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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (52), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

DIFERENTES CONFLITOS, PODERES E DISPUTAS TERRITORIAIS: O PAPEL DA IGREJA CATÓLICA NO ESPAÇO DAS FAVELAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1947-1962)

Igor Martins Medeiros Robaina
Universidade Federal do Rio de Janeiro
igorobaina@gmail.com

Diferentes conflitos, poderes e disputas territoriais: o papel da Igreja Católica no espaço das favelas na cidade do rio de janeiro (1947-1962) (Resumo)

As favelas cariocas além de espaços habitacionais se configuram também como um palco histórico de diferentes disputas políticas. Um destes processos em meados do século XX revelou a importância espacial dos interesses do Estado, dos Partidos Comunistas e principalmente da Igreja Católica, seja diante de um processo de ordenamento territorial ou de práticas assistenciais junto a estes grupos no espaço urbano. 

Palavras chave: favelas, conflitos territoriais, Igreja Católica.

Diferentes conflictos, poderes y las disputas territoriales: el papel de la Iglesia Católica en las barriadas de la ciudad de río de janeiro (1947-1962) (Resumen)

Los barrios marginales, así como espacios de vida se configura también como una etapa histórica de las diferentes disputas políticas. Uno de estos procesos en el espacio de mediados del siglo XX revelaron la importancia de los intereses del Estado, especialmente los partidos comunistas y la Iglesia Católica, a causa de un proceso de prácticas de planificación territoriales o el cuidado de estas poblaciones en el espacio urbano.

Palabras clave: barriadas, conflictos territoriales, Iglesia Católica.

Different conflicts, powers and territorial disputes: The role of the Catholic Church in the slums of the city in Rio de Janeiro (1947-1962) (Abstract)

The carioca slums as well as living spaces are configured also as a historical stage of different political disputes. One of these processes in the mid-twentieth century revealed the importance of the interests of the state space, and especially of the Communist Parties of the Catholic Church is facing a process of planning territorial or care practices among these groups in urban space.

Key words: slums, territorial conflicts, Catholic Church.


O fenômeno religioso possui uma configuração extremamente complexa. Além do movimento da fé que arrasta bilhões de pessoas em todo o planeta, a religião possui uma dimensão política e territorial[1]. Assim, nos colocamos a pensar sobre algumas lógicas espaciais de disputas e dos poderes em torno de determinados espaços, sua capacidade de polarização e influência, inclusive promovendo tensões e conflitos com outras esferas de ordem política, como o Estado e orientações partidárias.

Deste modo, nossa análise se lançou em compreender estes processos a partir do surgimento e ações da fundação Fundação Leão XIII. Esta instituição foi criada na cidade do Rio de Janeiro, no dia 22 de Janeiro de 1947.

Sua história e principalmente sua atuação sistemática no cenário Sócio-político-espacial carioca se diferenciou talvez de todas as outras instituições de assistência sociais do século XX no Brasil, tendo em vista sua caracterização especifica como a primeira e a principal instituição assistencial no tocante das intervenções em melhorias às favelas[2] na cidade do Rio de Janeiro e consequentemente no próprio território Brasileiro.

Suas ações assistenciais, no período de 1947 até 1962 marcadas pela atuação concomitante em 33 favelas na cidade do Rio de Janeiro. Estas ações garantiram algumas necessidades sociais jamais proporcionadas anteriormente pelo Estado para com estes espaços, como as questões de educação, alimentação, saúde, lazer, apoio jurídico e urbanidades.

Contudo, cabe ressaltar, que sua história também foi demarcada por inúmeras tramas, onde por trás da grandeza e imponência política e social de suas ações, vários foram os conflitos, disputas e interesses. Neste complexo jogo de forças opostas no cenário político espacial carioca, a Igreja Católica, o Partido Comunista do Brasil e o Estado se fizeram presentes junto as populações no interior das favelas, articulando-se e/ou (Des)mobilizando-se, numa clara e histórica disputa pelo poder e suas dimensões espaciais.

Analisar os motivos que levaram o processo de formação da Fundação Leão XIII, é, sobretudo, compreender articuladamente os processos de formação das favelas cariocas e principalmente suas transformações espaço-temporais na complexidade do urbano carioca.


Dos Precedentes à Criação: As Configurações Sócio-Espaciais Para a Criação da Fundação Leão XIII

Construídas contra todos os preceitos de Hygiene, sem canalização d’água, sem exgoto, sem serviço de limpeza pública, sem ordem, com material heteróclito, as favellas constituem um perigo permanente de incêndio e infecções epidêmicas para todos os bairros através dos quaes se infiltram. A sua lepra suja a vizinhança das praias e os bairros mais graciosamente dotados pela natureza, despe os morros do seu enfeite verdejante e corrói até as margens da mata da encosta das serras . . . (a sua destruição é importante) não é só sob o ponto de vista da ordem social e da segurança, como sob o ponto de vista da hygiene geral da cidade, sem falar da esthética (PREFEITURA DO DISTRICTO FEDERAL, 1930, p.189-190.)

Dada a constituição espacial das favelas, muitas foram as problemáticas e as tensões vivenciadas pelos seus moradores. A forma material da paisagem e conseqüentemente a precariedade sócio-espacial, proporcionou em determinados grupos (não moradores das favelas) uma indesejabilidade frente esta nova realidade sócio-espacial.

Deste modo, os espaços das favelas foram bombardeados a partir de múltiplas direções, sendo ora pela invisibilização dos problemas existentes, inclusive pelo próprio Estado, ora pela estigmatização, especialmente nos discursos dos representantes políticos, dos grupos hegemônicos e/ou da própria mídia, que reforçavam as formas de violência simbólica sobre as favelas e seus habitantes.

“A favela é uma aglomeração de vagabundos desempregados, mulheres e crianças abandonadas, ladrões, bêbados e prostitutas. Esses “elementos marginais” vivem em condições “subumanas”, sem água encanada, esgoto, coleta de lixo, e outros serviços urbanos básicos, num ambiente sujo e insalubre. As favelas, feias como são, prejudicam o pitoresco panorama da cidade. Econômica e socialmente, constituem um dreno, um parasita, exigindo altos gastos em serviços públicos e dando pouca retribuição. Os favelados mantêm-se à-parte, não contribuem nem com aptidões nem ao menos com poder aquisitivo para o bem geral, e são uma ameaça pública. Ademais, as terras que ocupam são em geral muito valiosas, portanto, as favelas impedem que se lhes dê uso mais lucrativo, além de desvalorizarem as propriedades vizinhas.(PERLMAN, 2002, p.42)”

Contudo, em meio de tantas adversidades, tanto físicas, materiais e objetivas, mas também na perspectiva psico-sociológica, as favelas buscaram mínima e autonomamente resolver suas questões, sobretudo, por conta da descrença em relação ao Estado como protetor e mantenedor das condições básicas e garantias sociais.

Com isto, o cenário político no interior das favelas passará por várias transformações, principalmente com o fim da ditadura Varguista, no ano de 1945, quando retornará a ordem democrática ao país. Estendendo assim, a liberdade para toda sociedade e todos os espaços sociais, inclusive para as favelas. Assim, os movimentos sindicais, sociais, trabalhistas e os partidos políticos foram postos em liberdade e tiveram uma nova chance de florescer e disputar projetos de sociedade no campo político e social, tendo em vista o grande período de silenciamento frente a postura centralizadora e autoritária de Getúlio Vargas[3]

Neste novo cenário político-social reemerge o Partido Comunista do Brasil[4], no qual inicia um movimento de transformação e de auto-ressignificação de um partido de quadros para um partido de massas, aproximando-se assim, das questões políticas locais e seus respectivos problemas. É diante destas questões que surgem os Comitês Democráticos Populares[5], como um espaço de construção de autonomia popular, funcionando no sentido de mobilizar as luta pelos diretos e as garantias sociais, além de ser um espaço de conscientização política.

Sobre este respeito:

“Os Comitês Democráticos Populares, que já se vão organizando por todo o país, serão como que as células iniciais do grande organismo democrático capaz de unir o nosso povo e de guiá-lo no caminho da democracia e do progresso. Os Comitês Populares falarão a voz do povo dirão de sua vontade, suas reivindicações imediatas e permitirão que se revelem os verdadeiros líderes populares, homens e mulheres, jovens e velhos, que falem a linguagem do povo e sejam de fato os melhores na defesa dos seus interesses e na luta pelos direitos do próprio povo. E por isso, nesses organismos será relativamente fácil o desmascaramento dos agentes do fascismo, dos demagogos e desordeiros inimigos da união e da democracia.” (PRESTES, L,C. s/d. Discurso proferido no dia 15 de Julho de 1945, p.113-114)

A proposta dos Comitês Democráticos Populares se fazia com bases bastante vanguardistas e revolucionárias, pois caminhavam no sentido de proporcionar a presença e a integração da população no campo político, diferenciando-se das históricas e conservadoras manobras políticas de reprodução passiva, onde os sujeitos sociais nada eram além de meros expectadores. 

Outra característica sobre os Comitês Democráticos Populares constituía na sua forma de organização popular, pois mesmo sendo criado pelo Partido Comunista do Brasil num anseio pela democracia e autonomia dos sujeitos como cidadãos políticos, os seus fundamentos teóricos, não deveriam estar atrelado a qualquer movimento político-partidário, assim, fugindo a rótulos ‘governistas’ ou ‘oposicionistas’, funcionando como uma estrutura “neutra” e unicamente direcionada para o progresso e para os interesses populares.

De fato, vários Comitês Democráticos Populares surgiram pela cidade, especialmente nos espaços com maiores precarizações, tendo em vista, a esperança dos próprios habitantes tentarem resolver as suas problemáticas e promoverem as melhorias das suas condições de vida.

Assim, os espaços das favelas também conquistariam progressivamente um corpo expressivo de autonomia política ao promover processualmente auto-intervenções   sócio-espaciais, seja através dos Comitês Democráticos Populares ou de outras formas de organização e ativismos populares que surgiam na cidade[6]. Portanto, estes movimentos, a partir da práxis social, produziram um processo de reconhecimento de autoconsciência de suas realidades, suas causas e o desejo de transformação. Estas questões puderam ser claramente detectados sobre os múltiplos aspectos da realidade social nas reportagens do periódico, A Tribuna Popular[7].

Sobre as questões Habitacionais:

“Não habitamos casas: superlotamos barracões de madeira e lata, que, em geral, nós mesmos construímos com os materiais que podemos arranjar: Caixas, tábuas, pregos, telhas, zinco e barro, raramente tijolos. Nos barracões não há espaços, nem água, nem luz, nem esgotos e portanto, podemos dizer sem exagero, não ha higiene, nem saúde, nem ar!.(...)” (Tribuna Popular, 10-08-1946, p.4)

Sobre as necessidades de água:

“A falta de água é um dos principais problemas aqui no parque. Raro é o dia em que a “bica” atende o nosso apelo.(...) As mulheres ficam em posição de sentido com a lata d’água na cabeça. A falta  d’água aqui é tão grande que nós somos obrigados a lavar a nossa roupa dentro de um pequeno rio, cujas águas recebem a sujeira dos canos de descarga.(...)” (Tribuna Popular, 27-09-1946, p.4)

Desta maneira, as reportagens revelavam os níveis de precariedade e desproteção sócio-espacial enfrentada pelos habitantes das favelas cariocas, ao mesmo tempo em que visibilizavam as realidades sofridas e que deveriam ser modificadas. Contudo, muitas foram às tribulações para a transformação das problemáticas enfrentadas, visto principalmente a falta de recursos materiais para o desenvolvimento das ações. Esta realidade pode ser constatada a partir da sede do Comitê Democrático Popular do Morro do São Carlos, mas que também poderiam ser aplicados a outros espaços populares.

“A sede do Comitê Democrático do Morro do S. Carlo, situada à [...] Rebelo, n°451, está instalada num barracão feito de tabuas, semelhante a milhares de outros barracões residências existentes naquele morro. Um grupo dos moradores mais queridos, de S. Carlos, resolveu fundar comitê para lutar pelo melhoramento do morro em que nasceram eles e continuam nascendo seus filhos. Teodoro José Luiz, Nilo dos Santos, Arnaldo Carvalho, Nequinha, Osvaldo Manoel da Luz, João Rabelo e outros foram os pioneiros. Eles sabiam e sentiam as necessidades do lugar. Todos se queixavam da falta d’água; era urgente o calçamento das ruas principais e a cobertura dos esgotos; era imperioso estalar um posto médico na redondeza; era indispensável abrir uma escola para alfabetizar adultos e crianças.” (Tribuna Popular,07-07-1946,  p.4)

Contudo, através de permanentes e solidárias ações internas, ou seja, entre as populações moradoras das favelas, estas realidades foram sendo transformadas progressivamente, como puderam ser constatadas, por exemplo, na favela do Sampaio-Jacaré, aos quais foram reportadas mais uma vez pelo periódico A Tribuna Popular:

“Os moradores do morro do Sampaio há anos vem lutando para conseguir a instalação de torneiras d’água no sopé do morro, sem qualquer resultado. Há cinco meses resolveram fundar a União Pró-melhoramentos do morro do Sampaio, para, juntos, trabalharem pelas reivindicações de necessidades de mais imediata para a população daquele morro. E dentre todas, sobrevalece a instalação de bicas onde pudesse o morador abastecer-se da água indispensável às suas necessidades e de suas famílias. Com a cooperação do Comitê Democrático progressista do Sampaio-Jacaré, do qual se tornou sub-comitê a União Pró-melhoramentos conseguiu domingo passado a sua primeira grande vitória; foram inauguradas duas bicas no sopé do morro. Correram por conta dos moradores as dispensas do material e de instalação. Dando lhes assim uma significativa prova que quanto pode o povo unido e coeso.” (Tribuna popular. 25-10-1945, p.4.)

Assim, estas mobilizações/organizações políticas nas favelas se configuraram como espaços políticos funcionais, pois serviram “freqüentemente de rede de proteção, tanto do ponto de vista econômico quanto em relação aos riscos de dessocialização determinados pela pobreza”. Esta relação no caso das favelas, acabou de certo modo protegendo e auxiliando suas populações, convergindo-se como um componente aglutinador contra a marginalidade, ou pelo menos na diminuição desta, pois a própria relação entre os moradores das favelas promoveram em alguma instância a redução dos níveis de vulnerabilidades do/no corpo social, pois as intra-relações sócio-espaciais aumentavam as redes de solidariedades e conseqüentemente a redução das mazelas sociais.

Portanto, as populações das favelas que inicialmente estavam interessadas através das mobilizações e com o intuito de garantir melhorias infra-estruturais no plano das habitações, água encanada, pavimentação, sistemas de esgoto, entre outros benefícios do componente urbanístico, passaram a galgar também melhorias sobre outros aspectos políticos, como a educação.

Sobre este aspecto, sabemos que historicamente se constituiu como um importante instrumento diferencial nas dimensões do poder e neste período não foi diferente. A constituição “democrática” de 1946, em relação aos direitos políticos, estabelecia que o direito ao voto estaria associado diretamente à condição de alfabetizado. Esta condição excluía uma grande parte da população brasileira que se encontrava em situação de analfabetismo. O que compreendia uma parte considerável da população favelada, que se encontrava impedida de votar e exercer sua cidadania[8], reafirmando sua marginalização política na esfera formal-constitucional brasileira.

Desta forma, uma forte campanha de alfabetização passou a fazer parte da realidade nas favelas cariocas, isto porque se fazia necessário para além dos interesses das populações das favelas, mas também nos planos do Partido Comunista do Brasil pela disputa do campo político municipal, sobretudo por conta das eleições municipais de 1947 que estavam por vir, e que o Partido Comunista, agora, enxergava nas populações pobres e marginalizadas também na condição de votantes, um fator diferencial para a conquista do espaço político institucional. Sobre as organizações e mobilizações no campo político, articulado às questões de educação-alfabetização, convém citar as seguintes reportagens:

“O Comitê Democrático Progressista Sampaio-Jacaré (...) está desenvolvendo uma intensa propaganda de suas finalidades entre os moradores de Sampaio e Jacaré, quer através de folheto, quer através do trabalho construtivo de seus debates nas reuniões que realiza semanalmente. (...) Juntamente com seu curso de alfabetização, o Comitê Democrático Progressista Sampaio-Jacaré, levará também a efeito a realização de palestras educativas e culturais, esclarecendo a seus filiados e aos moradores em geral dos dois subúrbios como se vota; o que é o voto; a necessidade da politização para apressar a marcha democrática dos nossos destinos, etc.”.(Tribuna Popular,29-07-1945, p.4.)

Assim, os avanços conquistados através de ações que progressivamente intensificavam os seus níveis de complexidade, faziam com que as favelas se transformassem radicalmente. Se antes, as ações constavam apenas numa relação de intervenção infra-estrutural e depois sobre as questões educacionais e de serviços de um modo em geral, passavam agora a se projetar politicamente para além do espaço das favelas, ou seja, iniciava-se articuladamente com o Partido Comunista do Brasil uma (des)reestruturação político-espacial, pela qual a favela, conquistaria um espaço que jamais havia possuído.

De fato, a partir das organizações cada vez maiores entre os moradores das favelas, através dos Comitês Democráticos Populares, o Partido Comunista do Brasil ou outros espaços políticos, se intensificaram ações e fortalecimentos. Assim, as populações das favelas engajaram-se principalmente nas esperanças possíveis de mudanças através das eleições e da força do voto.

Esta realidade pode ser verificada, por meio das declarações de alguns populares locais, como foram os casos de Nelson Moreira, então funcionário da companhia ferroviária Central do Brasil, Ex-Combatente da Força Expedicionária Brasileira e morador do Morro da Mangueira; Tarcília Martins, moradora do Morro do Capinzal; Maria da Silva, moradora do morro de Torres Homem. Conforme segue as narrativas a seguir:

“Temos de nos organizar e lutar pacificamente mas decididamente pelos nossos direitos. Não é possível que continuemos a ser explorados desse jeito, sem um protesto sequer. E o governo tem o dever de olhar pela nossa situação” (Tribuna popular – 16/11/1946, p.4).

“Temos aqui três bicas. Existia uma única, mas nós fizemos arrecadação e conseguimos obter um dinheiro para botar mais duas. Mas isso não é nada. O que precisamos é de casa. Estamos como bichos. O Sr. pode ver, famílias cheias de filhos vivendo num quarto. Ouvi dizer que o Partido Comunista tem um plano para isso. Eu só acredito nesse partido, se os candidatos forem eleitos, temos a certeza de que nesses terrenos abandonados a prefeitura construirá casas para o povo”. (Tribuna Popular, 17-11-1946, p.4)

“O morro de torres homem está com muitas esperanças nesta eleição do dia 19. Sabemos que o resultado dela depende o nosso destino e igualmente do morro dos macacos, aqui do lado. lá mora Pedro de Carvalho Braga, que muita influência tem nesta zona. É admirado pelo modo com que fala dos nossos problemas. Apresentando soluções práticas para os mesmos. posso afirmar que terá a maioria dos votos daqui. Atualmente o nosso melhor desejo é que a chapa popular triunfe no dia 19 para o bem do povo carioca e particularmente dos dois morros.” (Tribuna popular, 11-01-1947, p.4)

Assim, os processos de aproximação e carisma entre o Partido Comunista do Brasil e as massas começaram a se expandir. Inúmeras reportagens de apoio direto e esperanças nas propostas de vitória do Partido Comunista do Brasil passaram a ser marcas cotidianas do periódico a Tribuna Popular, como por exemplo: “Nas eleições de janeiro estão as esperanças do povo da mangueira”[9]; “‘capinzal de maracanã’ confia nos candidatos populares”[10], “O povo do morro das acácias aguarda confiante as eleições”[11], “Mangueira espera a vitória do partido de Prestes”[12].

Este conjunto de fatores propiciou um progressivo fortalecimento do Partido Comunista no campo político nacional, principalmente se levarmos em consideração as anteriores eleições de 1945, onde o partido conquistou 9% do total dos votos e uma vaga para o senador, com Luiz Carlos Prestes. Resultando assim, a partir óptica dos grupos hegemônicos uma emergência real da esquerda e dos grupos populares nas dimensões de disputa pelo poder.

Deste modo, as favelas passavam a representar um novo risco, pois se antes se constituía enquanto um espaço da marginalidade, onde o vagabundo e os pobres de um modo geral eram sujeitos apolitizados, o que caracterizava um espaço de riscos sociais, passavam a se transformar num espaço de riscos políticos pelas próprias “articulações perigosas” com os movimentos radicais de esquerda.

Assim, pela lógica dos grupos hegemônicos se fez necessário intervir, legitimando-se, sobretudo, enquanto slogan principal, a seguinte frase: “É necessário subir o morro antes que deles desçam os comunistas”[13]. Conforme pode ser constatado, através do documento confidencial enviado do Palácio do Catete[14] ao então Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara:

Tenho pensado muito em vossa eminência nestes últimos dias. Não desejei, porém interromper para uma palestra o tempo de vossa eminência, devotado a tão alto ministério.

O assunto, porém, é de relevância. No domingo, realizam-se as primeiras eleições municipais, no estado do Rio de Janeiro. Não estou interessado em política partidária, nem escreveria a vossa eminência, mesmo que o estivesse.

 Trata-se, porém, de fato que transcende do pleno partidário para se projetar no plano social. Os comunistas estão organizando o que chamam ‘O Cinturão Vermelho’ em torno do Distrito Federal. Querem tomar conta das prefeituras de Petrópolis, Duque de Caxias, Nilópolis, São Gonçalo, etc...etc. É candidato na primeira delas Dr Yedo Fiúza. Os Partidos estão entrando em acordo com os comunistas. Parece-me que não é lícito a um católico votar em candidatos bafejados pelos comunistas. Há necessidade de uma palavra de advertência. E só quem tenha autoridade, pode dá-la (...) O senhor presidente da república reconhece a minha iniciativa. As primeiras eleições – repito – são no domingo, em Petrópolis. Há candidatos comunistas, aliados dos comunistas e candidatos sem ligações com êles. Parece lícita uma bôa escolha por partidos católicos. Urge pois, uma orientação que estará nas mão da Igreja. Creia vossa eminência na minha admiração e na minha confiança de Brasileiro

José Pereira Lima.  (Documento Confidencial – Palácio do Catete. 26-10-1947)[15]

As então eleições municipais de 1947 foram conforme as expectativas, tanto na esperança das massas, quanto nos anseios e temores dos grupos hegemônicos. A consolidação da esquerda nos pleitos municipais teve como ponto máximo, o Distrito federal, onde 18 vereadores foram eleitos. Entretanto, cabe salientar que esta presença do Partido Comunista do Brasil seria impugnada em seus exercícios. Este resultado acelerou o processo de retorno a ilegalidade do Partido Comunista por movimentos autoritários, e foi assim que fez, o então Presidente da República e general do Exército Brasileiro, Eurico Gaspar Dutra, perante o risco político na escala nacional, assim como diante de uma nova configuração geopolítica mundial, a Guerra Fria.

Do mesmo modo, junto a configuração interna territorial, sobretudo, na cidade do Rio de Janeiro, instituiu-se através de uma articulação entre a Igreja Católica, na figura de Dom Jaime de Barros Câmara, e o Estado, na figura do prefeito do Distrito Federal, Hildebrando Góis, a Fundação Leão XIII[16].

Esta Instituição, teoricamente, teria enquanto “ofício” intervir nos espaços das favelas para garantir as melhorias nas condições materiais e objetivas das populações existentes em situação de precarização de vida nas favelas. Sua criação foi fundamentada a partir de  uma resposta direta ao processo de precarizações existente no interior destes espaços, assim, como um processo de recuperação do poder espacial do Estado, através de sua intervenção político-social.Conforme segue a reportagem do Periódico matutino O Globo:

Instituída a Fundação Leão XIII

O chefe do governo assinou decreto criando essa organização de amparo às populações dos morros e das favelas.

O presidente da republica assinou um decreto instituindo uma fundação de assistência social denominada LEÃO XIII. Nos “considerando” o decreto frisa o dever indeclinável do governo em acudir as populações localizadas nos morros e nas favelas “cujas dificuldades topográficas” as privam dos serviços assistenciais de que gozam outras zonas da capital federal. (...) (O Globo, 23-01-1947, p.6.)

Deste modo, um conjunto de ações e práticas foram desenvolvidas no interior das favelas cariocas, assim como, profundas transformações ocorrerão mediante estas práticas, nas quais a Igreja Católica, sobretudo, será a grande protagonista deste processo.


As ações da Fundação Leão XIII e suas consequências sócio-político-espaciais

“O que, porém, o Estado e a sociedade não podem nem devem ignorar, é essa condição de miserabilidade em que vive quase um terço da população da nossa capital. Minorar-lhes os sofrimentos físicos e morais, dar-lhes noções de higiene e educá-la para saber viver em outro ambiente social, e ser útil  à sociedade, eis o nosso principal escopo.”[17]

A Igreja Católica através da Fundação Leão XIII significou um conjunto de suas ações no interior das favelas cariocas a partir dos Centros de Ações Sociais[18]. Estes Centros se materializaram como os principais espaços de planejamento, organização, administração e principalmente, na realização das atividades políticas e sociais no interior das favelas cariocas.

Sobre os Centros de Ações Sociais e suas questões arquitetônicas, inúmeras eram as dificuldades, tendo em vista a declividade topográfica na maioria das favelas e as dificuldades na realização nas obras de engenharia, pois necessitavam de obras infra-estruturais, como era o caso das construções de muros de arrimo[19], sistemas de bombas hidráulicas e encanamentos de água para o deslocamento até o alto do morro. Por sua vez, sua constituição física era basicamente feita em madeira[20]. A justificativa para que estes Centros fossem espaços pré-moldados e sua construção fosse em madeira e não em alvenaria era por conta de uma estratégia da própria Fundação em poder esquivar-se das inúmeras críticas relacionadas a um possível papel de fixador das favelas no Rio de Janeiro.

A questão da saúde, ou melhor, a falta dela no interior das favelas cariocas se constituiu concomitante com o próprio processo histórico carioca. Questões como a falta de saneamento básico (água tratada e encanada, sistemas de esgoto, pavimentação e coleta de lixo), a dificuldade do acesso e a ausência de unidades de saúde médico-hospitalares, assim como questões da desnutrição infantil não eram desconhecidas pelos governantes e por isto foram os pontos fundamentais das respostas e das ações da Fundação Leão XIII através dos seus Centros de Ações Sociais. Nesses Centros foram implantados inúmeros serviços na esfera da saúde[21], com a presença de profissionais especializados, como médicos, farmacêuticos, dentistas e dietistas[22], que se encontravam presentes e que promoviam o atendimento das populações nos morros e favelas assistidas pela Fundação.

Nas favelas onde trabalha a Fundação Leão XIII, há no Centro Social, um serviço médico cuja extensão varia com o tamanho da favela. No Cantagalo, o Centro tem dois médicos, embora não muito assíduos, uma enfermeira, de tempo integral, e 5 visitadoras. Os médicos encaminham ao posto clínico geral e aos serviços médicos já articulados com a Fundação. O centro tem telefone e o serviço é equipado com uma padiola. Para os casos urgentes, chamam o pronto socorro do “Miguel Couto”. No São Carlos, para uma população de 28.000 favelados, só há o centro da Fundação e, em caso de urgência o pronto socorro do Hospital Souza Aguiar. Na Rocinha, o serviço médico tem lactário e farmácia; possui dois clínicos, um pediatra, dois dentistas, duas enfermeiras, uma dietista, dois auxiliares de dentista e um responsável pela farmácia. Esse serviço médico atende a mais ou menos 15.000 pessoas, correspondendo às 3.000 famílias matriculadas no Centro. (Relatório Sagmacs, 1960, p.25)

Um dos pontos chave da atuação Fundação Leão XIII em relação às ações sociais de saúde era a preocupação com a faixa etária infantil. Esta questão se dava, sobretudo, por conta de que as crianças configuravam-se previamente como o grupo mais vulnerável e indefeso a todas as intempéries existentes no interior das favelas e de suas condições precárias, assim como por conta de uma sensibilização social, disseminada no seio da sociedade e pela própria ideologia cristã[23].

Cada Centro de Ação Social possuía ambulatórios que promoviam consultas, exames, pequenas cirurgias e atestados médicos para os adultos das favelas. Além dos atendimentos em escala local, nos casos que estivessem para além das condições infra-estruturais dos próprios Centros, ocorriam encaminhamentos para internações e cirurgias nos hospitais da rede pública de saúde, previamente estabelecidas por um acordo institucional.

Por último e não menos importante, o serviço de saúde da Fundação Leão XIII disponibilizava assistência médico-dentária, o que, para o período, constituía-se como um avanço, visto que graves eram os problemas de saúde bucal, inclusive no tocante ao próprio relatório em relação a inúmeros casos de abscessos dentários. Deste modo, a Fundação promovia extrações, obturações, além de programas de higiene dentária.

Assim, as ações médicas no interior das favelas configuraram-se de maneira significativa, tanto do ponto de vista qualitativo como do ponto de vista quantitativo, visto que, segundo os dados estatísticos da Fundação Leão XIII, no período compreendido entre 1947 e 1954, por exemplo, foram atendidos 1.486.018 pessoas nos serviços médicos e distribuídas 4.782.924 de mamadeiras nos lactários. Deste modo, podemos afirmar que ações da Fundação promoveram significativamente uma melhoria nas condições de vida nos aspectos de saúde das populações moradoras dos morros e favelas assistidas.


Educação

Pois estamos certos de que o “problema da favela” é eminentemente o problema da falta de educação. Doenças, analfabetismo, ideologias exóticas, crimes, contravenções, prostituições, etc., são males de um povo que vem vivendo, anos a fio, sem o benefício de uma palavra esclarecedora e amiga, que só a escola, na sua mais alta concepção, pode dar (Morros e Favelas – Como trabalha a Fundação Leão XIII: Notas e relatórios de 1947 a 1954. 1955, p.31)

A questão educacional para Fundação Leão XIII compreendia como a principal forma para resolução dos problemas nas favelas cariocas. Sua concepção de educação consistia numa dimensão para além da formalidade escolar, ou seja, uma compreensão complexa e articulada, direcionando amplamente para questões de uma educação do ponto de vista da moral e dos bons costumes, física e recreativa, e também uma configuração imprescindível da educação religiosa.

A grande proposta da Fundação Leão XIII enquadrava-se principalmente com a educação infantil, pois segundo seus pressupostos, somente pelas novas gerações era possível resolver os problemas das favelas e assim todas as ações eram inicialmente projetadas para a assistência social das crianças e jovens. Os espaços educacionais da Fundação estavam localizados nos próprios Centros de Ações Sociais e eram basicamente divididos em Escola maternal, para crianças de 2 a 4 anos; Jardim de Infância, para crianças de 4 a 7 anos e Ensino Primário, curso diurno para menores de 7 a 14 anos.

A Fundação Leão XIII através de unidades escolares nos Centros de Ações sociais buscou garantir todos os meios de condições e acesso ao direito à educação nas favelas, além de tentar estabelecer uma certa qualidade ou ao menos uma relação de equiparidade educacional para com as populações das favelas, pois o projeto educacional desenvolvido nos seus centros seguia de maneira prescritiva o modelo desenvolvido pela Prefeitura do Distrito Federal, com o qual a Fundação se orgulhava em colaborar. Outro ponto importante para o modelo desenvolvido pela Fundação estava na questão da alimentação, na figura da merenda escolar.

Os alunos se aglomeram em torno da professora que segura o bujão. A distribuição é farta. os recipientes variam de tamanho: copos pequeninos, xícaras maiores, medidas de meio litro e até litro. Encontram-se por perto algumas mães, ficam paradas, sem dizer nada, assistido à cena e algumas esperando pela sobra dos bujões. A professora usa uma canequinha de alumínio que serve de medida para poder fazer uma distribuição mais justa. Para cada criança um copo normal, que equivale a 250 grs. Se querem mais, repetem. quando sobra leite, este é distribuído entre as mães que ficam em torno olhando o bujão. (Relatório Sagmacs, 1960, p.29)

Além da educação básica de alfabetização, a Fundação também promovia, enquanto complementaridade, a educação profissional, denominada de ensino artesanal. Estas aulas funcionavam dentro dos próprios Centros e possuíam “oficinas de tecelagem, calçado, madeira, cerâmica, estofamento, encadernação e de outras atividades leves, adequadas à idade escolar”[24], sobretudo, para um encaminhamento da qualificação e o aprendizado para uma inserção estável no mercado de trabalho[25]. Neste sentido, o relatório SAGMACS fez uma extensa observação a respeito dessas atividades no desenvolvimento dos trabalhos da Fundação Leão XIII:

Um dos problemas mais graves da favela é o encaminhamento dos menores na vida pelo aprendizado de uma profissão. A fundação Leão XIII mantém, em algumas favelas, escolas artesanais que visam a suprir essa deficiência. Tratando-se de importante experiência pedagógica, pareceu-nos interessante conhecer, pelo menos através de uma unidade, a maneira como está sendo feita. Na Barreira do Vasco, o Centro Social da Fundação mantém uma escola artesanal deste tipo para meninos e meninas.(...) A escola atende a duas turmas: a da manhã, que funciona das oito às doze horas com um intervalo de meia hora, às dez, e a da tarde, que funciona das 13 às 17 horas, com um intervalo às 15.(...) O  tempo médio de permanência na escola é de um a dois anos. (...) (Relatório Sagmacs, 1960, p.30)

Outra prática recorrente da Fundação Leão XIII era a educação física e recreativa, a qual seria um canal de sociabilidade, ou seja, um meio de “distrair educando”[26]. Para isto, a Fundação organizava inúmeros eventos esportivos nos próprios centros, além de ser anualmente organizadas as Olimpíadas da Fundação Leão XIII[27], em que todas as favelas assistidas pela instituição disputavam entre si uma taça com o nome da instituição:

A Olimpíada Esportiva é uma festa eminentemente popular que congrega, numa convivência sadia, dirigentes e assistidos da Fundação Leão XIII. A esta festa, que geralmente se tem realizado em campo esportivo cedido amigàvelmente (já utilizamos o campo do Fluminense, do Vasco da Gama, o do Corpo de Obuses e o da Light) têm comparecido todos os Centros Sociais e Agências, com Flâmulas, estandartes, bandeiras, numa demonstração pública do alto nível cívico e educacional já atingido pelos moradores de favelas assistidas pela Fundação Leão XIII. Todo o conjunto desfila, garbosamente, ao som de uma marcha, sob os aplausos calorosos dos que assistem, inclusive o Sr. Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro. (Morros e Favelas – Como trabalha a Fundação Leão XIII: Notas e relatórios de 1947 a 1954. 1955, p.49)


Urbanidades

Outra preocupação da Fundação Leão XIII em relação as questões sociais balizava-se nos serviços de melhoria urbana.  O processo de urbanização se constituía como um elemento fundamental em direção ao interior das favelas, visto que esta orientação era parte integrante da política de inserção aos acessos e na transformação das favelas em espaços mais humanos, e para isto, fazia-se necessário promover condições mínimas de sobrevivência para com as populações, colocando-as em condições infra-estruturais como as existentes em outras áreas da cidade.

O desdobramento político no plano urbanístico da Fundação Leão XIII balizou-se através de duas propostas para a resolução dos processos de favelização. A primeira delas e que, conseqüentemente, se tornou hegemônica, consistia num plano de desenvolvimento urbano local (infra-estrutural), promovendo melhorias nas favelas de maneira gradual e possuindo a consciência da necessidade de um longo período de trabalho. A segunda vertente desdobrava-se na possibilidade da promoção de projetos para além dos espaços das favelas, como a construção de conjuntos residenciais, articulados com órgãos governamentais, como a Fundação Casa Popular e até mesmo por iniciativa de classes, como os Institutos de Assistências e Pensões.

Dessa forma, por meio principalmente das ações buscava-se resolver o problema da favelização através das melhorias que acabavam conflituando com o próprio Estado e grupos hegemônico, tendo em vista que a Fundação Leão XIII possuía seus pressupostos ideológicos marcados pelo anti-remocionismo.   

Assim, estas condições de defesa aos espaços das favelas eram somente contrariadas quando existia em andamento um processo de complementação da política da ação social católica[28] ou quando o peso das pressões dos capitais imobiliários, especulativos e da intervenção do Estado e/ou dos grupos hegemônicos se fazia presente e irreversível[29]

Não adiantam certas soluções simplistas, daqueles que julgam que só se podem acabar com as favelas do Rio de Janeiro, enviando-se todos os favelados para o campo, nem muito menos podem ser levados em consideração as opiniões dos que se referem às famílias que a desgraça levou para a vida miserável dos barracos dos nossos morros, subestimando o seu valor humano e sua condição cristã de irmãos nossos que devemos amar, de saúde, educação, casos sociais, problemas de família (registro dos filhos, casamento, etc.) (Morros e Favelas – Como trabalha a Fundação Leão XIII: Notas e relatórios de 1947 a 1954. 1955, p.7)

De tal maneira, inúmeras ações para melhorias nos planos urbanísticos foram desenvolvidas, sobretudo, na esfera do saneamento básico. Esta questão, historicamente presente na cidade do Rio de Janeiro, foi extremamente problematizada pela própria Fundação, pois para ela, as precariedades se caracterizavam como um verdadeiro entrave para a humanização e desenvolvimento das favelas, além do fato de que articulavam desde dimensões estéticas, funcionais e, principalmente, questões relacionadas à saúde. Segundo a própria Fundação Leão XIII:

A falta permanente de água, e a falta de escoamento apropriado para as águas pluviais, e os despejos domésticos de tôda espécie, criam em tôrno das casas uma situação verdadeiramente insuportável e, na favela, um ambiente pestilencial difícil de ser descrito (Morros e Favelas – Como trabalha a Fundação Leão XIII: Notas e relatórios de 1947 a 1954. 1955, p.25)

Contudo, A Fundação Leão XIII além de promover a melhoria nas condições sociais e de intervir sobre as ações comunistas no interior das favelas, possuía o papel de impedir o crescimento desordenado, ou seja, a expansão física dos morros e favelas. Para isto, houve uma determinação imposta junto aos moradores das favelas, onde toda e qualquer modificação ou reparos nas habitações deveriam previamente ser comunicados à Fundação Leão XIII, que daria a permissão de consertos e pinturas nos barracos existentes e, caso houvesse uma desobediência por parte do morador infrator, ocorreriam inclusive punições sobre a obra e ao próprio morador. Essas ações foram alvos da análise no relatório SAGMACS, que, diretamente em contato com as populações dos morros e favelas, identificou esta postura autoritária e retrógrada, visto que toda e qualquer melhoria estaria unidirecionalmente centralizada nas mãos da Fundação Leão XIII. Conforme depreende-se do relatório, essa postura desestimulava as ações individuais dos próprios moradores em relação às melhorias infra-estruturais de suas habitações e, conseqüentemente, promovia a insatisfação dos moradores locais.

As autoridades desejam que as favelas melhorem, se urbanizem; ao mesmo tempo proíbem que os favelados melhorem seus barracos; e como a administração não possui recursos suficientes para a obra de tamanha envergadura tudo fica na mesma (Ibidem, p.23)

Desse modo, o conjunto de medidas da Fundação Leão XIII desdobrava-se de maneira extremamente complexa e, muitas vezes, contraditória. Suas práticas, ao mesmo tempo em que se constituíram como um verdadeiro instrumento de controle e de coerção nos espaços das favelas, ou seja, como mais um aparelho repressor do Estado, também proporcionava e garantia efetivamente melhorias nas condições sociais junto às favelas assistidas e ocupadas pela Fundação Leão XIII, principalmente pelo fato de que a Fundação Leão XIII compreendia as próprias favelas e suas populações, numa perspectiva extremamente humanista e não marginalizada, como o demonstrava a maioria das ações e gestões até então existentes.  


Considerações Finais: As Consequências Das Ações Da Fundação Leão XIII

Ao longo deste trabalho, buscou-se analisar e compreender a complexidade processual dos motivos que desencadearam o papel da Igreja Católica através da criação da Fundação Leão XIII, bem como as ações que tal instituição promoveu no interior das favelas — na perspectiva de um ordenamento sócio-espacial e de suas consequências do ponto de vista político-espacial e das mobilizações e organizações sociais. Destaquemos sinteticamente alguns aspectos da reflexão empreendida e suas conclusões.

Como dito anteriormente, a Fundação Leão XIII, no período compreendido entre 1947 e 1962, sob orientação e gestão da Igreja Católica — sobretudo nas figuras de Dom Jaime Barros de Câmara e Dom José Távora — prestou assistência a 33 favelas[30] no Rio de Janeiro, através dos Centros de Ação Social, onde serviços de saúde, educação, alimentação, apoio jurídico e processos de urbanização e urbanidades se fizeram presentes.

Estes serviços, de fato, promoveram melhorias e avanços significativos nas condições de vida das populações dos morros e favelas, antes abandonadas sócio-historicamente. No entanto, a presente pesquisa indica que, concomitantemente às melhorias proporcionadas pelas ações da Fundação Leão XIII, funcionaram estrategicamente, sob os auspícios da Fundação, diversos dispositivos de anulação dos ativismos políticos e sociais libertários — como foi o caso dos Comitês Democráticos Populares e de outras formas de organização que floresciam no interior das favelas. Tais movimentos eram inseridos em uma política de ruptura política — por força de uma lógica proposta ou imposta pelo Partido Comunista do Brasil, dentre outros agentes, e foram combatidos permanentemente no campo político.

De fato, A fundação Leão XIII possuiu um importante destaque no processo Sócio-Histórico-Espacial carioca no período específico da análise, onde diante de suas ações, orientadas pelas forças hegemônicas modificou a realidade de milhares de pessoas na cidade do Rio de Janeiro.

Contudo, em meio a todo um conjunto de transformações nos espaços das favelas e diante das condições adversas, sendo elas materiais ou políticas, seus moradores jamais se calaram ou imobilizaram. Exercendo sempre um forte papel na produção do espaço.

 

Notas

[1] Agradeço ao Professor Floriano José Godinho de Oliveira pelas longas horas de interlocução e apoio intelectual para o desenvolvimento deste trabalho.

[2] Sabemos o quanto é complexo a definição e conceituação do espaço da favela. Este espaço social ganha esta nomenclatura, sobretudo, na cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. De fato, compreendemos o espaço da favela, mas também de outros espaço com similaridades sócio-estruturais (Villas misérias, Barriadas, Bindovilles, Gecekondu, Guers, Slums,etc.) como materializações sócio-espaciais, principalmente no urbano, marcadas por déficits e/ou problemas de níveis estruturais, ou seja, resultado das contradições e desigualdades de uma determinada realidade, onde uma parte da população desafortunada, pela impossibilidade de habitações formais, seja por renda ou pela inação do Estado, constroem suas habitações de maneira precária. 

[3] Foi presidente do Brasil de maneira autoritária no período de 1930 até 1945 e eleito democraticamente entre 1951 e 1954, quando ocorre a sua morte

[4] O Partido Comunista do Brasil foi criado no dia 25 de Março de 1922. Sua história foi marcada por permanentes movimentos cíclicos de legalidade-ilegalidade e principalmente pela resistência de continuar ativo junto as causas sociais.

[5] Os Comitês Democráticos Populares organizavam-se praticamente em duas vertentes: A primeira estava no campo das lutas trabalhistas, sobretudo nas bases espaciais das fábricas, sindicatos e outros setores laborais. A segunda mantinha uma relação espacial com o lugar, ou seja, na dimensão dos bairros, sendo eles principalmente localizados em espaços que apresentavam precarizações infra-estruturais do urbano, como as favelas ou áreas localizadas nos subúrbios. 

[6] Podemos destacar os espaços de Grêmios Recreativos e o surgimento embrionário das Associações de Moradores, mesmo que não materializadas com este nome específico no período.

[7] O periódico matutino foi criado no dia 22 de Maio de 1945. Sua criação estava diretamente ligada aos propósitos instrumentais do Partido Comunista do Brasil. Sua escala de atuação atingiu o nível nacional e nos períodos de maior ressonância o jornal chegou a circular 50.000 exemplares em um único dia. Do ponto de vista das classes populares, estendeu-se desde as populações precarizadas nos campos e subúrbios, até as das áreas favelizadas, nos quais explanavam seus problemas, reivindicações e vitórias através dos Comitês Democráticos populares ou outros espaços populares.

[8] O direito ao voto para com os analfabetos veio somente a se constituir através da lei nº 7332, de 1º de julho de 1985 e publicada em diário oficial no dia 2 de julho de 1985. Esta realização e avanço nas relações democráticas se constituíram novamente através de um novo período de redemocratização brasileira, onde o país ficou por 21anos de regime autocrático. Para visualizar esta lei na integra. encontra-se disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1980-1988/L7332.htm Último acesso em: 10:26 do dia 16/06/09

[9] Tribuna Popular. 16-11-1946, p.4.

[10] Ibidem, p.4, 17/11/1946.

[11] Ibidem, p.4, 10-12-1946.

[12] Ibidem, p.4, 12-01-1947.

[13] SAGMACS (Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais) Aspectos humanos da favela carioca. Suplemento especial do Estado de São Paulo, Parte I. p.38.

[14] Caracterizou-se enquanto sede do governo e morada do Presidente da República do período de 1897 até 1960, quando ocorreu a transferência planejada da sede governamental para Brasília, no então, Palácio do Planalto.

[15] Documento pertencente à Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Caixa 40/ série – Pasta temática pt.

[16]  Instituída através do decreto presidencial nº 22.498 de 22 de janeiro de 1947.

[17] Província Eclesiástica. Livraria Agir Editora: Rio de Janeiro – Belo Horizonte. 1948, p. 193.

[18] Ao todo foram criados 6 Centros de Ações Sociais e 2 Agências Sociais Provisórias, nas quais se localizavam nas seguintes favelas: Centro de Ação Social 1 - Barreira do Vasco - “Cardeal Jaime Câmara”; Centro de Ação Social 2 - Morro de São Carlos - “Presidente Eurico Gaspar Dutra”; Centro de Ação Social 3 - Morro do Jacarezinho - “Carmela Dutra”; Centro de Ação Social 4 - Morro dos Telégrafos - “Oswaldo Cruz”; Centro de Ação Social 5 - Morro do Salgueiro – “Padre Anchieta”; Centro de Ação Social 6 - Rocinha - “São José”; Agência Social Provisória 1 -  Praia do Pinto - “Ana Nery” e a Agência Social Provisória 2 – Cantagalo – “Machado de Assis”.

[19] Configura-se como uma solução de engenharia para estabilizar o terreno, controlando assim, o deslizamento de encostas de áreas de alta declividade, como nas inúmeras áreas onde se fixaram as favelas na cidade do Rio de Janeiro.

[20] Pinho do Paraná (Araucaria angustifolia)

[21] Eram prestados os serviços de pediatria e higiene infantil, lactários (distribuição diária de alimentação para crianças) Clínica Geral, Dentista e Farmácia.    

[22] O que seria denominado atualmente como o profissional do campo da nutrição.

[23] Cabe ressaltar que, segundo o IBGE – Conjuntura econômica, ano VI n.05, Rio de Janeiro, na tabela referente a população presente por sexo e grupos de idade nas favelas cariocas, a população entre 0 e 19 anos de idade detinha 45,7 % da população total, o que revelava as enormes taxas de fecundidade e a questão da maioria de jovens nestes espaços. Estes dados referentes à demografia estão presentes no Relatório SAGMACS, p.10.

[24] Ibidem. p.32.

[25] Existiam também outros modelos de educação profissionalizantes propostos pela Fundação, como era o caso dos cursos de cozinha, domésticas, enfermeiras e corte e costura, todos destinados pra o sexo feminino.   

[26] Morros e Favelas – Como trabalha a Fundação Leão XIII: Notas e relatórios de 1947 a 1954, p.67; p.33. Segundo a Fundação Leão XIII, estas práticas ajudavam no espírito da disciplina, respeito e lealdade nas populações das favelas, ou seja, questões de bons costumes.

[27] Entre as atividades de competição destacavam-se: o futebol, o voleibol, boliche, pingue-pongue, malha, cabo de guerra, damas e futebol de salão.

[28] A cruzada São Sebastião foi criada em 1955. sua proposta foi o de promover o processo de remoção de 900 famílias da favela da Praia do Pinto localizada entre a Lagoa Rodrigo de Freitas, o bairro de Ipanema, do Leblon e da Gávea, todos na zona sul do Rio de Janeiro, área de maior valorização espaço-imobiliário da cidade. A proposta constituiu na construção de conjunto de apartamentos na própria área, ou seja, uma visão anti-remocionista de grandes distancias geográficas e suas relações com a dimensão do trabalho, transportes e afetividades como o lugar, garantindo, assim, uma vida digna para as populações marginalizadas das favelas cariocas. A Fundação Leão XIII inseriu-se neste processo para fazer a catalogação e fichamento das famílias envolvidas e, posteriormente, para intervir em algumas questões de assistência social, como educação e saúde.

[29] O desmonte do Morro do Santo Antônio e, conseqüentemente, a de sua favela no mesmo local foram promovidos na década de 1950 e a Fundação Leão XIII, através de um acordo com a Prefeitura do Distrito Federal, promoveu a transferência das quinhentas famílias e uma pesquisa estatística sobre o perfil populacional.

[30] Segundo a Fundação Leão XIII em seu relatório, a sua assistência estava dirigida a 41 favelas, mas se contabilizarmos, segundo suas próprias informações, conseguimos detectar somente 33. Alguns estudos, descuidados na contagem das favelas, esquecem-se de observar que na página 38 o Morro da Matriz, localizado no bairro do Engenho Novo, está repetido e, por este motivo, acabam afirmando que a Fundação Leão XIII promoveu assistência em 34 favelas.

 

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