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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIV, núm. 331 (95), 1 de agosto de 2010
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

MÚSICA E IMAGINÁRIOS NA PRODUÇÃO DA CIDADE: A VITALIDADE COMPLEXA DA LAPA CARIOCA

Anita Loureiro de Oliveira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
anitaloureiro@yahoo.com.br

Patricia Daflon dos Santos
Universidade Federal do Rio de Janeiro
patdsantos@gmail.com

Música e imaginários na produção da cidade: a vitalidade complexa da lapa Carioca (Resumo)

O uso instrumental da música na promoção da imagem da cidade pode ser reconhecido no imaginário dominante sobre a cidade do Rio de Janeiro, onde a Lapa aparece como lugar da boemia. Ainda que conquistas de lideranças locais resultem em ações governamentais pontuais que tendam a converter a Lapa numa vitrine para gêneros musicais conectados à identidade da cidade, não podemos negar uma ocupação cultural múltipla e horizontal. Sua supervalorização como point noturno não deixa de expressar resistências, não totalmente conscientes, à dominação pragmática do território, por meio de apropriações simbólicas e usos renovados, que auxiliam na identificação de formas participativas de produção da cidade. Tal processo de renovação, fortemente vinculado à música, confronta o planejamento orientado por modelos exógenos, que se materializam na construção de equipamentos-ícones-urbanos como a Cidade do Samba e a Cidade da Música e que evidenciam a ação vertical e sem diálogo de promoção da cidade-cenário.

Palavras chave: cidade, música, apropriações simbólicas, imaginários.

Music and imaginary in the production of a city: The complex vitality of the carioca Lapa. (Abstract)

The instrumental usage of music to the promotion of the city’s image can be acknowledged in the dominant imaginary of the city of Rio de Janeiro, in which Lapa appears as a place of bohemian. Event though some victories of local leadership result in isolated governmental actions to transform Lapa in a kind of showcase of music genres which are connected to the city’s identity, one cannot deny the happening of a multiple and horizontal cultural occupancy. Lapa’s supervalue as a night point does not lack to express resistancies, not completely conscious ones, to the pragmatic domination of the territory through symbolic appropriations and renewed usages that helps in the identification of collaborative production in the city. Such process of renewal, strongly linked to music, confronts the planning oriented by exogenous models, that materialize themselves in the building of urban-icons-equipments such as the Cidade do Samba (The City of Samba) and the Cidade da Música (The City of Music) that underlines the vertical action and the lack of dialogue to the promotion of the scenario city.

Key words: city, music, symbolic appropriations, imaginaries.

Memórias e usos recentes da Lapa: imaginários e identidades cariocas na produção da cidade

No Rio de Janeiro é bastante freqüente o uso instrumental da cultura, e mais especificamente da música, na promoção da imagem da cidade. A reflexão sobre a produção subjetiva da cidade permite o alcance das subjetivações inerentes às relações sociais, políticas e econômicas que animam a vida urbana. Tal visão pode contribuir para superar a naturalização das formas dominantes de produção do espaço, que reduzem a cidade à materialidade urbana e negam a importância dos aspectos simbólico-subjetivos associados à produção da cidade.

Esta reflexão é, em parte, um desdobramento da Tese “Música e Vida Urbana: encontros e confrontos na cidade do Rio de Janeiro (1990-2008)” (Oliveira, 2008), cuja metodologia apoiava-se na música para reconhecer o diálogo no urbano e a forma pela qual a análise sobre a cidade deve estar atenta às práticas culturais e à transformação que a produção musical pode gerar em determinados lugares. A atualização dos processos refletidos neste trabalho surge da experiência prática trazida pelas autoras no uso da Lapa como lugar de encontro e de diversão na cidade e pelo fato de ser, ainda, área de residência de uma das autoras do trabalho, sugerindo uma questão de método que afirma a construção do conhecimento iniciada no vivido.

A cidade do Rio de Janeiro evidencia contradições e complexidades da espacialidade capitalista que está sempre em constante transformação. Um lugar como a Lapa pode nos ajudar a observar como “o território é sempre múltiplo, ‘diverso e complexo’, ao contrário do território ‘unifuncional’ proposto pela lógica capitalista hegemônica” (Haesbaert, 2004). Este lugar de memória e simbolismo, ao mesmo tempo em que é locus espontâneo da produção e da prática musical coletiva, é, também, um lugar onde agentes podem intervir de modo a descaracterizá-lo num futuro bastante próximo.

Segundo Jacques e Vaz (2006, p. 80), a Lapa, antiga área residencial e reduto da boemia e da malandragem, lugar que ainda preserva parte significativa do casario do século XIX e os Arcos (Aqueduto da Carioca do século XVIII), por não ter passado por processos de homogeneização funcional e social, permitiu a multiplicação de usos e atividades que potencializam sua vitalidade. Ainda que seja tratada como bairro, até mesmo em documentos produzidos pela Prefeitura do Rio de Janeiro e por outros órgãos de governo, a Lapa é a denominação conferida a uma pequena parte da II Região Administrativa da cidade, esta sim identificada na subdivisão administrativa do município como bairro Centro, (Silveira, 2004:113). Situada na periferia imediata da área central da cidade, na Lapa alternaram-se períodos de valorização e desvalorização, passando de lugar de moradia de famílias abastadas no século XIX, a lugar da boemia no século XX (Silveira, 2004), tendo se tornado um território ainda mais complexo neste início do século XXI.

As chácaras nos limites da cidade fizeram com que até 1915 fosse considerada uma área residencial das camadas abastadas que, ao se mudarem para zona sul e norte da cidade, deram lugar a uma ocupação residencial das camadas populares (cortiços, pensões, casas de cômodos) e de lazer barato, com destaque para um uso relacionado à presença de prostitutas e travestis (como o famoso Madame Satã, personagem histórico do lugar). Entre as décadas de 1910 e 1940, era reconhecida como reduto da boemia, por ser freqüentada por artistas e intelectuais. Com a repressão moralizante promovida pelo Estado Novo e com a intensificação da vida noturna em Copacabana na década de 1950, a Lapa experimenta uma aparente decadência, ainda que a partir de 1937, iniciativas de tombamento e reformas de edificações tenham sido promovidas pelo recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e entre 1960 e 1970, a dinâmica aponte para a valorização do local, sob a ótica da renovação (Oliveira, 2009; Silveira, 2004).

Durante a década de 1980, o projeto Corredor Cultural foi implantado como instrumento para garantir a proteção do patrimônio histórico-cultural do trecho conhecido como “Rio Antigo”, abrangendo não só a Lapa como também a Praça Tiradentes, a Cinelândia e a Rua do Lavradio. A transferência do Circo Voador do Arpoador para a Lapa e a refuncionalização da Fundição Progresso como equipamento cultural contribuíram para reforçar o uso do centro da cidade para o encontro, reforçando o imaginário desta área como locus da diversão noturna. No fim da década de 1990, a refuncionalização do casario antigo da Lapa para abrigar rodas de samba ganhou destaque, expandindo o movimento de valorização do samba como patrimônio imaterial da cultura nacional[1].

Em 2000, quando a área já estava bastante movimentada por iniciativas dos atores locais que promoviam o uso das edificações reformadas para atividades festivas e artísticas, o Governo do Estado criou o projeto Distrito Cultural da Lapa para estimular o desenvolvimento econômico e social com base na recuperação do patrimônio imobiliário público, especialmente o estadual, incentivando a criação de centros culturais e ações de promoção do turismo local.

Recentemente, investimentos imobiliários como os Condomínios Cores da Lapa (688 apartamentos) e Viva Lapa (178 unidades) ampliaram o uso residencial de camadas médias da população que deseja morar próximo ao centro financeiro e comercial da cidade. Investimentos do setor de construção civil, de empreiteiras e da promoção imobiliária, evidenciam o interesse pela área, como a transferência do Tribunal Regional do Trabalho para a Rua do Lavradio e, mais recentemente, a polêmica construção de um prédio de 44 pavimentos que serviria de sede para a Eletrobrás e que implicaria na demolição de edificações históricas. Além dos empreendimentos comerciais destinados ao uso cotidiano dos moradores desta localidade, numerosos investimentos têm sido feitos para a abertura de bares, restaurantes e casas de shows e festas.

Atualmente, a Lapa concentra múltiplas ações, como aquelas promovidas pelo Pólo Novo Rio Antigo que “visam congregar e organizar empresários, produtores e artistas para desenvolver ações integradas, a fim de que a área seja de excelência turística, cultural, gastronômica e de preservação do patrimônio histórico”[2]. Ganha destaque a parceria desta associação com a Prefeitura que vem se desdobrando em políticas públicas vinculadas à implantação do Núcleo Histórico Cultural da Lapa, por meio do projeto Lapa Legal, que pretende articular as Secretarias Municipais de Cultura (SMC) e de Obras (SMO) com a Secretaria Especial da Ordem Publica (SMOP) para implantar ações para melhorar a acessibilidade, a segurança, a iluminação e a limpeza no local[3].

Observamos neste breve histórico da Lapa, a forma como a música é capaz de potencializar a vitalidade de determinados lugares da cidade, incentivando a criação de políticas públicas conectadas ao uso do lugar. Neste trabalho procuramos evidenciar a organização de alguns atores locais para estimular a renovação da Lapa, frente à opção do governo municipal em priorizar a construção de ícones urbanos, claramente orientada pelo city marketing em outras áreas da cidade.

A produção da cidade-cenário: cidade da música, do samba e políticas de city marketing

As transformações recentes observadas em grandes cidades indicam que governos municipais têm colocado a “arquitetura e o urbanismo a serviço do marketing político” (Jeudy e Jacques, 2006), seguindo a orientação do modelo de gestão urbana orientado pela imagem. Para Ribeiro (2006), hoje é menos equivocado considerar a cidade como uma empresa ou mercadoria, do que em períodos anteriores. Quando se pretende pensar as conseqüências do planejamento urbano empresarialista, Souza (2004) afirma que a cidade do Rio de Janeiro é um bom exemplo.

“No Brasil, as perspectivas mercadófilas têm se aninhado, a partir da década de 90, no discurso dos “planos estratégicos”. O mais conhecido exemplo é o Rio de Janeiro, elaborado durante a administração do prefeito César Maia pela prefeitura em parceria com numerosas entidades da sociedade civil” (Souza, 2004, p. 139)

Segundo dados apresentados por Souza (2004) “tenta-se criar a sensação de um firme consenso”, quando em realidade “linhas de tensão e conflito são escamoteados em favor de uma imagem de unidade”. A conseqüência perversa do modelo de gestão urbana adotado na cidade do Rio de Janeiro tem favorecido interesses privados – empresariais - em detrimento dos interesses coletivos. Este modelo conectado ao metabolismo do capital fortalece a lógica da competitividade, que busca tornar as cidades “competitivas” seguindo orientações que enfraquecem o diálogo entre os grupos sociais, num momento em que o diálogo precisa ser estimulado (Ribeiro, 2006).

De acordo com Garcia (1997), o movimento de passagem do espaço-mercadoria à cidade-mercadoria situa­-se no marco temporal dos anos 1990 quando, em função da reestruturação econômica mundial e da fluidez espacial de empresas e capitais, os governos municipais intensificaram suas políticas de “venda” das cidades. Entretanto, os projetos políticos em torno da "cidade-mercadoria" dependem de um amplo consenso social e, mesmo que projetos e atores divergentes sejam ofuscados, eles existem e tentam confrontar este modelo claramente orientado para o mercado globalizado. Segundo Garcia (1997), para forjar um consenso social em torno deste modelo de gestão urbana evoca-se a chamada ‘exigência da economia competitiva’ propagada pelos representantes dos governos locais e apoiada por agentes econômicos privados que elaboraram projetos de renovação urbana e estratégias trans-escalares nas políticas de reestruturação do espaço, para “vender as cidades” enquanto mercadoria específica. Este modelo produz representações que obedecem a uma determinada visão de mundo, uma série de imagens-síntese sobre a cidade que é construída, assim como são criados discursos referentes à cidade, de forma a encontrar na mídia e nas políticas de city marketing os instrumentos para a difusão e a afirmação deste modelo (GARCIA, 1997). Tal como afirma Garcia (1997), este modelo propõe mudanças tanto no nível das práticas espaciais (infra-estruturas, isenções e favores fiscais) quanto no nível das representações do espaço (imagens, discursos), que fazem da mercadoria cidade, um palco onde o espetáculo é conduzido por atores que cumprem o papel de consumidores específicos e qualificados: o capital internacional, os turistas e os cidadãos "solváveis" (Garcia, 1997).

Na leitura feita pelo senso comum, o modelo da cidade competitiva aparece como resultado da performance dos governos que, através de "boas práticas" destacaram-se na ação urbanística ou nas práticas de gestão das cidades. Esta aparência esconde um complexo mercado onde imagens são construídas e postas em circulação em variadas escalas com influências de diversas ordens e o conjunto de agentes e estratégias territoriais interescalares reforçam tal imagem, como se as ações ocorressem de dentro para fora, a partir da ação local dos governos e cidadãos e, posteriormente, descoberto por agentes externos, difundido em outras escalas (Garcia, 1997). De fato, conforme afirma Ribeiro (2006), a nova posição ocupada pelo consumo ampliou a intervenção das empresas privadas na administração da cidade e na psicosfera dos lugares (Santos, 1997) e “são muitos os processos associados à acumulação primitiva do capital simbólico” (Ribeiro, 2006:41).

A política de eventos (que no caso do Rio de Janeiro se concretiza com os Jogos Panamericanos em 2007 e, mais recentemente, com a escolha da cidade para sede dos Jogos Olímpicos de 2016) e a construção de equipamentos – ícones - urbanos (Cidade do Samba e Cidade da Música) permitem uma reflexão crítica da manipulação mercantil de capital simbólico (Ribeiro, 2006). Para Ribeiro (1995), a esfera cultural tem sofrido profundas mudanças nos processos de acumulação de riqueza e poder e na organização da sociedade, bem como nas formas de apropriação do espaço. Para esta autora, os vínculos empresariais estimulados pelo planejamento centralizado modificaram a composição interna da esfera cultural, a natureza dos bens culturais consumidos no país e, ainda, o campo das políticas culturais. A dinâmica econômica inclui atividades culturais – na fabricação de bens culturais e no suprimento de bens e serviços intermediários que viabilizam o consumo de outros bens e serviços.

A Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ), depois da polêmica em torno da construção do Museu Guggenheim - que acabou sendo impedida pela ação popular – e da opção pela criação da Cidade do Samba na área portuária da cidade, voltou a ser alvo de críticas com a Cidade da Música, na Barra da Tijuca. O projeto prevê a instalação de um complexo para música clássica, com salas para concertos de orquestras sinfônicas e óperas, envolvendo um investimento na ordem de R$ 500 milhões. O projeto foi proposto pelo arquiteto francês, Christian de Portzamparc, que segundo a PCRJ é “responsável pela criação de grandes símbolos urbanos em todo o mundo, como o Cité de la Musique, de Paris” e “o complexo abrigará a maior sala de concertos da América Latina e a nova sede da Orquestra Sinfônica Brasileira da cidade do Rio de Janeiro”[4]. A obra foi paralisada por 450 dias para auditoria municipal e sua inauguração está prevista para novembro de 2010, após suspeitas ainda investigadas pela Câmara de Vereadores[5].

A crítica ao projeto refere-se, em geral, ao seu alto custo e à concentração de recursos em um único equipamento cultural, sem que este tivesse sido submetido a nenhum tipo de consulta popular. Para Herschmann (2007), a criação da Cidade da Música é “claramente o resultado de uma decisão tomada por técnicos em gabinetes fechados em parceria com grandes grupos privados do país”, ao que acrescenta que “esta decisão não era propriamente um atendimento às demandas evidentes da sociedade carioca”. Para o autor, não se trata de oposição à criação de um centro dedicado à música erudita. O que se critica é o comprometimento do orçamento do setor cultural, historicamente limitado, em uma ação que pode significar o abandono do apoio a outras áreas e atividades culturais locais. Para o autor (2007, p. 11) em geral as políticas culturais não resultam de uma consulta democrática à sociedade, ocorrendo freqüentemente a “aplicação de medidas exógenas que tendem a dificultar a mobilização e atuação dos ‘atores sociais’ e, em última instância, o próprio processo de integração e adensamento dos territórios”.

A crítica à maneira como foi concebida e vem sendo implantada a Cidade da Música, desde 2002, articula-se à análise que buscamos realizar neste trabalho; pois, através do exemplo da instalação deste equipamento cultural, é possível verificar o distanciamento de certas decisões governamentais com relação às práticas espaciais e culturais da maioria da população carioca. Durante os três mandatos de César Maia na prefeitura do Rio de Janeiro (1993-1996; 2001-2004; 2005-2008) este modelo propagado como eficiente para a gestão urbana, evidenciou a falta de diálogo na decisão sobre a alocação de recursos e o atendimento aos interesses empresariais. No campo da cultura, a falta de diálogo e participação foi verificada com o fechamento repentino do Circo Voador, em novembro de 1996, causado pela ‘decadência arquitetônica’ utilizada como razão para a cassação do alvará de funcionamento pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Palco da diversão carioca, especialmente dos anos 1970, 1980 e início dos anos 1990, o Circo Voador permaneceu oito anos fechado por irregularidades na infraestrutura acústica e por problemas financeiros, mesmo com numerosos protestos pelo seu fechamento arbitrário. Após ser reformado, foi reaberto em 2004, com novo sistema de iluminação cênica, tratamento acústico adequado e acessibilidade universal e foi incorporado aos equipamentos culturais da Prefeitura. Os logradouros ao redor do Circo Voador também foram reorganizados para garantir melhor o acesso à área, como parte das obras promovidas pelo Programa Rio Cidade.

O Rio Cidade é um plano de reforma urbanística que obedece ao signo da ordem e ao signo do embelezamento e atinge a cidade de modo pontual e diferenciado (Oliveira, 2002). Tal como afirma Oliveira (2002, p. 138), reformar a cidade, criar ou recriar o seu solo urbano, embelezá-lo e adequá-lo a novas situações mundiais, aparece como fala recorrente dos políticos, arquitetos e urbanistas. O ex-prefeito, Cesar Maia, destacava que “desde o início da década de 90, a cidade vem recebendo amplos investimentos internacionais, que permitem que a prefeitura coloque em prática um grandioso programa de macroinvestimentos de renovação urbana e de construção de novos equipamentos”[6]. Segundo Oliveira (2002), a forma de intervenção proposta no Rio Cidade privilegia os chamados corredores estruturadores da imagem da cidade e é uma intervenção pontual na escala da cidade, que demarca territórios no interior dos bairros, e pragmática na medida em que procura resultados, em curto prazo, com relação à disciplina no uso do espaço urbano.

Comparando os recursos investidos pela PCRJ em equipamentos – ícones – urbanos, como a Cidade da Música, a Lapa recebeu poucos investimentos em infraestrutura na última década, mas tem como vantagem a associação de atores locais que se mobilizam para garantir mais conforto, segurança e acessibilidade aos freqüentadores do lugar. Para Herchmann (2007, p.11), a Lapa é a cidade da música de coração dos cariocas e sua potencialidade integradora e criadora não resulta de um conjunto de políticas públicas orientadas a este fim. Entretanto, desde 2005 uma organização de atores locais – o Pólo Novo Rio Antigo – tem recebido apoio da Prefeitura e pretende ser uma referência cultural, histórica, gastronômica e turística, “que - através da sua diversidade - possa valorizar e produzir bens materiais e simbólicos, que destaquem a identidade da alma carioca, gerando trabalho e desenvolvimento social e econômico”[7]. Uma das ações que evidenciam a disposição da atual gestão da PCRJ no apoio às reivindicações locais, de melhoria da infraestrutura de limpeza, segurança e de promoção da área como destino consumo e lazer é a implantação da Feira Noturna Lapa Legal.

Com base no discurso do “Choque de Ordem”, a atual Prefeitura regulamentou a Feira Noturna Lapa Legal, na calçada da Sala Cecília Meireles e entre os Arcos da Lapa e o anfiteatro, com funcionamento noturno de quarta-feira a domingo. O Diário Oficial do Município do dia 17 de junho de 2009 divulgou a resolução da Secretaria Especial da Ordem Pública, que visa “disciplinar o comércio ambulante na Lapa”, que deve ser credenciado e abastecido por um único distribuidor de cerveja, escolhido por meio de licitação e que terá como atribuição instalar 40 banheiros químicos, barracas e depósitos para vendedores. Estas ações (ainda não implementadas) não foram discutidas com o conjunto da população, mas atende aos interesses de lideranças locais organizados nesta associação que reúne empresários e profissionais da cultura, gastronomia, comércio, serviço, turismo e lazer – o Pólo Novo Rio Antigo.

A música na Lapa e o uso renovado do lugar

Localizada na área central da cidade do Rio de Janeiro, a Lapa é um lugar de encontro e da prática musical coletiva que, desde o final da década de 1990, vive um círculo virtuoso. O sucesso mais recente alcançado pela Lapa deve-se mais ao fato desta ter se tornado um lugar especial para a difusão musical na cidade do que a uma decisão governamental. Comparando a vitalidade da Lapa ao investimento da PCRJ em grandes equipamentos, como a Cidade do Samba e a Cidade da Música, é possível comprovar formas distintas de transformação do espaço urbano: a Lapa, cujo processo de renovação se deu, inicialmente, “de baixo pra cima”, com forte participação dos atores locais, e que hoje atrai atenção da mídia, de planejadores e políticos (Jacques e Vaz, 2006, p.86) e, por essa razão atrai investimentos e capitais exógenos ao lugar, e a construção de ícones urbanos que visam projetar a imagem da cidade-cenário no mercado internacional, expressando uma ação vertical - “de cima para baixo” - e sem o diálogo, promovida pela municipalidade.

A proposta de revitalização propagada pela mídia e por pesquisadores não nos parece a mais adequada para o caso da Lapa, na medida em que o lugar pode ter sido descoberto recentemente por determinados agentes, mas sempre abrigou, com maior ou menor expressividade, práticas musicais coletivas. Tal como aponta Silveira (2006), o tecido social urbano é sempre vital e, muitas vezes, a ausência de uma leitura do território praticado, especialmente por parte dos órgãos governamentais - que não reconhecem gestos, detalhes e lutas pela co-presença entre os distintos grupos sociais – oculta a elaboração do tecer social e a sua lentidão.

Por isso, ao refletirmos sobre as transformações recentes na Lapa, buscamos evidenciar a capacidade deste lugar abrigar manifestações musicais que são vitais para a cidade, ao mesmo tempo em que possibilita usos simultâneos da rua, independentemente dos processos de espetacularização que rondam lugares da cidade e determinadas formas de arte. Não se trata de uma negação do mercado, que seria inútil; mas da negação do mercado avassalador, dito global (Santos, 2007) que extermina as práticas locais. Tal como Ribeiro propõe, a própria noção de mercado hegemônica pode ser questionada por sua incapacidade de oferecer condições para a construção cultural da sociabilidade, na medida em que recusa carências e táticas do homem ordinário (Certeau, 2003) e desconhece a autonomia relativa dos lugares (Ribeiro, 2005).

Para Herschmann (2007:25), o sucesso mais recente da Lapa “foi alcançado sem uma participação efetiva do Estado, a partir da articulação espontânea dos empresários locais que desde a década de 1990 gravitam em torno da Associação Comercial do Centro do Rio Antigo (ACCRA) e de lideranças importantes”. Este processo contou com o apoio de uma mídia espontânea, criada por jornalistas que freqüentavam o lugar e que contribuiu para que fosse valorizado, pelos cariocas e, mais recentemente, pelo setor turístico e pelos empresários de bares, restaurantes e casas de shows.

A pesquisa indica que a intenção dos empresários locais não era tornar a Lapa um lugar espetacularizado e, sim, um lugar propício ao bom aproveitamento da noite carioca. Ainda que a intenção dos empresários locais seja promover seus negócios, há uma clara preocupação em não descaracterizar os usos tradicionais do lugar e de permitir a preservação de práticas coletivas que a singularizam. A Lapa é, há muitas décadas, um lugar de boêmios e o estímulo ao abrigo de práticas do samba-choro, feito pelas novas gerações, decorre dos próprios atores locais, organizados em uma associação de comerciantes que consolida uma visão própria da área, como lugar de preservação da ‘memória musical da cidade’. Nesta direção, Herschmann (op cit, p.49) afirma que este é identificado como o cenário ideal para gêneros musicais que evocam a tradição musical e a autenticidade do “samba de raiz”. Para o autor (2007),

“O status da Lapa como território – cidade da música – também foi construído socialmente e naturalizado no imaginário social a partir de vários discursos (Thompson, 1992) – tais como o de músicos, de historiadores, de autoridades e de promotores do turismo – que circulavam na sociedade e eram veiculados constantemente na mídia. Quase todos “(re)inventavam” a mesma tradição (Hobsbawn e Ranger 1984), exaltando o passado e/ou a necessidade de preservação da memória do lugar como parte da “história oficial nacional”. A Lapa, apesar da destruição parcial ao longo do século XX, do casario colonial que ali existia (Abreu, 1997), é identificada como cenário ideal para gêneros musicais que evocam tanta “tradição musical”, sendo todos esses elementos entronizados no discurso dos setores mais conservadores da crítica musical (Tinhorão, 1969)” (Herschmann, 2007 p. 48-49).

Para Herschmann (2007, p. 36) “a história e as representações da Lapa e arredores estão associadas à vida boêmia e musical da cidade e mesmo do país”, o que permitiu a sua atual afirmação como lugar de encontro de músicos e da prática coletiva do samba-choro. Esta afirmação converteu a Lapa numa vitrine nacional e internacional para gêneros musicais que marcam a identidade da cidade e sua transformação se dá a partir do uso do lugar e da organização de atores locais que buscam influenciar as diretrizes políticas para fortalecer processos já existentes no lugar.

A refuncionalização da Fundição Progresso pode ser vista como expressão de um movimento vindo de baixo, de dentro e que hoje representa a vitalidade complexa da área. A demolição do prédio da Fundição Progresso estava prevista pela prefeitura, no início da implantação do Projeto Corredor Cultural. Entretanto, o Governo Estadual, em julho de 1982 impediu a demolição e o prédio foi restaurado e reinaugurado em 1983. A edificação foi tombada pelo poder público estadual em 1987 e atualmente é maior equipamento cultural da área.

Apesar de todo o brilho conquistado através da música, esta ainda pode ser considerada uma zona opaca (Santos, 1997), pois mesmo com a razoável articulação política, os atores locais não recebem o apoio de que necessitam dos órgãos públicos. O aspecto de abandono da Lapa torna-se evidente na necessidade de melhorias locais como: iluminação, pavimentação, calçamento, ordenamento do comércio ambulante e do tráfego, instalação de banheiros públicos suficientes para a população flutuante e implantação de programas socioeducativos para crianças e jovens que praticam pequenos furtos a cariocas e turistas, além de ações de segurança em geral. A fala de uma liderança local ilustra não apenas a luta por melhorias no lugar, mas a intenção dos empresários locais de se mobilizarem sem espetacularizar demasiadamente o lugar. Para Ângela Leal,

“O empresário que atua aqui não visa apenas o comercial. (...) Aqui a gente está fazendo história, a gente não está fazendo somente comércio. (...) Estamos interessados em promover a identidade brasileira e carioca através da música. Isso nos uniu. Somos uma novidade em termos de empresariado. Somos pessoas que foram à luta e que conseguiram atingir alguns objetivos. Estamos juntos lutando para ter um sistema de iluminação nas ruas e casarios que ligaria os bairros da Cinelândia, Passeio, Lapa e Praça Tiradentes, área que chamamos de Rio Antigo. As pessoas, com esta iluminação prevista no projeto que chamamos de Corredor Iluminado, poderiam andar e desfrutar das atrações dessa região com mais segurança. Acho que isso seria fundamental para contribuir com o nosso sucesso.” (Ângela Leal, atriz, liderança local e proprietária do Teatro Rival, apud Herschmann, 2007, p.60-61)

Desde a primeira metade da década de noventa, quando esta área era bem menos movimentada e “luminosa” do que atualmente e, no imaginário dominante vivia uma fase de decadência, as autoras deste artigo freqüentam a Lapa, reforçando o aspecto metodológico de que o conhecimento inicia-se no vivido (Lefebvre, 1987). Apesar do aspecto degradado, a Lapa mantinha alguns bares e restaurantes tradicionais, como o Nova Capela e o Bar Brasil, o botequim Arco-íris e abrigava tendências musicais que surgiam como alternativas para as juventudes urbanas, ligadas à estética underground do punk-rock e que se encontrava perfeitamente adaptada às condições estéticas desta aparente decadência do lugar. Além do Circo Voador, que abrigava eventos do rock nacional e outras expressões artísticas (até ser fechado em 1996), em 1997, a Fundição Progresso teve um aumento significativo de sua freqüência em função da Festa Soul, evidenciando que a Lapa, no fim dos anos 1990, atraía pessoas de diversas partes da cidade.

Seguindo a tendência à valorização do patrimônio histórico e de expressões musicais populares, as rodas de samba começaram a ganhar destaque na Lapa: a reabertura da casa Arco da Velha, em 1996; a transferência das rodas de samba para um antiquário na Rua do Lavradio (Bar Coisa da Antiga e depois, Empório 100), em 1997, e a posterior retomada do Bar Semente (com Teresa Cristina e a presença de compositores da velha guarda da Portela) em 1998, iniciaram a consolidação da Lapa como lugar da prática coletiva do samba[8]. Antiquários, bares, restaurantes e casas de show (Rio Scenarium, Carioca da Gema, Sacrilégio e dezenas de outros empreendimentos) têm ocupado o casario antigo da Lapa e arredores com atrações musicais. Mais recentemente, a retomada das atividades musicais do Clube dos Democráticos exemplifica essa valorização “vinda de baixo” que estamos propondo para a compreensão dos processos em curso nesta área[9].

As rodas de samba do Bar Semente, que freqüentemente animam a rua, indo para além das paredes deste estabelecimento comercial, exemplificam este uso renovado do lugar. Para Herschmann, “a trajetória de sucesso, por exemplo, da cantora Teresa Cristina – considerada por muitos especialistas como o grande talento da nova geração que se dedica ao samba e o choro – se confunde com o renascimento recente da Lapa” (Herschmann, 2007, p. 39). Teresa Cristina e o Grupo Semente ficaram conhecidos por tocarem no bar Semente, que foi fechado em junho de 2003, em conseqüência das dívidas e multas aplicadas pela Prefeitura por causa do barulho[10]. A intenção dos freqüentadores de reabrir o bar se efetivou por meio de uma inusitada forma de apropriação do lugar que ficou conhecido como “Comuna do Semente”[11].

Herschmann (2007:26) considera que se desenvolveu na Lapa um “nicho de mercado de grande vitalidade e que está associado ao circuito do samba-choro, embora à margem da grande indústria da música” e sem usar mídias tradicionais e massivas como a televisão e o rádio. Ainda de acordo com o autor, a própria associação do samba com o choro serviu para a configuração desse circuito cultural fortemente vinculado às tradições da Lapa. Esses dois gêneros musicais associados produziram vantagens para ambos por oscilar entre o popular e o erudito, entre o essencialmente instrumental e o seu irmão vocal. Para Herschmann (2007:45), “se o choro se converteu em uma garantia de “qualidade” para o samba, o samba por sua vez emprestou um pouco de sua popularidade e espaço de mercado para o choro”.

Segundo Herschmann (2007:90), quando grandes gravadoras, como a EMI, contratam uma cantora como a Teresa Cristina – que está profundamente articulada à cultura local e ao território da Lapa -, de uma indie como a Deckdisc, está capitalizando o trabalho imaterial e a produção flexível realizados por profissionais e pequenas empresas do setor (Herschmann, 2007). Esta seria uma evidencia de que o circuito do samba-choro encontrou na Lapa o cenário ideal para se afirmar local e nacionalmente por meio de pequenas e médias gravadoras que sobrevivem da intensa produção musical alternativa e que contam com a vantagem de poder divulgar o artista na escala local, com música ao vivo e contato direto com o público.

Entretanto, o abrigo da diversidade e da pluralidade sempre foi uma característica da Lapa. Se por um lado esta aparece como espaço de celebração de tão referida identidade nacional, fortemente vinculada ao samba-choro, por outro, reúne gente de todas as “tribos”, como aparece no material de divulgação da Fundição Progresso. O Circo Voador também retomou sua capacidade de reunir um grande número de pessoas e atrações musicais do país e do exterior, assim como o Teatro Odisséia, o Estrela da Lapa e dezenas de locais não exclusivamente dedicados ao circuito do samba.

Apesar da expressividade do circuito de samba-choro, na Lapa coexistem práticas musicais de diferentes gêneros musicais (funk, hip-hop, maracatu, forró, charm, rock, ritmos afros). O diálogo entre popular e erudito, entre antigo e novo, entre local e global, entre público e privado revela a simultaneidade e o caráter dinâmico e múltiplo da Lapa[12]. Mais de 100 mil pessoas circulam na área em um final de semana e boa parte deste público está disposta a consumir música nos estabelecimentos comerciais do local. Atraindo comerciantes e empresários já estabelecidos na cidade e que pretendem aproveitar a prosperidade do lugar, botequins como o Informal, o Belmonte; empreendimentos como os do Grupo Matriz - Choperia Brazzoka, CineLapa, Bar da Ladeira; o Lapa 40 graus - sinuca & Gafieira evidenciam uma transformação veloz e uma complexidade própria da espacialidade capitalista.

Para Silveira, é evidente sua “valorização como point noturno de diversos grupos sociais” e “como espaço privilegiado daqueles que se disponham a (ou tenham condições de) pagar o preço do entretenimento alçado à categoria cult” (Silveira, 2004, p. 113). Se muitas pessoas vão à Lapa para consumir os e nos lugares, muitas outras vão para encontrar os amigos e tomar uma cerveja comprada dos ambulantes. As ruas são laboratórios de inovações (não projetadas, mas praticadas) e de experiências concretas que revelam o jovem e seu sentido de mudança calcado no presente[13]. A observação evidencia que o uso espontâneo da rua é uma característica fundamental da identidade do lugar. Este uso espontâneo da rua não somente é vital para a vida noturna da cidade, como envolve uma pluralidade de estilos que revelam suas características em termos da sociabilidade pública. A velha Lapa vem dando sinais de sua vitalidade complexa, consolidando uma ocupação cultural por baixo que, em grande medida, contrasta com os pequenos resultados alcançados nas políticas de “revitalização” dos espaços públicos[14]. Poucos são os espaços da cidade em que a rua ainda pode ser considerado o centro da sociabilidade pública.

Na Lapa, a rua é, espontaneamente, a base da vida cultural e pode perder a sua função de suporte do fluxo de veículos para dar lugar a uma ocupação, que resulta da reunião e da mistura de gente que quer se divertir com gente que quer/precisa trabalhar – os vendedores ambulantes. A rua é lugar da sociabilidade, de encontro e de confronto. Nela é possível observar a transgressão e as tentativas de controle social, como evidencia o projeto Lapa Legal que visa ordenar o uso no local. A degradação visual ainda é notável, mas agora inscritas na coexistência das diferenças que caracterizam este território plural. Ao ressaltarmos a apropriação da rua, buscamos a ação que, de algum modo, expressa uma resistência, ainda que não totalmente consciente, à dominação pragmática e objetiva do território.

A apropriação simbólica como expressão de resistências do lugar e opção teórico-metodológica

A valorização da vida espontânea dos lugares auxilia no desvendamento de formas sociais inclusivas. Ainda que usos dos lugares possam ser transformados pelos interesses comerciais que se instalam na Lapa, é necessário ressaltar que a prática espontânea e coletiva da música continua existindo e tendo seu valor socialmente reconhecido. Trata-se de evidenciar que os processos sociais não são completamente pré-determinados e que a ação livre e espontânea se revela nos espaços vividos. Existe a criação musical em seus elos com a apropriação simbólica da rua, ainda que alguns agentes tenham intenções comerciais. Assim, Haesbaert (2004a) entende que

“o território, imerso em relações de dominação e/ou de apropriação sociedade-espaço, desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’”(Haesbaert, 2004a, p.95-96).

Embora Lefebvre (1972) reflita sobre o espaço - e não território – Haesbaert (2004b) ressalta que é fácil reconhecer que sua referência não é o espaço no sentido genérico e, menos ainda, um espaço natural e, sim, um espaço-processo, espaço socialmente construído, “espaço feito território” por meio do qual realiza-se a análise de processos de apropriação e dominação (Haesbaert, 2004b). A dominação está associada à propriedade e ao valor de troca, enquanto a apropriação pode ser entendida como processo simbólico, carregado de marcas do vivido. A apropriação tem como base o pertencimento e revela a existência de lugares carregados de sentidos e memórias. Isso significa dizer que a apropriação é um processo fortemente vinculado ao valor de uso do espaço, demarcando uma experiência subjetiva de pertencimento a um lugar, enquanto a dominação reflete uma possessão concreta e funcional, vinculada ao valor de troca e à mercantilização do espaço.

A delimitação espacial e temporal dos territórios pode ser lida a partir de uma orientação analítica que considere os elementos simbólicos e subjetivos da cidade. Nesta perspectiva, as identidades e o sentido de pertencimento são fundamentais para a constituição de territórios e territorialidades. Tal como Haesbaert (1999) afirma, os territórios são espaços concreta e/ou simbolicamente apropriados, cuja significação extrapola seus limites físicos e sua utilização material. A ênfase na delimitação simbólica do território constitui-se, portanto, em uma opção teórico-analítica que visa superar os limites da leitura que considera o espaço apenas por sua submissão ao capital e ao poder do Estado ou das grandes empresas transnacionais, como ocorre na concepção da cidade-espetáculo.

A busca pelo reconhecimento do diálogo e da apropriação simbólica do território é, portanto, uma opção teórico-metodológica que pretende evidenciar a existência de resistências ao pensamento dominante sobre a produção da cidade. A busca pelo uso da rua e pelas formas de participação nos processos territoriais em curso na Lapa reforça a luta pelo direito a uma vida urbana renovada e permite uma aproximação da teoria crítica do urbano com a prática musical coletiva para pensar as formas com que o diálogo pode acontecer para incluir o cidadão comum nas decisões que interferem em sua vida cotidiana. A noção do dialogo possui nítida relevância para a ação coletiva em geral, e que para Souza (2004) inclui o planejamento urbano crítico e qualquer processo organizado de mudança social. A importância da ação conjunta entre cidadãos, pesquisadores e planejadores urbanos é ressaltada por Souza (2004, p. 69) que, inspirando-se em Chauí (1982 apud Souza, 2004), destaca o risco do “discurso competente” revelar-se como uma ideologia tecnocrática e, em última instância, autoritária quando nega às pessoas “comuns”, não-especialistas, o direito de participarem ativamente da produção daquele saber e da aplicação deste saber quando esta aplicação afeta as vidas e os interesses de muitos, como é o caso do planejamento urbano. Trata-se de ressaltar a importância da práxis planejadora aberta ao saber dos atores sociais no que tange à prática de planejamento e gestão urbana para pensarmos a maneira como fazemos ciência e a formação de técnicos e cientistas sociais que atuam no campo das políticas territoriais.

Para Souza mesmo que pareçam termos antagônicos, “técnica/ciência” versus “política”, “reforma” versus “revolução”, “planejamento” versus “liberdade”, podem e devem ser integrados não apenas retoricamente, mas conceitual, teórica e metodologicamente. Acreditamos que para superar a racionalidade dominante é preciso enxergar o planejamento como algo bem mais amplo que uma ação estatal que parte de uma técnica puramente objetiva. Tal como afirma Souza (2004, p. 37), um planejamento crítico não-arrogante não pode simplesmente ignorar os “saberes locais” e os “mundos da vida” dos homens e mulheres concretos, como se as aspirações e necessidades destes devessem ser definidas por outros que não eles mesmos.

Considerações Finais

A presente análise parte de uma episteme dialógica que permite ao pensamento estar em movimento para acompanhar o movimento do real (Lefebvre, 1987). Buscamos a ação que supera a previsível racionalidade urbanística dominante, e que evidencia outras formas de pensar a cidade, com base nas práticas concretas dos habitantes. Ainda que comece a sentir os efeitos da ação pragmática do capital e da dominação econômica, a espontaneidade das manifestações artísticas revela que vitalidade da Lapa inclui experiências alternativas de apropriação do lugar e uso coletivo da rua para a sociabilidade. Lefebvre entende o direito à cidade como o direito à vida urbana renovada e transformada e a experiência desta área evidencia que a cidade é mesmo lugar da reunião, do imprevisível, do desejo e do desequilíbrio permanente e que os habitantes das cidades reconstituem centros e utilizam certos locais a fim de restituir os encontros (Lefebvre, 2001).

A Lapa revela a complexidade deste território múltiplo e evidencia uma experiência de produção da cidade que considera a apropriação subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’ como alavanca de uma produção alternativa do espaço, capaz de confrontar a lógica vertical da concepção hegemônica de mercado. Esta renovação - fortemente vinculada à música, à festa e aos encontros favorecidos pelo lugar - revela sua vitalidade complexa e a organização dos agentes locais que promovem a requalificação de edificações e uma aparente combinação da preservação de memórias e tradições com usos renovados do lugar. A refuncionalização do casario antigo para o abrigo de centros culturais e casas noturnas tem reforçado o imaginário de que este é um lugar especial para a realização da prática musical coletiva na cidade. Assim, o uso da Lapa pelos cariocas materializa uma identidade própria dos habitantes com o lugar e sua história, ainda que esta área corra riscos de se descaracterizar ao ser, cada vez mais concretamente, objeto da ação pragmática do capital.

 

Notas

[1] O samba, que traduz formas específicas de sociabilidade e de comportamento, ao que tudo indica, teria surgido a partir das influências africanas como semba, umbigada, coco, o jongo. No Rio de Janeiro, sua origem encontra-se na Praça Onze, um lugar alegre e festivo, apesar da pobreza, onde moravam muitos negros vindos da Bahia e onde músicos e artistas de toda a cidade se encontravam. Na casa de tia Ciata o batuque reunia os primeiros sambistas, como Sinhô e Donga. Nomes como Cartola, Candeia, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara tornaram-se referência para novas gerações que compreendem o samba como expressão maior da cultura popular. Mas foi Pixinguinha quem fez do choro (chorinho) um gênero carioca. Além dos antigos compositores, nomes como Clara Nunes, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Monarco, Nelson Sargento, Wilson Moreira, Roberto Silva influenciaram artistas da nova geração que se projetaram na Lapa, como Teresa Cristina, Edu Krieger, Gallotti e Moysés Marques.

[2] http://www.novorioantigo.com.br/quemsomos [18 de março de 2010].

[3] http://noticiascultura.rio.rj.gov.br/principal.cfm?sqncl_categoria=23&nivel_categoria=1 [28 de março de 2010] e http://www.palaciodacidade.rio.rj.gov.br/site/conteudo/ultimas.asp?EditeCodigoDaPagina=224 [28 de março de 2010].

[4] http://obras.rio.rj.gov.br/index.cfm?sqncl_publicacao=414 [19 de Março de 2008].

[5] http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/03/26/paes-retomara-obras-da-cidade-da-musica-916182252.asp [27 de Março de 2010]

[6] MAIA, César. Rio: um novo ciclo ascendente. Boletim do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. Dez anos depois: como vai você, Rio de Janeiro? nº 5 Março de 2003.

[7][7] http://www.novorioantigo.com.br/quemsomos [18 de março de 2010].

[8] http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/marceunalapa/post.asp?cod_Post=47951&a=131 [19 março de 2010].

[9] O Clube dos Democráticos em 1987 foi uma das edificações tombadas pelo poder público municipal na Lapa, assim como a escola de música da UFRJ, tombada em 1994.

[10] www.samba-choro.com.br/noticias/6492 [29 de janeiro de 2008].

[11] www.samba-choro.com.br/noticias/8732 [29 de janeiro de 2008].

[12] http://www.eefd.ufrj.br/ludicidade/lapa/home.html [13 julho de 2007].

[13] Idem

[14] Ibidem

 

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Ficha bibliográfica:

OLIVEIRA, Anita Loureiro y Patricia Daflon DOS SANTOS. Música e imaginários na produção da cidade: a vitalidade complexa da lapa Carioca. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2010, vol. XIV, nº 331 (95). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-331/sn-331-95.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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