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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (51), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

PREFEITURAS APOSTÓLICAS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA. ESTADO E IGREJA NA NACIONALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO

Maria Lucia Pires Menezes
Universidade Federal de Juiz de Fora
mlmgeo@terra.com.br

Prefeituras Apostólicas na Amazônia Brasileira. Estado e Igreja na Nacionalização do Território (Resumo)

Ao se iniciar o período republicano no Brasil (1889), uma série de fatores estão relacionados ao contexto político-econômicos no noroeste da Amazônia brasileira: o apogeu da extração da borracha, a existência de uma vasta área “despovoada”, que conformará territórios municipais de vasta extensão e de fraca, ou inexistente, relação de polarização da sede municipal com sua hinterlândia; e principalmente: o processo de acordos de limites ainda restantes na culminância do fechamento do polígono territorial do país, que se inicia no período colonial, mas ainda incompleto e  mantendo indivisas os limites da fronteira política. Considerando São Gabriel da Cachoeira, São Paulo de Olivença e Tefé, localizados no estado do Amazonas no Brasil, como núcleos por onde perpassam as principais decisões afeitas à ordenação territorial, sintetizaremos o histórico das transformações do espaço político, quando da criação das Prefeituras Apostólicas por missões religiosas nas respectivas cidades, tomando-as como marco inicial da soberanização do território e a conseqüente nacionalização da população.

Palavras chave: Amazônia, prefeituras apóstolicas, fronteira, limites, Igreja, Estado.

Prefecturas Apostólicas en la Amazonia brasileña. El Estado, la Iglesia y la nacionalización del Territorio (Resumen)

En el inicio del período republicano en Brasil (1889), una serie de factores están relacionados con el contexto político-económico en el noroeste de la Amazonia brasileña: el pico de la extracción de caucho, la existencia de una vasta zona "despoblada" que conforman los territorios municipales, la relación amplia y débil, o inexistente de la polarización de la sede municipal con su hinterland, y en especial: el proceso de los acuerdos de límites, pero aún incompletos en la configuración de las fronteras. Considerando São Gabriel da Cachoeira, São Paulo de Olivença e Tefé, localizados en el estado del Amazonas en Brasil, sitios donde ocorriran decisiones acerca de la ordenación territorial del país; analisaremos el histórico de las  transformaciones del espacio político, cuando de la creación de las Prefecturas Apostólicas por misiones religiosas en estas ciudades, tomandolas como punto inicial de la nacionalización del território y de la población.

Palabras clave: Amazonía, prefecturas apostólicas, frontera, límites, Iglesia, Estado.

Apostolic Prefectures in the Brazilian Amazonia. State, Church and The Nationalization of the Territory (Abstract)

In the beginning of the Republican period in Brazil (1889), a number of factors are related to the political-economic in the northwest of the Brazilian Amazon: the height of the rubber tapping, the existence of a vast area "uninhabited" that conform municipal territories, the vast and weak or nonexistent relationship of polarization of the municipal headquarters with its hinterland, and especially: the process of agreements limits still remaining in the culmination of the closing polygon territory of the country, beginning in the colonial period, but still keeping incomplete and undivided the frontiers of politics. We'll look at São Gabriel da Cachoeira, Sao Paulo and Olivença Tefé, located in the state of Amazonas in Brazil, such as locations where major decisions permeate accustomed to territorial organization. We will review the history of the transformation of political space, when the creation of Apostolic Prefectures by religious missions in the respective cities, as a process that results in the territorial sovereignty and the subsequent nationalization of the population.

Key words: Amazon, apostolic prefectures, frontier, limits, Church, State.


Ao se iniciar o período republicano, o Oeste amazonense se ressente de situações extremamente marcantes para o espaço administrativo e econômico da região:

  1. O apogeu da extração da borracha, o que diferenciava sobremodo as áreas produtoras das áreas não-produtoras, como é o caso da calha do rio Negro;
  2. A instauração da República que, com a nova Constituição, repassa às antigas províncias a categoria de Estados Unidos do Brasil compondo, assim, o conjunto da federação acrescido do município "neutro" – a cidade do Rio de Janeiro, capital da República;
  3. A existência de uma vasta área “despovoada”, que conformará territórios municipais de vasta extensão e de fraca, ou inexistente, relação de polarização da sede municipal com sua hinterlândia;
  4. O processo de acordos de limites ainda restantes na culminância do fechamento do polígono territorial do país, que se inicia no período colonial e cujo último acordo somente se dará em 1973, através da Comissão Mista Brasileiro-Venezuelana, com a assinatura da carta geral da linha divisória da fronteira Brasil-Venezuela na escala de 1/1.000.000.

É esta a Amazônia Ocidental que vem sofrendo ultimamente transformações tão repentinas, que acaba por “esconder” suas relações com o passado. Nem sempre uma abordagem através de uma investigação que parta da linearidade histórica é passível de responder a lapsos ou raptos de usos e formas espaciais, cuja maior expressão é dada pela forma atual de organização geográfica que, por um lado, busca a explicação pelo paradigma do desenvolvimento sustentado e, por outro, "olha” a região como um dos territórios do comércio ilegal de drogas. Portanto, consideramos importante relacionar os principais eventos que marcaram o início da história administrativo-territorial dos principais municípios da região oeste-noroeste do estado do Amazonas.


Transformações ocorridas no território comandado pelos núcleos urbanos de Tefé, São Gabriel da Cachoeira e São Paulo de Olivença

Considerando São Gabriel da Cachoeira, São Paulo de Olivença e Tefé como núcleos por onde perpassam as principais decisões afeitas à ordenação territorial, sintetizaremos abaixo o histórico das transformações do espaço político até o ano de 1910, quando da criação das Prefeituras Apostólicas por missões religiosas nas respectivas cidades, tomando-as como marco. A seguir relacionaremos, ainda cronologicamente, outras transformações ligadas à presença de instituições públicas na região e aos novos recortes territoriais.

Toda a região considerada apresenta limites internacionais, inclusive Tefé, que só perderá a condição de município fronteiriço com o desmembramento da área de seu município original para a criação dos novos municípios de Maraã e Japurá através da Lei n.º 96, de 19 de dezembro de 1955.


Núcleo Tefé

1759 - elevado à categoria de vila, com a denominação de Ega.

1833 - pelo Código de Processo, reanexa o município de São Paulo de Olivença e torna-se sede da comarca do Alto Amazonas. Volta a ser denominado Tefé.

1843 - pela Lei Provincial n.º 86, torna à denominação de Ega.

1853 - sede da comarca do Solimões, criada em 7 de agosto pela Lei n.º 26.

1855 - pela Resolução Provincial n.º 44, é elevado à categoria de cidade, novamente com o nome de Tefé.

1874 - cede território para a criação do município de Coari.

1891 -  cede território para a criação do município de Fonte Boa.

1892 -  cede território para o município de Eirunepé.

1910 (23 de maio) - criada a Prefeitura Apostólica de Tefé, instalando-se na cidade a Congregação do Espírito Santo e sendo Monsenhor Miguel Alfredo Barat o seu primeiro Prefeito Apostólico.

1911 - cede território para a criação do município de Carauari.

1955 - cede território para a criação dos municípios de Maraã, Japurá e Juruá.

1969 - fixada a sede do Campus Avançado da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), através do Projeto Rondon.

1992 - sedia a XVI Brigada Militar de Tefé, sob o Comando Militar da Amazônia.

1996 - instalação na cidade de um radar para o Projeto Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), sob o controle do Ministério da Aeronáutica.


Núcleo São Paulo de Olivença-Benjamin Constant-Tabatinga

1759 - São Paulo de Olivença é elevado à categoria de vila.

1766 - criação da povoação de São Francisco Xavier de Tabatinga, onde foi  construído um forte para abrigar o destacamento militar do Javari.

1817 - criado o município de São Paulo de Olivença, desmembrado de Tefé, para onde retornaria em 1833 perdendo, inclusive, a categoria de vila.

1858 - sob a invocação de São Paulo, foi designado como uma das freguesias do Amazonas por efeito da Lei n.º 92, de 6 de novembro.

1866 - assentados os marcos de limites entre Brasil e Peru nas proximidades de Tabatinga.

1882 - pela Lei n.º 399, a freguesia de São Paulo é elevada novamente à categoria de vila.

1884 - pela Lei n.º 656, São Paulo é elevado à categoria de comarca do Solimões.

1892 -  criou-se o município de São Paulo de Olivença, desmembrado de Tefé pela Lei n.º 33, de 4 de novembro. O município foi extinto (cf. Coleção de monografias do IBGE).

1898 - pela Lei n.º 191 foram criados o município e a vila de Remate dos Males, atual Benjamin Constant, desmembrado de São Paulo de Olivença.

1901 - a Lei n.º 328 suprime o município de Benjamin Constant.

1904 - a Lei n.º 446 restaura o município de Benjamin Constant.

1910 (23 de maio) - criada a Prefeitura Apostólica do Alto Solimões com sede em São Paulo de Olivença, sob a responsabilidade da Ordem Franciscana.

1933 - São Paulo de Olivença foi reduzido à condição de delegacia municipal pelo Ato n.º 2.403, de 15 de agosto.

1930 - o Ato Estadual n.º 45 edita a supressão do município de Benjamin Constant.

1931 - pelo Ato n.º 33 é novamente restaurado o município de Benjamin Constant.

1935 - São Paulo de Olivença volta à condição de município autônomo com a reconstitucionalização do estado.

1938 - pelos Decretos-lei estaduais números 68 e 69, a comarca do Solimões passou a denominar-se comarca de Fonte Boa, compreendendo os termos de Fonte Boa, São Paulo de Olivença e Benjamin Constant, com as respectivas sedes dos municípios elevadas à categoria de cidade.

1950 - criação da Prelazia Nullius do Alto Solimões.

1952 - a Lei n.º 226 cria a comarca de Benjamin Constant.

1955 - pela Lei n.º 96, São Paulo de Olivença perdeu os distritos de Santo Antônio do Içá e Tonantins, e também parte do de Santa Rita do Weil para o município de Santo Antônio do Içá, criado pela mesma lei. Benjamin Constant perde o distrito de Remate dos Males, que passou a constituir o novo município de Atalaia do Norte.

1968 -  pela Lei Federal n.º 5.449, o município de Benjamin Constant passa a integrar a Área de Segurança Nacional sob o comando de Fronteira do Solimões.

1969 -  instalação do Campus Avançado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), através do Projeto Rondon, em Benjamin Constant.

1983-85 - instalação do município de Tabatinga, desmembrado de Benjamin Constant.

1985 -  aprovação pela Presidência da República em 19 de dezembro, através da Exposição de Motivos n.º 770, do “Desenvolvimento e segurança na região ao norte dos rios Solimões e Amazonas – Projeto Calha Norte”.

1986 -  sede, em Tabatinga, do Batalhão de Infantaria da Selva e criação do Aeroporto Internacional de Tabatinga.


Núcleo São Gabriel da Cachoeira-Içana-Uapés

1833 - criação da freguesia de São Gabriel da Cachoeira.

1891 - criação, pela Lei Estadual n.º 10, do município de São Gabriel da Cachoeira (Uapés), desmembrado de Barcelos.

1910 (23 de maio) - criada a Prefeitura Apostólica do Rio Negro, com sede em São Gabriel da Cachoeira.

1914 - a  Prefeitura Apostólica foi entregue à Congregação Salesiana.

1925 - a Prefeitura Apostólica foi elevada à condição de Prelazia do Alto Rio Negro.

1931 - supressão do município de São Gabriel e anexação ao de Barcelos.

1935 -  restauração dos municípios de Içana e Uapés.

1936 -  restabelecida a comarca de São Gabriel da Cachoeira.

1938 -  São Gabriel recebe foros de cidade.

1941 - extinta a comarca de São Gabriel da Cachoeira.

1952 - restabelecimento da comarca de São Gabriel, pela Lei Estadual n.º 226, com o nome de Uapés.

1955 -  pela Lei n.º 96 foi criado o município de Içana, constituído dos distritos de Içana e Iauretê, com território desmembrado de Uapés.

1956 -  extinção do município de Içana pela Lei n.º 117 e incorporação ao de São Gabriel (Uapés).

1969 - São Gabriel passa a ter participação no Projeto Rondon.

1968 - pela Lei Federal n.º 5.449, o município foi enquadrado como Área de Segurança Nacional.

1985 - instalação do Batalhão de Engenharia e Construção, instalação preliminar do Projeto Calha Norte.

A exposição de dados acima permite concluir que, desde a divisão entre Espanha e Portugal pelo Tratado de Tordesilhas, grande parte da Amazônia (em especial, a parte “tomada” aos espanhóis) tem sua história atrelada às questões de soberania e ocupação da região Amazônica. Machado (1989) esclarece que, mesmo que distante ou desvinculada de uma presença mais efetiva da gestão colonial, e depois imperial, a Amazônia foi cenário de políticas que caracterizaram diferentes empreendimentos geopolíticos: primeiro, com a disputa entre Portugal e Espanha; posteriormente, na coesão territorial do Estado imperial; e, mais tarde, na convergência de interesses da República brasileira. As diferentes políticas e os sucessivos recortes territoriais operaram com um objetivo comum: manter a região sob o domínio territorial do Estado nacional.


As Prefeituras Apostólicas

Com a Independência do Brasil, o século XIX transcorrerá na região objetivando medidas em torno da organização administrativo-territorial imperial. Após a Proclamação da República, dois fatores de ordem econômica afetaram a condição destes três núcleos: a questão da navegação do rio Amazonas, por razões de localização diretamente ligada a Tefé e a Benjamin Constant-Tabatinga; e, no final do século XIX, a grande exportação gomífera que, pela primeira vez, deu à região um sentido de economia de grande produção.

Por outro lado, a região de São Gabriel da Cachoeira, ainda que situada nas proximidades de uma fronteira política tríplice (Brasil-Colômbia-Venezuela), ficou à margem da disputa em torno das pressões sobre a abertura da navegação do rio Amazonas, embora o rio Negro sempre tenha exercido o papel de eixo de comunicação, principalmente com a Colômbia, e de produção de goma. Em 1883 São Gabriel se converte em freguesia e, já durante a República (1891), vê ser extinta esta categoria, ficando toda a sua área incorporada a Barcelos - município situado a jusante da margem esquerda do rio Negro e, portanto, mais próximo à Manaus.

A história territorial deste período pode ser caracterizada pela instituição de comarcas, e pela extinção e criação de vilas e municípios, em fatos que demostraram que o impulso econômico e a República não passaram incólumes à região próxima da capital do estado do Amazonas.

Novamente as histórias destes três núcleos se unem, quando o Governo brasileiro resolve permitir às missões religiosas o controle desta vasta região, instruindo com o beneplácito do Vaticano (através do Papa Pio X, grande impulsionador do trabalho missionário) as Prefeituras Apostólicas de Tefé, São Gabriel da Cachoeira e São Paulo de Olivença, em 23 de maio de 1910. Este é o momento no qual se estão reavivando e intensificando os marcos dos limites internacionais – o que, mais tarde, seria denominado como Comissão Especial de Fronteira, coordenada por Cândido Rondon, o mesmo que, em 1911, se converte em primeiro chefe do Serviço de Proteção aos Índios que, na época, fôra criado com o nome institucional de Serviço de Proteção aos Índios e Trabalhadores Livres Nacionais (cf. Lima, 1985).

Estes núcleos, em função de sua história e localização, constituem por excelência o lugar de encontro e fixação de ações que envolvem fronteiras e limites, Estados, administração, índios, missionários e nacionalização da população.


O desenvolvimento urbano na borda do estado do Amazonas até a década de 90

Quando a fronteira política se torna mais importante aos interesses dominantes, emergem São Gabriel e o eixo São Paulo de Olivença-Tabatinga (atualmente sede da Diocese) que, agora, passam a ser a segurança da soberania territorial, com importância maior do que teria uma simples fronteira econômica dentro da própria região. 

É importante destacar como antigos lugares, localidades, missões, fortificações e portos vão se desenvolvendo para uma organização urbana, em que a função é mais importante do que a forma (nos dias atuais, sempre tão precária à primeira vista). Tefé, embora fora atualmente da Faixa de Fronteira, porém como "cidade de borda", consolidou sua posição em função de sua localização estratégica, que lhe permitiu articular uma série de fluxos e relações. Situado no Médio Amazonas, próximo às desembocaduras dos rios Tefé, Japurá e Juruá e, mais a montante, do rio Jutaí, este núcleo foi e é capaz de controlar as ligações e fluxos que vêm da Colômbia via rio Japurá onde, inclusive, tem conexão com a bacia do rio Negro e com o Sudoeste do estado até o Peru, através da bacia do rio Juruá.

Na verdade, estes núcleos formam uma peculiar configuração urbana, uma espécie de rede urbana de fronteiras interligadas pelas redes de controle estratégico - e, portanto, geopolíticas já que, como exposto acima, a presença institucional da Igreja e das Forças Armadas constituiu nestas cidades uma base para uma rede urbana que, dentre outras funções, desenvolveu um importante papel político na nacionalização do território. Estes núcleos exercem e sofrem a atração, na díade fronteiriça, de núcleos urbanos localizados nos países limítrofes. Este é o caso da “conurbação” existente entre Benjamin Constant-Tabatinga e Letícia, na Colômbia, cidades que mantêm entre si relações muito intensas e daí constituírem o que atualmente denomina-se como cidades-gêmeas.

Respeitadas as peculiaridades de cada núcleo e de sua respectiva região de influência, até um determinado momento o processo de urbanização foi marcado pela ação do Estado e seu aparelho administrativo, pela organização judiciária que, muitas vezes, se sobrepôs às intendências e prefeituras, e pelo  incremento de tentativas de escolarização e profissionalização. Neste processo, as missões religiosas tiveram papel fundamental: para além da catequese indígena, foram se estabelecendo nos núcleos e sedes municipais com um projeto pedagógico e de formação de força de trabalho.

Os anos 1970 marcaram o período de intensificação da migração para os núcleos urbanos. Atualmente, sobretudo as sedes municipais estão eivadas de problemas face ao crescimento desordenado e veloz da população residente.

A urbanização na fronteira política “despovoada” pode ser explicada por dois padrões que coexistem: um de ordem histórica, explicado pela criação e manutenção de redes de controle da fronteira política; e outro de ordem econômica quando, para o capital, o espaço é considerado como território livre para os empreendimentos do sistema produtivo global.

Atualmente, em relação ao primeiro processo descrito acima, há uma passagem do controle administrativo exclusivo do Estado nacional para o controle tecnológico do sistema mundial - vide Projeto Sivam - que interfere diretamente na dinâmica continental-regional.

Historicamente, porém, pode-se afirmar que o  aparelho político-administrativo estatal operou no sentido de estruturar processos de criação de uma rede de controle da fronteira política a partir dos fatos que enumeramos a seguir:

1) A municipalização assegura o desenvolvimento da forma urbana. Política antiga, e até hoje válida, de afirmação de soberania e controle através de sucessivas divisões e redivisões administrativas (cf. Machado, 1989). Vilas, comarcas, municípios e cidades são foros políticos e administrativos de bases territoriais, pontos de fixação político-administrativa num processo de independência/interdependência entre unidades integrantes de circuitos estabelecidos por aqueles que vêm para explorar, para conceber o empreendimento  da  conquista, tal qual o papel dos migrantes, dos de fora, das  instituições etc.;

2) O controle geopolítico se intensificou sobre o aspecto urbano através do poder tutelar da ação pastoral – sistematizada a partir da criação das Prefeituras Apostólicas. A ação se baseia inicialmente sobre a caridade, a educação,a formação para o trabalho e a  conversão.

"No caso da América de origem ibérica, tomada numa perspectiva temporal mais longa, poder-se-ia dizer que os intérpretes, especialistas na comunicação com o outro sob múltiplas formas, viriam a encontrar nas ordens religiosas seus primeiros continuadores teóricos e práticos de um saber sobre as estratégias de conversão e anulação da diferença cultural" (Lima, 1995: 60).

Institui-se como poder de Estado (se  faz  sobre o território, dele depende, e o assegura e produz para o Estado) na incorporação do poder pastoral, isto é, como forma eclesiástica de integração e totalização. A presença da Igreja, a posteriori, vai assumindo uma forma de exercício através de uma luta mais engajada com diferentes segmentos sociais, cujo objetivo mais geral seria a conquista da cidadania, portanto reafirmando a posição privilegiada da cidade no espaço e no processo de conquista desse espaço (cf. Lima, 1995), configurando-se a urbanização como forma de aniquilamento do outro, locus privilegiado da absorção da alteridade;

3) A presença federal através dos campi avançados é o início da inserção, no  circuito, da circulação da força de trabalho e da informação, traduzidas agora diretamente do aparelho de Estado, este podendo ou não estar aliançado com outras instâncias institucionais no papel de decodificador da cultura nacional;

4) A consolidação do poder municipal marca a passagem - principalmente ao incorporar iniciativas autóctones - para uma democracia aberta aos fluxos do  sistema  mundial. A estrutura do poder local busca empreendimentos e negócios que viabilizem a economia local;

5) A presença gradativa e acentuada das Forças Armadas no controle territorial,  cujo cenário estratégico se amplia à escala regional-continental e cujas funções se ampliam à assistência social (vide importância dos hospitais militares ou a proveniente do trabalho de militares), configurando-se como uma nova modalidade do poder pastoral. Mesmo em áreas de bordas selváticas e desurbanizadas, as  principais sedes de unidades militares (batalhões e brigadas) ainda se localizam, preferencialmente, em área urbana, de modo que seus contingentes e familiares possam usufruir da estrutura urbana e esta mesma usufrua da segurança, da assistência e do mercado consumidor que os contingentes militares representam, especialmente na economia urbana local. Não seria por demais a constatação de tão tardia [sic] presença militar na história das bordas territoriais da Amazônia. Tal aspecto significa que a Amazônia “brasileira” passa a ser a rede de cidades para a reafirmação das linhas de fronteira. E a Amazônia “sul-americana” vem configurando uma rede de cidades para as passagens de fluxos do sistema econômico em nível global, mas não necessariamente do sistema global.

"Alternatively, we posit that the economic rationality and function of frontier urbanization extends beyond the borders of the frontier itself and is variously articulated to forces operating on multiple levels of the internal limits to growth that the region´s pace of development might impose" (Godfrey, 1996: 13).

A busca e o movimento históricos para coincidir o território estatal com o  espaço econômico nacional, e com a própria Nação, também produziram noções  sobre a fronteira como um espaço a ser territorializado pela inserção do potencial de recursos disponíveis ao modo capitalista de produção e circulação.

A essa forma especial adjacente e superposta à fronteira política – a da borda – instauram-se novas formas e novas relações sobre velhas formas e  velhas relações, com o agravante de não necessariamente significarem a ocupação populacional do espaço geográfico no sentido da forma advinda da expansão agro-industrial, mas introduzindo diferentes mecanismos (desde Prefeituras Apostólicas ao Projeto Calha Norte) de manutenção da soberania territorial em áreas de potencial fricção com "o outro" - seja de outra nacionalidade, seja o outro ainda não totalmente convertido à nacionalidade (caso modelar dos grupos indígenas).

Para consolidar a soberania e a nacionalização do território, constata-se a predominância da ação do Estado ou de agentes estatizantes, conformando-se uma “fronteira governamental” fortemente atrelada a ideologias e geopolíticas embasadoras de um projeto nacional. Na verdade, o desenrolar do século XX prossegue ao período analisado por Machado (1985), que considera o boom da borracha na região como o momento da conjugação de uma série de instâncias políticas, econômicas e sociais, embora a Amazônia ainda permaneça desapartada de uma ideologia e, portanto, de uma geopolítica de projeto nacional.


Conclusões

A consolidação jurídico-administrativa das cidades que irão reger a região e sua borda fronteiriça encontra, na criação das Prefeituras Apostólicas, a busca da  consolidação de um processo que as relações econômicas (principalmente após o declínio da exploração gomífera) não foram capazes de solidificar: o da introdução do aspecto urbano da cidade como ponto estratégico de soberania e nacionalização da população. A fragilidade da rede urbana, se analisada do ponto  de vista da hierarquia das trocas comerciais e de serviços, deveria somar-se à  localização de estruturas administrativas do poder estatizado e seus agenciamentos, de  modo que o processo de conquista do espaço se realizasse na forma de nacionalização do território e da população. Seja na Colônia, no Império ou na República, podem-se historiar as diferentes formas de administração do território (cf. Machado, 1985).

Sedes das futuras prelazias e dioceses, Tefé, São Paulo de Olivença e São Gabriel da Cachoeira inscreveram-se como locus distinto dos exercícios de poder e dominação, cuja distinção se baseia nas funções urbanas que estas cidades  desempenham diante de uma situação geográfica, as quais compreendem:

a) região de fronteira de bordas internacionais;

b) áreas despovoadas e distantes do centro econômico do país;

c) municípios distantes da própria capital do Estado;

d) municípios de grande extensão territorial;

e) ecossistema amazônico de várzea, que compreende rios extensos e sinuosos, constância de umidade e altas temperaturas, floresta equatorial;

f) malha viária e fluxos econômicos apoiados na rede hidrográfica, influenciada pela sazonalidade de cheias/vazantes;

g) fluxo e contrafluxo das águas;

h) concomitantemente, desde os anos 1950 registra-se o funcionamento do transporte aéreo alcançando os principais núcleos da região;

i) um grande contingente populacional de indígenas, sendo que algumas etnias são transfronteiriças, isto é, historicamente habitam extensas áreas pertencentes  a diferentes países;

j) o padrão de ocupação da zona rural, com as seguintes características: habitat rural disperso, garimpo sazonal, comunidades ribeirinhas de base extrativa e agricultura de subsistência com baixo excedente comercial, tendendo a expandir um pequeno cinturão verde em torno das cidades mais populosas.

Administrar, num certo nível, também significa pôr em movimento dispositivos capazes de engendrar e repetir - e fazer com que se repitam – esquemas de percepção e ação da vida diária, ao ponto de torná-los automáticos e inquestionáveis (cf. Lima, 1995). A presença das missões nas cidades, através das Prefeituras Apostólicas, as transformaram em lugar dessa função da administração que, para além da catequese indígena, num largo período de tempo  operou como agente principal da nacionalização da população, conferindo também às cidades-sedes da Prelazia a condição de sede local do território do poder tutelar - este último entendido como modo de relacionamento e  governamentalização de poderes, concebido para coincidir com uma única nação.

"(...) o poder tutelar é uma forma reelaborada de uma guerra, ou de maneira muito mais específica, do que se pode construir como um modelo formal de uma das formas de relacionamento possível entre um 'eu' e um 'outro' afastado por uma alteridade (econômica, política, simbólica e espacial) radical, isto é, a conquista, cujos princípios primeiros se repetem – como toda repetição, de forma diferenciada – a cada pacificação" (Lima, 1995: 42-43).

Trata-se de um poder de Estado como modo de integração territorial e política operada a partir de um aparelho estatizado, a partir do conjunto de redes sociais e relações componentes de um Estado - o qual, em diferentes momentos do tempo e implicando múltiplas relações entre distintos segmentos sociais (logo, configurações diferenciadas), veio ao longo do tempo, atuando e inscrevendo o território e a sociedade sob a égide do Estado nacional brasileiro.

 

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Ficha bibliográfica:

MENEZES, Maria Lucia Pires. Prefeituras Apostólicas na Amazônia Brasileira. Estado e Igreja na Nacionalização do Território. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (51). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-51.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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