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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (67), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

ESTADO E REDE DE TRANSPORTES EM GOIÁS-BRASIL (1889-1950)

Denis Castilho
Universidade Federal de Goiás
deniscastilho@hotmail.com

Estado e rede de transportes em Goiás-Brasil (1889-1950) (Resumo)

No final do século XIX o povoamento em Goiás era disperso e as localidades forjadas por restritas relações com outros espaços do país. Criar as condições para que a fronteira econômica nacional alcançasse as terras goianas significava que a criação de um Estado e a constituição de um marco legal deveria ser acompanhada por uma infraestrutura que permitisse a ligação entre diferentes espaços produtivos e de consumo. As redes de transportes, nesse sentido, foram importantes meios para a conexão de Goiás com outros espaços do país, especialmente com o sudeste brasileiro. Este trabalho analisa essas questões no sentido de evidenciar a relação entre política e técnica na formação da estrada de ferro em Goiás. Para tanto, abordamos as concepções de Estado e seu papel na formação do espaço goiano, analisamos a relação entre política, economia e atores sociais e o modo como a ferrovia influenciou a organização do espaço goiano na primeira metade do século XX.

Palavras chave: Estado, redes de transporte, organização espacial.

State and transport network in Goiás-Brazil (1889-1950) (Abstract)

In the late nineteenth century the settlement in Goiás was dispersed and the localizations were forced by strict relations with other areas along the country. Creating conditions so the national economic reached goianas border lands meant that the creation of a state and the constitution of a legal framework might be followed by an infrastructure that allowed to connect different areas of production and consumption. This way, transport networks were important to connect other Goiás areas with the country, especially with Brazil southeast. This article examines these issues in order to show the relationship between political and technical training of the railway in Goiás Therefore, we discuss the state concepts and its role for the formation of goiano space analyzing the relationship between politics, economics and social actors an how the railroad influenced Goiás spatial organization in the first half of the twentieth century.

Key words: State, transport networks, spatial organization.


É significativo o papel que as redes de transportes desenvolvem junto ao sistema produtivo. Além de condicionar os fluxos do território e a própria produção de bens e produtos, a sua distribuição e/ou espacialização diferenciada influencia uma produção do território também desigual, direcionando a produção para regiões específicas e configurando o território conforme as ações dos atores sociais. Neste contexto, o Estado, além de normatizar o território, influencia a sua produção e também participa da implantação da infraestrutura por meio do qual os grupos impõem suas ações. Este trabalho analisa a formação de uma rede de transportes específica: a Estrada de Ferro Goiás. Política e técnica se desenvolveram no território goiano a partir dos contextos históricos e econômicos verificados no país, assim como de suas condições espaciais, posicionado na porção central do Brasil e desprovido de meios que possibilitassem, no final do século XIX e início do século XX, maiores relações interestaduais. Nesse sentido, a implantação da ferrovia foi um elemento fundante para a emergência da modernização em Goiás.

Em nível nacional, a primeira ferrovia foi construída na década de 1850, no Rio de Janeiro[1]. Daquele período até então, conforme o Ministério dos Transportes do Brasil[2], somam-se 29.706 quilômetros de trilhos distribuídos por 23 Unidades Federativas brasileiras em 2010. No século XIX os trilhos foram implantados em Pernambuco (1858), Bahia (1860), São Paulo (1867), Alagoas (1868), Ceará (1873), Rio Grande do Sul (1874), Minas Gerais (1874), Espírito Santo (1879), Rio Grande do Norte (1881), Paraíba, Maranhão e Paraná em 1883, Santa Catarina e Pará em 1884. Isso demonstra que a malha ferroviária brasileira se formou a partir das regiões litorâneas. Em Goiás, os primeiros trilhos foram implantados em 1911. Nesse mesmo período também foram construídas ferrovias em Rondônia (1910), Mato Grosso do Sul (1912), Sergipe (1913) e, na década seguinte, no Piauí (1922). Os trilhos alcançaram o Distrito Federal em 1968 a partir da ferrovia que já havia sido construída em Goiás. A implantação dos trilhos seguiu o padrão de interligação com as linhas já construídas. Em decorrência disso, a ferrovia chegou em Tocantins somente em 2002. A construção dessa malha, sobretudo no século XIX, foi estimulada por capitais privados nacionais e internacionais, especialmente da Inglaterra, de onde era construída grande parte dos trilhos e vagões. O Estado esteve presente na implantação dessa infraestrutura assumindo obras incompletas ou redes já implantadas por companhias que foram à falência. No caso goiano não foi diferente, já que na década de 1920 a construção da ferrovia foi assumida pela União.

As redes ferroviárias implantadas no Brasil cumpriram importantes papéis para o funcionamento do território, uma vez que se constituíram como principais meios de circulação de bens, produtos e pessoas na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX. Essas redes são consideradas como meios técnicos[3] elementares para as relações entre diferentes regiões. No geral, diferente das redes de comunicações, que proporcionam maior circulação de informações, as redes de transportes estão mais “ligadas” ao fluxo e circulação de bens materiais. Por isso da sua importância em todos os níveis da produção. A infraestrutura para circulação aparece, na atualidade, como uma necessidade extrema, como tem argumentado Mirlei Fachini Vicente Pereira[4]. Na medida em que a modernização se expande por diferentes regiões, a necessidade por sistemas de transportes bem articulados é cada vez maior. No entanto, como podemos compreender esse processo a partir da relação entre técnica - representada pela ferrovia – e aspectos político-econômicos que envolvem o Estado? A partir dessa questão, desenvolvemos uma análise do significado da política e das redes de transportes para o processo de modernização em Goiás desde o momento em que este deixou de ser província em 1889 até meados do século XX, momento em que as estruturas socioeconômicas montadas nas primeiras décadas desse século foram metamorfoseadas.

A metodologia do trabalho baseou-se em pesquisa bibliográfica com levantamento e revisão de publicações sobre a formação de Goiás no período evidenciado; pesquisa documental em acervos (impressos e eletrônicos) de instituições públicas e privadas; trabalho de campo na região da “antiga” Estrada de Ferro Goiás; levantamento de dados na Secretaria de Estado de Gestão e Planejamento de Goiás, no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no Ministério dos Transportes, na Agência Nacional de Transportes Terrestres, em Anuários e em sites que disponibilizam informações históricas, como A História nos Trilhos e Estações Ferroviárias do Brasil. Também foram fundamentais as informações obtidas por meio das Revistas Ferroviária, Centro-Oeste e A Informação Goyana, que possuem ricas documentações e informações sobre as ferrovias do Centro-Oeste brasileiro, especialmente de Goiás. Como a ferrovia foi o modal que exerceu grande influência no conjunto das transformações socioespaciais durante as primeiras décadas do século XX, a análise foi direcionada à formação dessa rede de transporte e nas influências que ela exerceu na dinâmica socioespacial de Goiás.


Estado, política e redes técnicas em Goiás no início do século XX

As redes técnicas são tidas como elementos de expansão do capitalismo pelos lugares. Além de meios de integração da economia regional e também dos sistemas produtivos nacionais, elas configuram a geografia dos territórios e dos centros urbanos, como assinalado por Horacio Capel[5]. Mas a sua implantação é determinada pelo conjunto de ações dos atores hegemônicos, o que nos leva a considerar os sistemas técnico-produtivos a partir do modo como são apropriados e dinamizados pelos sistemas político-ideológicos. O Estado, nesse sentido, é um elemento central e também determinante para compreendermos o modo como as redes técnicas são apropriadas pela política. Mas de que Estado estamos nos referindo?

O conceito é abrangente e polissêmico. A palavra é proveniente do latim status que se remete ao modo de estar de um objeto, pessoa e, portanto, de uma situação. Mas as definições vão além. O conjunto de instituições que ordenam o território forma a principal representação do termo. Em decorrência disso é usual grafar a primeira letra da palavra em maiúscula para designar à instituição “maior” e/ou “mais geral” responsável pela organização do território: o Estado. A definição do dicionário Houaiss da língua portuguesa é a seguinte: “conjunto de condições em que os seres e/ou coisas se encontram; país soberano (inicial maiúscula); conjunto de instituições públicas de um país (inicial maiúscula); divisão territorial e administrativa de certos países [...] (HOUAISS e VILLAR, 2001, p.314).

O geógrafo alemão Friedrich Ratzel deu muita ênfase ao Estado em seus estudos. Quando uma sociedade se organiza para defender o território, transforma-se em Estado, dizia Ratzel[6]. Nesses termos, Estado parece ser sinônimo de país, mas no geral as ideias de território, povo, governo, organização, normatização e poder estão muito presentes nas definições de Estado - aqui nos remetendo ao conjunto de instituições que organizam o território. Claude Raffestin[7] assinalou que o poder não está somente nos Estados maiores (países), mas também em outras escalas das relações sociais e institucionais. O fato é que o pensamento sobre Estado é amplo e determinado pelos aspectos político-ideológicos de quem o define. Nas concepções clássicas, por exemplo, o Estado foi relacionado ao poder legislativo e executivo ou como interventor e mediador dos conflitos sociais. O ponto em comum das concepções de Estado nessa acepção é a definição deste como instituição indispensável para “controlar os conflitos gerados pelos próprios indivíduos, seja na proteção da propriedade privada, nas articulações para evitar a guerra ou mesmo no estreitamento econômico dos indivíduos”[8]. Há também um conjunto de autores que conceberam o papel do Estado a partir da doutrina liberal, como exemplo de Adam Smith. Segundo Freitas, Smith defendia que o impulso pelo desejo econômico pautado na competição seria um fato marcante nos indivíduos, sendo os ganhos econômicos importantes tanto para os sujeitos assim como para a sociedade como um todo. Nesse sentido, o Estado deveria se restringir ao papel de possibilitar a competição de maneira igual em uma lógica de mercado. Nessa perspectiva liberal, portanto, trata-se de um Estado mínimo.

Além de designar um país ou uma região político-administrativa, Estado também é considerado como uma instituição poderosa das classes que dominam um país ou região. Trata-se, nos termos de Karl Marx e Friedrich Engels[9], de um Estado classista por ser apropriado pelos atores que comandam a produção do território, como exemplo dos proprietários de grandes empresas e/ou corporações[10]. De uma maneira sintética, para a corrente crítica o Estado é definido pela sociedade que o apropria. E nessa apropriação, as classes dão ao Estado a dimensão de seus interesses e dominação. Mas a aceitação desse domínio resulta, segundo Gramsci, da apropriação das normas pela classe burguesa que tem o Estado como um aparato ideológico que contribui com a legitimação dos valores hegemônicos[11]. Na perspectiva de classe “o Estado é ao mesmo tempo um produto das relações de dominação e o seu modelador”, como bem observa Martin Carnoy[12]. Nicos Poulantzas também ressalta o papel determinante das relações de classe na estruturação do Estado. Segundo este autor, a forma e a função do Estado moderno são determinados pelas relações de classe intrínsecas ao modo de produção capitalista[13].

Por conseguinte, “o Estado também é uma expressão ou condensação de relações sociais de classe”, e estas relações implicam, conforme Carnoy, na dominação de um grupo por outro[14]. No que se refere à política de dominação, Guillermo O’Donnell considera o Estado como “el componente específicamente político de la dominación en una sociedad territorialmente delimitada [..] El concepto de Estado resulta equivalente al plano de lo específicamente político, y éste, a su vez, es un aspecto del fenómeno mas amplio de la dominación social[15]. O fato é que, como salientado por Carnoy, “compreender o que seja política no sistema econômico mundial de hoje é, pois, compreender o Estado nacional e compreender o Estado nacional no contexto desse sistema é compreender a dinâmica fundamental de uma sociedade”[16]. Quando nos referimos ao Estado moderno – ou capitalista, é necessário considerar as suas características constitutivas, os processos históricos responsáveis pela sua produção e suas distintas formações conforme os contextos históricos e geográficos. Também é necessário analisar a atuação concreta do Estado no interior da vida social por meio das bases jurídicas e institucionais, de sua estrutura funcional, das políticas públicas, etc.

A preocupação com a formação do espaço goiano a partir das influências da política e da técnica nos leva a considerar o Estado (moderno) como produto e meio de relações de dominação, sobretudo como importante componente político que atua no interior da vida social e na normatização e/ou organização do território por meio do conjunto de instituições, órgãos, bases jurídicas, políticas públicas e de sua estrutura funcional. Mas, além disso, é fundamental considerar especialmente o modo como as classes sociais e/ou os atores hegemônicos (empresas e coorporações) apropriam-no para impor suas ações, evidenciando-o como produto e meio estratégico para o controle do território. Por isso questionamos as teses que pregam o fim do Estado. Há, na verdade, uma (re)significação do papel do Estado e da própria política pelas classes hegemônicas e não, necessariamente, uma crise política, como muitos insistem em afirmar. E por mais que as concepções neoliberais acerca do Estado mínimo ainda sejam eminentes, é indiscutível o papel que ele exerce como intermediador da produção do território. No caso goiano, a formação do Estado foi acompanhada pela atuação de elites locais sempre preocupadas com a hegemonia territorial tendo nesta instituição um dos principais meios de consolidação de suas ações.

Assim, não podemos dissociar a discussão dos sistemas político-ideológicos daqueles ligados a infraestrutura técnico-produtiva. Por isso que nos remetemos aos atores sociais e ao Estado para compreender o modo como as redes técnicas são apropriadas e/ou ideologizadas. Em Goiás, o advento da República e a construção da Estrada de Ferro Goiás representaram importantes momentos para o que podemos chamar de emergência da modernização nesta Unidade da Federação. Mas esse processo foi lento e envolveu distintas ações, como exemplo do Movimento Republicano em Goiás que segundo Luiz Palacín e Maria Augusta de Sant’Anna Moraes tomou corpo somente a partir de 1870, justamente na década em que se processaram transformações de ordem socioeconômica, como o “surto cafeeiro, o desenvolvimento do crédito bancário, o impulsos à industrialização, a decadência da mão-de-obra escrava, o incremento à imigração européia, a urbanização, o desenvolvimento do mercado interno, etc”[17]. A ausência do telégrafo em Goiás no final do século XIX e de outras redes técnicas tornava ainda mais difícil a comunicação deste território com o sudeste do país. A notícia da proclamação da república, celebrada em 15 de novembro de 1889, chegou em Goiás somente 13 dias após o seu ato, causando surpresa nos políticos e nas elites agrárias. De início, apesar das transformações no campo administrativo, os aspectos econômicos e sociais não sofreram grandes impactos.

“As elites dominantes continuaram as mesmas; não ocorreu a imigração européia; os latifúndios improdutivos, áreas imensas, continuaram por povoar e explorar; a decadência econômica permaneceu sem que se pensasse em modificar a estrutura de produção; a pecuária e a agricultura continuaram deficitárias; a educação, em estado embrionário; o povo continuou esquecido em suas necessidades, mas usado pelos hábeis políticos, que baixavam decretos em seu nome”[18].

Apesar de uma permanência das lógicas imperialistas, os ideais republicanos de construir uma base para o progresso econômico no Brasil emergiam nas políticas liberalistas das primeiras décadas do século XX. No caso de Goiás, onde a ideia de atraso no contexto da economia nacional era reproduzida, havia a expectativa de crescimento por meio da pecuária, como assinalado por Nasr Fayad Chaul[19]. Segundo este autor, “as propostas de superação do atraso na Primeira República fundamentaram-se na expectativa de ascensão da agricultura, principalmente após a penetração em Goiás dos trilhos da estrada de ferro”[20]. A integração do território goiano com o sudeste brasileiro e o crescimento da produção agropecuária regional tinham na ferrovia o meio mais viável e eficiente de consolidação.

Política e técnica, materializados pela atuação dos atores sociais, pela formação das Unidades Federativas e pela implantação de redes de transportes, foram elementos fundamentais para o advento do capitalismo na porção central do Brasil. O sistema federativo possibilitou, por exemplo, a absorção da receita de exportação pelo Estado, a obtenção de empréstimos e financiamentos, a organização da segurança pública e a autonomia política - o que era improvável no período imperial[21]. As redes de transportes possibilitaram a integração das regiões produtoras e a circulação de produtos agropecuários. O fato é que a localização de Goiás no final do século XIX e início do século XX, marcada pela distância e difícil acesso, permitiu o desenvolvimento de uma dinâmica político-econômica marcada pelas práticas das elites agrárias locais e pelos intentos de uma classe capitalista que emergia no sudeste brasileiro. Este fato nos permite afirmar que a modernização em Goiás teve certa absorção e/ou assimilação interna conforme os interesses das classes dominantes locais, todavia foi imposta por um conjunto de processos provenientes das dinâmicas econômicas que já existiam na porção sudeste brasileiro, por isso ela foi exógena. Movida por ações capitalistas, a modernização encontrou no território goiano uma estrutura de poder assentada nas elites agrárias. Esse fato marcou profundamente a questão política e econômica goiana na primeira metade do século XX.

A historiografia goiana que trata deste período tem sido produzida por um debate polêmico. Por um lado defende-se a ideia de manutenção do “atraso” forjado pelas oligarquias de modo a manter os seus domínios políticos. Nesta concepção, apesar de se admitir que a ferrovia representou um marco pioneiro no processo de tecnificação do espaço, ao “alcançar” o território goiano, os trilhos “encontraram” um terreno onde a política era exercida por uma estrutura de poder resistente às lógicas econômicas que emergiam no sudeste brasileiro – de onde as primeiras ferrovias deste país foram implantadas. Isto é, as oligarquias dominantes manifestaram certa resistência à construção da ferrovia visto que ela representaria a implantação de uma lógica econômica que poderia ameaçar o poder dos coronéis. A criação do Estado em Goiás, nesse sentido, não representou um marco diferencial, já que as estruturas políticas praticamente permaneceram, uma vez que as famílias que se apropriaram da política regional foram as mesmas do período imperial. Em síntese, os líderes políticos regionais forjavam a manutenção do atraso em Goiás com o objetivo de forçar a manutenção do poder dos coronéis[22]. E como a estrada de ferro colocaria Goiás em contato com dinâmicas socioeconômicas que poderiam promover uma alteração na estrutura de poder, as elites agrárias goianas seriam resistentes aos projetos nessa direção.

Por outro lado, há uma concepção que defende não ser justificável as elites agrárias goianas das primeiras décadas do século XX terem sido contra a implantação da ferrovia, uma vez que essa rede técnica alavancaria a exportação dos produtos agropecuários. Chaul, por exemplo, afirma que os grupos políticos goianos não poderiam ter objeções ao desenvolvimento de Goiás, pois estariam indo contra seus interesses econômicos. Acrescenta que “os próprios coronéis tinham interesses políticos na ferrovia, pois ela era um dos meios de diferenciá-los por apostarem no desenvolvimento – uma bandeira política erguida à medida que os resultados econômicos iam surgindo”[23]. O grande número de vilas e cidades que surgiram em decorrência da ferrovia significou muitas transformações para Goiás, menos atraso, argumenta Chaul. Este autor ainda afirma que a questão do atraso é uma derivação da concepção de decadência, ambas construídas “com base em modelos externos (Europa) que formavam o parâmetro de referência por meio do qual os viajantes reproduziram uma visão sobre Goiás”[24].

Parece ser necessário, nesse debate, uma análise que envolva o modo como Goiás foi sendo espacializado no contexto do território nacional. É preciso entender a produção da política e a sua apropriação pelos grupos locais. Mas é fundamental considerarmos a construção do sentido espacial de Goiás ao longo do tempo, onde o paradigma da “distância” parece ter influenciado profundamente o modo como a técnica e a política foram sendo desenvolvidos neste território. Se observarmos a posição de Goiás no território nacional no final do século XIX, podemos compreender a ideia de “isolamento” ou as dificuldades de conexões com as regiões onde o capitalismo já se expandia. A concepção de localização, aqui, não é como um dado acabado, mas como uma construção. Por isso é necessário entender a formação de Goiás, assim como de sua política e de sua infraestrutura como processos. No caso específico das redes técnicas, como exemplo da estrada de ferro, estas vieram dar novos sentidos para a localização de Goiás no contexto do território nacional e também para a política. Por meio das redes se construiu um novo sentido de posição e também de função. Vejamos o caso da Estrada de Ferro Goiás.


A formação da Estrada de Ferro Goiás e seu sentido territorial

Como mencionado anteriormente, no final do século XIX e início do século XX, tanto a política como a técnica se desenvolveram em Goiás a partir dos contextos históricos e econômicos verificados no país assim como das condições espaciais do território naquele período, posicionado na porção central do Brasil e desprovido de meios que possibilitassem maiores relações interestaduais. Nesse sentido, a implantação de redes de transportes, principalmente as ferrovias, foi um elemento fundante para a emergência da modernização em Goiás. Os caminhos de Goiás no período em que foi proclamada a república, em 1889, eram muito sinuosos, como ressaltado por Wilson Cavalcanti Nogueira[25]. Os longos caminhos e os trechos com relevo irregular eram vencidos por dois meios de transportes: pelas tropas e pelo carro de bois. As viagens até Araguari-MG, ponta de linha da Estrada de Ferro Mogiana, duravam dias, excluindo a possibilidade de transporte de mercadorias perecíveis e tornando impraticável a produção de artigos agrícolas para o mercado. Pela ausência de uma infraestrutura de transportes, os fretes do sertão goiano para o Rio de Janeiro às vezes tinham valores iguais àqueles cobrados da Europa ao Brasil[26]. Esses fatos, aliado as razões políticas e econômicas de caráter nacional, influenciaram interesses pela implantação da ferrovia em Goiás.

Na segunda metade do século XIX já haviam alguns projetos e planos para implantação de uma rede de transportes na província de Goyaz, como exemplo, em 1851, do projeto ferroviário para implantação de uma rede de estradas de ferro no Brasil apresentado pelo parlamentar Paulo Cândido à Câmara dos Deputados do Império[27]. Também, na década de 1870, o então presidente da província de Goiás, Antero Cícero de Assis, planejou construir uma ferrovia ligando a Cidade de Goiás à Estrada de Ferro Mogiana, em Minas Gerais[28]. Novas tentativas foram verificadas na década seguinte, mas há controversas sobre a existência desses planos. Délio Moreira de Araújo[29], por exemplo, defende que o primeiro plano ferroviário para a consolidação de um sistema de transporte terrestre em Goiás data de 1890. Em todos os casos, apesar das tentativas verificadas na segunda metade do século XIX, muitos fatores dificultaram a interiorização das estradas de ferro na porção central do país tanto no período mencionado assim como no início do século XX, como observa Barsanufo Gomides Borges,

“a política ferroviária do Império – inadequada à realidade nacional -; os interesses políticos regionais envolvidos nos planos e projetos ferroviários; as condições econômicas das regiões interioranas neste período de ainda pouca expressividade do processo de acumulação do capital; tudo isso agravado pelas condições econômico-financeiras do país – de extrema carência de capital – foram os fatores cruciais que dificultaram a interiorização das estradas de ferro, permanecendo assim o Centro-Oeste, quase isolado no resto do país até as primeiras décadas do século XX”[30].

Apesar das dificuldades encontradas tanto no campo político e econômico e também pela localização de Goiás, os trilhos começaram a ser construídos em direção às terras goianas na primeira década do século XX. De acordo com Borges[31], a Companhia Estrada de Ferro Goiás foi criada em março de 1906 com capital privado e apoio do governo federal. A sua construção teve início em 1909 no município de Araguari-MG, e em 1911 o primeiro trecho da Estrada de Ferro Goiás foi inaugurado. Ele ligava a estação de Araguari, onde os trilhos da Mogiana haviam alcançado desde o ano de 1896, à localidade onde viria a ser construída a Estação Engenheiro Bethout (inaugurada em 1922), às margens do rio Paranaíba, na divisa de Minas Gerais com Goiás. Nesse mesmo ano foi inaugurada, já em solo goiano, a estação de Anhanguera e em 1913 as estações de Cumari, Veríssimo, Goiandira, Engenheiro Raul Gonçalves e Ipameri. Em 1914 outras estações foram inauguradas nos trechos seguintes da ferrovia, como exemplo de Inajá, Urutaí e Roncador[32]. A estação de Roncador foi ponta de linha até 1922, ano em que se inaugurou a estação em Pires do Rio após a conclusão da ponte Epitácio Pessoa sobre o rio Corumbá. Durante oito anos as intermediações da estação de Roncador foram muito dinamizadas pelas atividades de um porto fluvial, que perdeu sua função com a conclusão da ponte[33]. Os períodos de inauguração dos principais trechos da ferrovia e das estações seguem organizados no quadro 1.

 

Quadro 1.
Estrada de Ferro Goiás: período de inauguração dos trechos e estações (1909-1978)

Trecho e período

Estações e Conexões

Inauguração

Município atual

Linha-Tronco
Araguari - Roncador
(1909 – 1914)

Araguari (Conexão com Estrada de Ferro Mogiana e Porto de Santos)

1896

Araguari-MG

Amanhece

1911

Araguari-MG

Ararapira

1924

Araguari-MG

Quilômetro 38

1946

Araguari-MG

Horto Florestal

1944

Araguari-MG

Engenheiro Bethout

1911

Araguari-MG

Anhanguera

1911

Anhanguera-GO

Soldado Mendanha

1945

Cumari-GO

Cumari            

1911

Cumari-GO

Veríssimo

1913

Cumari-GO

Soldado Ferrugem

1951

Goiandira-GO

Goiandira (Conexão com ramal de Ouvidor e, de 1942 a 1970, com a linha-tronco da RMG que ligava Goiandira à Angra dos Reis)

1913

Goiandira-GO

Coronel Pirineus

1945

Goiandira-GO

Soldado José Francisco

1950

Ipameri-GO

Eng. Raul Gonçalves

1913

Ipameri-GO

Ipameri

1913

Ipameri-GO

Inajá

1914

Ipameri-GO

Urutaí

1914

Urutaí-GO

Roncador

1914

Urutaí-GO

Ramal de Ouvidor
Goiandira - Ouvidor
(1913 – 1922)

Catalão

1913

Catalão-GO

Ouvidor (Conexão com RMV de 1942 a 1970)

1922

Ouvidor-GO

Linha-Tronco
Pires do Rio - L.Bulhões
(1922 – 1931)

Pires do Rio

1922

Pires do Rio-GO

Soldado Esteves

1953

Pires do Rio-GO

Engenheiro Balduíno

1922

Orizona-GO

Egerineu Teixeira

1923

Orizona-GO

Quilômetro 265

1953

Vianópolis-GO

Caraíba

1923

Vianópolis-GO

Ponte Funda

1924

Vianópolis-GO

Vianópolis (antiga Tavares)

1924

Vianópolis-GO

Silvânia (antiga Caturama)

1930

Silvânia-GO

Leopoldo de Bulhões (Conexão com ramal de Anápolis)

1931

Leopoldo de Bulhões-GO

Ramal de Anápolis
L. Bulhões - Anápolis
(1931 – 1935)

Engenheiro Valente

1935

Anápolis-GO

General Curado

1935

Anápolis-GO

Engenheiro Castilho

1951

Anápolis-GO

Anápolis

1935

Anápolis-GO

Linha-Tronco
L. Bulhões – Goiânia
(1950 – 1964)

Jarina (Saída para Anápolis)

1950

L. de Bulhões-GO

Mestre Nogueira

1950

L. de Bulhões-GO

Senador Paranhos

1950

Bonfinópolis-GO

Bonfinópolis

1950

Bonfinópolis-GO

Honestino Guimarães

1950

Bela Vista de Goiás

Senador Canedo

1950

Senador Canedo-GO

Engenheiro Nunes Galvão

1950

Senador Canedo-GO

Santa Marta

1950

Goiânia-GO

Goiânia

1952

Goiânia-GO

Campinas

1964

Goiânia-GO

Fonte: Elaboração própria com dados da revista A Informação Goiana (1917-1935) e do portal Estações Ferroviárias do Brasil (2010).

 

Na Estrada de Ferro Goiás, em trecho que antecedia a estação de Roncador, havia outro ramal ligando a estação de Goiandira ao município de Catalão, inaugurado no ano de 1913. Nesse período e nos anos que sucederam a Primeira Guerra Mundial houveram paralisações nas construções da ferrovia até início da década de 1920. Problemas financeiros, irregularidades contratuais de empresas empreiteiras, conflito armado, interesses econômicos e políticos também foram motivos para que as obras ficassem paralisadas[34]. Além disso, durante a década de 1910, os grupos mineiros forçaram muitas modificações no traçado da Estrada de Ferro Goiás. De acordo com Borges, “o objetivo destes grupos era justamente o de retardar o avanço dos trilhos até Goiás, o que significava a garantia de continuidade dos seus privilégios econômicos” conquistados a partir da centralidade de Araguari[35]. A construção da linha principal da Rede Mineira de Viação – RMV, que ligaria o município de Formiga-MG à Catalão-GO também enfrentou inúmeros problemas de ordem econômica e política e em função da topografia do terreno, bastante irregular em alguns trechos. Pelo fato do trecho ferroviário entre Catalão e Formiga ter sido concluído somente na década de 1940, “o qual viria a colocar o Centro-Oeste em contato direto com o Rio de Janeiro, a linha que partiu de Araguari rumo à capital goiana é que se acabaria implantando a primeira via de transporte moderno em Goiás, servindo assim como marco inicial de um processo de modernização regional[36].

Em 1922, o ramal que ligava Goiandira a Catalão foi prolongado até Ouvidor. E como a linha principal de Formiga veio alcançar este trecho somente duas décadas depois, Ouvidor se constituiu como ponta de linha até 1942. Todos os problemas acumulados até a década de 1920 fizeram com que a Companhia Estrada de Ferro Goiás fosse assumida pela União, dando continuidade à construção dos trilhos em direção a Anápolis, alcançando esta cidade na década de 1930, mesmo período de transferência da capital de Goiás para Goiânia em 1937. A ligação ferroviária até a essa capital alterou o Plano Geral de Viação, que previa a construção da ferrovia em direção a antiga capital, Cidade de Goiás[37].

No trecho que ligava a ferrovia até Anápolis, Nogueira distingue duas etapas principais, baseadas nas influências que os trilhos exerceram frente às realidades regionais: a primeira corresponde ao período em que os trilhos alcançaram as margens do rio Corumbá, na estação e Porto de Roncador, totalizando 201 quilômetros concluídos até 1914. A construção da ponte Epitácio Pessoa sobre o rio Corumbá e a inauguração da estação Pires do Rio em 1922 marcaram a segunda etapa da ferrovia, que alcançou a cidade de Anápolis em 1935[38]. Como mostra o quadro 1, na década de 1920 outras estações foram sendo inauguradas, sendo Engenheiro Balduíno (1922) e Egerineu Teixeira (1923) no município de Orizona-GO e Caraíba (1923), Ponte Funda (1924) e Vianópolis (1924) no município de Vianópolis-GO. Na década seguinte foram inauguradas as estações de Silvânia (1930) e Leopoldo de Bulhões (1931).

A partir da estação de Leopoldo de Bulhões, em 1935 a linha seguiu para o Ramal de Anápolis e somente em 1950 a linha para Goiânia foi construída, passando pelas estações de Bonfinópolis, Senador Canedo e Santa Marta, ambas inauguradas em 1950. Nesse período, conforme o I Centenário das Ferrovias Brasileiras[39], a ferrovia atingiu 483 quilômetros de trilhos. O trecho era servido por 30 estações e por onde a ferrovia passava a sua influência era evidente. Basta observar que a valorização fundiária, o aumento da população, o surgimento de várias cidades e povoados esteve ligado a esta ferrovia e grande parte da produção agropecuária de Goiás também passava por seus trilhos. De acordo com Luis Estevam[40], as alterações promovidas pela ferrovia não se restringiram ao aumento da produção agrícola, mas também à possibilidade de negociação direta com os mercados consumidores. As lógicas do mercado, portanto, promoveram alterações nas formas de produção em Goiás e a ferrovia foi um meio que ligou este território aos espaços onde os modelos de créditos subsidiados já exerciam influências significativas na produção agrícola. Destarte, foi pelos trilhos que as lógicas capitalistas adentraram o território goiano.

A implantação da ferrovia proporcionou a redução dos preços dos fretes e a melhoria do sistema de transporte, dinamizando a economia do território, principalmente na área de influência da ferrovia. As exportações agrícolas cresciam a partir do excedente de uma agricultura de subsistência, como assinalado por Paulo Bertran[41]. Nesse sentido, a ferrovia ampliou as possibilidades de circulação dos excedentes e dinamizou a prática agrícola. Com a implantação dos trilhos e a ligação com a região econômica mais dinâmica do Brasil, houve um crescente movimento ocupacional da porção sul de Goiás, sobretudo na área de influência da Ferrovia. Em 1900 a população de Goiás somava 270.000 habitantes. Em 1908 houve um incremento de apenas 10 mil habitantes. Em 1910, um ano após o início da construção da ferrovia, o estado registrou 340.000 habitantes. Em 1920 houve um crescimento de 66,42 % da população, com registro de 511.818 habitantes nesse ano. A figura 1 mostra a distribuição dessa população dos municípios nas regiões próximas da linha principal da ferrovia, com destaque para Catalão.

 

Figura 1. População dos municípios nas regiões próximas da Estrada de Ferro Goiás (1920).
Fonte: Brasil (1926).

 

Além de influenciar o crescimento populacional, a ferrovia também favoreceu a posição de sua região de influência em relação ao sudeste brasileiro, aumentando a demanda de consumo e consequentemente as exportações. Até a década de 1910, a agricultura atendia as necessidades do autoconsumo local[42]. Com a chegada dos trilhos, houve incremento na exportação de produtos agrícolas, como fumo, arroz, feijão, farinha de mandioca, mamona, caroço de algodão, etc. Para exemplificar esse crescimento, podemos usar como exemplo o arroz e o café, alguns dos principais produtos agrícolas desse e outros períodos da formação do território goiano. Em 1916 Goiás exportou 5.967.378 quilos de arroz para São Paulo por meio da Estrada de Ferro Goiás. Em 1922 foi registrado o número de 6.338.647 quilos para o mesmo produto. No caso do café houve um crescimento nas exportações pela ferrovia entre os anos 1921 e 1924 de 376,4%, com 417.473 quilos e 1.110.910 quilos em cada ano, respectivamente[43]. O crescimento das exportações para a atividade pecuária também foi significativo. Em 1916 foram exportadas 7.021 cabeças de bois gordos. Nos dois anos seguintes foram exportados pela estrada de ferro 16.642 “vacuns” e 85.598 cabeças de bois, respectivamente. Conforme dados da revista A Informação Goyana, a década de 1920 foi um marco no crescimento das exportações de gado, uma vez que em 1923 foram exportadas 149.545 cabeças de bois e 10.509 cabeças de vacas, registrando um aumento de 53,4%[44].

O total das exportações foi de 13.075:768$030 em 1922 e de 38.135:232$481 no ano de 1924. Do ponto de vista dos tributos, o rendimento dos impostos dos artigos exportados foi, em 1915, de 95:749$711. Nove anos depois a arrecadação atingiu a marca de 1.002:926$577, conforme dados da revista A Informação Goyana[45]. Esses dados nos possibilitam afirmar que a ferrovia foi um veículo fundamental para a introdução de Goiás na economia de mercado. No geral, os trilhos ocasionaram mudanças significativas no Sudeste Goiano. Além das exportações de produtos agropecuários, também eram realizados transportes de passageiros e importações de sal, querosene, produtos manufaturados, entre outros. A Companhia Mogiana de Estrada de Ferro e a Companhia Paulista de Estrada de Ferro, nesse sentido, exerciam papéis preponderantes por possibilitarem a ligação da ferrovia goiana com São Paulo. O Triângulo Mineiro, nesse sentido, se constituiu como centro de intermediação comercial e financeira entre o Sul de Goiás e o Sudeste brasileiro[46]. Cabe ressaltar a função aglutinadora da ferrovia, como assinalado por Maria de Souza França[47]. O adensamento populacional proporcionado pela ferrovia até a década de 1930 fez surgir muitos povoados e cidades no Sudeste Goiano, como exemplo de Cumari, Ouvidor, Goiandira, Urutaí e Leopoldo de Bulhões.

Em 1935 os trilhos foram construídos até a cidade de Anápolis, partindo da estação de Leopoldo de Bulhões e passando pelas estações de Engenheiro Valente e General Curado, ambas inauguradas também em 1935. Nesse período, sobretudo na década seguinte, houve significativo crescimento populacional na porção central de Goiás, especialmente na região denominada Mato Grosso Goiano. Enquanto ponta de linha, Anápolis se constituiu como importante centro comercial de Goiás. A produção total do estado não teve muita alteração de 1920 para 1940, já que o rebanho bovino era de aproximadamente 3 milhões de cabeças nos dois anos. A produção do milho pouco cresceu nesse período: 133.000 toneladas em 1920 para 156.000 toneladas em 1940[48]. O fato é que houve uma alteração no quadro regional da produção. Nas três primeiras décadas os maiores produtores agrícolas estavam localizados no Sudeste Goiano. Já na década de 1940 estavam na porção central e sudoeste de Goiás. A intensa exploração do solo e a ausência de técnicas de melhoramento agrícola na região servida pela estrada de ferro proporcionaram uma estagnação econômica e conseqüente migração para o Mato Grosso Goiano e Sudoeste de Goiás.

Em 1942 a linha principal da Rede Mineira de Viação (RMV) foi construída até a cidade de Ouvidor-GO, partindo de Monte Carmelo-MG. E como havia um ramal da Estrada de Ferro Goiás até Goiandira, essa última cidade se constituiu como ponta de linha da RMV[49], ligando o Sudeste Goiano a Angra dos Reis até a década de 1970, quando foi iniciado a construção da Usina Hidrelétrica de Emborcação, que alagou a área limítrofe entre Minas Gerais e Goiás, cobrindo a ponte sobre o rio Paranaíba e alguns trechos da ferrovia[50]. Mais ao centro goiano, a Estrada de Ferro Goiás continuou a ser construída em sua linha-tronco principal até Goiânia, alcançando a capital na década de 1950[51]. O trecho que partia da estação de Leopoldo de Bulhões era servido, também, pelas estações de Bonfinópolis, Senador Canedo e Santa Marta. Em 1962 foi inaugurada a estação de Campinas, localizada a dois quilômetros após a estação de Goiânia. Com a construção de Brasília na década de 1960, houve outro prolongamento da ferrovia até a capital federal por um ramal a partir de Roncador-Novo. Todo trecho da ferrovia e algumas estações implantadas até esta data podem ser observadas na figura 2.

 

Figura 2. Evolução da malha ferroviária goiana (1911-1978).
Fonte: Sieg (2008); Revista A Informação Goyana (1917-1935); Portal Estações Ferroviárias do Brasil (2010).

 

Apesar do prolongamento da ferrovia até Goiânia e Brasília, o sistema produtivo regional já nas décadas anteriores não tinha a mesma dependência à ferrovia como nas décadas de 1920 e 1930. Conforme Bertran[52], as regiões produtivas, na década de 1940, já não se orientavam pela ferrovia, mas por sua aptidão natural (os ricos solos do Mato Grosso Goiano) e pelas novas estradas de rodagem permitindo maior mobilidade do sistema produtivo-regional. Por isso, desde 1930 esvaziava-se em Goiás o primeiro modelo exportador ferroviário que havia permitido sua ascensão econômica e sua integração ao sudeste brasileiro nas primeiras décadas do século XX, acrescenta o autor.

As décadas de 1930 e 1940 também foram marcadas pela transferência da capital para Goiânia, pela colonização agrícola (como exemplo da Colônia Agrícola Nacional de Goiás) e por mudanças de ordens sociais, políticas e econômicas. Somado a isso, em 1950 a preferência pelo modal rodoviário e os baixos investimentos em ferrovias representaram a emergência de uma rede de transporte e de um Estado influenciados pelos projetos nacionais e vinculados aos interesses urbano-industriais do sudeste brasileiro. Esse período foi marcado por alterações na configuração das redes de transporte do país, o que não significou, como muitos defendem, a decadência da ferrovia, mas a sua refuncionalização diante das novas demandas e determinações políticas e econômicas decorrentes das novas dinâmicas territoriais do Brasil.


Considerações finais

A ferrovia trouxe para a Goiás mais do que a demanda de São Paulo. Ela foi o veículo de integração regional e também de incorporação de dinâmicas políticas e econômicas baseadas nas lógicas capitalistas de mercado. Interpretar a realidade goiana no período de expansão da ferrovia (primeira metade do século XX) nos levou a considerar as dinâmicas socioespaciais como processos que envolvem sistemas técnico-produtivos e sistemas político-ideológicos. O fato é que a modernização que se emergiu em Goiás foi imposta de fora para dentro. Mas apesar de exógena, ela foi produzida também por ações internas, caracterizando o seu ritmo e a sua dinâmica espacial. O Sudoeste goiano foi a primeira região a receber os trilhos e por isso se tornou, primeiramente, a mais dinâmica economia de Goiás nas primeiras décadas do século XX. Se houve resistência ou não à implantação da ferrovia, o fato é que o período foi marcado por um movimento hegemônico nacional movido pela expansão das lógicas capitalistas por diferentes espaços do país.

No caso de Goiás, o Estado, além de normatizar e tributar as exportações que passavam pela ferrovia, também assumiu, por meio da União, a continuidade da construção dos trilhos a partir da década de 1920 em decorrência de problemas financeiros da Companhia Estrada de Ferro Goiás. A construção do ramal de Anápolis foi finalizada 15 anos antes dos trilhos serem implantados no trecho final da linha principal, até Goiânia. O fato é que as duas cidades já eram, naquele período, importantes centros urbanos de uma região que, segundo Antônio Teixeira Neto[53] se constituiu na mais importante e dinâmica região pioneira do Centro-Oeste do Brasil. Segundo o autor, também foi o mais autêntico polo de atração das populações migrantes que se dirigiam ao centro-sul, uma vez que a sua característica pedológica, constituída por solos de boa fertilidade natural, aliada as políticas de expansão de 1930, permitiram o avanço da fronteira agrícola por sua área.

Nesse processo de avanço das lógicas modernas pelo “sertão goiano”, a ferrovia cumpriu importante papel abrindo “caminhos” e direcionando a produção. Os fixos e fluxos, nesse sentido, permitiram que as ações modificassem os lugares por onde a técnica foi sendo implantada. Todavia, o funcionamento do sistema produtivo, ampliado por meio da ferrovia, não se deu ao acaso, mas por ações e articulações, como defende Milton Santos[54]. A ferrovia também proporcionou o estreitamento entre regiões, incrementou a urbanização e fomentou a produção agropecuária para exportação. O período em que houve a ampliação da ferrovia em direção a porção central de Goiás parece ter representado mais do que uma decadência para as ferrovias, mas um momento de reestruturação do território e de ampliação das redes de transportes no país, do qual as os trilhos não foram excluídos. Houve, na verdade, uma refuncionalização da ferrovia. Por exemplo, em 1957 foi criada a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima – RFFSA, uma sociedade de economia mista vinculada ao Ministério dos Transportes que incorporou a ferrovia goiana. Na década de 1980 as atividades de transporte de passageiros foram encerradas, mesmo período de desativação da grande maioria das estações[55]. Algumas foram demolidas, outras restam apenas plataformas e as que se mantiveram erguidas passaram a ser utilizadas para outros fins, como posto militar, biblioteca, centro cultural, moradia, museu, serviços de administração pública, dentre outras funções. A desativação de quase todas as estações e alguns trechos da ferrovia foi acompanhada pela construção de novas linhas e de adequação de outras para atender novas demandas. Alguns trechos também foram alterados em função da construção de usinas hidrelétricas. Os trilhos que passavam pelo município de Anhanguera, por exemplo, foram retirados e a estação demolida. No local é possível observar apenas pilares da antiga ponte férrea e fragmentos de basalto.

Em 1992 a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização. No final da década foi segmentada em malhas regionais e atualmente novas Companhias passaram a operar os sistemas ferroviários. Os quase 700 quilômetros de trilhos implantados em Goiás são operados pela Ferrovia Centro Atlântica (FCA), que é subsidiária da Companhia Vale do Rio Doce. A estação de Leopoldo de Bulhões, que serviu a Estrada de Ferro Goiás desde 1931, está em funcionamento e é testemunha do período que se transportava pessoas, charque e banha de porco. Se a antiga estação era local para fretes, telegramas e passagens, hoje é local de controle e operacionalização de vagões que transportam farelo de soja, minérios, containers, combustíveis, entre outros. A rede ferroviária goiana passou por diferentes períodos e consequentes processos de refuncionalizações: em alguns momentos houve alterações no quadro gestor e operacional; em outros, mudanças no traçado original, desativação de estações e implantação de novos trechos; mas não, necessariamente, decadência. A paisagem das estações e trilhos abandonados é testemunha dos tempos passados ou mesmo das dinâmicas socioeconômicas que não persistiram, mas os trilhos prosseguem suas expansões pelo país e por Goiás. Enquanto a estrada de ferro continua promovendo a articulação de Brasília, Anápolis, Goiânia e o Sudeste Goiano com o Triângulo Mineiro e os portos de Tubarão (Vitória-ES), Angra dos Reis-RJ e Santos-SP, a ferrovia Norte-Sul parece desenhar um novo sentido e direção das redes que cortam o centro do país. Mas como a implantação de redes técnicas pressupõe complicados jogos de interesses políticos, novas tramas territoriais também estarão emergindo. Enquanto isso, do mesmo modo que em décadas remotas, atualmente as ferrovias continuam influenciando, assim como o sistema rodoviário, a divisão territorial do trabalho, demonstrando muito mais complementação da rede de transportes brasileira do que necessariamente oposição entre trilhos e asfaltos.

 

Agradecimento

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), pela bolsa concedida à pesquisa de doutorado do qual faz parte este artigo.

 

Notas

[1] A História nos Trilhos, disponível pelo endereço eletrônico: <http://www.anpf.com.br> (acesso em 05/03/2012)

[2] Disponível pelo endereço eletrônico: <www.transportes.gov.br> (acesso em 05/03/2012).

[3] Dupuy, 1997.

[4] Pereira, 2009.

[5] Capel, 2011.

[6] Moraes, 1990.

[7] Raffestin, 1993.

[8] Freitas, 2008, p. 32.

[9] Marx e Engels, 2002.

[10] Alguns autores mais contemporâneos, como Milton Santos (2007), defendem que no contexto de globalização as grandes empresas e coorporações internacionais subordinam o Estado, intervêm na política, participam das grandes decisões e, em função disso, detêm o controle do território.

[11] Gramsci, 2000.

[12] Carnoy, 1988, p. 316.

[13] Poulantzas, 1985.

[14] Carnoy, 1988, p. 316.

[15] O’Donnell, 1981, p. 2.

[16] Carnoy, 1988, p. 9.

[17] Palacín e Moraes, 2008.

[18] Palacín e Moraes, 2008, p. 126.

[19] Chaul, 2010.

[20] Chaul, 2010, p. 129.

[21] Chaul, 2010.

[22] Nessa concepção, cita-se Campos, 2003.

[23] Chaul, 2010, p.161.

[24] Chaul, 2010, p. 165-167.

[25] Nogueira, 1977.

[26] Nogueira, 1977.

[27] Borges, 1991.

[28] Brasil, 1954.

[29] Araújo, 1974.

[30] Borges, 1991, p. 57.

[31] Borges, 1991.

[32] A estação de Roncador se localizava próximo a margem esquerda do rio Corumbá e até 1980 tinha saída para o ramal de Brasília. Antes mesmo desta data, em 1967, foi inaugurado uma nova estação na margem direita do rio Corumbá com nome de Roncador-Novo para atender o novo trecho da ferrovia entre Araguari-MG e Pires do Rio-GO e a saída para o ramal de Brasília.

[33] Estações Ferroviárias do Brasil, disponível pelo endereço eletrônico: <http://www.estacoesferroviarias.com.br/> (acesso em 05/03/2012)

[34] Borges, 1993.

[35] Borges, 1993, p. 63.

[36] Borges, 1993, p. 66.

[37] Brasil, 1945.

[38] Nogueira, 1977.

[39] Brasil, 1954.

[40] Estevam, 2004.

[41] Bertran, 1978.

[42] Bertran, 1978.

[43] Goiás, 2001.

[44] Goiás, 2001.

[45] Goiás, 2001.

[46] Estevam, 2004.

[47] França, 1985.

[48] Bertran, 1978.

[49] A estação de Goiandira foi inaugurada em 1913. Serviu a Estrada de Ferro Goiás (EFG) principalmente de 1922 a 1942, quando a linha da Rede Mineira de Viação (RMV) foi implantada até Ouvidor-GO. Com isso, a rede mineira passou a ter acesso à estação de Goiandira que, portanto, se constituiu como ponta de linha da RMV. Diante das duas demandas, uma nova estação foi construída e Goiandira passou a contar com duas estações. Em 1978 uma terceira estação foi construída. Atualmente apenas esta última estação está em operação. As outras duas funcionam como sede de serviços públicos e centro cultural.

[50] Os trilhos do trecho entre a cidade de Ouvidor-GO e Tres Ranchos-GO, na divisa com Minas Gerais, foram retirados.

[51] Nas décadas de 1940 e 1950 também foram construídas novas estações ao longo da linha-tronco da ferrovia, como exemplo de Horto Florestal (1944) e Quilômetro 38 (1946) no município de Araguari-GO, Soldado Mendanha (1945) em Cumari-GO, Coronel Pirineus (1945) e Soldado Ferrugem (1951) em Goiandira, Soldado José Francisco (1950) em Ipameri-GO, Soldado Esteves (1953) em Pires do Rio-GO, etc.  

[52] Bertran, 1978.

[53] Teixeira Neto, 2002.

[54] Santos , 1994.

[55] Atualmente apenas quatro estações estão em operação: Leopoldo de Bulhões, Roncador-novo, Goiandira e Araguari. O funcionamento dessas estações é diferente daquelas que serviam a antiga ferrovia. Por meio delas é feito o controle do sistema operacional da ferrovia e a manutenção dos trilhos. Há outros importantes pontos na ferrovia, como as plataformas localizadas em Goiânia, Anápolis, Brasília e Ouvidor, dos quais e para os quais são transportados combustíveis, containers, farelo de soja, minérios, etc.

 

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Ficha bibliográfica:

CASTILHO, Denis. Estado e rede de transportes em Goiás-Brasil (1889-1950). Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (67). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-67.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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