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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIV, núm. 331 (66), 1 de agosto de 2010
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

A NATUREZA DA AMBIENTALIZAO DO DISCURSO DO PLANEJAMENTO

Ester Limonad
Universidade Federal Fluminense
ester_limonad@yahoo.com

A natureza da ambientalizao do discurso do planejamento (Resumo)

Trata-se em linhas gerais de apontar a natureza da ambientalizao do discurso do planejamento que, de modo recorrente na ltima dcada, incorporou as idias da sustentabilidade do desenvolvimento e das cidades sustentveis. Refletir sobre estas questes implica em um exame crtico da sociedade, uma vez que alguma concepo de natureza e ambiente atravessa todas as prticas scio-espaciais contemporneas. No s a produo terica, mas a prtica de planejamento defronta-se com um impasse, devido a necessidade de integrar as dimenses social e ambiental – medida que ambas integram a produo social do espao. Cabe, portanto, uma leitura crtica da ambientalizao do discurso do planejamento, que esmice tais noes para se avanar rumo a uma prtica crtica de planejamento.

Palavras-chave: planejamento ambiental, desenvolvimento sustentvel, cidades sustentveis.

The nature of the planning discourse environmentalization (Abstract)

Abstract – Our main concern is to point out the nature of the planning discourse environmentalization including the ideas of sustainable development and sustainable cities during the last decade. To reflect upon such issues requires a critical exam of society, since some conception of nature and environment lay within all contemporary socio-spatial practices. Besides theoretical literature, the planning practice faces a stalemate where is necessary to integrate the social and environmental dimension, since both join together the social production of space. Hence it is worth doing a critical reading upon the environmentalization of the planning discourse, aiming to scrutinize such notions in order to move towards a critical practice of planning,

Key words: environmental planning, sustainable development, sustainable cities.

Planejadores, arquitetos e urbanistas, secundados por ambientalistas, gegrafos, advogados e outros profissionais passaram a defender, na ltima dcada, a cidade sustentvel, metrpoles sustentveis e a preservao ambiental. Sem dvida ningum, aparentemente, contra a sustentabilidade e, muito menos ainda, contra a defesa da natureza. Das populaes indgenas ao Banco Mundial, grupos variados entre os quais se contam empresas multi e transnacionais todos se declaram favorveis a preservao da natureza e ao desenvolvimento sustentvel. Sem embargo cada um o faa com agendas e interesses diferentes e por vezes totalmente contraditrios. De fato a questo ambiental converteu-se em um rtulo de legitimao de diferentes prticas e penetrou profundamente em todas esferas da reproduo social contempornea.

Na esfera empresarial e corporativa empresas de vrios ramos industriais buscam selos de certificao ambiental, que abrangem desde os certificados ISO 14.000 aos selos verdes ou outras rubricas.

Desmatam-se florestas, em seu lugar plantam-se outras tantas rvores, muitas vezes eucaliptos e pinheiros, monoculturas aliengenas comprovadamente desastrosas em termos ambientais para a fauna e flora nativas.

Explora-se petrleo em alto mar em campos com nomes sugestivos como jubarte, garoupa, etc. No se tratam de homenagens a fauna marinha, mas de exploraes em reas de reproduo desses animais, alguns ameaados de extino. No mbito do agronegcio se comercializam a preos elevados produtos orgnicos, isentos de produtos nocivos, no obstante vicejem em diversos lugares produtos transgnicos mais baratos, que a despeito das proibies e interdies adotadas por alguns pases podem colocar em risco atravs da polinizao a reproduo de plantas com sementes.

No de surpreender, portanto, a incorporao de questes e temas ambientais no discurso do planejamento. Na ltima dcada tornou-se comum falar em desenvolvimento sustentvel, cidades sustentveis, prticas sustentveis, turismo sustentvel, gesto costeira sustentvel, e enfim, por que no? Um planejamento sustentvel.

Embora no haja muita clareza ou convergncia de opinies sobre o que seria essa sustentabilidade.

Mesmo, assim, o termo sustentvel aparece como algo que surgiu nas duas ltimas dcadas do sculo XX, e soe ser adotado de forma indiscriminada para adjetivar propostas, prticas e coisas, por servir-lhes como reforo positivo.

Trata-se em linhas gerais de apontar a natureza da ambientalizao do discurso do planejamento que, de modo recorrente na ltima dcada, incorporou as idias da sustentabilidade do desenvolvimento e das cidades sustentveis. Refletir sobre estas questes implica em um exame crtico da sociedade, uma vez que alguma concepo de natureza e ambiente atravessa todas as prticas contemporneas (Harvey, 1996, p.174). Portanto, no s a produo terica, mas a prtica de planejamento defronta-se com um impasse em que necessrio integrar a dimenso social e ambiental – medida que ambas integram a produo social do espao (social). Cabe, portanto, uma leitura crtica da ambientalizao do discurso do planejamento, que esmice tais noes para se avanar rumo a uma prtica crtica de planejamento territorial integrado.

Uma primeira aproximao, ou como ser contra o desenvolvimento sustentvel?

Uma das primeiras definies sobre o que seria o planejamento territorial contemporneo remonta declarao da Carta de los Andes (CINVA, 1960), elaborada no "Seminrio de Tcnicos e Funcionrios em Planejamento Urbano", realizado em 1958 na cidade de Bogot - Colmbia, sob os auspcios do Centro Interamericano de Vivenda e Planejamento – CINVA, de que "o planejamento um processo de ordenamento e previso para conseguir, mediante a fixao de objetivos e por meio de uma ao racional, a utilizao tima dos recursos de uma sociedade em uma poca determinada.

Tal conceituao pioneira de planejamento carrega em si mesma alguns problemas. A comear pela ao racional, que marcou vrias prticas de planejamento daquele perodo (1950-1960).

Primeiro, por inexistirem aes puramente racionais, por ser impossvel elencar todas as variveis e suas conseqncias; segundo, pelo fato da realidade em estudo no se manter esttica e imutvel durante o processo de anlise, diagnstico e prognstico, conforme a proposta do modelo racional-global de planejamento (Etzioni, 1973). Esse modelo racional-global de planejamento, elaborado no Massachusetts Institute of Technology (MIT) durante o alvorecer da Guerra Fria, no inicio da dcada de 1950, no obstante tenha sido relegado a um segundo plano nas prticas de planejamento, tem sido privilegiado nos estudos de impacto ambiental. O carter enciclopdico e multidisciplinar desse modelo possibilita incorporar diferentes conjuntos de variveis, mensuradas em uma matriz de ponderaes tipo custo-benefcio. Isto, porm, feito de forma mecnica com ponderaes subjetivas, muitas vezes relacionadas aos interesses em jogo. O que acarreta problemas ao se incorporar a varivel humana e social.

complicao introduzida pela ao racional soma-se a utilizao tima, que em si mesma remete a outro problema: tima para quem, segundo quais critrios e segundo que interesses? Ou seja a utilizao tima depende dos objetivos que so estabelecidos por quem promove o planejamento.

De fato, o processo de planejamento varivel e depende de quem o promove: o Estado, as corporaes ou grupos sociais com interesses especficos. Alm disso, no se pode relevar, que muitas vezes mesmo a participao planejada no processo de planejamento (Limonad, 1984). Usualmente cabe a populao atuar e participar das decises ao nvel das decises tticas, mas no das decises estratgicas. Tal participao soe contribuir para legitimar a prtica de planejamento, mas no abre espao para os envolvidos de fato decidirem sobre o que lhes interessa. Cabe a populao, como no caso dos Estudos de Impacto Ambiental (EIAs) e Relatrios de Impacto Ambiental (RIMAs) ou mesmo em planos diretores. Faz-se reunies, discute-se onde ser a represa, qual a rea a ser inundada, etc. No se questiona, porm, se os envolvidos desejam essa interveno, se h uma real necessidade desta implantao para a rea, ou ainda se haveriam outras alternativas. Por conseguinte, a utilizao tima dos recursos naturais estaria a servio daqueles que promovem o processo de planejamento. Enfim, pode-se dizer que esta questo da utilizao tima dos recursos no processo de planejamento pode ser vista como um vnculo precoce do planejamento com a questo ambiental, ainda mais ao se substituir o termo tima por sustentvel.

Tais concepes e idias orientaram a prtica de planejamento no Brasil ao longo de quase quatro dcadas, a partir da segunda metade do sculo XX, quando o planejamento estatal sequer se preocupava com os aspectos sociais e muito menos com os grupos diretamente envolvidos. (ver a respeito Lamparelli, 1982)

De fato, a idia de uma gesto җtima dos recursos naturais tem suas origens nas concepes liberais da economia poltica do capitalismo do sculo XIX, inspirada no pensamento de Locke (Harvey, 1996:131). Atravs de um discurso tcnico concernente a alocao adequada dos recursos escassos para o bem-estar humano se subsumia a dominao da natureza lgica do mercado. Esse discurso, em aparncia neutro e em nome de um pretenso bem comum, servia para mascarar a dominao hegemnica exercida atravs das relaes de produo sobre os trabalhadores e a natureza. Dominao necessria para garantir a prpria existncia do capitalismo.

O segredo do sucesso da persistncia e sustentabilidade do desenvolvimento do capitalismo reside, no apenas em sua constante reinveno, mas em sua capacidade de articular, organizar, subordinar, controlar e gerir pases diversos em um nico sistema global, onde as dimenses econmicas, sociais e ambientais da reproduo social se interpenetram e confundem. Instituies internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetrio Internacional, a Organizao Mundial do Comrcio, a Organizao dos Pases Produtores de Petrleo, a Organizao Econmica dos Pases Desenvolvidos (OECD), entre outras, contribuem para a manuteno e para o exerccio desse controle atravs do incentivo ou implementao de polticas de desenvolvimento econmico e industrializao em diversos pases. (ver Escobar, 1995:71).

A ambientalizao do discurso do planejamento tem suas razes na emergncia de conflitos sociais em diversas partes do mundo relacionados gesto e apropriao dos recursos naturais. Disputas por gua potvel, por terras frteis, por fontes combustveis sempre existiram e so to antigas quanto a humanidade.

A novidade do sculo XX estaria na resistncia modernizao e ao desenvolvimento, ao direito diferena. Distintos dos luditas do sculo XIX, pequenos produtores agrcolas, camponeses e populaes indgenas em diversos pases mobilizam-se em defesa da preservao de sua condio de existncia contra a imposio de uma modernizao que se traduz pela expanso espacial do capitalismo em escala global, e pela destruio das relaes pretritas de produo lgica do capital. Confrontam-se, assim, de um lado grupos sociais diversos mobilizados para preservar sua condio de existncia e, de outro, interesses corporativos e governamentais .

Estes conflitos e os mecanismos gerais de controle do sistema capitalista fizeram com que questes, inicialmente vistas como especficas e localizadas, conquistassem outras escalas e sassem do mbito puramente local e contriburam para converter a questo ambiental em um problema global.

A noo de desenvolvimento sustentvel surge, desta forma, da necessidade que estas lutas e demandas de organizaes no-governamentais e de comisses das Naes Unidas impuseram de se rediscutir a concepo, ento vigente, de desenvolvimento. (Mela et alii, 2001, p.80-81).

O Relatrio Bruntland, elaborado em 1987 durante a plena ascenso do neoliberalismo em escala mundial, sacramenta a necessidade de um desenvolvimento sustentvel em nome de um futuro comum, ao chamar a ateno para a finitude dos recursos naturais. Extirpa, assim, da noo de desenvolvimento sustentvel o carter dos conflitos sociais que lhe deram origem e, ao mesmo tempo, contribui para alimentar correntes ambientalistas de inspirao neomathusiana, que em nome de uma escassez dos recursos naturais defendem exclusivamente a natureza em detrimento de questes sociais. Releva-se, assim, o fato de que a escassez dos recursos naturais socialmente criada e depende muitas vezes dos interesses em jogo, das alianas existentes ao nvel da diviso internacional do trabalho e do estgio de desenvolvimento das foras produtivas para que este ou aquele recurso seja considerado esgotvel.

A noo de sustentabilidade se propaga como fogo de palha seca, porm com uma traduo inadequada em portugus. A expresso sustainable development em ingls significa desenvolvimento durvel, sendo traduzido para o francs como dveloppement durable e no como dveloppement soutenable, o que evidencia a inadequao do termo sustentvel (Moraes, 2001, p. 54).

A noo de desenvolvimento sustentvel refere-se, de fato, a teorias de desenvolvimento econmico. Teorias em que o desenvolvimento concerne uma mudana qualitativa nas estratgias de reproduo social e nos vnculos econmicos prevalecentes, relevando os limites do crescimento econmico.

Embora a noo de sustentabilidade do desenvolvimento ostente ares de novidade, suas origens podem ser localizadas em diversos autores do pensamento econmico. David Ricardo, em 1817 j levanta a possibilidade do crescimento econmico se sustentar e prolongar ao longo do tempo. Mais tarde Karl Marx, em A Ideologia Alem, questiona a durao do capitalismo frente aos limites impostos pelas relaes de produo ao desenvolvimento das foras produtivas e sua transformao em foras destrutivas. Por sua vez a concepo de destruio criativa de Joseph Schumpeter inspiradora para os que veem a sustentabilidade como a soluo para um capitalismo sadio. E, mesmo John Maynard Keynes, inspirador dos planos de ajustes macroeconmicos ps-1945, ao tratar do desemprego estrutural tambm se preocupa com a sustentabilidade do desenvolvimento do capitalismo.

A idia, em si, portanto, no nova, porm atraente e sedutora, o que faz com que propostas, planos e prticas de diferentes matizes polticos, engajadas e crticas ao status quo incorporem valores capitalistas sem perceber.

Os discursos e idias da sustentabilidade trazem em si representaes, idias e valores distintos que remetem mais aos efeitos prticos desejveis e busca de legitimidade poltica do que construo de um conceito explicativo (Acselrad, 1999, p. 80).

A argumentao da sustentabilidade contribui para articular diferentes discursos em torno de uma estratgia comum – em particular estratgias voltadas para o desenvolvimento urbano e local com a preocupao ambiental e sustentvel. Concordamos com Acselrad (1999, p.87) que a associao da noo de sustentabilidade possibilidade de haver uma forma social de apropriao e uso do meio ambiente dada pela prpria natureza das formaes biofsicas significa ignorar a diversidade de formas sociais.

Ou seja isto significa no aceitar que haja apenas uma forma adequada de uso sustentvel e que esta sustentabilidade forjada sobre interesses especficos relacionados apropriao material dos recursos naturais e do territrio.

De fato o termo sustentabilidade significa coisas completamente diferentes para diferentes pessoas, mas Ҏ muito difcil ser a favor de prticas insustentveis assim o termo cola como um reforo positivo de polticas e poltica conferindo-lhes a aura de serem ambientalmente sensveis (Harvey, 1996, p.148).

Organizaes governamentais e no governamentais encamparam o desenvolvimento sustentvel como o novo paradigma do desenvolvimento urbano. Embora seu carter abrangente e atual lhe confira fora poltica e contribua para legitimar distintas prticas, as formulaes prevalecentes indicam sua debilidade conceitual por sua percepo incompleta da degradao ambiental e da pobreza bem como por sua falta de clareza quanto a prpria sustentabilidade, participao e emancipao social. Caberia, portanto segundo Ll (2002) uma rigorosa redefinio conceitual para se poder adotar essa expresso criticamente.

Cidades Sustentveis

Quase como decorrncia do xito do desenvolvimento sustentvel enquanto ferramenta de legitimao de prticas urbanas neoliberais, surge no incio da dcada de 1990 o Programa de Cidades Sustentveis (SCP) das Naes Unidas. Sua criao unificou as agendas de desenvolvimento sustentvel do Programa Ambiental das Naes Unidas (United Nations Environment Programme UNEP) e do Centro para os Assentamentos Humanos das Naes Unidas (United Nations Centre for Human Settlements - UNCHS).

O Programa Ambiental das Naes Unidas (UNEP), criado em 1972, enfatiza a importncia do planejamento e da gesto dos assentamentos humanos, em particular em reas urbanas, com uma preocupao indireta com a qualidade do meio ambiente desses assentamentos. De certa forma o Centro para Assentamentos Humanos, criado em 1978, converge para as preocupaes do primeiro ao passar a promover padres sustentveis de vida em reas urbanas e rurais, havendo sido posteriormente designado de UN-Habitat (United Nations Human Settlement Program).

O Programa das Cidades Sustentveis das Naes Unidas, nasce assim como uma articulao desse dois programas, e define a cidade sustentvel, como um lugar que dispe de um acervo durvel de recursos naturais para garantir a sustentabilidade (durabilidade) do desenvolvimento social, econmico e fsico, e que conte com uma segurana durvel contra riscos ambientais que ameacem o seu desenvolvimento (UNCHS/UNEP, 2005).

Um indicador do xito desse programa a dimenso que assumiu em menos de vinte anos. Atualmente opera em mais de trinta pases de forma diferenciada com participaes diversificadas. Sua proposta geral formar quadros de governo mediante a capacitao e instrumentalizao de autoridades locais e seus parceiros para a gesto e planejamento urbano ambiental sustentvel das cidades.

Da mesma forma que no caso do desenvolvimento sustentvel, no h uma definio conceitual, precisa e rigorosa do que se entende por uma cidade sustentvel, ou lembrando dos argumentos do item anterior, o que se poderia caracterizar como uma cidade durvel. No o so todas, em sua maioria? Ento por que falar em cidades sustentveis? Ao invs de aceitar acriticamente uma definio ou programa mnimo do que se considera uma cidade sustentvel, cabe entender criticamente quais os condicionantes e conseqncias relacionados a proposta de cidades sustentveis.

Grosso modo, as abordagens relativas as cidades sustentveis podem se dividir em trs grandes veios[1], o aporte tcnico, o a priori e o reformista.

O aporte tcnico se caracteriza por interpretar o desenvolvimento urbano sustentvel como uma mera questo tcnica relacionada ao planejamento urbano, gerenciamento de trfego, adoo de tecnologias limpas e ao desenho urbano. Essas propostas, adotadas por arquitetos, urbanistas e tcnicos de prefeitura so vendidas e alardeadas como frmulas mgicas de resoluo dos problemas urbanos. Caracterizam-se pelo exerccio demirgico do saber tcnico e por fazer tbula rasa do que existe. Ao imprimir um modelo ideal de cidade sustentvel com adaptaes a diferentes cidades, afinal cada caso um caso, se reduz a cidade a um conjunto de volumes construdos, de massas ambientais, artrias de trafego e de circulao, onde prevalecem tecnologias limpas e reas despoludas. O que no for funcional, ou adaptvel esteticamente tende a ser suprimido. Enquanto questo tcnica as intervenes nesse sentido, embora geograficamente localizadas, aparecem como algo direcionado a atender um interesse geral comum, uma vez que por principio todos teriam condies de usufru-las. Essas propostas so implementadas ignorando o que lhes antecede e sucede, alheias s diferenas e desigualdades scio-espaciais.

No enfoque a priori, ou ontolgico, as propostas e estudos assumem a existncia a priori de uma cidade insustentvel a ser transformada em sustentvel. O desenvolvimento urbano sustentvel reificado como portador de algo positivo em si mesmo, servindo de panacia para todos os problemas. Essa fetichizao da sustentabilidade, ao mesmo tempo em que legitima as propostas sustentveis, lhes confere um carter neutro e apoltico, afinal quem contra a sustentabilidade? Releva-se, assim, a existncia de diferentes interesses, de desigualdades scio-espaciais, bem como os conflitos e prticas espaciais que produziram aquele espao, objeto de interveno.

Enfim, os estudos desde a perspectiva crtica reformista tendem a encarar o desenvolvimento sustentvel e a proposta de cidades sustentveis como uma possibilidade vivel de imprimir mudanas, ainda que limitadas. Conscientes das limitaes das propostas de desenvolvimento sustentvel dos dois veios anteriores buscam imprimir-lhes um carter transformador, com a observao de que no vem ser necessrio ou sensato assumir um compromisso exclusivamente com a transformao, por entender que a reforma agora melhor do que nada e a transformao pode no ser imediatamente possvel (Hopwood, 2005:49-50). Propostas com este tipo de inspirao buscam engajar governos e grupos sociais em torno de questes comuns, de modo a promover aes diretas. No obstante tenham conscincia das assimetrias de poder existentes e das nuances do jogo poltico buscam solues de compromisso. Nutrem ativismos sociais em torno de questes especficas e buscam articul-los com aes de governo. Embora tais prticas obtenham algum sucesso, usualmente seu alcance limitado tanto em termos sociais quanto espaciais e, por vezes, servem para legitimar planos de governo de maior alcance e obliterar possibilidades de real transformao social.

Quanto as cidades sustentveis, concordamos com Whitehead (2003) que h de se considerar, primeiro, que a despeito do mote sustentvel, estas cidades no sustentam equanimemente todos os interesses envolvidos. Tampouco constituem objetos planejados genricos, passveis de serem implementados de forma uniforme, de acordo com um modelo mnimo pr-definido de cidade sustentvel. Pelo contrrio estas cidades possuem cada uma per se uma histria espao-temporal prpria e uma articulao particular com outras escalas. Nem se limitam a ser apenas uma outra alternativa de investimento para o capital, mas constituem uma remodelao radical de projetos neoliberais em reas urbanas localizadas (Whitehead, 2003: 1203). Enfim, no h como se menosprezar a percepo do sistema capitalista, que vai muito alm das possibilidades de investimento puro e simples. A articulao de governos locais em diversos pases, em vrias escalas emerge como um terreno propcio de cooptao e de apaziguamento de tenses sociais, uma vez que a cidade representa um terreno crucial para a construo de um espao diferencial e de uma sociedade mais equnime.

Algumas consideraes finais

Sob o argumento de minimizar os impactos da produo capitalista do espao sobre o meio ambiente, planejadores e tcnicos de governo, por sua vez, propugnam o desenvolvimento urbano, ou mesmo o desenvolvimento local sustentvel, o turismo ecolgico, a urbanizao sustentvel controlada, a agricultura ecolgica, o zoneamento econmico ecolgico em escala regional, etc. Esses discursos de planejamento, embora ambientalizados, vo de encontro as prprias prticas de organizao e regulao do espao. Prticas que se revelam, por assim dizer, ambguas, no concernente sustentabilidade que se propem a promover.

De fato, a produo social do espao em si envolve uma apropriao da natureza e de espaos pr-existentes, nesse sentido as estratgias de desenvolvimento sustentvel e a ambientalizao do planejamento tem um fundo comum relacionado ao carter estratgico que o espao social assume para a reproduo do capital. Isto faz com que as contradies e conflitos fundamentais das sociedades contemporneas voltem-se para disputas em torno do espao social frente a re-apropriao e ampliao espacial do domnio da lgica capitalista. A questo ambiental aparece, assim, como expresso dos conflitos entre diferentes formas de apropriao, tanto ao nvel das representaes como na prpria materialidade dos processos. A articulao entre ambas dimenses constitui o cerne da problemtica ambiental e tanto condio como resultado do processo de produo de transformaes no espao social.

Na luta pela dominao do espao social, aquilo que se pode, contemporaneamente, designar de espao natural torna-se na lgica capitalista reserva de valor, objeto de cobia e aparentemente escasso em relao s necessidades capitalistas da reproduo das relaes de produo.

Com a diluio da diferenciao rural-urbano, avano da urbanizao, e industrializao da agricultura o espao como um todo se converte em objeto de disputa de diferentes lgicas e enfrentamentos sociais, que resultam em impactos ambientais diferenciados. Por um lado expandem-se as reas urbanas, por outro criam-se extensos desertos verdes de monoculturas enquanto parte de complexas cadeias produtivas. Resultam da crescentes presses pela ocupao e uso de reas de preservao e proteo ambiental, que se expressam em conflitos entre a funo social e ambiental do espao.

Tais conflitos decorrem, por um lado, do carter excludente da produo capitalista do espao, que simultaneamente ao produzir novos espaos urbanos, recuperar espaos degradados, incorporao de espaos a produo agroindustrial alija desses espaos socialmente produzidos e equipados crescentes contingentes de trabalhadores. A estes restam as periferias carentes de infra-estruturas e equipamentos, ou ainda as orlas de rios, lagoas e mananciais e as encostas de morros. Por outro lado decorrem, tambm, da nsia do capital imobilirio em incorporar espaos com amenidades naturais ao seu processo produtivo, enquanto um fator diferencial, particular e no-reprodutvel, para maximizar sua captura de rendas diferenciais.

Torna-se patente, assim, a interao ambiente natural e ambiente construdo. E, medida que no h mais espao natural[2] e que este tambm um produto social, como pens-lo parte do espao social ?

Enfim, na perspectiva de contribuir para uma economia poltica do espao social fundada em uma perspectiva crtica, h que se aprofundar a reflexo sobre a natureza da ambientalizao do discurso do papel do planejamento e do urbanismo e a que fins aparentemente atende. Uma vez que, ambos usualmente contribuem para a regulao e viabilizao da dominao do espao pelo capital e pelo Estado.

A ambientalizao do discurso do planejamento pode contribuir, em ltima anlise para manter e ampliar os sistemas hegemnicos de poder. Bem como para garantir a alocao de recursos naturais necessria para a acumulao de capital. Desta forma pode-se dizer que esta ambientalizao estaria relacionada ao carter geopoltico que assume a questo ambiental contempornea, uma vez que no se encontram mais em causa apenas os interesses locais e regionais – tratar-se-ia portanto de uma nova interface da inter-relao local-global, em que o global busca interferir nos desgnios do local.

 

Notas

[1] Whitehead (2003) define dois grandes tipos, o técnico e o a priori, ao qual acrescentamos o reformista.

[2] Milton Santos (1996) salienta que não há mais espaço natural, ou seja natureza intocada, questão levantada por Henri Lefebvre (1991) ao assinalar que se o espaço (social) é um produto (social) a primeira implicação disso seria a desaparição do espaço natural. Para Lefebvre o espaço natural, a natureza seria aquilo que escapa a racionalidade. Mas o que não escapa à racionalidade hoje ? Mesmo as áreas mantidas como reserva de recursos naturais, capital natural não deixam de ser objeto desta racionalidade na medida em que se constituem enquanto tal. Nesse sentido, Alain Lipietz (1995:10) chama a atenção para o fato de que tudo que existe na Terra é atualmente influenciado pela atividade humana neste sentido nenhum local deixaria de sofrer os efeitos desta atividade. A proposição do fim da natureza natural não é nova, mesmo Marx e Engels (1976:46 – tradução do autor) são enfáticos, em sua crítica a Feuerbach, ao afirmarem que a natureza que precedeu a história humana, não é de modo algum a natureza em que Feuerbach vive, é uma natureza que não existe mais em lugar nenhum (exceto talvez em algumas ilhas de coral australianas de origem recente).

 

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© Copyright Ester Limonad, 2010. 
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Ficha bibliográfica:

LIMONAD, Ester. A natureza da ambientalização do discurso do planejamento. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2010, vol. XIV, nº 331 (66). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-331/sn-331-66.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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