medidas eficazes para proteger o grupo social do desastre, que é efêmero e pode ocorrer de modo surpreendente. A vulnerabilidade pode ser aferida à luz desses parâmetros e faz sentido para avaliar o estágio do grupo social sujeito ao risco e para organizar uma intervenção do Estado, que passa a ter uma medida que permite dimensionar carências e planejar ações preventivas ao evento que gera uma catástrofe.

Entre tantos debates contemporâneos, o que envolve a sociedade de risco e a modernização ecológica ganha destaque. O primeiro por envolver, como apontaram autores como Beck (1986) e Giddens (1991) a ciência e a técnica como fontes de soluções, mas também de riscos. Não custa lembrar as ameaças que os sistemas técnicos de geração de energia, produção de alimentos e de mercadorias geram, como a energia nuclear, os alimentos transgênicos e o uso indiscriminado de processos químicos para tratamento de chapas metálicas, para citar alguns casos. O que aqueles autores afirmaram foi que a sociedade desenvolveu uma capacidade de reflexão sobre essas ameaças ao ponto de tornar-se uma sociedade reflexiva, capaz de olhar-se e propor medidas de correção. As tentativas de regulação das ações humanas são crescentes e conseguiram alguns resultados, mas não sem resistência e dificuldades. A ordem ambiental internacional (Ribeiro, 2001) está em franco desenvolvimento e conseguiu encaminhar bem algumas ameaças, como o controle das emissões de gases que afetam a camada de ozônio por meio do Protocolo de Montreal, mas ainda encontra dificuldades para regulamentar o acesso à informação genética e ao conhecimento das populações tradicionais por meio da Convenção sobre Diversidade Biológica e também para determinar os níveis seguros de emissão de gases de efeito estufa por meio do Protocolo de Kyoto e da Convenção Quadro sobre Mudança Climática.

Parte dessas dificuldades advêm da modernização ecológica. Para os que adotaram essa forma de organizar o pensamento, bastam ajustes no capitalismo para se resolverem os problemas ambientais. Tais ajustes seriam basicamente a internalização dos custos ambientais, que ao final, apesar de onerar a produção, eliminariam os riscos ambientais. Ou seja, para os que seguem essa corrente, o capitalismo verde ou ecocapitalismo é uma alternativa que sanaria os problemas ambientais que nesse caso é transformado em mais um negócio, em alternativa para a reprodução do capital. Nesse momento cabe questionar até que ponto o capital privado faria intervenções em áreas de risco se a população que vive nelas não tem renda para remunerar os serviços ambientais.

Introduzir a vulnerabilidade nesse debate resulta no seguinte: para os seguidores da sociedade de risco ela é uma medida que aponta a capacidade de um grupo social absorver um evento catastrófico e que pode ser útil para mensurar a intervenção do Estado na solução do problema ou ao menos para aumentar a capacidade de reação do grupo, enquanto que para os que adotaram a modernização ecológica é uma medida que serve para avaliar os custos da intervenção, uma medida sobre a qual seria aplicada a remuneração do capital investido na recuperação da área.

Na coletânea organizada por Herculano (2000) encontram-se uma série de textos que analisam os riscos e a vulnerabilidade. De modo geral, os autores partem do pressuposto que a sociedade de risco é melhor maneira de analisar o tempo presente. Segundo Herculano (2000), a vulnerabilidade é definida para cada grupo social e deve ponderar como cada indivíduo está sujeito a ela no grupo.

O desastre seria a consumação da situação de vulnerabilidade sobre um indivíduo. É preciso evitar que ele ocorra, e, se ocorrer, evitar que tenha grandes proporções para que não se torne uma crise ou mesmo uma catástrofe. Essa seria a função do Estado, prover a população de situação de segurança e livre das ameaças que processos sociais aliados a processos naturais acarretam.

A vulnerabilidade é social, antes de mais nada. Ela é definida pela posição do grupo social na sociedade e de cada indivíduo no interior do grupo. A associação com a renda é direta. Invariavelmente são as camadas mais pobres da população a sofrerem mais com as situações de risco.

A vulnerabilidade é social porque são os mais pobres que enfrentam as maiores dificuldades para se adaptarem às intempéries extremas dadas as condições de fragilidade em que se encontram (Ribeiro, 2008). O sítio que ocupam é mais suscetível a escorregamentos e alagamentos e as edificações nas quais se abrigam são compostas por elementos técnicos menos resistentes a ação da água e ao movimento de material intemperizado. O resultado é cruel: mortes e perdas materiais após chuvas intensas. Por outro lado, camadas mais abastadas enfrentam outro tipo de problema: congestionamento de vias, falta de energia e eventualmente algum abalo em suas residências, mas em geral porque tiveram falhas no processo de construção.

Para a população oprimida, que não tem outra alternativa senão viver em áreas de risco, pode-se aplicar o conceito de justiça ambiental (Acselrad et. al, 2009 e Moreno Jimenez, 2010) como argumento para alterar esse quadro. Inicialmente usado pela população negra dos Estados Unidos da América para denunciar a situação em que viviam naquele país, razão pela qual a expressão racismo ambiental era usada naquele período, a noção de justiça ambiental encontra abrigo na Constituição Federal, mais especificamente em seu artigo 225, que estabelece que

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (Constituição Federal, 1988)”.

Os termos descritos acima permitem a muitos operadores do Direito, advogados, promotores, procuradores, juízes e ministros, adotarem medidas claras estabelecidas em leis que devem garantir um ambiente equilibrado a todos os brasileiros. Apesar disso, ainda persistem em condições de pobreza e vivendo em áreas de risco parcela expressiva da população do Brasil.

Considerações finais

Um país com as desigualdades sociais do Brasil não pode esquecer sua dívida social. Ainda que a situação do país tenha melhorado nos últimos anos, a ponto de alterar sua posição entre as maiores economias do mundo, deve-se aproveitar esse momento para cuidar de dificuldades que foram acumuladas ao longo de séculos.

O cenário de ausência do Estado em áreas de risco tem que ser mudado. Para tal, é preciso identificar os riscos e mobilizar a população sujeita a eles para que percebam a vulnerabilidade em que se encontram.

É evidente que um sistema de alerta técnico que possa comunicar a tempo de permitir a retirada da população antes da ocorrência de um evento extremo, como uma chuva intensa, é necessário mas insuficiente. Se o risco é definido socialmente, é preciso demonstrar à população de renda baixa que vive nas áreas mais sujeitas a escorregamentos de vertente e a alagamentos os perigos a que está submetida de modo que possam organizar sua saída de tal situação e a busca de alternativas reais de moradia.

Entre as alternativas em curso no país, o PROSAMIM é um exemplo a ser examinado com mais detalhe. Ainda que tenha como mérito melhorar as condições de habitabilidade de moradores de antigas palafitas e que tenha mantido parte deles no local onde viviam, o que permitiu preservar suas redes de relações sociais e de trabalho, não houve o mesmo cuidado na definição da alternativa tecnológica adotada para construir os prédios nem a coleta e tratamento de esgoto.

Iniciativas como essa não podem ser desperdiçadas, muito menos realizar a tarefa pela metade. Melhorar as condições de moradia é importante, mas com a escolha de alternativas técnicas adequadas à diversidade geográfica do Brasil, que possam aproveitar a insolação e elevadas temperaturas para gerar energia e aquecer água, além de usar materiais adequados para oferecer maior conforto térmico aos moradores, bem como desenvolver um projeto que permita a circulação do ar e a iluminação natural dos ambientes.

Enfim, é preciso enfrentar o desafio de desenvolver alternativas de habitação popular adequadas às condições geográficas do Brasil que possam substituir as empregadas pela população em áreas de risco e vulneráveis a eventos extremos. Para tal, é necessário considerar a percepção de risco da população afetada de modo a instrumentalizá-la para que possa reivindicar maior justiça ambiental ao Estado brasileiro em seus diversos níveis de gestão.

 

Notas

[1] Projeto financiado pelo CNPq.

 

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Ficha bibliográfica:

RIBEIRO, Wagner Costa. Riscos e vulnerabilidade urbana no Brasil. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2010, vol. XIV, nº 331 (65). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-331/sn-331-65.htm>. [ISSN: 1138-9788].
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