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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (6), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

A IDEOLOGIA ESPACIAL CONSTITUTIVA DO ESTADO NACIONAL BRASILEIRO

Everaldo Batista da Costa
Departamento de Geografia da Universidade de Brasília
everaldocosta@unb.br

Júlio César Suzuki
Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo
jcsuzuki@usp.br

A ideologia espacial constitutiva do Estado nacional brasileiro (Resumo)

No debate sobre a construção do Estado nacional brasileiro, partimos do pressuposto de que esse processo consolidou-se no cerne de uma valorização fragmentária de suas variantes estéticas, conformando uma controversa ideologia espacial de sentido identitário à nação. Progresso, modernização e integração territorial emergem como palavras de ordem no elo entre a nação imaginada, no Brasil Imperial, e a nação tal como se concretiza, ao longo do século XX, apesar do discurso e das ações em resgate à cultura síntese de brasilidade. Evidencia-se, nesse escopo, uma tendência a se pensar a nação mais como produto cultural de uma elite (fragmentos de cidades coloniais e do barroco consagrados) do que por meio de símbolos da formação de territórios híbridos representantes da totalidade de seus construtores: os antagônicos protagonistas.

Palavras chave: Estado nacional brasileiro, ideologia espacial, integridade territorial, identidade nacional.

La ideologia espacial constitutiva del Estado nacional brasileño (Resumen)

En el debate sobre la construcción del Estado nacional brasileño partimos del presupuesto de que ese proceso se consolidó en el centro de una valoración fragmentada de sus variantes estéticas, conformando una ideologia espacial controvertida que da sentido de identidade a la nación. Progreso, modernización e integración territorial emergen como palabras de orden en el enlace entre la nación imaginada, en el Brasil Imperial, y la nación tal y como se concreta a lo largo del siglo veinte, a pesar del discurso y de las acciones de rescate de la cultura que sintetiza lo que se considera brasileño.  Se evidencia, en ese objetivo, una tendencia a pensar la nación más como producto cultural de una élite (fragmentos de ciudades coloniales y del barroco consagrados) que a través de lós símbolos de la formación de territórios híbridos, que son representantes de la tatilidad de sus constructores, a su vez, lós protagonistas antagônicos.

Palabras clave: Estado nacional brasileño; ideologia espacial; integridad territorial; identidad nacional.

The Spatial Ideology for Brazilian national State constitution (Abstract)

In the debate on Brazilian national state construction, we assume that this process was consolidated at the core of a fragmentary valorization of its aesthetic variants, forming a controversial spatial ideology with sense of identity to the nation. Progress, modernization and territorial integration emerge as watchwords on the link between the imagined nation in Imperial Brazil, and the nation as it concretizes itself throughout the twentieth century, although the speech and actions for rescue of brazilianness culture. It becomes evident, in that scope, a tendency to think the nation more as a cultural product of an elite (established pieces of colonial towns and baroque) than think it by symbols of hybrid territories formation representing the totality of its builders: the antagonistic protagonists.

Key words: Brazilian national state, spatial ideology, territorial integrity, national identity.


Deve-se considerar, preliminarmente, a escassez de análises que relacionam a consolidação do poder do Estado a suas variantes estéticas, elementos substanciais da sustentação da própria administração. Como estratégia, essas variantes estéticas são favorecedoras de uma ideologia[1] espacial necessária não apenas para adjetivar, mas para dar sentido histórico e identitário a um Estado nacional.

Ao considerar que distintas ideologias permearam a construção dos Estados nacionais, tanto os que passaram pelo processo de unificação, quanto os envolvidos em lutas de independência, respectivamente, a leste e a oeste do Atlântico, cabe um posicionamento sobre os mais notórios elementos caracterizadores do Brasil como Estado-nação, tema maior deste artigo. Para tanto, parte-se do pressuposto de que as cidades e a arte do Brasil colonial sintetizam a relação histórica entre território e poder na Colônia, bem como são elementos constitutivos da ideologia espacial que consolida o Brasil como Estado-nação, no decorrer dos séculos XIX e XX e no contexto de uma trajetória politicoeconômica controversa. O país nasce mais como espaço a ser conquistado, dominado e complexizado em nome de uma unidade, do que como síntese de relações processuais que formaram sua sociedade, a heterogeneidade do seu povo.

No entanto, outro pressuposto desta análise é o de que os objetos estéticos da colonização portuguesa na América (materializados nas cidades coloniais), desde sua apresentação, são cultuados sem a carga de dominação que carregaram desde a sua gestação. O jugo colonial ali permanece, na matéria e na dinâmica das cidades e da arte, para ser decifrado em nome das minorias étnicas negligenciadas. Esses bens precisam ser lidos como objetos híbridos da luta pelo controle territorial, e não como meras caricaturas da história do território. A produção de uma identidade nacional baseada no resgate do passado caricaturizado possibilita apagar memórias contraditórias e ocultar a concretude da expansão ultramarina, em que “a produção do exótico substitui a marca do poder pelos afagos da curiosidade”[2].

A ideia é analisar o território como constituído por dominantes e dominados, caracterizado por símbolos de propriedade material e imaterial. Nessa acepção, reside o Estado nacional como elemento resultante do processo histórico relacional entre comunidades e natureza, no cerne do colonialismo como dimensão objetiva da experiência histórica da nação, que forjou territórios específicos regidos por estratégias políticas regionais; ou seja, não podem ficar ausentes as relações de subordinação de territórios, recursos e populações do espaço não europeu[3].

Se uma nação é, fundamentalmente, uma realidade geohistórica que se realiza por meio de elementos definidos, e se para que ela exista não basta que seja uma comunidade territorial, precisamente porque é um produto da história, toda nação só se concretiza nas vidas em comum, produtoras de “culturas híbridas”[4]. Por isso, a experiência da colonização deve ser tratada como algo partilhado tanto pelos conquistadores quanto pelos dominados – porém, a ideologia espacial na formação do Estado nacional brasileiro contradiz essa leitura. Logo, ao representar um Estado-nação, as cidades ou a arte trazem a história contada por alguém, que está ligada a uma sociedade, moldado por essa trajetória e suas experiências cotidianas, quando “a cultura e suas formas estéticas derivam da experiência histórica”[5].

No bojo dessas contradições, metodologicamente, serão apontados dois notórios momentos e elementos da ideologia espacial constitutiva do Estado nacional brasileiro:

  1. primeiramente, será analisada a busca da integridade do território como condição fundante da nova nação, que ganha corpo no período Imperial (transferência da Corte Portuguesa ao Brasil - 1808) e avança quando o país rompe os laços com a metrópole (1822), passando, da condição de colônia e integrante do vasto império português para o percurso que culminou na independência e período republicano, a partir de 1889[6]. Neste quadro de formação nacional, há um Estado em construção e um território a se ocupar, o Brasil é identificado como um espaço terrestre a ser civilizado e não com o seu povo[7].
  2. um segundo marco dessa ideologia espacial a ser enaltecido assenta-se no resgate das cidades e da arte que sintetizam a relação entre território e poder. O chamado Movimento Modernista Brasileiro, de 1922, traz o momento simbólico da leitura do Brasil como Estado nacional. Trata-se, duplamente, de uma releitura do país em relação aos movimentos culturais e artísticos que ocorrem no exterior, e de busca de novas raízes nacionais, objetivando a valorização do que haveria de mais autêntico no país[8]. Nessa sequência, na década de 1930, período do Estado Novo[9] do governo getulista, adéqua-se um aparato estatal com órgãos e programas que visou atender esse novo momento histórico da nação em construção, como o IBGE[10] e o SPHAN[11]. A ideologia espacial atinente ao Estado Novo corresponde à mistificação das cidades-arte do interior do território (resgatadas pelos modernistas), bem como do litoral nordestino, que se tornam os símbolos primeiros do Estado em constituição.


A integridade territorial: constitutivo sine qua non da ideologia do Estado-nacional

Inicialmente, faz-se necessária uma demarcação conceitual de nação, para a qual nos valemos da concepção de Benedict Anderson: “Dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte definição: uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”[12]. Benedict Anderson acredita, então, que a nação é imaginada, pois os membros mesmo da menor das nações jamais conseguirão, sequer, ouvir falar da totalidade de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem construída vivamente de uma comunhão. É basilar outra explicação do autor:

(...) ela é imaginada como uma comunidade porque, independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal. No fundo, foi essa fraternidade que tornou possível, nestes dois últimos séculos, que tantos milhões de pessoas tenham-se disposto não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações imaginárias limitadas[13].

No sentido também de uma comunidade imaginada limitada e horizontal, Homi Bhabha dá uma definição segundo a qual, enquanto localidade da cultura, a nação está mais vinculada à temporalidade do que à historicidade:

(...) é uma forma de vida que é mais complexa que a ‘comunidade’, mais simbólica que ‘sociedade’, mais conotativa que ‘país’, menos patriótica que patrie, mais retórica que a razão de Estado, mais mitológica que a ideologia, menos homogênea que a hegemonia, menos centrada que o cidadão, mais coletiva que o ‘sujeito’, mais psíquica do que a civilidade, mais híbrida que articulação de diferenças e identificações culturais do que pode ser representado em qualquer estruturação hierárquica ou binária do antagonismo social[14].

Em acréscimo às duas conceitualizações dadas, podemos dizer que a ideia de nação vinha acompanhada do reforço à demarcação do território para a forja de uma nacionalidade mais vinculada aos aspectos da vida material. Entidades políticas definem-se, no século XIX e em um novo quadro, como nações, e o território desponta como ente representativo concreto (de recursos, no início, e de cultura – limitadamente –, a posteriori) da ideologia que o constitui. Benedict Anderson, ao avaliar as origens do “nacionalismo colonial” recente, afirma uma semelhança fundamental com os nacionalismos coloniais de uma época anterior. Para o autor, o isomorfismo entre a extensão territorial de cada nacionalismo e a extensão territorial da unidade administrativa imperial anterior correlaciona-se com a geografia de todas as peregrinações coloniais; diferenças ocorreram face a ambições centralizadoras do absolutismo metropolitano e por problemas concretos de comunicação e transporte (atraso tecnológico evidente).

Também se faz necessário compreender que, desde que foi inventado o regime federativo – no contexto da Independência americana (final do século XVIII) – para construir a unidade das treze colônias emancipadas da Inglaterra, o modelo representa um sistema extra-europeu de organização do Estado, marcado pela coexistência de duas soberanias: a da União (controle de funções comuns) e a dos estados (unidades federadas, que se ocupam do resto)[15].

Essa obra singular de engenharia política concretizou-se como uma vertente do Estado democrático, inicialmente nos Estados Unidos, e depois no Canadá e na Austrália, estendendo-se também para as jovens repúblicas latino-americanas no decorrer do século XIX. A origem colonial comum a esses países parece ter inicialmente estimulado a criação de estruturas superpostas: uma centralizadora, herdada da antiga metrópole, e outra baseada nas autonomias regionais e locais, essas autonomias alimentavam-se de dificuldades de comunicação preexistentes e de diversidades econômicas e culturais. Essa superposição ou coexistência gerou uma tensão permanente entre as forças centrípetas da centralização e as forças centrífugas da descentralização[16].

Logo, no hemisfério ocidental, entre os anos 1776 e 1838, variadas entidades políticas definiram-se, de modo autoconsciente, como nações e, com a surpreendente exceção do Brasil, como repúblicas[17]. O caso brasileiro surpreende no contexto destas novas nações, pois a chegada da família real, em 1808, na fuga ao cerco napoleônico e no contexto do amadurecimento e endurecimento do capitalismo inglês, marca o início de uma era Imperial que se prolonga até o fim do século XIX – amplo período em que se tenta consolidar uma nação através do jugo territorial.

Em 1822, pós-transferência da Corte Portuguesa ao Brasil, o país rompeu os laços com a metrópole e passa, então, da condição de colônia e integrante do vasto império português para o percurso que culminou na independência e período republicano, a partir de 1889. Ressalta Demétrio Magnoli que o Estado Imperial (pós-1825) construiu-se como argamassa de uma entidade oligárquica de tipo pré-nacional, que manteve o tráfico negreiro, atendeu aos interesses das oligarquias regionais, estabelecidas no longo período de ocupação filiforme do território brasileiro, até a ocupação da hinterlândia, na conhecida colonização de expansão na direção do interior, ao norte, ao sul e a oeste.

A abertura de rotas, a fundação de povoados e fortificações, a usurpação de terras indígenas e a valorização econômica de novas áreas geravam interesses e ativos negócios voltados para a apropriação dos imensos ‘fundos territoriais’ disponíveis (...) No momento da ruptura dos laços coloniais, o novo Império Brasileiro não dispunha de um território unificado prévio, mas de um conjunto heterogêneo de territórios coloniais herdados da colonização. A unidade territorial aparece, então, como um desafio e um programa histórico. Esse programa, contudo, correspondia aos interesses concretos gerados pela marcha de apropriação e valorização de terras empreendida pelos colonos[18].

Porém, a busca por esta unidade (ou integridade) territorial contrapõe-se à identidade brasileira que só é possível através de diferentes identidades politicoeconômicas, que expressaram trajetórias diversas e delimitadas regionalmente. Deve ficar entendido que a declaração do desejo de emancipação política da metrópole não é o equivalente da constituição do Estado nacional brasileiro; afirma-se que o reconhecimento do nexo entre a emergência desse Estado (o Imperial) com a da nação em cujo nome ele foi instituído é uma das questões mais controversas da historiografia nacional[19]. Inclusive, pois, “as nações não possuem uma data de nascimento claramente identificável, e a morte delas, quando chega a ocorrer, nunca é natural. Como não existe um criador original da nação, sua biografia nunca pode ser escrita de forma evangélica, avançando no tempo ao longo de uma cadeia generacionista de procriações”[20].

Uma importante historiografia começa a se delinear no período Imperial brasileiro, cujo objetivo era atribuir ao Estado que se consolidava uma base de sustentação em tradições e em uma visão organizada do que seria o seu passado; daí resulta atribuir ao rompimento do Brasil com Portugal um sentido de fundação do Estado e da nação; a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no ano de 1838, incorpora essa missão[21].

A formação do Estado nacional brasileiro está em germe no plano do vivido territorialmente no Império, mas os sentidos de nação ou nacionalidade vão ganhar escopo no século XX, por meio de uma ideologia espacial que não se diferencia tanto deste primeiro momento, como veremos. Isso se deve ao fato de que, no Brasil, a construção do território (bem como sua representação – regionalização e regionalismos de gênese) dotado de tessituras sociais produzidas em arquipélagos, pressupondo específicas territorialidades (no escopo das zonas econômicas – antiga zona da mineração, zona do açúcar, amplo território do tabaco, do anil e da cachaça, o trajeto dos tropeiros, a zona das especiarias, dentre outros de menor envergadura) estabeleceu marcos de identidades territoriais e paisagísticas deste universo ibero-americano. As rotas de trânsito, ou seja, fatores da circulação territorial na colônia, estimularam essa mescla de diferenciações regionais, mas que mantinham vinculados os colonos, em concordância ou alteridade, a duas representações maiores: a da América ou a da própria Metrópole.

Lendo atentamente os Autos da devassa da Inconfidência Mineira, o que encontramos? Os envolvidos são ‘filhos de Minas’, ‘naturais de Minas’. A terra era o ‘País de Minas’, percebido como ‘continente’ ou como capitania. Os ‘filhos de Minas’ viam-se, também, é preciso lembrar, como ‘filhos da América’ (...) Eis as identidades políticas coletivas: a mineira (expressão do específico regional), a americana (expressão da relação de alteridade com os metropolitanos, os europeus) e, evidentemente, a portuguesa[22].

Em resumo, a instalação do novo Estado, a emancipação política das elites agrárias e urbanas brasileiras e um território de grande dimensão com ricas reservas e em arquipélagos ou enclaves de populações fortemente divididas pela escravidão, é o amplo contexto controverso do século XIX, na ex-colônia portuguesa na América, em que se desfralda, timidamente, uma ideia de nação.

Neste quadro de formação nacional tem-se um território a ocupar e um Estado em construção, mas a população disponível não se ajusta à identificação de uma nação conforme os modelos identitários vigentes nos centros hegemônicos. No contexto, ao abandonar-se o caminho de construção da nacionalidade proposto por José Bonifácio (cujo eixo repousava na gradativa abolição das relações escravistas), começa a tomar corpo uma concepção que vai identificar o país não com sua sociedade, mas com seu território. Isto é, o Brasil não será concebido como um povo e sim como uma porção do espaço terrestre, não uma comunidade de indivíduos, mas como um âmbito espacial[23].

Por isso, a saga do Império no Brasil parece partir de um projeto nacional, em que se “construir o país” é o veio ideológico que dá corpo ao período[24]. Nesse processo, valores caros à elite são prenunciados, dentre eles, o da sacralização do princípio da manutenção da integridade do território nacional, questão norteadora da ação estatal[25]. No período “pós-independência”, será o Estado o guardião da soberania brasileira e o ente responsável pela busca da construção da nacionalidade, “entendida como o povoamento do país, o povo é visto como instrumento e não protagonista desse projeto de construção da nação”[26].

A referência que se segue nos apresenta o importante escopo geral da transformação da antiga colônia em metrópole interiorizada que visava, a todo custo, a identificação e a unificação do território, dada a insegurança que lhes representava as contradições da sociedade colonial:

Os políticos da época eram bem conscientes da insegurança das tensões internas, sociais, raciais, da fragmentação, dos regionalismos, da falta de unidade que não dera margem ao aparecimento de uma consciência nacional capaz de dar força a um movimento revolucionário disposto a reconstruir a sociedade. Não faltavam manifestações exaltadas de nativismo e pressões bem definidas de interesses localistas. No entanto, a consciência propriamente ‘nacional’ viria pela integração das diversas províncias e seria uma imposição da nova Corte do Rio de Janeiro (1840-1850) conseguida a duras penas por meio da luta pela centralização do poder e da ‘vontade de ser brasileiros’, que foi talvez uma das principais forças políticas modeladoras do Império; a vontade de se constituir e de sobreviver como nação civilizada européia nos trópicos, apesar da sociedade escravocrata e mestiça da colônia, manifestada pelos portugueses enraizados no Centro-Sul e que tomaram a si a missão de reorganizar um novo Império português. A dispersão e fragmentação do poder, somadas à fraqueza e instabilidade das classes dominantes, requeriam a imagem de um Estado forte que a nova Corte parecia oferecer. As condições, enfim, que oferecia a sociedade colonial não eram aptas a fomentar movimentos de liberação de cunho propriamente nacionalista no sentido burguês do século XIX: desde a vinda de D. João VI, portugueses, europeus e nativos europeizados combinavam forças de mútuo apoio, armavam-se, despendiam grandes somas com aparelhamento policial e militar, sob o pretexto do perigo e da infiltração de ideias jacobinas pela América espanhola ou pelos refugiados europeus. Inseguros de seu status de homens civilizados em meio à selvageria e ao primitivismo da sociedade colonial, procuravam de todo modo resguardar-se das forças de desequilíbrio interno. A sociedade que se formara no correr de três séculos de colonização não tinha alternativa ao findar do século XVIII senão transformar-se em metrópole, a fim de manter a continuidade de sua estrutura política, administrativa, econômica e social. Foi o que os acontecimentos europeus, a pressão inglesa e a vinda da Corte tornaram possível[27].

Essa interiorização da metrópole ocorreu, concretamente, por meio de alguns eventos, sobretudo de correlações entre a Corte e porções interiorizadas do território. Um deles foi o chamado Comércio de Abastecimento do Rio de Janeiro (advindo das exigências da nova Corte), em que a Comarca do Rio das Mortes (Capitania de Minas Gerais), cuja sede era São João del-Rei (antiga cidade da mineração), assumiu relevante papel na interligação comercial do Centro-Sul. Para além deste primeiro vínculo, também favoreceram essa interiorização e domínio territorial: “as inter-relações de interesses comerciais e agrários, os casamentos em famílias locais, os investimentos em obras públicas e em terras ou no comércio de tropas e muares do Sul, no negócio do charque... processo este presidido e marcado pela burocracia da Corte, os privilégio administrativos e o nepotismo do monarca”[28]. Não apenas no Brasil, mas nos diversos Estados, o nacionalismo revestiu-se de um caráter articulado à presença determinante dos territórios materiais (geograficamente legítimos) para a constituição dos mercados nacionais e internacionais do século XIX[29].

A análise de Caio Prado mapeia a remodelação da vida material do Brasil com a transferência da Corte, quando começam a se expandir as forças produtivas no território e, também, justifica a envergadura imperial brasileira na modelação espacial que se visava unificar política e economicamente.

A segunda metade do séc. XIX assinala o momento de maior transformação econômica na história brasileira (...) que resulta, em última análise, da emancipação do país da tutela política e econômica da metrópole portuguesa. Mas a primeira metade do século é de transição, fase de ajustamento à nova situação criada pela independência e autonomia nacional (...) Há contudo um fundo mais sólido e um progresso efetivo. O Brasil inagurava-se num novo plano que desconhecera no passado, e nascia para a vida moderna de atividades financeiras. Um incipiente capitalismo dava aqui seus primeiros e modestos passos. A incorporação das primeiras companhias e sociedades, com seu ritmo acelerado e apesar dos exageros e certo artificialismo, assinala assim mesmo o início de um processo de concentração de capitais que embora ainda acanhado, representa ponto de partida para uma fase inteiramente nova. Ele servirá de motor para a expansão das forças produtivas do país cujo desenvolvimento adquire um ritmo apreciável. Sem contar os grandes empreendimentos como estradas de ferro e empresas de navegação a vapor, instalavam-se, embora ainda muito rudimentares, as primeiras manufaturas de certo vulto; o comércio, em todas as suas modalidades, se expande. Mas é sobretudo na agricultura que se observará este crescimento da produção brasileira. A lavoura do café, gênero então de largas perspectivas nos mercados internacionais, contará com uma base financeira de crédito, bem como um aparelhamento comercial suficiente que lhe permitirão a considerável expansão[30].

Nesse contexto creditício, no sentido das novas possibilidades econômicas e da busca de um interior a se civilizar em nome do novo Estado:

(...) preocupou-se a Corte em abrir estradas e, fato quase inédito, em melhorar as comunicações entre as capitanias, em favorecer o povoamento e a doação de sesmarias. Tinham como fé obsessiva aproveitar as riquezas (...); precisavam incrementar o comércio e movimentar meios de comunicação e transporte. Além dos estrangeiros, continuaram os viajantes e engenheiros nacionais a explorar o interior do país, a realizar levantamentos e mapas topográficos para o que foi especialmente criada uma repartição no Rio de Janeiro. Levantou-se uma carta hidrográfica das capitanias compreendidas entre o Maranhão e o Pará; foram enviadas expedições para examinar os rios tributários do Amazonas. Tentaram dar acesso ao comércio do Mato Grosso pelos rios Arinos, Cuiabá e Tapajós, ligando Mato Grosso por via fluvial e terrestre com São Paulo. Através do Guaporé, Mamoré e Madeira, encontraram o caminho que poria em contato o Amazonas com os sertões do interior do país. Concentram-se privilégios, estatutos e isenções de impostos para uma companhia de navegação fluvial. O Tocantins e o Araguaia foram explorados, embora não se tivesse chegado a organizar uma companhia de navegação regular. Em Goiás, vários ‘capitalistas’ se reuniram e começaram o transporte regular pelos seus rios. Também foram mais bem investigados os rios Doce, Belmonte, Jequitinhonha, o Ribeirão de Santo Antônio do Cerro do Frio, em Minas Gerais. Abriram-se caminhos do interior para Ilhéus e para o Espírito Santo e outro de Minas Novas para Porto Seguro. As tradições da colonização portuguesa e o afã de integração e conquista dos recursos naturais delineavam a imagem do governo central forte, necessário para neutralizar os conflitos da sociedade e as forças de desagregação internas[31].

Podemos afirmar que a ideologia na forja do Estado nacional, apesar de não coincidir com a transferência da Corte, deslinda, por ter ali seu epicentro, daquele momento, permanecendo enraizada no território a se conquistar, a se dominar e a se complexizar; lógica evidente desde os primórdios dos três séculos anteriores de controle colonial do território. A dinâmica da vida material de expropriação da colônia transpassa a história do Brasil, independente do momento político. Na avaliação do século XIX, sobretudo tendo como marco divisório de dois grandes momentos da política e da economia brasileira o ano de 1850 (ano da promulgação da Lei de Terras e período derradeiro da Abolição da Escravatura – respectivamente, instrumentos de instituição da propriedade privada da terra e do trabalho assalariado, no Brasil), Caio Prado ressalta:

Um último fato demográfico e geo-econômico que cumpre registrar é a progressiva ocupação, no Centro-Sul, do grande vácuo deixado entre os núcleos povoados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, e aqueles, de origem espanhola, fixados ao longo dos rios Paraguai e Paraná (hoje compreendidos na República do Paraguai). Este miolo de territórios desertos compreendidos dentro dos limites ainda teóricos do Brasil, começa a ser povoado na segunda metade do século passado por fazendas de gado. A origem dos povoadores da região é Minas Gerais, mais densamente ocupada por efeito da intensa mineração do séc. XVIII, agora praticamente extinta. Na sua marcha para o sudoeste, os mineiros ocuparão primeiro o chamado Triângulo Mineiro, o território situado no ângulo formado pela confluência dos rios Parnaíba e Grande, formadores do Paraná. Esta região, que em meados do século não contava mais de uns 6.000 habitantes, compreendidos 4.000 índios semi-civilizados, reunirá em fins do Império acima de 200.000 indivíduos, com um centro urbano já de certa importância: Uberaba. O avanço do povoamento seguirá daí para a região que forma o sul da província de Mato Grosso, descendo pelo rio Paraná. Esta província, que não contava por ocasião da Independência 37.000 habitantes, e pouco mais que isto em meados do século (as estatísticas oficiais dão 40.000), somará em fins do Império acima de 200.000 e quase todo, senão todo este considerável aumento se pode computar na região pastoril Sul, onde também, em certos pontos, se explora a erva-mate nativa que aí se encontra. O Norte das minas de ouro decaíra para sempre. A principal cidade não será, aliás, mais a capital que por tradição se conservará em Cuiabá, antigo centro minerador decadente, mas Corumbá, que pertence ao Sul[32].

Essa avaliação nos direciona ao questionamento do papel da história na leitura de uma identidade nacional, quando “os argumentos de índole geográfica vão possibilitar a elaboração de discursos legitimadores onde o país é visto como um espaço, e mais, um espaço a ser conquistado e ocupado”[33]. No século XIX, o discurso é engendrado em torno da noção de civilização, cabendo à monarquia brasileira a missão civilizacional: “civilizar o país seria levar o avanço aos sertões, ocupar a terra retirando-a da barbárie”[34]. Por assim avaliar, ligada à extinção do tráfico negreiro estava a busca do “branqueamento” do Brasil, relegando a último plano o lugar do indígena e do negro liberto no “novo” território em construção. “A submissão das populações locais aparece como decorrência natural do processo, um resultado tido como de alta positividade. ‘Integrar o índio’ – ao se apropriar de sua terra – era parte do projeto civilizatório imperial. Povoar as áreas pioneiras com colonos brancos também contribuía para os objetivos almejados, num quadro que se acelera conforme avança a consciência acerca da extinção do tráfico negreiro”[35].

A elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves inovou na definição dos referenciais políticos, foi um momento para materialização política do ideário nacional. “O novo reino transformara, ainda que apenas no plano simbólico, um conglomerado de capitanias atadas pela subordinação ao poder de um mesmo príncipe numa entidade política dotada de precisa territorialidade e de um centro de gravidade que, além de sê-lo do novo reino, era-o também de todo o império”[36]. Então, a nação imaginada se concretizaria na esfera do Estado – Reino Unido a Portugal e Algarves. Nessa perspectiva, fica claro que a ideia de nação vincula-se a uma relação de poder e de representação no e pelo território; relação esta que vem carregada de um imaginário que é produzido ao longo da história brasileira, qual seja: da barbárie do homem da terra e da exploração dos recursos (a ideia de herança ou memória consolida-se – por meio de lugares e objetos impressos no território – apenas no século XX, como veremos).

É preciso ter em mente que nas primeiras décadas do século XIX o conceito de nação, ainda que carregado de enorme fluidez, espalhava-se rapidamente pelo universo Atlântico, deslocando-se para o centro dos ideários políticos. Ainda que comportando grandes variações de conteúdo, essa ideia sempre contemplava duas variáveis definidoras da comunidade cuja natureza pretendia expressar: uma herança (memória e história) e um território, ambos comuns aos membros da nação[37].

Mais que indicar uma ideologia espacial em que a nação brasileira deslinda de um território a se unificar materialmente, objetivamos trazer alguns elementos de um período em que o povo e a cultura que o constituía – em sua quase totalidade – pouco foram contemplados nesse projeto nacional. A nacionalidade deveria ser inerente não a uma cartografia do território ao qual estariam ligados habitantes desprezados, mas aos membros efetivos desses grupos, aos homens, mulheres e crianças, brancos, pardos, negros ou índios que se considerassem participantes de uma nacionalidade, pois, “como tais, os membros de uma nacionalidade gozariam de ‘autonomia cultural’”[38].

Eric Hobsbawm deixa-nos uma referência síntese dessa corrida pela construção de nações no século XIX, nas diferentes partes do mundo, ocorrida ante um forte cunho ideológico espacial.

O nacionalismo que estabeleceu a si próprio como versão padronizada da ideologia e do programa nacional era essencialmente territorial, uma vez que seu modelo básico era o Estado territorial da Revolução Francesa, ou, de qualquer modo, aquele que mais se aproximasse de efetivar o controle político sobre um território claramente definido e seus habitantes, e que estivesse, na prática, disponível[39].

Cultura, identidade, território e política (elementos constituintes da nação) não são aqui assimilados de forma clivada, consideramos essa interdependência enquanto essência do próprio território, pois é o que nos possibilita interpretá-lo do plano material ao simbólico, no trânsito de elemento de domínio do Estado ao plano significante de empoderamento coletivo. Para lembrar Edward Said, devemos falar em territórios que se sobrepõem, histórias que se entrelaçam, comuns a homens e mulheres, brancos e não brancos, moradores das metrópoles e das periferias, do passado, do presente e do futuro. Territórios e histórias só podem ser vistos por meio da história humana secular em sua totalidade[40].

No próximo tópico, indicaremos os vieses em que o território ressurge, no discurso e imaginativamente, como referência de identidade coletiva, como fundamento material de uma pretensa unidade cultural da nação. Visaremos as contradições dessa busca.


A ideologia espacial do Estado-nação brasileiro: identidade, cidades e arte

“É o Estado que faz a nação e não a nação, o Estado”[41]. Essa assertiva traz, em germe, nosso esforço de análise ao reconhecer o protagonismo do Estado na busca dos elementos entendidos como os identitários na representatividade da nação. Nesse contexto, somos direcionados a tais elementos identitários que, no caso brasileiro e após longo período de busca pela integridade territorial (que transpassa toda a história do Brasil), no início do século XX, são expressos em específicas cidades e arte consagrados (pelo Estado) como genuinamente nacionais.

Questões como: o debate intelectual sobre a centralização e a descentralização do poder na nova República (relação entre Estado e Nação); identidade nacional; novamente a integridade territorial e demográfica do país; os resquícios da herança escravocrata e colonial, levantavam, no fundo, uma questão maior – “saber as razões profundas de nosso insucesso institucional e como superá-las definitivamente”[42]. O país clamava por suas origens e questionava o drama da falta de uma identidade social clara. Vislumbramos, assim, as ações políticas, no Brasil, que culminaram na visão territorial de identidades, quando as propriedades culturais foram trabalhadas na perspectiva contraditória de esquecimento e negligência no processo de seu próprio resgate.

Assim, tratar dos sentidos da nação brasileira torna-se tarefa complexa, uma vez que a nacionalidade não aparece objetivada no mundo concreto, mas é apresentada segundo a ideologia dominante da época como representatividades requeridas[43]. O pressuposto que nos traz em debate é o de que não foram as memórias dos diversos grupos sociais – que compuseram e compõem a nação – que entraram em cena na construção concreta e mesmo imaginada do Brasil, pelo inverso. O território, as cidades e a arte aqui consagrados emergiram no bojo de uma ideologia espacial emanada do Estado em constituição, na busca de uma identidade que, tão somente imaginariamente, seria coletiva e totalizadora. O poder do Estado e suas variantes estéticas esboçam, historicamente, o Brasil no viés fragmentado de uma ideologia espacial que o enxerga apartado da cultura de seus variados componentes étnicos. Por isso, concorda-se aqui que a nação Brasileira é, tão somente, uma realidade imaginada (uma narrativa?)[44], pois deveria ser capaz de convergir todos os indivíduos do território para um quadro único, perceber e institucionalizar um patrimônio cultural que deveria pertencer (e representar) a todos esses indivíduos, por ser uma construção coletiva[45].


A saga pela modernidade e pela identidade brasileiras

Nação e identidade nacional compõem um mesmo quadro, o qual converge para a questão da relação entre memória e tradição, com o fim de congregar, solidariamente, o esboço efetivo da população de um dado território. Por assim tratar, deve ficar evidenciado que nação e nacionalismo convergem ideologia(s), política(s) e cultura(s). Assim, a relação entre nação e identidade(s) se dá no viés da interligação entre indivíduos e classes, quando ambos são representados, pela nação, por meio de objetos, ritos, tradições que simbolizam determinadas ideologias.

No bojo de evidente turbulência republicana, no primeiro quartel do século XX, o ano de 1922 é marco simbólico dos anseios por mudanças. “Eventos como a Semana de Arte Moderna, o levante tenentista, a criação do Partido Comunista e ainda uma conturbada eleição presidencial sepultaram simbolicamente a Velha República e inauguraram uma nova época”[46]. A década de 1920 é a busca pela fundação da Nação e de forja da identidade nacional, que fora “corroída pela mediocridade republicana que impedia o despertar do Brasil moderno. Nesse processo, novas e velhas interpretações sobre as raízes da nacionalidade vieram à tona, buscando as continuidades e rupturas e recriando o país à altura do século XX”[47]. Após se delimitar as fronteiras territoriais do Brasil – a duras penas – chegara a hora de se fundar o caráter de nossa identidade e nacionalidade – também a duras penas.

No período em tela, quando vai emergir o debate sobre o Brasil Moderno, a noção de civilização (vigorante no século XIX, visto no tópico anterior) perde espaço para a necessidade de modernização, de forma que a ideologia espacial permeia os dois momentos da construção da nação, em que o ordenamento e a equipagem do território representam objetivos notórios; o Estado deveria, mais uma vez, agir em prol de um projeto nacional, agora, a construção do Brasil moderno[48].

A partir da segunda fase do modernismo (de 1924 em diante), o ataque ao passadismo é substituído pela ênfase na elaboração de uma cultura nacional, ocorrendo uma redescoberta do Brasil pelos brasileiros[49]. Os modernistas (paulistas) acreditavam que atingiriam a universalidade a partir da leitura do nacional, do encontro e afirmação da chamada “brasilidade”; buscava-se nacionalizar ou abrasileirar o país em prol de uma projeção universal[50].

Durante a chamada República Velha (1889-1930), acentua-se a necessidade de pensar a organização da sociedade e do Estado no Brasil, de se discutir a questão da nacionalidade e da região[51]. Já naquela época, a intelectualidade reproduzia um Brasil aos “olhos da e na Europa”.

O primeiro processo é representado por uma série de intelectuais como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Oliveira Viana e Arthur Ramos que são profundamente pessimistas e preconceituosos em relação ao brasileiro, que é caracterizado entre outras coisas como apático e indolente; nossa vida intelectual sendo vista como destituída de filosofia e ciência e eivada de um lirismo subjetivista e mórbido[52].

Somente aos poucos vão surgir pensadores que trazem uma leitura contrária a esta apresentada. Os representantes da chamada escola indianista da literatura brasileira tem, como autor protagonista desta outra leitura do país, José de Alencar, que retoma as raízes nacionais na imagem dos indígenas e da vida rural, das relações no campo; essa leitura de busca das raízes nacionais brasileiras desenvolve-se ao longo do século XX e torna-se premente no pensamento intelectual da nação[53]. Nessa perspectiva, o chamado movimento modernista brasileiro de 1922 representa um evento e um momento simbólico da leitura do Brasil enquanto Estado Nacional. É tanto uma releitura do Brasil em relação aos movimentos culturais e artísticos que ocorrem no exterior quanto a busca de novas raízes nacionais, que valorizava o que haveria de mais autêntico no país[54].

Nesse mesmo sentido, cabe destacar outro trabalho simbólico, desenvolvido com o título de Manifesto Regionalista, de Gilberto Freyre, o qual não visava projetar a cultura brasileira, mas preservar as tradições regionais em sentido amplo e do Nordeste, em particular[55]. Nessa proposta, teríamos um agregado distinto de regiões que consolidariam o Brasil e não um apanhado de estados.

A necessidade de reorganizar o Brasil – primeiro tema central do Manifesto e preocupação constante de pensadores brasileiros do fim do século passado e começo deste – decorreria do fato de ele sofrer, desde que é nação, as conseqüências maléficas de modelos estrangeiros que lhe são impostos sem levar em consideração suas peculiaridades e sua diversidade física e social[56].

Historicamente, podemos dizer, as propostas administrativas brasileiras são desenvolvidas com os olhos na Europa, levando pouco em consideração as características espaciais intrínsecas do Estado em formação. Gilberto Freyre faz contraponto aos modernistas no sentido de reconhecer a cultura brasileira a partir dos valores nacionais históricos e não da atualização cultural por meio de valores modernos vindos de fora; de certa maneira, o autor faz a crítica aos problemas advindos da modernização conservadora brasileira – o pano de fundo do autor é a crítica à influência do capital estrangeiro sobre o país e sobre a cultura brasileira[57].

Da chamada República Velha para a República Nova, temos, no Brasil, a transição de um Estado descentalizado para uma crescente centralização político-administrativa, o que se acentua após 1930; essas mudanças são acompanhadas pela formação de uma indústria de bens não duráveis, o crescimento exponencial das cidades e a crise do café, a bancarrota do sistema político existente entre oligarquias agrárias (a “política dos governadores”)[58].

Naquele momento, o país passa a ser repensado no âmbito de um processo de consolidação políticoeconômica. “O nacionalismo ganha ímpeto e o Estado se firma. De fato, é ele que toma a si a tarefa de constituir a nação”[59], de maneira que o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) produz uma forte centralização politicoadministrativa.

No plano da cultura e da ideologia, a proibição do ensino em línguas estrangeiras, a introdução da disciplina Moral e Civismo, a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (que tinha a seu cargo, além da censura, a exaltação das virtudes do trabalho) ajudam a criar um modelo de nacionalidade centralizado a partir do Estado[60].

Nesse percurso, foi promovida a regionalização oficial do Brasil, incorporando a noção de região no pensamento e na prática do e sobre o Estado. “Vargas define a brasilidade como o somatório das culturas regionais do país, concepção que estimula um surto de construção de identidades e de criação de tradições em diferentes partes do território nacional, como estratégia mesma de alocação das elites locais no projeto de construção do Brasil moderno”[61]. Antônio Carlos Robert Moraes levanta algumas questões que nos conduzem à reflexão sobre identidade nacional versus identidade regional, estratégias oligárquicas versus estratégia nacional, hegemonia política versus interesses de um Estado igualitário:

(...) o período também foi rico no que tange à formulação de representações do espaço, uma época de ampla difusão de ideologias geográficas (...) com a entrada em cena do conceito de região [na geografia brasileira]. Este, também uma possibilidade de identidade pelo espaço, conhece uma significativa base objetiva de formulação no país. Indagar acerca dos sujeitos e contextos de criação e divulgação dos discursos dos diferentes regionalismos presentes no Brasil abre outro formidável universo de pesquisa. Até que ponto a identidade regional cumpriu um papel de locus de resistência dos dominados? Até que ponto foi uma estratégia oligárquica para se contrapor ao processo de centralização política? Até que ponto foi um expediente do próprio Estado na composição de sua base de hegemonia? Estas são questões que demandam um cabedal empírico ainda em elaboração[62].


Cidades e arte coloniais – a busca continuada aos redutos da brasilidade (perdida?)

Foram criados, também na década de 1930 pelo governo getulista e dentro do aparatado estatal necessário ao novo Estado-nação, o IBGE[63] e o SPHAN[64], para uma melhor explanação sobre o quadro sociogeográfico e cultural do Brasil. A ideologia espacial atinente ao Estado Novo corresponde à mistificação das cidades-arte do interior do território, bem como do litoral nordestino, símbolos do Estado em constituição[65]. O interior do Brasil passa a ser visto como celeiro da cultura e da identidade nacionais, uma identidade que se forja pelo território concreto, pelas lembranças materiais de um passado marcado pela complexização territorial, de forma a se reconhecer que o sertão guardou, como que em um desígnio, as possibilidades do caráter de nacionalidade latente. As cidades coloniais e a arte barroca são apresentadas como elementos de nossas raízes, da memória nacional e de identidade genuína brasileira. Porém, precisamos levar em conta que:

O olhar que se desperta em direção ao passado, divertindo-se e compenetrando-se nas imagens de um outro tempo, suscitadas nos materiais e nas obras que a memória impregnou, longe de constituir-se num impedimento nostálgico à história, instaura um desequilíbrio na relação com o presente, presente vivido e representado como progresso[66].

O interior do Brasil passa a ser visto como marco da identidade necessária à nação, locus do enraizamento da vida colonial a ser desgarrada e recapitulada no presente; “o sertão representa a matriz da brasilidade e o santuário do verdadeiro caráter nacional”[67]. As cidades coloniais e a arte barroca são vistas como objetos de identidade pelo território. O mesmo barroco que aflora para o culto e a persuasão de fiéis, no século XVIII, é resgatado pelo Estado (com apoio dos modernistas e do SPHAN), no século XX, como possibilidade de outro culto: o da conscientização da busca de um “lugar que é nosso”, a construção da pátria, a consolidação do “Estado-nação”[68].

Porém, a busca dessas variantes estéticas projetou cidades e elementos do poder metropolitano (militar, religioso e burguês) e valorou o local na perspectiva exógena produzida no território colonial. Nesse sentido, as cidades e a arte representativas do Estado nacional brasileiro foram, naquele momento, este mesmo patrimônio e não o Brasil. Ao pensar que as formas culturais tendem para a hibridez, são ambíguas e, assim, guardam o complexo da formação do território, torna-se fácil compreender que somos herdeiros de um estilo segundo o qual a identidade forjada é, por natureza, ideológica, quando resulta em atender aos interesses e aos programas de uma minoria privilegiada e representativa do Estado que se queria consolidar[69].

A consagração das cidades e da arte coloniais – por meio de uma estrutura institucional – retrata o percurso de uma delimitação territorial e imaginária da nação em que o Estado passa a atrelar (ainda com um viés elitista) desenvolvimento à cultura, em prol da denominada nacionalidade.

Tal processo de estandardização identificativa da nacionalidade e a transposição ‘natural’ dos interesses de classe da burguesia, como interesses ‘Nacionais’ isentos de conflito social, trouxeram, junto, a transformação das estruturas estatais, não só em aparelhos de controle político militar por parte dessa classe, mas, sobretudo, em estruturas institucionais com as quais promover a identificação patriótica, construindo para isso a consubstanciação da consciência coletiva em uma história e geografia nacionais[70].

Assim, a busca pelo que representaria o Brasil Nação ficou a cargo de uma elite intelectualizada e com subsídio do Estado:

Foi para evitar que o Brasil passasse um dia pela suprema degradação de ver destroçado o seu patrimônio espiritual que uma plêiade de brasileiros da mais alta categoria humana e intelectual – entre eles, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Mário de Andrade, Afonso Arinos de Melo Franco, Luís Camilo de Oliveira Neto, Lúcio Costa, Carlos Drummond Andrade, Sílvio Vasconcelos, Paulo Barreto, Airton Carvalho, Édson Mota – reunidos no SPHAN, criado sob inspiração de Luís Camilo de Oliveira Neto e segundo plano de Mário de Andrade, lançou-se sob a lúcida, enérgica e generosa direção de Rodrigo Melo Franco de Andrade à sobre-humana tarefa de reconquistar para os brasileiros de hoje, e sobretudo as gerações vindouras, os bens culturais que o tempo, a desídia de alguns, a ignorância de muitos e, em tantos casos, a torpeza de vários, ameaçava banir para sempre da memória nacional[71].

Tais ações esboçam o reconhecimento do Estado Novo de que o território em si – enquanto delimitação política – seria um dado vago para se caracterizar a nação; buscou-se, também, parte (e somente uma parte) da diversidade que o constituiu. A língua e a economia agregam-se nesse entendimento, formando uma parte total do todo, capaz de conformar, juntos, a nação e sua memória; é a leitura da cultura de um povo que pode dar integridade ao território nacional, quando “a memória rodeia, roça e penetra os materiais de cultura, neles se apoiando, neles se arraigando, compondo o campo de uma economia, de uma geografia e de uma arquitetura intrinsecamente existenciais”[72]. A cultura é a força motriz, a causa que dá vida à alma nacional com a difusão de ideias, sentimentos e aspirações – faz perpetuar conquistas obtidas, preserva bens adquiridos, protege e amplia o patrimônio acumulado historicamente; “a cultura é a instituição mais permanente de uma nação, pois cada qual tem um patrimônio espiritual que reflete sua fisionomia, fixa o seu caráter”[73].

Cabe ressaltar que há quem reconheça a independência cultural brasileira antes de sua independência política, a partir do barroco que leva a “la independencia cultural y de estilo”; afirmando-se que a pluralidade cultural dos povos iberoamericanos está estreitamente ligada a suas origens peninsulares européias[74]. Então, essa versão de leitura da identidade (no caso brasileiro) reside no processo de colonização, em que, nos primórdios, já se figurava uma identidade cultural com a solidificação de variadas expressões artísticas ligadas às distintas expressões políticas da colonização, no que se refere à América Portuguesa e à América Espanhola. A questão é que, até a década de 1930, no Brasil, não se tinha valorizado ou reconhecido esta arte ou estas cidades como genuinamente brasileiras; esta leitura estava por ser feita e o foi.

O barroco brasileiro (o mineiro e, a posteriori, do litoral), na fase de resgate pelo Estado (pós-década de 1930), não fora compreendido como produto de um sistema de dominação colonial que estabeleceu uma dinâmica contraditória: arte religiosa que amparava um sistema arcaico de controle e de exploração semi-feudal. Ante a diversidade de culturas autóctones, no interior e no litoral, ocorreu a reinterpretação da arte em seus próprios termos – eram mensagens chegadas do Ocidente e decodificadas aos próprios gostos locais. O barroco aparece como signo de uma sociedade colonial estabelecida sobre antigas civilizações conquistadas, de forma que se imprimiu uma estratificação social e cultural baseada na lógica do mundo metropolitano de origem[75].

Naquele primeiro momento (o de resgate das cidades e da arte pretensamente autênticas brasileiras), fora consagrado o patrimônio representante da burguesia colonial e, desta feita, negligenciadas as minorias étnicas que sobrepuseram pedra sobre pedra nestas mesmas cidades construídas durante o processo colonizador (ou civilizatório). Isso representa a ideologia espacial, mais uma vez às avessas da construção na nacionalidade brasileira. A referência seguinte nos faz questionar, justamente, o conteúdo de verdade propalado sobre esse patrimônio cultural e artístico resgatado pelo Estado brasileiro, na década de 1930: “o que outrora foi verdadeiro numa obra de arte e foi desmentido pelo curso da história, só pode de novo vir à luz quando se modificarem as condições em virtude das quais aquela verdade foi liquidada: tão profunda é, no plano estético, a penetração recíproca do conteúdo de verdade e da história”[76].

No processo de resgate da identidade brasileira, negaram-se (e muito ainda se negam) as vidas, culturas e identidades pré-colonização, e mesmo as que se constituíram (minorias) com a saga da complexização do território. O olhar estrangeiro (europeu e americano), para fazer menção a Edward Said, indica que as regiões distantes do mundo não possuem vida, história ou cultura dignas de menção, nenhuma independência ou identidade dignas de representação sem o Ocidente. “O grande arquivo cultural, a meu ver, encontra-se ali onde estão os investimentos intelectuais e estéticos no domínio ultramarino”[77].

A colonização das Américas aproximou o mundo, mesmo que a custa de milhões de vidas e da precarização da existência humana nos lugares conquistados. Entretanto, essa experiência de desapropriação da terra e de seus atributos deve ser tratada como algo compartilhado tanto pelos conquistadores quanto pelos dominados – a decifração da materialidade das cidades aponta-nos esses elementos, apesar de terem sido desconsiderados na década de 1930. Assim, ao representar um Estado-nação, as cidades ou a arte esboçam a história contada por alguém, que está ligada à história de sua sociedade, moldada por essa história e suas experiências cotidianas, quando “a cultura e suas formas estéticas derivam da experiência histórica”[78]. É inegável que a busca de uma identidade é, por natureza, ideológica, quando atende aos interesses de uma classe.

Assim, (Mário de Andrade) encontra no patrimônio das cidades da zona da mineração um estilo original e único no Brasil, tratando-se, pois, de uma unidade estilística que esboçava um notório acervo artístico e cultural nacional. Seria, pois, o denominado ‘barroco mineiro’ (...) o símbolo de identidade nacional pelo território das cidades contempladas na zona da mineração do ouro e dos diamantes. ‘O barroco mineiro, enfim, seria o primeiro estilo artístico da nacionalidade tupiniquim’ (Natal, 2007, p. 199). Logo, essa arte, em Minas Gerais, é mais que um estilo, é o símbolo primaz da história da formação do território nacional, uma vez que estabelece o início de uma tradição artística e de uma morfologia urbana importante da constituição de uma arte ‘regional’ e da emergência de uma rede de cidades antigas que vão sintetizar o Brasil-nação[79].

Temos, então, uma identidade que já nasce fragmentária e fragmentada, pois se referiu, naquele momento, aos bens das elites coloniais, ao serem adotados critérios parciais para a seleção do que deveria ser preservado e enaltecido como símbolo da cultura nacional: casarões, igrejas e palácios ligados à elite branca colonial. Assim, ao território ordenado, agrega-se a fragilidade das representações da identidade coletiva[80]. Nesse quadro, podemos dizer que há, historicamente, uma tendência a se pensar a nação (e as cidades coloniais junto à arte que guardam) mais como produto cultural de uma elite e menos numa abordagem que as esboce como símbolos da formação de territórios ou mesmo da formação socioespacial do Brasil em relação aos seus protagonistas.

Antônio Carlos Robert Moraes, em Notas de Identidade Nacional, afirma que a identidade pelo espaço (noção que se aproxima do que tratamos por ideologia espacial) vai fornecer importantes elementos que legitimam a forma de dominação vigente. Conforme o autor, havia um projeto para as elites, na busca da identidade brasileira, um horizonte referencial unificador de todo o “povo” e também uma justificativa da unidade nacional (tomada como projeto) que em si mesma legitima o Estado; e, ainda, coloca o “povo no seu devido lugar, que é o de subalterno”[81].

Queremos dizer que a colonização do Novo Mundo fez-se sob o subjugo de culturas autóctones e no contexto de formulação de novas identidades, as quais foram ignoradas no momento de seu resgate. O que seria autêntico ou representante da nação nesse processo? Importa-nos recordar que o chamamento ao passado parece ser a estratégia adotada para a interpretação do mundo presente. Porém, não há como entendermos o passado, ou apreciá-lo, de forma apartada do momento atual, pois ambos se comandam reciprocamente; a forma como representamos ou formulamos o passado molda nossa compreensão e concepção do presente[82]. “Assim como nenhum de nós está fora ou além da geografia, da mesma forma nenhum de nós está totalmente ausente da luta pela geografia (pelos lugares). Essa luta é complexa e interessante porque não se restringe a soldados e canhões, abrangendo também ideias, formas, imagens e representações”[83].

Na busca continuada aos redutos de uma brasilidade perdida, parece-nos que a mesma ainda não foi encontrada. Repetidamente, esquece-se de que todas as cidades e sua arte são produtos das fortunas e dos infortúnios de suas civilizações. E se as cidades coloniais brasileiras são resultado do processo civilizatório aqui implantado, com todas as suas contradições, mandos, sacrifícios e ambições, elas não poderiam ser resgatadas enquanto memória nacional (ou do Estado-nação) apenas pelo viés das fortunas de seu surgimento. Há de se recuperar, valorizar e reconhecer os principais atingidos ante os infortúnios desse movimento sobre o território, quais sejam: os negros, os indígenas e seu papel protagonista na construção desta nação – o que pouco é tratado. Os constitutivos da ideologia espacial que consagrou o Brasil como Estado-nação foram e permanecem reduzidos aos símbolos do progresso.

Por fim, talvez Brasília, a moderna capital brasileira inaugurada na década de 1960, seja o último reduto simbólico da busca do Estado pela brasilidade. A capital é síntese recente da história nacional de ambição pelo progresso e pela modernização, em que pouco importou o povo nativo e mesmo seus construtores (nortistas e nordestinos) em mais esse empreendimento geopolítico de integração territorial.


Palavras Finais: permanece a busca pela brasilidade

O Brasil muda seu quadro politicoeconômico após a década de 1950 e, com o mesmo, uma reflexão sobre o país ressurge para ajudar a produzir uma autêntica cultura nacional para o povo – diversas cidades são reconhecidas, nesse âmbito, como patrimônio nacional. Daí o pensar as cidades coloniais consagradas e Brasília como símbolos da cultura nacional moderna – com Aleijadinho, nas primeiras, e Niemeyer, na segunda, cada qual a sua época – enquanto núcleos de formação cultural individualizadas. A construção de Brasília, no cerne da marcha para o Oeste e da integração territorial nacional, estabeleceu debates sobre a saga desta empresa e pela representatividade da arquitetura moderna. Se o barroco representava uma síntese da influência do Ocidente em solo brasileiro, adquirindo aqui feição própria, Brasília seria uma projeção mais recente do país no cenário capitalista avançado, representando o desenvolvimento do urbano e da arquitetura das cidades[84], um marco nacional.

A década de 1950 demarca mais um momento da correlação entre a ideologia espacial – recapitulando o projeto nacional de modernização e de progresso – e as políticas territoriais que guardaram, na história nacional, como mais alto fio condutor, o investimento na integração territorial. “A objetivação do velho projeto geopolítico de interiorizar a capital, associado a um extenso plano viário, completam no interior o esforço industrializante operado nas áreas centrais do país”[85]. A divisão regional do trabalho, no Brasil, após a década de 1950, se perfaz em um mercado nacional redimensionado, baseado na intervenção estatal e na perspectiva de um planejamento para a modernização; só nesse momento, com a significativa urbanização e implantação de sistemas de engenharia mais vultosos no território nacional, é que a ideia de povo ganha espaço no debate sobre a identidade brasileira[86].

Progresso, modernização, complexização territorial continuam como elo entre nação imaginada e nação tal qual ela se concretizou ante um povo que assiste, distinta e passivamente, às transformações e representações socioterritoriais subsidiadas pelo Estado. A consolidação do poder do Estado fez-se ante a valorização de suas variantes estéticas, enquanto elementos substanciais da manutenção da administração e da estratégia para dar sentido histórico e identitário ao Estado nacional brasileiro.

 

Notas

[1] Marilena Chauí, em O que é ideologia, entende por este conceito um conjunto lógico e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar, valorizar, sentir e fazer. Seria um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador. Nesse entendimento, considera-se, para este estudo, a ideologia espacial como as ideias e valores ou resgatados ou negligenciados, no e pelo espaço, ou seja, a convergência entre noções concretas e ideativas que possibilitam a construção da identidade pelo território.

[2] Said, 2011, p. 218.

[3] Lander, 2000.

[4] Termo adotado por Canclini, 2008.

[5] Said, 2011, p. 24.

[6] Para Antônio Carlos Robert Moraes (2005, p. 93), a saga do Império no Brasil parte de um projeto nacional, no qual se “construir o país é o veio ideológico que dá corpo ao período”. Nesse processo, valores caros à elite são prenunciados, dentre eles, o da sacralização do princípio da manutenção da integridade do território nacional, questão norteadora da ação estatal, completa o autor. Ver, também, Magnoli, 2003, para esta análise.

[7] Moraes, 2005. Para o autor, no século XX, especialmente após a década de 1920, quando vai emergir o Brasil Moderno, a noção de civilização (vigorante no século XIX) perde espaço para a necessidade de modernização; vê-se como a ideologia espacial permeia os dois momentos da construção da nação, em que o ordenamento e a equipagem do território representam objetivos notórios; o Estado deveria, mais uma vez, agir em prol de um projeto nacional, agora, a construção do Brasil moderno (Moraes, 2005, p. 93).

[8] Oliven, 1986.

[9] Regime político autoritário imposto pelo presidente Getúlio Vargas, que durou de 1937 a 1945.

[10] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

[11] Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

[12] Anderson, 2008, p. 32.

[13] Anderson, 2008, p. 34.

[14] Bhabha, 1998, p. 199.

[15] Camargo, 2001, p. 308.

[16] Camargo, 2001, p. 308.

[17] Anderson, 2008, p. 83.

[18] Magnoli, 2003, p. 29, 40.

[19] Jancsó & Pimenta, 2000, p. 132.

[20] Anderson, 2011, p. 279-280.

[21] Jancsó e Pimenta, 2000.

[22] Jancsó & Pimenta, 2000, p. 139.

[23] Moraes, 2005, p. 93.

[24] Moraes, 2005, p. 93.

[25] Moraes, 2005.

[26] Moraes, 2005, p. 94.

[27] Dias, 2005, p. 17-18.

[28] Dias, 2005, p. 19-20.

[29] Escolar, 1996.

[30] Prado Júnior, 1986, p. 192-193.

[31] Dias, 2005, p. 35-37.

[32] Prado Júnior, 1986, p. 204.

[33] Moraes, 2005, p. 95.

[34] Moraes, 2005, p. 95.

[35] Moraes, 2005, p. 95.

[36] Jancsó & Pimenta, 2000, p. 155.

[37] Jancsó & Pimenta, 2000, p. 159.

[38] Hobsbawm, 1998, p. 210.

[39] Hobsbawm, 1998, p. 210.

[40] Said, 2011.

[41] Roos, 1966, apud Hobsbawm, 1989, p. 211.

[42] Camargo, 2001, p. 330.

[43] Não basta uma comunidade histórica, uma comunidade geográfica ou psíquica para que sobreviva a nação. Há de se entender o sentido de uma comunidade estável, afirma Franklin Oliveira, em Morte e Memória Nacional. A interpretação da comunidade estável em sua continuidade histórica e geográfica assegura à nação nascente a sobrevida – que persista e dure. “Só a consciência nacional dá a permanência das nações. A consciência nacional é o nome da comunidade estável.” Oliveira, 1967, p. 26.

[44] Não podemos desconsiderar a perspectiva de que a forja de uma nacionalidade se dá por meio da narrativa, quando “as próprias nações são narrativas; o poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos.” (Said, op. cit., p. 11). A cultura que se projeta sobre uma nação representa o que de melhor sua sociedade constituinte tem a apresentar ao mundo. “Com o tempo, a cultura vem a ser associada, muitas vezes de forma agressiva, à nação ou ao Estado: isso ‘nos’ diferencia ‘deles’, quase sempre com algum grau de xenofobia. A cultura (...) é uma fonte de identidade (...) cultura é uma espécie de teatro em que várias causas políticas e ideológicas se empenam mutuamente” (Said, op. cit., p. 12).

[45] Essa análise é aprofundada em Jancsó & Pimenta, 2000.

[46] Camargo, 2001, p. 331.

[47] Camargo, 2001, p. 331.

[48] Moraes, 2005.

[49] Oliven, 1986, p. 02.

[50] Oliven, 1986, p. 02.

[51] Oliven, 1986, p. 01.

[52] Oliven, 1986, p. 01.

[53] Oliven, 1986.

[54] Oliven, 1986.

[55] Oliven, 1986.

[56] Oliven, 1986, p. 02.

[57] Oliven, 1986.

[58] Oliven, 1986, p. 04.

[59] Oliven, 1986, p. 05.

[60] Oliven, 1986, p. 05.

[61] Moraes, 2005, p. 98.

[62] Moraes, 1991, p. 174.

[63] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

[64] Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

[65] Um panorama geral sobre o acervo patrimonial brasileiro pode ser pesquisado no site: www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm

[66] Gonçalves Filho, 1989, p. 95.

[67] Moraes, op. cit., p. 97.

[68] Costa, 2011; Neves, 1986.

[69] No processo de resgate da identidade brasileira, negaram-se as vidas, culturas e identidades pré-colonização e mesmo as que se constituíram (minorias étnicas) com a saga da complexização do território, conforme Said, op. cit., p. 23.

[70] Escolar, 1996, p. 107.

[71] Oliveira, 1967, p. 82.

[72] Gonçalves Filho, 1989, p. 107.

[73] Oliveira, 1967, p. 23.

[74] Castedo, 1996.

[75] Stastny, 1992.

[76] Adorno, 1970, p. 54-55.

[77] Said, 2011, p. 23.

[78] Said, 2011, p. 24.

[79] Costa, 2011, p. 138.

[80] Costa, 2011, p. 131.

[81] Moraes, 1991.

[82] Said, 2011.

[83] Said, 2011, p. 39.

[84] Oliven, 1986.

[85] Moraes, 2005, p. 99.

[86] Moraes, 2005.

 

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Ficha bibliográfica:

COSTA, Everaldo Batista da y Júlio César SUZUKI. A ideologia espacial constitutiva do Estado nacional brasileiro. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (6). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-6.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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