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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (54), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

ESCALA E TERRITÓRIO: A PERSPECTIVA DO MUNICÍPIO NO BRASIL

Angela Maria Endlich
DGE/Universidade Estadual de Maringá
amendlich@hotmail.com

Escala e território: a perspectiva do município no Brasil (Resumo)

O município, de forma geral, representa a institucionalização territorial da escala local. Ainda que com denominações e peculiaridades diferentes, pode-se dizer que tal instituição encontra equivalentes nos mais diversos países. Refletir sobre o município corresponde acompanhar a produção e tratamento político da escala local, em especial em um mundo que possui agentes capazes de apropriarem-se de escalas cada vez mais amplas. Destaca-se como se modifica a apreciação da escala local e, por consequência, do município, a partir dos diferentes interesses, seus agentes e possibilidades de alcances espaciais.

Palavras chave: escalas geográficas, escala local, município, Brasil.

Scale and territory: the view of municipal districts in Brazil (Abstract)

The municipal district, in general, represents the territorial institutionalization of the local scale. Although it has different demoninations and peculiarities, it may be affirmed that such institution may be found, equivalently, in several countries. Thinking about the municipal district means to watch the production and political actions in the local scale, especially in a world with agents capables of appropiate themselves of scales more and more extensives. How the approachment of the local scale changes and, as it implies, the municipal district, its concerns, agents and spacial ranges are especially discussed in this article.

Key words: geographic scales, local scale, municipal district, Brazil.


Pode-se afirmar que, de forma geral, existem duas perspectivas de apreciação do município: a que vem de interesses que se organizam em escalas maiores e a que vem de interesses da própria sociedade local, ainda que não homogêneos. A percepção desses dois horizontes evidencia-se quando se olha a realidade da organização territorial do âmbito da escala local. Essa reflexão decorre de pesquisas voltadas ao estudo de áreas não-metropolitanas, polarizadas por pequenas cidades, nas quais a institucionalização da escala local, no caso brasileiro o município, é extremamente relevante, já que consiste em uma das poucas formas em que se expressam projetos e planos, indicando reconhecimento político encontrado nessas áreas. A área concreta que tem servido de base para a pesquisa é a região Noroeste do Paraná, embora nesse trabalho tratemos da questão da escala local e do município com abrangência nacional.  

Temos como propósito nesse trabalho trazer uma leitura da escala local e do município, com base em um olhar que tente escapar do viés centralizador do estado nacional e dos interesses que se configuram atualmente em escalas ainda mais amplas.

Os procedimentos metodológicos correspondem à utilização de dados secundários, bem como prosseguimos com levantamento e revisão teórica de autores que possuem preocupação semelhante. Destacamos como procedimento nessa etapa de pesquisa o acompanhamento e sistematização dos trabalhos realizados no legislativo brasileiro quanto à regulamentação da Emenda Constitucional 15/1996. Além disso, está prevista uma etapa com trabalho empírico em municípios, especialmente aqueles recentemente emancipados na região Noroeste do Paraná. Apresenta-se na sequência, de forma sintética, parte das reflexões resultantes do trabalho.

O texto está estruturado da seguinte maneira: iniciamos o texto sinalizando o horizonte teórico a partir do qual procuramos entender a questão apresentada, apontando a questão da produção e apropriação social das escalas. Em seguida, focalizamos a questão do município enquanto institucionalização da escala local no Brasil e o tratamento político que tal escala recebe, ponderando os significados desse processo. Por fim, sistematizamos a questão da regulamentação constitucional que a matéria tem recebido no âmbito legislativo brasileiro e suas implicações.


A produção das escalas, a escala local e sua apropriação

É fundamental iniciar lembrando que as escalas geográficas são produzidas e estão profundamente vinculadas aos alcances do poder em cada momento histórico. Pode-se dizer que a escala local, formalizada como município por meio das emancipações obtidas do domínio feudal com as cartas comunais, corresponde à primeira escala de atuação do capital, tempo e espaço, em que aparecem os primeiros burgueses. É certo que rapidamente o capital alcançou a escala nacional, para logo em seguida superá-la e atingir escalas geográficas cada vez mais amplas, que possibilitam as atuais referências à mundialização e/ou globalização. Evidencia-se, nesta leitura, que o processo de acumulação de capital é também um processo geográfico. A produção das escalas acompanhou o modo de produção capitalista. Se, atualmente, existe a escala global, é porque existem agentes que podem operar nesta escala, ao passo que, contraditoriamente, significativa parte da sociedade não pode se apropriar nem da escala local.

De acordo com Harvey[1], ao buscar a origem do termo globalização, ele afirma que parece ter sido usado pela primeira vez nos anos de 1970, pela American Express, em campanha publicitária do seu cartão, na qual indicava seu alcance global.

Em contraposição, uma retrospectiva patrocinada por textos que tratam do período feudal ajudam a entender como eram diferentes as relações espaciais e as escalas constituídas naquele período, de acordo com o que se pode apreender com o seguinte excerto:

 “O cenário era o reino. No seu interior, nos tempos feudais, o horizonte político não ultrapassava os limites da castelania. Ele se alargou muito, depois disso, porque nos séculos XIV e XV, em decorrência da guerra, os senhores perderam seu poder de mando sobre os homens. As forças políticas se reagruparam em unidades maiores: o domínio real, os feudos, os apanágios. (...) Feudos e apanágios evoluíram para verdadeiros principados territoriais, cujos príncipes detentores recolhiam os direitos de mando perdidos pelos senhores feudais e a Capacidade de se apoiar numa forte vitalidade regional” [2].

Entretanto, mesmo em modos de produção pré-capitalistas, a humanidade já experimentara um mundo bastante integrado e com significativa divisão espacial do trabalho, como a rede urbana das cidades romanas.  Singer[3] exemplifica esse fato afirmando que caçarolas de bronze feitas em Cápua (cidade do Império Romano localizada na atual Itália) e cerâmica manufaturada foram encontradas em diversos pontos do continente europeu e asiático.

Com o desenvolvimento do capitalismo, é certo que esse processo torna-se intenso. Os interesses que foram se desenvolvendo no âmbito das localidades emancipadas do poder feudal rapidamente expandiram-se, levando à constituição dos Estados Nacionais.  Contudo, o modo de produção capitalista nunca se limitou às fronteiras territoriais desses Estados. Segundo Dean[4] as Companhias das Índias (as mais conhecidas eram a inglesa East India Company e a holandesa Vereinidge Oost – Indische Compagnie) podem ser consideradas as primeiras multinacionais e constituem agentes que adquiriram cada vez maior relevância. O processo de articulação mundial decorre da capacidade de concentração de capital em grandes grupos econômicos, atualmente as corporações e conglomerados, e de seus alcances espaciais.

Se no período romano a expansão territorial, ainda que com implicações econômicas, estava fundamentada no Estado, com o desenvolvimento do capitalismo os protagonistas de maior expressão são grupos econômicos privados. Diversas fontes têm mostrado como tais grupos apropriaram-se de fatores diversos de produção e de mercado em escala mundial, além da nítida formação de um mercado de trabalho mundial, com os trabalhadores colocados em concorrência nessa escala. Harvey[5], sempre baseado em Marx, assinala, em convergência ao que se expõe aqui, que a acumulação do capital sempre foi uma questão profundamente geográfica e, em outras palavras, que a ascensão da burguesia está, desde sempre, intimamente relacionada às suas atividades e estratégias geográficas no palco do mundo.

Essas afirmações reiteram as ideias de que as escalas geográficas são socialmente produzidas e que os seus alcances estão vinculados ao poder de seus protagonistas e sua capacidade de imposição.

Traçando esse cenário, por mais frágil que possa parecer o local, é preciso lembrar Smith[6], que assinala ser necessário estar inserido politicamente num espaço para conseguir a articulação e atuação sobre demais dimensões geográficas. Sendo assim, a apropriação efetiva do espaço local é condição fundamental para a sociedade atuar em outras escalas, como forma de resistência, em um momento em que a acumulação capitalista e sua institucionalização política adquirem um ponto inédito de controle e comando dos espaços e de suas respectivas sociedades.

Preocupação semelhante aparece em estudo de Santos[7], no qual o autor expõe que a produção das escalas e sua captura vinculam-se à ampliação do poder. Ele denominou de espaços “derivadosaqueles cujos princípios de organização se devem bem mais à necessidades exógenas e longínquas do que aos impulsos ou organizações simplesmente locais.

Portanto, o desenvolvimento tecnológico produzido pelo homem criou diversos instrumentos que possibilitam a articulação dos espaços. Esta materialidade é que torna premente pensar mais do que a produção do espaço, a produção das escalas geográficas. Portanto, assim como outras teorias, a teoria escalar decorre não só de um avanço acadêmico, mas resulta de um movimento da realidade.

A questão das escalas ganhou destaque nas últimas décadas porque, conforme vários autores, há uma redefinição das escalas institucionais de comando. Assim, por exemplo, no que se refere à leitura da Geografia Política, antes focalizada apenas no Estado, de acordo com Sánchez[8], agora passa por três escalas: mundial, nacional e local. A atual ênfase na questão das escalas possui, portanto, razões concretas – questionamento do nacional e emergência cada vez mais significativa do supranacional e mundial, paralela à importância atribuída ao local. Vainer[9], ao procurar entender as escalas da ação política, enfatiza que a questão da escala nunca se colocou com tanta relevância, ganhando diferentes ênfases, sobretudo na relação local e global.

Apesar da constante referência à escala local e às suas formas institucionais atualmente, é preciso estar atento aos interesses que a envolvem. Estudar a figura institucional do município ao longo da história do Brasil possibilita trazer esse aporte e compreender que diversos interesses se expressam em seu nome. Entretanto, a possibilidade de apropriação da escala local por parte da sua própria sociedade é cada vez mais dificultada pelo viés centralista que a comanda, de forma associada aos interesses que se definem na escala global. Pensar a produção social das escalas ajuda a entender que a apropriação do espaço passa por elas. Nesse sentido, é preciso apropriar-se do local como trilha que permite vislumbrar a apropriação social do mundo.


O município no Brasil

No Brasil, desde a Constituição de 1988, há um pensamento que se difunde no senso comum de que existe um período de maior autonomia municipal. Entretanto, um olhar atento para os fatos políticos na última década demonstram outra realidade. Há várias maneiras de se apreender o tratamento que a institucionalização da escala local no Brasil tem recebido, dentre elas está a questão da emancipação de novos municípios, pois por meio dela pode-se abarcar que apreciação política tem o município de forma geral.

Observamos que houve significativo número de municípios que conseguiram se emancipar nos primeiros anos após a vigência da referida constituição, especialmente porque correspondia a um período de abertura após um longo período militar, no qual houve inclusive eliminação de municípios. Desse modo, de 1984 a 2000 foram instalados 1.405 municípios no país, conforme Magalhães[10].

Contudo, desde 1996, com a aprovação da Emenda Constitucional 15, suspendeu-se o processo de criação de novos municípios no Brasil. Isto porque ela alterou a redação do artigo 4º. da Constituição Federal que diz respeito a criação e outras alterações relacionadas aos municípios no território brasileiro, conforme segue:

“§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei”.[11]

O Senado Federal levou dez anos para aprovar a mencionada lei complementar e sistematizar as exigências a serem feitas para a criação de novos municípios. A matéria circula agora na Câmara Federal como casa revisora.

É certo que a criação de municípios muitas vezes pode ocorrer por clientelismo político. Entretanto, uma vez mais se observa o costumeiro descrédito com que é tratada a escala local mediante interesses com alcances políticos, espaciais e econômicos amplos. Já constatamos em estudos anteriores a respeito da produção dessa escala, sua institucionalização e a forma como vem sendo tratada politicamente demonstrou isso. Aparecem, de forma muito generalizada, outras duas ideias: o Brasil tem municípios demais e os municípios são caros e representam muitos gastos.

Tal perspectiva difunde-se pelos editoriais dos meios de comunicação:  “Emenda reabre brecha que facilita criação de municípios”[12], “Criação de municípios vira ‘palhaçada’ no Maranhão”[13], “Critérios para criação de municípios deveriam ser rígidos”[14] são algumas das chamadas que podem ser frequentemente encontradas e que difundem as ideias anteriormente mencionadas. Tudo isso acontece sem que se questione sua procedência e significados. Vários questionamentos precisam ser feitos, como: o Brasil tem municípios demais? De onde procede essa ideia? O que a motiva? Os municípios gastam demais? Criar municípios é um mal que precisa ser estancado? Na perspectiva social, o que significam as emancipações? Obviamente outros tantos poderiam ser feitos. Não é possível em um único trabalho tratar de todos, mas são estes questionamentos, associados às reflexões inicialmente apontadas, que motivam o estudo dessa temática.

No âmbito acadêmico, o tema ganhou relevância principalmente após a constituição de 1988. Observa-se, contudo, que significativa parte das pesquisas igualmente pretende mostrar como um problema a criação de novos municípios, embora alguns estudiosos alterem essa postura no decorrer da pesquisa.

Cigolini[15] faz um levantamento dos estudos realizados, analisando vários de seus aspectos. Observam-se, dentre eles, problematizações e procedimentos metodológicos bastante diferenciados e que o referido autor agrupa, de acordo com a escala abordada, os instrumentos e conclusões, bem como em outra tabela as consequências que cada pesquisador aponta em decorrência da criação de municípios. Como já comentado, ele constata que o debate parece estar polarizado entre os favoráveis às emancipações e os contrários, apesar de mostrar que é preciso extrapolar este embate.

No campo político, também se observa essa polarização. Todavia, sempre com uma tendência a maior projeção das posturas que avaliam negativamente as emancipações e os municípios. Nos últimos anos aconteceu a tramitação e aprovação da regulamentação da Emenda 15/1996 no Senado Federal. Os debates e o formato final da sua aprovação são relevantes para apreender o tratamento político da escala local, especialmente das pequenas localidades, institucionalizadas por meio dos municípios.

Embora existam muitas pesquisas acerca do município, conforme já mencionado anteriormente, não se encontrou até o presente momento outros pesquisadores que tenham se dedicado a acompanhar o trâmite e a sistematização que vêm ganhando a viabilidade municipal e a criação de novos municípios no âmbito legislativo brasileiro. Há uma referência de Arretche[16] que toma por parâmetro várias propostas de alteração da Constituição Brasileira de 1988, dentre elas a referida Emenda Constitucional, e constata que, desde meados da década de 1990, houve um fortalecimento da centralização, ou seja, da federação brasileira. A obra citada, em consonância com a interpretação teórica esclarecida no início desse trabalho, mostra como esse processo esteve relacionado a agentes cujos alcances escalares são mais amplos:

“A partir de 1995, as elites do governo central usaram estrategicamente essas oportunidades institucionais para ampliar a capacidade de regulação da União sobre as políticas de Estado e municípios. Essa não foi, portanto, uma trajetória de ruptura de um governo central fraco em direção a um governo central forte. Antes, um centro forte tornou-se ainda mais forte; 1988 facilitou 1995. A centralização federativa de 1995 ocorreu porque as regras que regem as interações entre as elites do governo federal e dos governos subnacionais favorecem as elites políticas instaladas no centro é limitam as oportunidades de veto das elites instaladas nos governos subnacionais. Desse modo, conflitos entre essas duas categorias de elites governamentais tendem a facilitar a aprovação das preferências das primeiras”.[17]

A Emenda Constitucional 15/1996 mostra reforço à centralização, como outras citadas pela referida autora, indicando que não se trata de uma matéria isolada, mas de um processo mais amplo da qual essa questão é apenas uma parte.


Alterações territoriais municipais e a questão da viabilidade municipal

Vários estudos que analisam os diversos momentos políticos brasileiros e suas respectivas constituições mostram que a produção do território brasileiro foi sempre marcada por uma acentuada centralização. O tratamento das instâncias subnacionais de governo, em especial os municípios, revelam este processo.      

Portanto, a ampliação do número de municípios foi considerada, na perspectiva centralizadora, como um processo abusivo e desde 1996 o processo de criação de municípios no Brasil foi suspenso por meio da referida Emenda Constitucional. Este documento obriga a realização de estudos da viabilidade municipal para a implementação de novos municípios.

Desde então, foram propostos alguns projetos de Lei Complementar apresentados nas instâncias legislativas brasileiras. No Senado Federal, instância onde foi discutida a matéria no âmbito da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania – CCJ –, o trâmite teve início em 2002 por meio da apresentação da proposta do Senador Morazildo Cavalcanti. Portanto, as propostas de regulamentação desta questão tramitaram por mais de dez anos nas instâncias legislativas brasileiras, sendo finalmente aprovadas no ano de 2008 no Senado Federal, com parecer 673/2008 no âmbito da mencionada Comissão, relatado pelo Senador Tasso Jereissati que analisou e considerou vários projetos elaborados com a mesma finalidade: Projeto de Lei do Senado 98/2002 (Senador Mozarildo Cavalcanti); PLS 503/2003 (Senador Sibá Machado); PLS 60/2008 (Senador Flexa Ribeiro); PLS 96/2008 (Senador Sibá Machado), que passaram a tramitar em conjunto conforme requerimento da mesma comissão.

No referido parecer, Jereissati afirma ter procurado aproveitar o melhor de cada uma destas proposições e formular um substitutivo integral “(...) visando equacionar a justa medida entre garantir o desenvolvimento regional com o incentivo de novos pólos urbanos e impedir a proliferação de municípios sem viabilidade sócio-econômica[18]

Na redação final, a Comissão Diretora apresenta o Parecer 1.052, aprovado em 15 de outubro de 2008. De acordo com este documento, as exigências necessárias para que um distrito possa pleitear a emancipação como município são as seguintes:

I – População igual ou superior a 5 mil habitantes nas Regiões Norte e Centro-Oeste; 7 mil na Região Nordeste e 10 mil nas Regiões Sul e Sudeste.
II – Eleitorado igual ou superior a 50% de sua população.
III – Existência de núcleo urbano já constituído, dotado de infraestrutura, edificações e equipamentos compatíveis com a condição de Município.
IV – Número de imóveis, na sede do aglomerado urbano que sediará o novo Município, superior à média de imóveis de 10% dos Municípios do Estado, considerados em ordem decrescente os de menor população.
V – Arrecadação estimada superior a 10% dos Municípios do Estado considerados em ordem decrescente os de menor população.
VI – Área urbana não situada em reserva indígena, área de preservação ambiental ou área pertencente à União, suas autarquias e fundações.
VII – Continuidade territorial.

Mediante o atendimento desses requisitos, deverão ser desenvolvidos estudos de viabilidade municipal, compreendendo a viabilidade econômico-financeira, político-administrativa e socioambiental urbana.

Enfim, pôde-se observar, ao acompanhar os vários projetos elaborados, que na medida em que se prolongava o debate, ocorria constante incremento de critérios para futuras criações de novos municípios no Brasil. Em estudo de Braga e Pateis[19], com preocupações similares àquelas aqui esboçadas, observa-se que as exigências que vêm se formalizando aproximam-se daquelas que pautavam o período militar (Decreto Lei 1/1967 e Decreto Lei Complementar 9/1969): população mínima – 10 mil habitantes e não inferior a cinco milésimos da existente no Estado; eleitorado não inferior a 10% da população; centro urbano com número de casas não inferior a 200; preocupação fiscal (arrecadação no último exercício deveria alcançar cinco milésimos da Receita Estadual); ser distrito há mais de quatro anos; ter condições para instalação da Prefeitura e Câmara Municipal; apresentar ao menos cinco quilômetros entre o seu perímetro e da área urbana do município de origem; não interromper a continuidade territorial do município de origem. A imposição desses parâmetros restritivos implicou o estancamento do processo de emancipações no Brasil.

Como a regulamentação desse tema tem sido muito demorada, alguns municípios foram criados, mas vivem em uma situação de instabilidade política. Em 18 de dezembro de 2008 outra Emenda Constitucional – 57/2008 – foi aprovada com a finalidade de convalidar os municípios criados até dezembro de 2006 e que obedecessem requisitos estabelecidos na legislação vigente quando da sua instituição.  A maior parte dos municípios que se encontrava nessa situação está no Rio Grande do Sul (36 municípios, do total de 57 convalidados em escala nacional[20]). Apesar da nova Emenda Constitucional, a instabilidade prossegue, pois há um debate jurídico acerca da permanência desses municípios, por meio de processos que circulam no Supremo Tribunal Federal, que obriga a extinção dos municípios criados. É certo que tal como o quadro geral dos municípios do Brasil, a mesma Emenda Constitucional contemplou localidades muito diferentes entre si. Enquanto entre os municípios gaúchos estão os que possuem população ao redor de dois mil habitantes, foi contemplado um município do Pará – Mojuí dos Campos – com 32 mil habitantes e 56 mil quilômetros quadrados.

É preciso lembrar que as exigências de viabilidade de forma geral ocorrem em meio a um processo de declínio demográfico dos municípios polarizados por pequenas localidades. Tais propostas reforçarão as tendências de concentração demográfica e de comando político derivado, esboçando uma vez mais uma política territorial tácita que reforça as tendências atuais, juntamente com todas as implicações dela decorrentes. É evidente que em um estado tão centralizado as escalas locais serão cada vez mais inviáveis.

Esse processo revela o tratamento político das pequenas localidades não-metropolitanas em um território marcado pela centralização e metropolização. Como bem lembra Cigolini[21], se há mais alguma demanda por emancipação no Brasil, é bastante provável que seja de pequenas localidades. Sinaliza ele que se trata de uma encruzilhada: condenar as pequenas localidades a uma existência sem nenhum tipo de autonomia, ou rever o modelo de ordenamento político.

Enfim, o debate e a regulamentação sobre a viabilidade municipal para a aprovação de novos municípios têm ampliado claramente as exigências. Se por um lado era realmente necessário estabelecer critérios, o exagero praticamente inviabiliza a criação de novos municípios. Além dessa implicação direta, esse processo revela que permanece no âmbito da federação brasileira o descrédito à escala local, o que é mais grave. Ainda que nem sempre claramente expresso, paira um pensamento de que municípios com pequenas cidades correspondem a um “mal” a ser combatido. Conforme Bremaeker[22], é quase unânime entre os meios técnico, acadêmico, político e da mídia a postura contrária ao processo de emancipação de novos municípios, mediante a principal alegação de inviabilidade financeira e o “custo” que representam para o país.

É preciso estar atento às análises voltadas aos alcances sociais e políticos que representaram o processo de emancipação nas décadas de 1980 e 1990. Que papéis têm representado efetivamente essas instituições no âmbito territorial brasileiro, em especial na perspectiva social?

Pode-se dizer que há no Brasil duas perspectivas: uma macro, que vê como problema a criação de novos municípios devido à viabilidade financeira; uma micro, a da comunidade diretamente interessada, que é bastante diferente. De acordo com o autor, pesquisa realizada em municípios recém emancipados revelou que em mais de 75% dos casos a comunidade estava insatisfeita com a atenção que recebia do município de origem.  Complementando, ele afirma que a emancipação pode representar para algumas localidades o acesso a serviços públicos e que bem ou mal a comunidade passa a gerir seus destinos quanto à educação, à saúde e à assistência social, além de ampliar aos poucos outros cuidados com os aspectos urbanísticos e de limpeza pública e de passar a ter acesso a uma série de serviços de competência do Estado e da União. O autor vê como uma comprovação dos aspectos positivos e da satisfação da população para com as novas emancipações o fato de que 61,2% dos prefeitos desses municípios novos conseguiram se reeleger, enfim o mesmo autor assinala: “É preciso viver a realidade interiorana para entendê-la”[23].

Neste mesmo sentido, estudos que se voltam aos novos municípios sob vários aspectos, constatam melhorias de diversas naturezas, abrangendo volume do PIB, saúde, educação, infraestrutura e projetos diversos. Seguem alguns excertos de entrevistas e relatos:

“Linha Nova pode até ser o menor município do Estado, mas eu acho que a grandeza de um município não se avalia pelo número de habitantes, e sim pela qualidade de vida que a população tem. Hoje a população de Linha Nova vive num primeiro mundo, dentro das condições que ela tem...não temos nenhum analfabeto... onde antes havia apenas uma pessoa participando, hoje têm 30, 40 (...)”.

“Houve uma transformação quase inacreditável... As ruas, hoje, estão todas asfaltadas e novos prédios foram ou estão sendo construídos por toda parte. A cidade ganhou um aspecto novo. Mas não é apenas na sua aparência que Harmonia mudou. No plano da educação e da saúde, as transformações foram radicais. (...).”[24]

Ele encerra seu estudo com uma avaliação bastante positiva em relação aos municípios novos:

 “(...) muitas iniciativas são viabilizadas, em vários campos de ação, na busca de melhores padrões de vida. As novas administrações municipais têm priorizado investimentos nas áreas educacional, da saúde, social, econômica e cultural dos cidadãos, contabilizando consideráveis avanços (...) é salutar e previdente transferir novas responsabilidades a governos locais, que são mais eficazes na gestão dos seus orçamentos, tendo em vista que conhecem a realidade, são pressionados a resolverem os problemas e a gastar pouco. (...) As autonomias (ou emancipações) se justificam, portanto, enquanto existirem lacunas no meio social, originadas de demandas não compreendidas, não valorizadas (...)”.[25]

Favero[26] iniciou pesquisa para tese de doutorado indicando um questionamento sobre a pertinência e o desempenho de municípios recentemente emancipados.  Porém, ao analisar indicadores por ele escolhidos como procedimento, termina avaliando positivamente o processo de emancipação tanto para municípios de origem, quanto para os emancipados. Conforme ele, os recursos destinados a municípios recém-emancipados onde predominava baixa qualidade de vida em decorrência das enormes carências de empregos e prestação de serviços públicos “(...) estão sendo de grande valia, haja vista que, por terem sido vilipendiados ao longo de tantos anos em detrimento dos núcleos sede, há que se investir fortemente na infra-estrutura urbana, social e administrativa para recuperar o tempo perdido e atingir no mínimo padrões semelhantes aos dos municípios de origem”[27].

Por fim, verifica-se que o debate sobre a viabilidade municipal tem representado uma retomada de uma perspectiva centralizadora. Os estudos mencionados que trazem um olhar a partir do local mostram outra forma de interpretar os municípios com pequenas cidades no Brasil, especialmente aqueles situados em áreas não-metropolitanas.


Considerações finais

É comum que se sinalize a fragilidade das instâncias locais nestes tempos de globalização. É certo, contudo, que tal situação é extremamente grave nas localidades inseridas em áreas não-metropolitanas, especialmente em municípios com pequenas cidades, como a região Noroeste do Paraná, recorte com o qual temos trabalhado e que, embora não tenha sido objeto de análise nesse trabalho, é sempre a realidade dessa região que motiva toda essa busca.

Em resumo, observa-se que há dois principais fatores que provocam preocupações na criação de novos municípios no Brasil. O primeiro e mais expressivo é, sem dúvida, a pressão da fiscalidade. É importante ressaltar que essa questão é parte das redefinições dos papéis e do peso do Estado central no funcionamento do capitalismo atual. Neste sentido, a preocupação com a criação de novos municípios ocorre porque tal ato pode representar um gasto inadequado. Contudo, é preciso lembrar os relatos positivos apresentados, mostrando as melhorias que representaram para a sociedade local a implantação dos novos municípios. Isto significa trazer para o debate outra interpretação, baseada nos ganhos locais. Estes devem superar os proveitos materiais (equipamentos e serviços), pois podem ser políticos na medida em que avancem os novos fóruns criados nas instâncias locais, como os conselhos municipais. Parece que a perspectiva de descrédito em relação aos municípios é a da lógica que persiste no Brasil, a do Estado centralizado.

 O segundo fator que pode explicar a instituição das regras mais rígidas está relacionado ao fato de que ao criar um novo município, haverá oficialmente uma cidade a mais no Brasil, por isso devem ser cumpridos alguns critérios que devem caracterizar minimamente a localidade como urbana. Aqui é preciso lembrar que município não precisa ser tratado como sinônimo de cidade.

Um olhar atento para o território mostra que é preciso ponderar que há toda uma rede intramunicipal de pequenas localidades, parte delas reconhecida como distritos. É comum no Brasil se encontrar entre estas localidades algumas mais adequadas do que muitas sedes de município no cumprimento de papéis urbanos, número de habitantes e equipamentos e meios de consumo coletivo. Por isso, embora se reconheça que os momentos favoráveis à criação de municípios no Brasil foram os politicamente mais democráticos e menos centralizadores, por outro lado, é preciso ressalvar que este processo é bastante complexo e exige uma série de ponderações. Os cuidados fiscais, a falta de credibilidade na política local, a ausência de quadros técnicos adequados têm sido parte das razões de contestação da escala local no Brasil. Avançar nesta análise implica questionar-se sobre o que representa politicamente a criação de municípios, na perspectiva de um olhar geral pela história política do Brasil, somada a análise de casos concretos de emancipação e na perspectiva, portanto, dos olhares e da avaliação das sociedades locais.

 

Notas

[1] Harvey, 2004, p.27.

[2] Autrand,2008, p.7-8.

[3] Singer, 1998.

[4] Dean, 1993.

[5] Harvey, 2004.

[6] Smith, 1992.

[7] Santos, 1996.

[8] Sánchez, 1992, p. 87.

[9] Vainer, 2001, p. 141.

[10] Magalhães, 2008, p.13.

[11] Brasil, 1996.

[12] Publicada em “O Estadão”, em 10.11.2009, com a argumentação de que 1.400 cidades no Brasil tem metade de suas receitas oriundas do Tesouro(FPM) e que mesmo assim, Emenda (CCJ – Senado) devolve aos Estados a matéria da criação dos municípios (Estado de São Paulo, 2009).

[13] Em resumo, nota demonstra preocupação com 126 propostas de novas “cidades” e com suas implicações (gerarão 1.134 vereadores). Publicado em blog denominado Blog do Décio Sá (Sá, 2012).

 [14]Pondera sobre a criação de municípios que terão baixa arrecadação e cujos  gastos serão cobertos por repasses do Estado e da União. Apresenta dados de como aumentaram desde 1980 o número de municípios por região no Brasil. Publicado em UOL Mais, em 09.12.2011.

[15] Cigolini, 2009.

[16] Arretche 2009.

[17] Arretche, 2009, p.412.

[18] Jereissati, 2008.

[19] Braga e Pateis, 2003.

[20] Aceguá, Almirante Tamandaré do Sul, Arroio do Padre, Boa Vista do Cadeado, Boa Vista do Incra, Bozano, Canudos do Vale, Capão Bonito do Sul, Capão do Cipó, Coqueiro Baixo,  Coronel Pilar, Cruzaltense, Forquetinha, Itati, Jacuizinho, Lagoa Bonita do Sul, Lagoa dos Três Cantos, Lindolfo Collor, Linha Nova, Mato Queimado, Novo Xingu, Novo Tiradentes, Paulo Bento, Pedras Altas, Pinhal da Serra,  Presidente Lucena, Quatro Irmãos,  Rolador, Santa Cecília do Sul, Santa Margarida do Sul, Santa Teresa, São José do Sul, São Pedro das Missões, Tio Hugo, Tupanci do Sul e Westfália. 

[21] Cigolini, 2009, p.196.

[22] Bremaeker, 2001.

[23] Bremaeker, 2001, p.9-10.

[24] Klering, 1998, p.252-253.

[25] Klering, 1998, p.264-265.

[26] Favero, 2004.

[27] Favero, 2004, p.219.

 

Bibliografia

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Ficha bibliográfica:

ENDLICH, Angela Maria. Escala e território: a perspectiva do município no Brasil. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (54). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-54.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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