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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (47), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

ESCOLAS DE SAMBA, IDENTIDADE NACIONAL E O DIREITO À CIDADE

Nelson da Nóbrega Fernandes
Universidade Federal Fluminense – Niterói, Brasil
nobregat@terra.com.br

Escolas de samba, identidade nacional e o direito à cidade (Resumo)

As escolas de samba surgiram no final da década de 1920, inventadas e organizadas pelos grupos mais pobres da cidade do Rio de Janeiro, que saíram de seus subúrbios, bairros e favelas para conquistar a grande festa da capital do país e se tornar, ao final da Segunda Guerra Mundial, o símbolo mais original e conhecido da representação nacional brasileira. As interpretações mais tradicionais desqualificam essas grandes conquistas, acusam correntes nacionalistas, políticos populistas e a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) de terem manipulado e controlado ideologicamente as escolas de samba, impondo o desenvolvimento de enredos em prol de um discurso oficial, nacionalista e patriótico que convinha à dominação. Neste artigo nos opomos radicalmente a essas interpretações, mostrando que tal domínio foi bastante relativo, que o desenvolvimento dos temas nacionais no carnaval carioca é um assunto bem mais complexo e, finalmente, que a transformação do samba e da escola de samba em representação nacional foi uma estratégia para conquistar e se impor ao carnaval, à cidade e à sociedade. Narramos uma rara e bela vitória dos vencidos.

Palavras chave: escola de samba, identidade nacional, cultura popular.

Samba schools, national identity and right to the city (Abstract)

Samba schools emerged in the late 1920s, invented and organized by the poorest groups in the city of Rio de Janeiro, which came out of their slums, ghettos and neighborhoods to conquer the great feast of the nation's capital and become, at the end World War II, the most original and well-known symbol of Brazilian national representation. The more traditional interpretations disqualify these great achievements, accusing nationalist movements, political and the populist dictatorship of Getulio Vargas (1937-1945) of ideologically manipulating and controlling samba schools, imposing the development of plots in favor of an official, nationalistic and patriotic discourse suited to domination. In this article we radically oppose these interpretations, showing that this domination was relative, that the problem of development of national issues are a more complex issue, and, finally, that the transformation of samba and samba schools in mean of national representation was a strategy to conquer and to impose carnival to the city and society. Here we narrate a rare and beautiful victory of the vanquished.

Key words: samba school, national identity, popular culture.


A rapidez com que o samba passou de manifestação perseguida pela polícia, durante as primeiras décadas do século XX, a símbolo da identidade nacional brasileira, na década de 1930, foi chamada por intelectuais brasileiros de “mistério do samba”. Em livro homônimo, Hermano Vianna[1] desvendou parte desse “mistério” e destacou o papel de intelectuais e políticos, como o sociólogo Gilberto Freyre e o médico e prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, cujas opiniões e ações “pavimentaram” o caminho que trouxe para o centro da cidade e da nação uma expressão cultural que vinha dos morros, dos subúrbios e das favelas cariocas. De fato, a veloz ascensão do samba como representação nacional deve muito à busca (e disputa) das elites políticas e culturais pelas “coisas nacionais”. Como mostrou Hobsbawn[2], em toda parte as nações e o nacionalismo são projetos políticos das elites de um Estado e de uma sociedade; é o Estado que cria a nação, e não o contrário. A adesão de parte da cultura das classes superiores ao samba e à escola de samba explica uma grande parte do tal “mistério do samba” no Brasil.

Outra grande parte dessa explicação, que não estava entre os objetivos de Hermano Vianna, foi o modo como as escolas de samba aderiram à questão nacional e se colocaram como a principal manifestação da cultura brasileira. Seguimos a hipótese geral de Fernandes[3] de que os sambistas também construíram esse projeto cultural brasileiro. Nosso objetivo é apresentar três fases desse processo nas décadas de 1930 e 1940, em que as escolas de samba vão transformando o Brasil, isto é, os temas nacionais e pátrios – heróis, povo, natureza, história, geografia e cultura – em enredos de seus desfiles, ao mesmo tempo que disputam e conquistam o lugar de grande espetáculo carnavalesco, síntese e símbolo da cultura e da identidade nacional brasileira.

O marco de análise e da periodização assumida é o modo como as escolas de samba se relacionaram com os chamados “temas nacionais”, ignorando-os, afirmando-os ou negando-os em seus enredos e desfiles. Entendemos tais atitudes como parte de uma estratégia dos sambistas para a reprodução e ascensão de suas escolas no espaço festivo, político e cultural de uma metrópole moderna como Rio de Janeiro. Segundo esse princípio, mostramos que, entre 1932, quando o primeiro campeonato samba foi organizado na Praça Onze, e 1935, quando ocorreu o primeiro desfile oficialmente reconhecido pela prefeitura municipal, os cortejos sambistas foram muito pouco nacionalistas. O samba, a comunidade e a cidade foram os temas mais exaltados, assim como escassas foram as referências ao país e às suas grandezas históricas ou naturais. Esse período tem como título “Do direito de sambar ao reconhecimento oficial (1928-1935)”.

O samba moderno (gênero musical) e, principalmente, a primeira escola de samba (instituição festiva) são produtos da década 1920 e do bairro do Estácio de Sá, uma parte da zona de obsolescência em torno do centro do Rio de Janeiro, habitado por imigrantes, negros, operários, estivadores, prostitutas e malandros, moradores de cortiços, morros e favelas circundantes, cujos hábitos, costumes e festividades eram desdenhados pela elite e reprimidas pela polícia. Os sambistas do Estácio que criaram o samba moderno e fundaram a primeira escola de samba, a lendária Deixa Falar, declararam que seus objetivos eram apenas desfilar sem apanhar da polícia. Em nosso entender o nome “escola” era uma mensagem, dava um sentido de ordem e comportamento respeitável tanto para os de baixo quanto para os de cima.

O segundo período a ser analisado situa-se entre 1938 e 1945. Nesses anos marcados pela guerra, pela ditadura do Estado Novo e que terminaram com a vitória aliada e a redemocratização, as escolas de samba aderiram aos temas nacionais de uma forma não mecânica. Por exemplo, o desfile de 1938 ficou célebre pela desclassificação de uma escola de samba que apresentou um enredo estrangeiro, “Branca de Neve e os sete anões”, o que foi entendido como negativa aos temas nacionais. Embora essa penalidade fosse prevista nos estatutos da União das Escolas de Samba desde 1934, críticos e estudiosos do carnaval carioca sustentaram que a punição à Escola Vizinha Faladeira foi ordem do regime, versão que perdurou até a década de 1990 e é ainda muito aceita. Afinal de contas, proibições e imposições caracterizam as ditaduras; mas não foi isso o que aconteceu.

Em 1939, em outro célebre desfile, o enredo da escola campeã não foi nenhum figurão da pátria, grande batalha ou a pujante natureza nacional. Apresentado pela Portela, o enredo “Teste ao samba” foi uma homenagem ao próprio samba anunciada em uma de suas alegorias, um grande quadro-negro onde se lia: “Prestigiar o samba, musica típica e original do Brasil, e incentivar o povo”. A grande importância de “Teste ao samba” foi o modo inédito e revolucionário com que conseguiu harmonizar as diferentes expressões estéticas do espetáculo, no qual a música, o samba-enredo, as fantasias e as alegorias concorreram para um conjunto altamente equilibrado, claro, expressivo e didático, que veio a ser o modelo ideal dos desfiles de escolas de samba nas décadas seguintes. Julgamos que aí está o segredo de sua grande força de comunicação com o povo, as massas urbanas, a própria elite e o estrangeiro.

Nos anos da guerra, a escola de samba e o sambista foram cada vez mais assumidos como representação nacional. Em 1941, Walt Disney se inspirou em Paulo da Portela, famoso sambista, para criar o Zé Carioca, personagem brasileiro que contracena com o Pato Donald em um filme da propaganda da “política de boa vizinhança” EUA-Brasil. Uma visão convencional aponta a instrumentalização dos sambistas pelo imperialismo, o que não está completamente errado. Mas o fato é que os sambistas também souberam instrumentalizar essa situação em favor de mais legitimidade e prestígio junto à elite e ao próprio povo. Não foi por acaso, ou simplesmente por imposição, que os enredos se tornaram, durante a guerra, cada vez mais patrióticos e nacionalistas, apoiando a democracia e a participação do Brasil no esforço aliado.

O terceiro período analisado corresponde aos anos entre 1946 e 1949, durante o qual as escolas de samba assumiram definitivamente o papel de exaltar e valorizar os temas nacionais, ao mesmo tempo que conseguiram um nível geral de harmonização equilibrada entre os elementos rituais, a música, as fantasias e as alegorias a serviço do desenvolvimento de uma narrativa altamente elaborada, merecendo os elogios dos contemporâneos que nelas viam “verdadeiras óperas ambulantes”. Um dos pontos principais dessa transformação ocorreu justo com as letras dos sambas, que a partir de então passaram a se dedicar realmente a contar o enredo, fato que surpreendentemente, e por diversas razões, foi raro até então. Por outro lado, a maior afluência de recursos no pós-guerra permitiu o investimento na produção de fantasias e alegorias voltadas para o tema do enredo e, consequentemente, uma expressão visual mais apurada do espetáculo. Em conclusão observamos que o papel ativo dos sambistas foi decisivo para que o samba e as escolas de samba viessem a ocupar o lugar de principal representação nacional brasileira. Eles não foram simplesmente “escolhidos” pela elite para ocupar tal lugar. Insistimos na hipótese de que o processo relatado foi também uma bela e rara vitória dos vencidos.


Do direito de sambar ao reconhecimento oficial (1928-1935)

Embora o Brasil seja especialmente reconhecido como o país do samba e do futebol, esses elementos só passaram a ocupar tal posição dentro da representação nacional brasileira após os anos 1940. Antes da escola de samba, que surgiu pela primeira vez em 1928, o samba era perseguido sistematicamente pela polícia. Quanto ao futebol, só depois do bicampeonato mundial de 1962, com Pelé, Garrincha e tantos outros heróis dos gramados, é que os brasileiros se tornaram os reis do esporte bretão. Como duramente sabemos, a derrota para o Uruguai em 1950, assistida por incrédulas 200 mil pessoas, em pleno Maracanã, adiou por uma década a tão almejada posição.

Não temos noticias de que o futebol tenha sofrido perseguições. O patronato muito cedo incentivou e fundou clubes de futebol para os seus operários, muitos dos quais se tornaram clubes profissionais, como no caso do Bangu Atletic Club, fundado em 1904 pela Companhia Progresso Industrial Bangu[4]. Muito ao contrário aconteceu com o samba moderno e seus desfiles. Pelo menos até a invenção das escolas de samba, no final da década de 1920, os sambistas e a prática do samba eram reprimidos em seus lugares de reunião, em suas rodas de samba, nos terreiros de macumba, e em grandes festas, como no Carnaval e até na Festa da Igreja da Penha. Mesmo em pequenos grupos, em suas casas ou sozinhos nas ruas, os sambistas podiam ser coagidos e ter seus instrumentos musicais apreendidos pela polícia. Por incrível que pareça, o direito de sambar nas ruas do Rio de Janeiro foi durante muito tempo apenas tolerado, sendo rotineira e arbitrariamente reprimido e proibido. Apesar de tudo, o samba e as escolas de samba conquistaram, antes do futebol, o consenso dominante de principal expressão brasileira, ascensão vertiginosa que, por isso, foi descrita como “o mistério do samba”.

Antes das escolas de samba, as manifestações que dominavam o carnaval carioca eram protagonizadas pelas elites e por setores médios. Organizados em três diferentes gêneros de desfiles processionais – as grandes sociedades, o corso e os ranchos carnavalescos –, esses grupos brincavam e competiam no asfalto da Avenida Rio Branco, boulevard inaugurado em 1906 pelo prefeito Pereira Passos – “o Haussmann carioca” –, por muito tempo o palco do carnaval oficializado e “civilizado” da cidade. A riqueza dos carros alegóricos das grandes sociedades, a novidades do desfile de automóveis do corso e a encenação de óperas clássicas pelos ranchos carnavalescos atraíam multidões[5]. O Rio de Janeiro não precisou esperar pelo samba para organizar um grande carnaval, e as classes superiores souberam dominar a cena e o território da festa carioca no período entre a reforma urbana do Prefeito Pereira Passos e a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, grandes sociedades, o corso e os ranchos carnavalescos entraram em declínio, não resistindo à guerra e ao crescimento das escolas de samba. Mas na década de 1930, quando surgiram as escolas de samba, mais que a perseguição policial, elas tiveram que enfrentar grandes competidores na concorridíssima disputa da cena carnavalesca carioca, que mais do que hoje, era um meio pelo qual os grupos sociais difundiam suas ideias, seus valores e projetos políticos e culturais.

Na realidade, o carnaval carioca de então era ainda maior, e não se resumia ao polo da Avenida Rio Branco, pois havia, na Praça Onze o epicentro do carnaval popular. Situada próximo à estação da Estrada de Ferro Central do Brasil e dentro de um cinturão de bairros populares – Cidade Nova, Estácio, Catumbi, Morro de São Carlos, Morro do Pinto, Morro da Favela, Gamboa, Santo Cristo, Saúde –, para lá se deslocava a pé, de trem ou de bonde, uma torrente de blocos e cordões dos bairros, subúrbios e favelas cariocas, entre eles, o Deixa Falar, do bairro do Estácio. Há um consenso muito sólido entre os sambistas e os estudiosos de que a escola de samba nasceu entre os bairros do Estácio e da Praça Onze, pois em suas ruas desfilou em 1929 um bloco que se autodenominava “escola de samba” Deixa Falar.

A partir de Fernandes[6] podemos resumir que a Deixa Falar inventou a escola de samba quando criou esse nome e privilegiou uma orquestra baseada em instrumentos de percussão, formada por tamborins, latas de manteiga encouradas (o surdo), pandeiros e reco-recos que marcavam o ritmo da dança dos sambas cantados durante os desfiles. A fórmula do bloco do Estácio ganhou tal consistência entre seus pares e visibilidade nos carnavais de 1930 e 1931 que, em 1932, líderes de blocos carnavalescos e jornalistas organizaram, sob o patrocínio do periódico O Mundo Esportivo, o primeiro concurso entre escolas de samba. Para divulgá-lo, o jornal exibiu os troféus que seriam dados às escolas ganhadoras dos três primeiros lugares na vitrine da loja A Capital, uma das mais tradicionais da cidade. Publicou e fez publicar em outros jornais, como O Globo, matérias e notas que descreviam o evento. Cabral[7] recolheu trechos nas edições desse jornal de 4 e 5 de fevereiro de 1932, nos quais o que mais se destacava era a absoluta novidade do evento, seus aspectos exóticos, desconhecidos, incitando a curiosidade de um leitor que nada sabia sobre escolas de samba. Vejamos trechos do que foi previsto em O Globo do dia 4 de fevereiro:

Domingo, na Praça Onze, o público assistirá a um torneio que promete grande brilho, tal o encanto de sua originalidade. Queremos aludir ao campeonato de samba que o Mundo Sportivo promoverá. O acontecimento é inédito; até agora, não se realizara entre nós uma competição que reunisse tantos elementos para um êxito sem igual. O campeonato tem como concorrentes as melhores “escolas” de melodias da metrópole. Os sambas que se candidataram aos grandes prêmios são os mais lindos dos morros, das ladeiras, dos lugares sonoros do Rio (...). Na competição entrarão instrumentos que nem todos conhecem. A “cuíca”, por exemplo, ainda não foi ouvida por nós com a devida atenção (...). “Escolas” existem que apresentam mais de 100 figuras. É facilmente imaginável o que serão mais de 100 bocas cantando com a sinceridade que os cantores põem na voz para maior repercussão das palavras.

Foi tamanho o sucesso desse primeiro campeonato de desfiles de escolas de samba, do qual participaram 19 agremiações dos mais diversos lugares da cidade, que em 1933 os jornais O Globo e Correio de Manhã se enfrentaram pelo seu patrocínio e organização, disputa vencida pelo primeiro. Nem por isso o Correio da Manhã deixou de promover e apoiar as escolas de samba, afinal de contas elas eram realmente uma novidade, e a sua originalidade em termos da execução de um novo samba, baseado exclusivamente em instrumentos de percussão, uma grande sensação e experiência estética. Com origem nas camadas mais pobres da cidade, fortemente negra, a escola de samba convergia para a busca de expressões de uma sensibilidade nacionalista e popular que então agitava o país e cobria o mundo. Logo encontrou seus defensores e promotores na imprensa. Um leque de intelectuais e políticos importantes lhe prestou apoio e legitimidade crescente ao longo do tempo, o que não significa dizer que o costume de as autoridades promoverem perseguições e arbitrariedades tenha sido totalmente abandonado.

O entusiasmo com que os blocos carnavalescos aderiram ao campeonato das escolas de samba ficou patente em 1933, quando o número de participantes quase dobrou, passando de 19 do ano anterior para 35 grupos, sendo que desse total, apenas 25 estavam oficialmente inscritos no certame. Não havia tempo e espaço para o desfile de tantas escolas! Cabral[8] observou que algumas escolas não apresentaram enredos “ou os jornalistas não conseguiram reconhecê-los”, e fornece uma preciosa lista mais ou menos completa com as escolas, seu bairros de origem e enredos que foram apresentados naquele ano (Quadro I), do qual nos valemos para especular que até aquele momento suas preocupações eram ainda bem pouco nacionalistas e mais voltadas à defesa do próprio samba, de referências geográficas importantes para a sua própria cultura, como a Bahia.

 

Quadro 1.
Escolas de Samba e os enredos no desfile de 1933

Escolas de Samba
Comunidade
Enredo
Fiquei Firme

Morro da Favela

A Corte do Samba

Esporte Clube Guarani

Dona Clara

 

União do Amor

   

Aventureiros da Matriz

Morro da Matriz

 

Embaixada Escola Amizade

Realengo

A Terra e a América

Podia Ser Pior

Cordovil

Adão e Eva e a Tentação da Carne

União Barão da Gamboa

Gamboa

Homenagem às Escolas de Samba e aos seus Compositores

Caprichoso do Eng. Novo

Engenho Novo

 

Inimigas da Tristeza

Saúde

As Escolas de Samba

De Mim Ninguém se Lembra

Bento Ribeiro

 

Azul e Branco

Morro do Salgueiro

Uma Noite na Bahia

Na Hora é que se Vê

 

O Sabiá da Minha Terra

Recreio de Ramos

Ramos

Jardim da Primavera

Vai Como Pode

Osvaldo Cruz

O Carnaval

Última Hora

 

A Favela

Nós Não Somos Lá Essas Coisas

 

Loteria

Estação Primeira

Mangueira

Uma segunda-feira do Bonfim na Ribeira

Estrelas da Tijuca

Tijuca

Sistema Solar

É Assim que Nós Viemos

   

Filhos de Ninguém

Piedade

A Música

Unidos da Tijuca

Tijuca

O Mundo do Samba

Em Cima da Hora

Catumbi

Jardim do Catumbi

Unidos do Tuiuti

Morro do Tuiuti

 

Príncipes da Floresta

Morro do Salgueiro

Passeata nas Florestas da Bahia

União do Uruguai

Andaraí

Uma Excursão à Bahia

Mocidade Louca de S. Cristóvão

São Cristóvão

Antiga Bahia

Lira do Amor

Bento Ribeiro

Orgia

Vizinha Faladeira

Saúde

Os Garimpeiros

Prazer da Serrinha

Madureira

Uma Corte Serrana

Paz e Amor

Bento Ribeiro

 

É O Que Se Vê

   

Fonte: Cabral (1996), p. 80-83.

 

Pelo exposto na tabela, os enredos apresentados pelas escolas no carnaval de 1933 formaram um eclético leque de temas, que ia desde o Sistema Solar à Terra e a América, do mundo do samba a Adão e Eva e a tentação da carne. Entretanto, notamos que não se falou de Brasil; o tema dominante foi a Bahia, com cinco casos. E o samba foi o enredo de quatro escolas, a exemplo da Unidos da Tijuca, que em seu desfile apresentou pela primeira vez sambas-enredos, um gênero de samba composto para o dia do desfile, tendo em sua letra um dos elementos mais importantes para o desenvolvimento e a comunicação do enredo apresentado pelas escolas. Apesar de ser um elemento ritual dos mais tradicionais da escola de samba e de ter sido inventado muito cedo, somente depois da Segunda Guerra se desenvolveu plenamente, o que significa, entre outras coisas, que necessitou de muita elaboração para atingir a sua formalização mais clássica, como nas obras de Silas de Oliveira, cujas extensas letras dissertavam temas nacionais e brasileiros. Mas os primeiros samba-enredos da história, apresentados pela Unidos da Tijuca em 1933, eram curtos e cantavam a bandeira de que “o samba é a canção brasileira”, como naquela composição de Leandro Chagas[9].

Eu tenho prazer em falar
Que o samba está em primeiro lugar
Vem para o samba, cabrocha faceira
Diz nas cadeiras
O samba é a canção brasileira

O Globo comemorou o sucesso da segunda edição do desfile das escolas de samba em 1933, ao qual compareceram 40 mil pessoas, com uma declaração de perplexidade. “Estamos satisfeitos por termos proporcionado à cidade o espetáculo mais estranho do carnaval deste ano”[10], palavras que refletiram um sentimento generalizado de que escolas de samba ainda não eram coisa íntima da cidade mas mereciam a sua adesão. De fato, vemos que, ao longo de 1933, outros jornais, o Touring Club e a prefeitura demonstraram cada vez mais seu interesse sobre as escolas de samba. Os jornalistas foram às sedes das escolas nos morros e subúrbios, entrevistaram suas lideranças e publicaram matérias entusiasmadas em seus jornais. Por outro lado, as lideranças do samba começaram as reuniões para institucionalizar sua organização, através da criação da União das Escolas de Samba (UES), fundada em 1934. Em seus estatutos foi firmado que a principal finalidade da UES era “organizar os desfiles de festejos carnavalescos e exibições públicas, entender-se diretamente com as autoridades federias e municipais para obtenção de favores e outros interesses (...) de suas filiadas”[11], bem como estabelecer as normas dos desfiles e os elementos rituais que caracterizam uma escola de samba, a exemplo da obrigatoriedade de um grupo de baianas, da proibição do uso de instrumentos de sopro e de enredos que não fossem baseados em temas nacionais.

Devemos salientar que a decisão de desenvolver enredos nacionais pelos sambistas não era novidade para as agremiações carnavalescas do Rio de Janeiro e, especialmente, que sua execução não era coisa tão fácil como pode parecer à primeira vista. Sem êxito foi tentado pelos ranchos na década de 1920, estimulados pelo escritor Coelho Neto. E os ranchos carnavalescos tinham muitas competências, faziam parte do grande carnaval oficializado e “civilizado” da Avenida Rio Branco, contavam com recursos financeiros, técnicos e artísticos e se destacavam por tomar óperas clássicas como enredos de seus desfiles[12]. Essa tentativa frustrada dos ranchos mostra dois problemas importantes sobre o carnaval carioca e suas relações com as representações nacionais. Primeiro, esse projeto não partiu da ditadura do Estado Novo (1937), à qual a maioria dos estudiosos tradicionalmente creditou a imposição dos temas nacionais às escolas de samba, um equívoco que só veio a ser corrigido por Cabral em 1996[13]. O segundo problema a ser notado foi a dificuldade de se desenvolver os temas nacionais no carnaval, já que os ranchos fracassaram em seu intento e as escolas de samba demoraram um longo tempo para alcançar a sua formalização estética nos desfiles, somente atingida após o fim da Segunda Guerra Mundial.

A fundação da União das Escolas de Samba, a obrigatoriedade dos temas nacionais e a oficialização dos seus desfiles em 1935 foi o resultado de negociações que envolveram seus líderes e o prefeito Pedro Ernesto, que então gozava de amplo prestígio entre as camadas populares da cidade. Tudo isso fez com que a UES e o jornal A Nação estabelecessem que, no desfile de 1935, as 25 escolas inscritas desenvolvessem um único enredo: “A vitória do samba”.

Assim, se em 1933 quatro escolas adotaram o samba como enredo, em 1935, no primeiro ano da obrigatoriedade dos temas nacionais e de oficialização, ficou combinado que o enredo para todas as 25 escolas inscritas no campeonato seria o samba. Segundo nossa apreciação, o enredo geral de 1935, além de expressar a conquista do direito de sambar nas ruas do Rio de Janeiro, incluiu a Praça Onze na geografia do carnaval oficial e, particularmente, elevou o samba ao lugar de tema nacional. Ao contrário do que concluíram Queiróz e Augras[14], esse processo não foi uma simples imposição do Estado ou um estratagema para dominar a massa suburbana. Ao nosso ver, a adoção dos temas nacionais não foi cega nem desprovida de estratégia, e não significou acolher os temas pátrios e nacionalistas que as elites tinham em mente. Em 1935, por exemplo, não tiveram nenhuma dificuldade para comemorar a sua própria vitória, em vez de um dos grandes fatos da história oficial, como acontecerá numa fase posterior.

Quem venceu o desfile de 1935 foi a Escola de Samba Portela, que na época tinha o nome de “Vai como pode”. Um de seus belos sambas apresentados no desfile, “Guanabara”, de Paulo da Portela, mostra como naquela época ainda não era normal que as músicas descrevessem o enredo, isto é, exercessem a função de samba-enredo. Como podemos ver abaixo, em sua letra não há nada que se refira ao samba, sendo uma bela homenagem à baía de Guanabara, berço de sua cidade:

Como é linda a nossa Guanabara!
Joia rara!
Que beleza, quando o nosso
Céo está todo azul
Anoitece e o céo se resplandece
Em seu bordado de estrelas
Vê-se o Cruzeiro do Sul
Pão de Açúcar, o gigante
Fiel vigilante de nossa baía
Poderoso, sente-se orgulhoso
Por ter em seu poder joia tão rara
Corcovado poderoso!
Fiel companheiro de nossa baía
Vigilante, não dorme um instante
Guardando as riquezas que a natureza cria[15]

Dentro dos limites deste trabalho, as evidências apontadas indicam que a rápida ascensão das escolas de samba, naquele momento marcada pelo reconhecimento oficial, não foi conduzida pelo Estado ou por elites nacionalistas, já que apesar de haver nacionalizado seus enredos, como ambas certamente queriam, os sambistas o fizeram ao seu modo, tornando o samba o grande tema nacional. Ou às vezes nem isso, pois com grande liberdade frente ao enredo geral estabelecido pela UES, Paulo da Portela aproveitou-se de “A vitória do samba” para homenagear a bela natureza e os serviços prestados ao Rio de Janeiro pela baía de Guanabara e sua singular geomorfologia.


O samba enredo e os temas nacionais durante o Estado Novo e a Segunda Guerra (1938-1945)

A desclassificação da Escola de Samba Vizinha Faladeira no desfile de 1938, por ter apresentado o enredo “Branca de neve e os sete anões”, tornou esse ano um marco na história das escolas de samba. Foi a primeira e talvez única vez que o desrespeito à obrigatoriedade dos temas nacionais foi punido exemplarmente pela UES. Na verdade, essa postura foi uma reação ao uso em 1937 de uma série de elementos – cavalos, automóveis, instrumentos de sopro e enredos estrangeiros – considerados alheios e prejudiciais à autenticidade das escolas de samba. Contudo, como já comentamos, a versão que ficou para a história foi que a punição sofrida pela Vizinha Faladeira foi uma ordem da ditadura do Estado Novo – para certos autores, essa seria uma das grandes provas da manipulação das massas pelas autoridades populistas. Segundo essa versão, essa teria sido uma atitude subserviente e inconsciente no cumprimento da ordem de uma ditadura. Para nós, no entanto, isso representou a adesão soberana e estratégica aos temas nacionais pelas escolas de samba.

Na realidade, o desenvolvimento das escolas de samba entre 1938 e 1945 ocorreu de forma bastante independente da ditadura, de tal modo que, ao final desse período, o partido comunista terá grande parte de seu eleitorado entre os bairros populares e nas favelas, cujos moradores eram também membros das escolas de samba.

Em 1939 a Escola de Samba Portela fez um desfile revolucionário, pois pela primeira vez foi notada uma apresentação em que tanto a parte visual da escola, as fantasias e alegorias, quanto a parte musical, o samba-enredo, se harmonizavam na composição do enredo “Teste ao samba”, que foi representada na Praça Onze por um professor e uma turma de alunos ensinando e estudando o samba diante da comissão julgadora do desfile, conforme se lê na letra abaixo do samba de Paulo da Portela[16].

Vou começar a aula
Perante a Comissão:
Muita atenção,
Eu quero ver se diplomá-los posso.
Salve o “fessor”
Dá a mão pra ele, senhor,
Catorze com dois são doze
Noves fora, tudo é nosso!
Cem divididos por mil
Cada um com quanto fica?
Não pergunte à caixa surda
Não peça cola à cuíca
Nós lá no morro
Vamos vivendo de amor
Estudando com carinho
O que nos passa o professor.

Na parte visual a Portela conseguiu desenvolver plenamente o enredo, apresentando entre suas alegorias um grande quadro negro onde estava inscrita a mensagem: “Prestigiar o samba, música típica e original do Brasil, e incentivar o povo”. Com relação às fantasias, a escola de samba foi quase toda vestida com uniformes escolares, à exceção do grupo de baianas, do mestre-sala, da porta-bandeira e de Paulo da Portela, que representou o professor que ministrava os ensinamentos ao grupo de alunos.

Com um bom samba-enredo que dialogava e se integrava com fantasias e alegorias que representavam o enredo, a mensagem de “Teste ao samba” alcançou um grau de clareza e inteligibilidade pública até então desconhecido. Neste sentido, como observou Cabral[17], uma importante medida foi retirar um grupo de “negros fantasiados de nobres” – elemento ritual que existia em antigas manifestações carnavalescas, como o congo, cordões e blocos –, que permaneceu nas escolas de samba, independente de sua conveniência para a composição do enredo. Apesar do sucesso, esse novo princípio de organização do conjunto visual e musical das escolas de samba que a Portela trouxe em 1939 só veio a se generalizar após a guerra, quando as condições econômicas melhoraram e foi possível investir em alegorias e fantasias. É preciso que não se esqueça de que, nas suas primeiras décadas, as escolas de samba pertenciam aos grupos paupérrimos da cidade, nos quais eram numerosos os analfabetos. Suas exibições eram essencialmente de canto e dança, acompanhadas de uma orquestra de instrumentos feitos de latas, madeira, arame, pregos e couro. Não havia recursos para fantasias e alegorias.

“Teste ao samba” foi a exceção que depois virou regra, e só foi possível pelas seguintes razões: primeiro, foi realizada por uma das mais “ricas” e bem-organizadas escolas da época, dirigida por Paulo da Portela, grande artista e líder popular; segundo, a solução de usar uma única fantasia – algo quase impossível em qualquer enredo – para uma escola inteira teve um custo muito baixo e possível. Essas limitações dificultavam um bom desempenho na apresentação dos temas históricos nacionais, cujas fantasias e alegorias eram necessariamente mais caras e exigiam maior apuro estético e material. Esse aspecto precisa ser valorizado, pois a precariedade material influiu para retardar o desenvolvimento dos enredos mais caracteristicamente nacionalistas.

De qualquer forma, “Teste ao samba” demonstra que ainda em 1939 as escolas de samba podiam ser inovadoras e campeãs tendo por enredo o próprio samba e seu povo. Não precisavam, necessariamente, tomar os mártires, os heróis, as batalhas da história oficial como enredo – o que se supõe estar mais ao gosto de uma ditadura – para ganhar o primeiro lugar. E, na realidade, as relações entre as escolas de samba e a ditadura de Vargas foram tensas e não podem, como muitos insistem, ser reduzidas à submissão ingênua e acrítica, à lógica do “pão e circo”. Em 1940, por exemplo, a Portela apresentou o enredo “Homenagem à justiça”. Ao que tudo indica, repetindo a fórmula de “Teste ao samba”, fez um samba-enredo baseado em valores como justiça e liberdade. Segundo Silva e Santos[18], no samba havia o refrão “Salve a Justiça!”, mas na hora do desfile foi cantado “Pau na Justiça”, o que não agradou aos ouvidos dos jurados e principalmente do regime.

No concurso de 1940 a escola ficou em 5º lugar, mas não se sabe se houve interferência política no resultado. Porém, o certo é que a Portela, em 1941, inventou um enredo que comemorava os 10 anos de seus desfiles na cidade, o que, numa feliz coincidência, eram os mesmo 10 anos do governo de Getúlio Vargas. Assim, mesclando os seus feitos com os do presidente Vargas desde 1930, a Portela ganhou o primeiro dos sete campeonatos consecutivos alcançados entre 1941 e 1947, feito não repetido até hoje. Não estamos insinuando que a Portela se tornou governista ou necessariamente passou a adotar enredos nacionalistas e de interesse do governo. Em 1942 ela foi bicampeã com um velho enredo, o samba, assim narrado no samba-enredo “A vida no samba”.

A Vida no Samba
Samba foi uma festa de índios
Nós o aperfeiçoamos mais
É uma realidade
Quando ele desce do morro
Para viver na cidade

Samba tu és muito conhecido
No mundo inteiro
Samba, orgulho dos brasileiros
Foste no estrangeiro
E alcançaste grande sucesso
Muito nos orgulha o teu progresso.[19]

Segundo nossa leitura, a letra acima reivindica: uma ancestralidade indígena do samba, logo brasileira; o seu aperfeiçoamento pelos moradores dos morros da cidade; sua realização e conquistas na cidade; e, finalmente, o início de seu reconhecimento internacional como representação da identidade nacional brasileira. É uma narrativa totalmente voltada para a história presente daquela geração de sambistas e suas escolas de samba que ganhavam cada vez maior projeção nas escalas nacional e internacional. O registro do jornal A Manhã apoiando a vitória da Portela em 1942 dizia que o “enredo foi defendido com muita oportunidade. Todos os detalhes do samba foram focalizados, finalizando com a sua aceitação em Hollywood”[20]. Mas, além disso, podemos observar com ajuda de Tupy e de Candeia e Isnard[21] que a ancestralidade indígena do samba, reivindicada no primeiro verso do samba-enredo, permitiu que a Portela fosse vestida de índio, reproduzindo com fantasias mais baratas ainda os princípios estabelecidos por Paulo da Portela em “Teste ao samba”.

A referência a Hollywood observada pela Folha da Manhã tem como base a ida de Walt Disney à sede da Portela, em 1941, no subúrbio de Osvaldo Cruz, ocasião em que assistiu com sua equipe um espetáculo de samba comandado por Paulo da Portela. Disney estava a trabalho, interessado em colher subsídios para a composição do personagem brasileiro que iria protagonizar, ao lado do Pato Donald, a película “Alô, amigos”, um produto que foi encomendado pela “Office of the Cordinator of Inter-American Affairs” (OCIAA), que desde 1940 estava a frente da “política de boa vizinhança” entre os EUA e o Brasil[22]. A visita de Disney que tanto orgulho trouxe aos portelenses e aos sambistas de uma forma geral, resultou na criação do personagem Zé Carioca, um simpático papagaio falante, verde e amarelo, mulato e sambista, cuja silhueta logo foi associada a Paulo da Portela. Zé Carioca foi o cicerone de um norte-americano em visita ao Brasil, o Pato Donald.

O modo como as escolas de samba se apropriaram dos temas nacionais nos sugere que elas o fizeram de forma estratégica, principalmente quando utilizaram o próprio samba como enredo, valorizando-o, promovendo-o e relacionando-o com problemas do presente. A Escola de Samba Mangueira, segunda colocada no desfile de 1942, apresentou o enredo “A vitória do samba nas Américas”, que também dialogava com a “política de boa vizinhança” e a difusão do samba nos EUA. E não devemos esquecer que foi vestida de baiana e cantando sambas que em 1939 a cantora Carmem Miranda se tornou um estrondoso sucesso nos EUA

O agravamento da guerra durante 1942, que atingiu diretamente o país com o ataque de submarinos alemães a navios mercantes na costa brasileira e o acordo militar Brasil-EUA, criou um clima em que a imprensa e a polícia se mobilizaram e praticamente proibiram o carnaval em 1943. A imprensa dizia que em tempos de guerra as energias deviam se concentrar nas exigências do conflito, e não dispersas em festa; a polícia entendia que os ânimos acirrados podiam alimentar confusões e pôr em risco a segurança pública. Por seu lado, a prefeitura cancelou o baile do Teatro Municipal e as subvenções a todos os grupos carnavalescos que desistiram de realizar seus desfiles, à exceção de 13 escolas de samba. Agindo assim, as escolas mostraram que não dependiam do apoio oficial e da imprensa, mas não deixaram de buscar o apoio de importantes organizações políticas, como a União dos Estudantes e a Liga de Defesa Nacional, que acabaram por se responsabilizar pelos desfiles, que, por sinal, pela primeira vez pôde ser realizado na Avenida Rio Branco, até então palco tradicional e exclusivo do carnaval das classes respeitáveis.

Capturando o grave clima político do momento, a Portela novamente atingiu o tricampeonato em 1943, vencendo com um enredo realmente patriótico e que falava a todos os corações e incentivava a ida dos brasileiros à guerra. Contudo, em plena ditadura, defendia também a democracia e tinha fé na vitória dos Aliados contra as potências do Eixo. Pelo menos essa é a impressão que dá a letra do samba-enredo apresentado.

Democracia
Palavra que nos traz felicidade
Pois lutaremos
Para honrar a nossa liberdade
Brasil oh! Meu Brasil
Unidas nações aliadas
Para o front eu vou de coração
Abaixo o Eixo
Eles amolecem o queixo
A vitória está em nossa mão.

As escolas de samba estavam logrando mais uma grande vitória, contornando as proibições e críticas generalizadas, ocupando sozinhas a Avenida Rio Branco e, sobretudo, se apropriando de um enredo como a guerra para legitimar e mobilizar as atenções para o seu desfile. Mas é também importante ter em conta que, para os grupos pobres do Rio de Janeiro, a guerra não era um assunto distante, pois deles saíram expressivos contingentes de marinheiros e militares que estiveram na linha de frente do conflito. Silas de Oliveira, que anos depois se tornaria o maior compositor de samba-enredo da história, era então um dos soldados do exército que sobreviveu ao naufrágio do navio Itagiba, torpedeado pelos alemães nas costas da Bahia em 1942. Por meio dessa leitura, podemos ver que mesmo nos enredos patrióticos as escolas continuaram a problematizar e a desenvolver temas que falavam deles mesmos, de suas vidas reais e de um mundo real.

Podemos concluir esta segunda parte resumindo que os carnavais de 1944 e 1945 reproduziram 1943, limitando-se unicamente aos valentes e solitários desfiles das escolas de samba, com mais vitórias da Portela com enredos explicitamente patrióticos. Em 1944 foi exatamente “Motivos Patrióticos” e, em 1945, “Brasil Glorioso”. Do primeiro pouco se sabe, porque, segundo Cabral, os jornais não cobriram o evento. Entretanto, Tupy[23] conseguiu apurar que a Portela venceu com o samba “Motivos patrióticos”, de José Barriga Dura.

Motivos patrióticos
Somos todos brasileiros
E por ti queremos seguir
O clarim já tocou reunir
Adeus minha querida eu vou partir
Em defesa do nosso país
É verde e amarelo, branco e azul
Cor de anil é o meu Brasil

Oh meu torrão abençoado
Pelos seus filhos adorado
Seguiremos para a fronteira
Para defender a vida inteira
Nossa querida bandeira.

Embora no início de 1945 a vitória aliada já pudesse ser vista no horizonte, as opiniões favoráveis a festejos se reduziram mais ainda. Mesmo assim as escolas desfilaram outra vez sozinhas no carnaval, mas não tiveram o direito de se exibir na Avenida Rio Branco novamente, sendo deslocadas para o Estádio do Vasco da Gama, onde a Portela alcançou o pentacampeonato com o samba-enredo Brasil Glorioso, de autoria de Jair Silva[24].

Brasil Glorioso
Brasil terra adorada
Brasil dos brasileiros
Conhecido no mundo inteiro
Como um país hospitaleiro
Com uma só bandeira
Acolhe o mundo inteiro
O Brasil é um país diverso
Está sempre com os braços abertos
No Brasil sempre existiu humanidade
O Brasil é um país sincero
No Brasil se encontra a liberdade.


Temas nacionais, samba-enredo e a conquista da representação nacional: questões técnicas, econômicas e políticas (1946-1949)

Conforme assinalamos no início, o período que corresponde aos anos 1946-1949, embora muito curto, foi muito intenso em termos políticos e estéticos. Nesses anos as escolas de samba assumiram com grande desenvoltura o papel de exaltar e valorizar os temas nacionais, seguindo o modelo que a Portela vinha colocando em prática com indiscutível sucesso. Assim, rapidamente conseguiram alcançar um nível geral de harmonização equilibrada entre os elementos rituais, colocando a música, as fantasias e as alegorias a serviço do desenvolvimento de uma narrativa altamente elaborada, merecendo os elogios dos contemporâneos que nelas viam “verdadeiras óperas ambulantes”, superiores aos ranchos que antes detinham tal título.

O fim da guerra e da ditadura do Estado Novo em 1945 trouxe um clima festivo renovado para 1946; os dias de momo daquele ano foram batizados de “Carnaval da Vitória”, e as escolas de samba resolveram que o enredo deveria ser dedicado à vitória aliada e a participação dos brasileiros no conflito mundial. Com o enredo “Alvorada do Novo Mundo” a Portela chegou ao hexacampeonato, mas isso de modo algum significava a domesticação das escolas, pois, durante o mesmo ano, vieram à luz as relações que mantinham com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Não é possível entrar em detalhes aqui sobre essas relações, que já apreciamos[25], mas, para que se tenha uma ideia do que estamos falando, em 15 de novembro de 1946, a Tribuna Popular, órgão do PCB, a pretexto de comemorar o dia da República, promoveu no Campo de São Cristóvão um desfile de escolas de samba que, na verdade, serviu para homenagear Luís Carlos Prestes, líder dos comunistas no Brasil. Sem a presença da Portela e da Mangueira, 22 escolas compareceram ao desfile, e os sambas cantados tinham Prestes como enredo, o enalteciam como “o cavaleiro da esperança”, o defensor do povo etc. Quem venceu o desfile foi a Escola Prazer da Serrinha, situada em Madureira, com um samba-enredo de Mano Décio da Viola chamado “Pelo bem da humanidade”[26], cuja letra é a seguinte:

Sempre lutando
Pela nossa liberdade
Sofrestes
Ó grande nome
Cavaleiro da Esperança
Ficarás para sempre
Na nossa lembrança

As relações com as escolas de samba renderam para o PCB forte apoio de suas lideranças. Luís Carlos Prestes foi o segundo senador mais votado para a Assembleia Constituinte, em dezembro de 1945. Nas eleições de janeiro de 1947 para a câmara de vereadores do Distrito Federal, os votos vindos dos meios sambistas ajudaram o partido a ocupar 18 das 50 cadeiras em disputa, alcançar a maioria parlamentar e assustar gravemente a igreja e os anticomunistas[27]. Mas isso não durou nada, porque, em maio do mesmo ano, o Presidente Dutra colocará o PCB na ilegalidade. Para as escolas de samba, o envolvimento com o PCB trouxe pela primeira vez a intervenção do Estado em suas atividades. A prefeitura cancelou a participação da União Geral das Escolas de Samba (UGES) na organização do desfile oficial, e a entidade foi uma das organizações que tiveram suas atividades encerradas e suas portas lacradas pela polícia, sob a acusação de abrigarem comunistas, situação que foi revertida por meio de liminar obtida na justiça por ação de sua diretoria[28]. Não conseguindo fechar a UGES, a prefeitura, vereadores e o chefe da polícia política estimularam a criação de uma entidade paralela, a Federação Brasileira de Escolas de Samba, através da qual procuraram dividir e aliciar as escolas de samba então filiadas à UGES, que, por sinal, foi apelidada por seus inimigos de “União Geral das Escolas Soviéticas”.

O resultado de tal intervenção foi a divisão política entre diferentes grupos de escolas de samba. Muitas das mais importantes resistiram e acabaram organizando nos anos seguintes seus próprios campeonatos, se recusando a participar do desfile oficial, problema que só veio a ser resolvido no inicio dos anos 1950, com o segundo governo de Getúlio Vargas.

Apesar do tumultuado ambiente político, o final dos anos 1940 assistiu à consolidação dos temas nacionais tradicionais – heróis, batalhas, poetas, regiões, natureza brasileira – como enredos para os desfiles das escolas de samba. O marco definitivo desse processo aconteceu com “Exaltação a Tiradentes”, apresentado em 1949 pela Escola de Samba Império Serrano, com o samba-enredo de Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado, cuja letra segue abaixo.

Joaquim José da Silva Xavier
Morreu a 21 de abril
Pela Independência do Brasil
Foi traído, mas não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais

Joaquim José da Silva Xavier
É o nome de Tiradentes
Foi sacrificado
Pela nossa liberdade
Esse grande herói para sempre há de ser
Lembrado.

“Exaltação a Tiradentes” é um marco para história das escolas de samba porque foi o primeiro samba-enredo a ser gravado em disco, o que só veio a ocorrer em 1955. Por que os cantores e as empresas fonográficas levaram mais de 20 anos para explorar o samba-enredo? Isto não é surpreendente, se considerarmos que o primeiro samba foi gravado em 1917 e o primeiro samba-enredo apareceu em 1933? Por que tamanho desinteresse? Por que ao menos o Estado Novo não gravou os sambas patrióticos da Portela? Uma importante parte da resposta a essas questões está relacionada à nossa hipótese de que a fixação desse tipo de samba enredo significou a culminância de um longo processo de formalização estética que só se concluiu depois da Segunda Guerra, quando melhores condições econômicas permitiram às escolas de samba arcar com os custos do desenvolvimento da parte visual de seus desfiles por meio do aumento e da diversidade de fantasias e alegorias. Com esses recursos foi possível apresentar os enredos com maior caracterização de grupos humanos, personagens e cenários dos eventos históricos. O apuro visual do enredo reforçou mais ainda a importância do samba-enredo para a comunicação pública, modelo que a Portela trouxe à luz em 1939 com “Teste ao samba”. Talvez esteja no monopólio desse modelo o grande segredo de a Portela haver alcançado o primeiro lugar em sete carnavais consecutivos.

Mas há um depoimento do jornalista Irênio Delgado – importante dirigente do Império Serrano; na época raro exemplo de um representante dos setores médios em uma escola de samba –, em que ele afirma que até 1948 raramente eram cumpridos os regulamentos de fantasias e samba-enredo. “Era muito comum a mamãe vir à paisana com a filhinha vestida de baiana. A bateria não era uniformizada, e a escola entrava no desfile com um sambinha de terreiro; parava em frente à comissão julgadora e só aí cantava o samba de enredo”[29]. De fato, as próprias escolas de samba demoraram a valorizar o samba-enredo. Só a partir desses anos elas puderam e passaram a dar mais atenção ao conjunto samba-enredo, alegorias e fantasias, ao mesmo tempo que o julgamento dos desfiles passou a exigir com mais rigor esses itens (quesitos) do regulamento. Com esses recursos as escolas de samba puderam, após 20 anos de lutas e desenvolvimento, se transformar em “grandes óperas ambulantes nacionais”, promovendo o admirável espetáculo de que todos têm notícia, tornando o samba e a escola de samba a representação nacional brasileira por excelência. E representar uma nação, um país gigante como é o Brasil, pela arte, pela poesia, pela música, encantar multidões, nunca, em parte alguma, foi pouca coisa. É por isso que a nossa narrativa da história e da geografia das escolas de samba tem sido a de uma rara, real e bela vitória dos vencidos que aconteceu nas ruas do Rio de Janeiro, nossa cidade, principalmente naquelas ruas de suas favelas e subúrbios.

 

Notas

[1] Vianna (1995).

[2] Hobsbawn (1990).

[3] Fernandes (2001).

[4] Oliveira (2010), p. 112.

[5] As grandes sociedades surgiram em 1855 e foram projetadas para modernizar o carnaval do Município da Corte, isto é, substituir manifestações arcaicas e coloniais, como o entrudo e o Zé Pereira, ambos de origem portuguesa, e os cucumbis e congos africanos, profundamente populares, por um carnaval de corte inspirado em Veneza e na França. Em seus desfiles processionais as grandes sociedades exibiam muito luxo, carros alegóricos, belas fantasias, mulheres bonitas, artistas e prostitutas de classe, tendo como enredo epopeias clássicas, impondo forte contraste com a pobreza e a grosseria do entrudo e do Zé Pereira. O corso surgiu em 1907 e era um desfile de automóveis conversíveis ocupados por grupos de foliões das classes altas que percorriam as principais avenidas da cidade saudando o público, lançando confetes e serpentinas. Com raízes populares e história mais complexa, os ranchos carnavalescos a que nos referimos surgiram após 1908, com as inovações e os recursos financeiros trazidos por grupos de classes médias que revolucionaram esteticamente os seus desfiles, permitindo a sua participação nos festejos oficiais da cidade, na Avenida Rio Branco. Para maiores detalhes, ver Fernandes (2001), especialmente o capítulo II, “O carnaval e a modernização do Rio de Janeiro”.

[6] Fernandes (op. cit.), p. 51.

[7] Cabral (1996), p. 76.

[8] Cabral (op. cit.), p. 80.

[9] Cabral (op. cit.), p. 81.

[10] Cabral, (op. cit.), p. 79.

[11] Cabral, (op. cit.), p. 97.

[12] Efegê (1965), p. 90.

[13] Fernandes (op. cit.), p. 86.

[14] Queiróz (1987); Augras (1998).

[15] Silva e Santos (1989), p. 150.

[16] Silva e Santos (op. cit.), p. 112.

[17] Cabral (op. cit.), p. 124.

[18] Silva e Santos (op. cit.), p. 16.

[19] Tupy (1985), p. 102.

[20] Fernandes (op. cit.), p. 121.

[21] Tupy (op. cit.), p. 101; Candeia e Isnard (1978).

[22] Moura (1986).

[23] Tupy (op. cit.), p. 105.

[24] Tupy (op. cit.), p. 106.

[25] Fernandes (op. cit,), p. 129, 134.

[26] Silva; Oliveira Filho (1981), p. 70.

[27] Pandolfi (1995).

[28] Cabral (op. cit.), p. 155.

[29] Silva; Oliveira Filho (op. cit.), p. 76.

 

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© Copyright Nelson da Nóbrega Fernandes, 2012.
© Copyright Scripta Nova, 2012.

 

Ficha bibliográfica:

FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de samba, identidade nacional e o direito à cidade. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (47). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-47.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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