Menú principal

Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (70), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

IMAGENS E IMAGINÁRIO DO SERTÃO NO BRASIL SOB REGIME MILITAR: A REVISTA INTERIOR (1974-1989)

Gustavo Soares Iorio
Programa de Pós-Graduação em Geografia – Universidade Federal do Rio de Janeiro
gustavosoaresiorio@yahoo.com.br

Imagens e Imaginário do Sertão no Brasil sob Regime Militar: A Revista Interior (1974-1989) (Resumo)

No Brasil, a formação do Estado está diretamente associada à própria constituição de seu território. A apropriação daquilo que se convencionou chamar de “fundos territoriais” é uma obsessão na formação desse Estado-Nação pós-colonial. Neste artigo trabalhou-se com alguns meandros de um “imaginário do sertão”, parte constitutiva desse processo. A análise incorre sobre a revista Interior, publicação oficial editada entre 1974 e 1989 pelo governo do regime militar brasileiro.

Palavras chave: imaginário do sertão, regime militar no Brasil, Revista Interior.

Imágenes e imaginario del interior en Brasil bajo el Régimen Militar: La revista Interior (1974-1989) (Resumen)

En Brasil, la formación del Estado está directamente relacionada con la propia constitución de su territorio. La apropiación de lo que convencionalmente se llama "fondos territoriales" es una obsesión en la formación de ese Estado-nación post-colonial. En este artículo se trabajan algunos de los meandros de un “imaginario del interior”, parte constitutiva de este proceso. El análisis incurre sobre el periódico Interior, publicación oficial distribuida entre 1974 e 1989 por el gobierno del régimen militar brasileño.

Palabras chave: imaginario del interior, régimen militar en Brasil, Periódico Interior.

Images and Imagery of hinterland under Military Regime in Brazil: The Interior magazine (1974-1989) (Abstract)

In Brazil, the construction of the State is directly related to the production of their territory. The appropriation of what is conventionally called “territorial funds” is an obsession in the formation of this post-colonial Nation-state. In this paper we focused the analysis on the meanders of a “hinterland imagery” trajectory, constitutive part of this process. The analysis focus on a magazine called Interior, official publication edited between 1974 and 1989 by the government of the military regimen.

Key words: hinterland imagery, military regimen in Brazil, INTERIOR Magazine.


No Brasil, a formação do Estado está diretamente associada à própria constituição de seu território[1]. A apropriação daquilo que se convencionou chamar de “fundos territoriais” é uma obsessão na constituição desse Estado-Nação pós-colonial, que almejou adentrar o universo das nações “modernas”. Essa apropriação perpassou esforços múltiplos, povoando tanto o universo das ideias quanto das ações materiais, que se constituem mutuamente. Houve, nesse movimento, a composição de um verdadeiro “imaginário do sertão”, um conjunto de representações acerca desses fundos territoriais, formuladas no decorrer do próprio processo de apropriação, inclusive enquanto um de seus agentes[2]. Esse imaginário foi alimentado e conduzido por “gente de ciência”, artistas, “populares” e políticos. Adentrou vigorosamente o universo dos motes da política dos governantes.

No decorrer do regime militar no Brasil (1964-1985) esse tom é central. Apoiados em teses geopolíticas já suficientemente sedimentadas, a ponto de se fazer reconhecer uma “Escola Geopolítica Brasileira”[3], os militares, associados à camada tecnocrata, investiram portentosos esforços com o intuito de atender a um dos “grandes temas da geopolítica brasileira”[4]; a ocupação do território; ou, o “fazer coincidir o espaço econômico ao espaço da nação[5], em tom desenvolvimentista acentuado. Esse é um período bastante significativo da história social brasileira, decisivo no sentido de conservar às elites a condução política e econômica do país. Em resposta às convulsões sociais protagonizadas por movimentos sociais e considerando o governo do presidente João Goulart, comprometido com as “reformas de base” (trabalhista e agrária, p. ex.), como uma “desordem política”, os militares, legitimados pelas elites nacionais, protagonizaram um golpe de Estado, depuseram o então presidente, e assumiram o governo, instaurando um regime repressivo que foi progressivamente se acirrando.

A política dos militares privilegiou a expansão industrial apela atração ao capital internacional, que trouxe consigo um modelo exacerbado de concentração e competitividade. A esfera econômica e o intuito do lucro passam a comandar toda a sociabilidade, inclusive o Estado, que se abstém da função de provedor e assume a feição de agente lucrativo[6]. Durante o governo Castelo Branco (1964-1967), o governo investiu na reconstrução econômica através da redução da inflação, modernização e racionalização da economia[7]. Nos governos Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1974), sob a tutela do ministro da fazenda Delfim Netto, Há um crescimento econômico acelerado (o “milagre econômico”), sustentado no mercado externo e na diversificação das exportações.

No período pós-64 há uma dinamização do modelo de governança. A reforma administrativa de 1967 (Decreto-lei nº 200) esta toda ela fundamentada no propósito de racionalizar a máquina pública; aumentou-se também a arrecadação e o investimento estatal na economia. Isso só foi possível graças ao novo pacto político materializado nos governos militares. Sua legitimidade ancorava-se em duas esferas: i) a positiva, exatamente a eficiência administrativa e o crescimento econômico; ii) e negativa, com o uso da força explícita, coerção física, controle e perseguição de agremiações políticas e sujeitos “subversivos”[8]. Essas duas esferas estavam representadas na composição social desse “bloco histórico”[9] por dois segmentos: os militares e os tecnocratas.

Esse pacto é abalado ainda no fim do governo Médici, quando a crise internacional (principalmente energética) atingiu o Brasil. O crescimento econômico foi freado e as denúncias de tortura e outros abusos não podiam mais ser totalmente controladas. Foi diante desse quadro que Geisel (1974-1979) assumiu o governo, O seu grande desafio era garantir a estabilidade do regime ou, mais do que isso, garantir a continuidade dos princípios políticos do regime. Foram necessárias novas estratégias de legitimidade. O governo Geisel então operou a chamada “distensão”, uma “transição gradual, lenta e segura” para a democracia[10]. A ideia básica foi “afrouxar” o regime, dando maior flexibilidade para as instituições; o Ato Institucional-5 (AI-5) foi revogado, a Lei de Anistia foi promulgada e ocorreram eleições diretas para a Câmara dos deputados e o Senado, atentando-se sempre para que a continuidade do modelo não corresse risco. Quando o controle estivesse ameaçado, apelava-se para velhos e novos instrumentos opressores, como a “Lei Falcão” para as eleições municipais de 1976 e a criação dos “senadores biônicos” eleitos pelo voto indireto, em 1978.

É no primeiro ano do governo Geisel que a revista Interior, que temos em foco, foi criada. Publicação oficial subordinada ao Ministério do Interior (Minter), criado na reforma administrativa de 1967, já mencionada. Basicamente, a revista tematiza questões relacionadas ao escopo do ministério, relevante. A primeira edição leva a data de dezembro de 1974, e a última, número 70, sai em dezembro de 1989, quando o próprio Minter é dissolvido. Seus índices de tiragem começam por 20.000 exemplares e, após aumentos progressivos, chegam a 55.000 em 1979 (edição nº 28), média mantida na maior parte de sua existência. Note-se que Interior vêm a público exatamente no momento em que a legitimidade do pacto de poder dos governos militares começa a se deteriorar. A crise econômica que tomava proporções maiores representava risco a um dos alicerces de legitimidade do governo. Fazia-se necessário enfrentá-la efetivamente (através, por exemplo, de um ambicioso plano, o II Plano Nacional de Desenvolvimento – II Pnd) e simbolicamente, o que reverberou um amplo investimento na imagem pública do regime através de iniciativas como a criação da Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da Presidência[11] e a própria revista[12].

Aqui se pretende uma interpretação dos sentidos e significados de Interior enquanto um quadro dinâmico de representações acerca do interior brasileiro (ou o imaginário do sertão). Representações que expressam as questões de seu tempo, marcado de maneira inexpugnável pelo regime político vigente, o regime militar. Expressam ainda projetos rivais, visões de mundo e visões do país diferentes. Para contemplar essas pretensões, foram analisadas as sessenta e nove primeiras edições, de um total de setenta[13].


A revista Interior

A revista Interior é um dos mencionados meandros do imaginário do sertão que atinge amplamente os diferentes segmentos da sociedade em toda a formação social e territorial brasileira. Conforme dito, ela é realizada pelo Minter, órgão de suma importância para atender ao desenvolvimentismo latente. Seria equivocado, porém, limitar a revista e as representações ali contidas à um sentido governista predeterminado. Trata-se de um espaço de interlocução que guarda suas particularidades, uma escala concreta, particular, cujas significações devem (e só podem) ser compreendidas em sua concretude. A construção escalar aí é fundamental[14].

Enquanto uma unidade concreta, a dinâmica da revista demonstrou frações que se expressam em representações distintas[15]. Dois grupos, não necessariamente opostos, podem ser observados: i) um primeiro que compõe o corpo editorial da revista, arranjados em torno de sua editora-chefe; ii) e outro, mais organicamente colocados no Minter[16]. É fundamental destacar que não há elementos seguros para se considerar uma composição orgânica de fato desses grupos, como se estivessem efetivamente organizados, com estratégias, objetivos e metas bem definidos, ao contrário. Não há uma contradição declarada, oposição tenaz entre eles, mas sim uma distinção sutil, com estratégias dissimuladas de posicionamento.

Esses grupos se mobilizaram de diferentes formas; o espaço reservado a cada qual nas edições variou, mas, em hipótese alguma, se pode dizer que há revezamento no comando político da revista, este esteve sempre à revelia do grupo próximo ao Minter. Trata-se de uma revista inserida na estrutura burocrática de um ministério em pleno regime militar; há, sem dúvidas, uma subordinação institucional irrevogável à pauta governamental, mas com significativas brechas que não impedem a expressão das divergências. O peso de cada grupo na definição das edições se deve basicamente à importância que a cúpula ministerial delegou a revista; quanto menos significativa para os objetivos da direção do ministério, mais espaço e liberdade gozou o grupo que formou o corpo-editorial; ao reverso, quanto mais estratégica para o Minter, mais a revista foi pautada e formatada conforme seus fins.


O Sertão No Pensamento Social Brasileiro: Breve apreciação

Os conceitos de interior presentes na revista Interior estão inseridos em uma tradição do conhecimento[17]. Segundo este autor, há uma transmissão dos conhecimentos, das representações, das formas de ver o mundo, através de mecanismos como cursos de formação; são estes mecanismos que garantem certa continuidade, certa reprodução de conceitos e a forma de tratá-los, que caracterizam as tradições do conhecimento. As formas do saber são difundidas e, mesmo que revigoradas ou reconfiguradas, se cristalizam como noções inquestionáveis, dados a priori, pressupostos do tratamento de qualquer tema tangente. Alfredo W. Almeida[18] avalia as variações do pensamento cristalizado sobre a Amazônia, fundamentado no conceito de Archivo, elaborado por Foucault:

Archivo como genealogia, consiste num registro variado de formulações, argumentos, noções operacionais, impressões, metáforas e figuras de retórica, que se acham ‘archivados’, de maneira inconsciente, nas representações de diferentes explicadores, comentadores regionais e intérpretes, que reproduzem acriticamente, num automatismo de linguagem, de acordo com um léxico singular que é acionado a cada vez que se fala de ou sobre a Amazônia[19].

A revista Interior está considerada aqui como um reprodutor dinâmico, como um agente que reproduz de maneira inventiva, revitalizadora de conceitos cristalizados em uma profunda tradição de conhecimento. Há de se tomar como ponto de partida a elucidação dessas tradições, mesmo que de maneira breve.

“Sertão” é uma palavra bastante conhecida dos brasileiros. Mais do que isso, é um conceito central na interpretação do país. No pensamento social brasileiro é temática recorrente, objeto de reflexões, valorativas ou depreciativas. O sentido dessa palavra é bastante próximo ao de “interior”. Sertão seria o interior do país. Ambos os conceitos, aqui tratados como sinônimos, são vagos. Há uma complexa série de tradições para se tratar a questão, onde cada qual guarda em si também imensas complexidades, posturas destoantes. Euclides da Cunha é uma das figuras mais proeminentes nesse debate. No começo do século XX ele dá ao tema um tratamento que será matricial em toda a sua démarche desde então[20]. O sertão segundo esse célebre autor seria único e particular, “uma categoria geográfica que Hegel não citou”, para utilizar uma expressão do próprio Euclides. Lugar naturalmente isolado, de difícil acesso e permanência, características atribuídas às condições naturais inóspitas, que “isolaram os sertanejos por três séculos”. Este tipo, isolado historicamente do Brasil, estaria a três séculos em processo de definição étnica, já que isolado. Era, um tipo autêntico, original e puro, ao contrário do homem litorâneo, “impuro”, fruto de uma mestiçagem constante e incoerente. Em contra parte, no litoral estava, ou bem ou mal, concentrado o processo histórico da “civilização”, da qual o sertanejo “atrasado” estava alheio. Segundo Lia Osório[21], Euclides inaugura a tese dos “dois Brazis”, “Em Os Sertões encontramos a origem de uma das imagens mais persistentes da estrutura sócio-espacial do Brasil, a da existência de ‘dois Brazis’”[22], expressa na oposição entre litoral e sertão, vigorosa no pensamento social sobre o Brasil. Aí estão equacionados dois elementos: autenticidade nacional e atraso a ser superado:

Estabelecendo no interior a contigüidade do povoamento, que faltava ainda em parte na costa, e surgindo entre os nortistas que lutaram pela autonomia da pátria nascente e os sulistas, que lhe alargavam a área, abastecendo-os por igual com as fartas bocadas que subiam para o Vale do Rio das Pedras ou desciam até as cabeceiras do Parnaíba, aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade[23].

Sertão é ao mesmo tempo uma autenticidade e um atraso. Sociedade rude, de costumes rudimentares como a religião mística; cheia de belas tradições arraigadas, de conhecimentos supersticiosos. Para Maia[24] Euclides da Cunha é um dos autores responsáveis pela consolidação do que ele chama de sociologia da terra, a terra entendida como modo de pensar é possível expandir essa conotação. O que ele chama de terra pode ser muito bem colocada como sinônimo do que aqui se chama interior ou sertão. Seria possível se falar em uma sociologia do sertão, ou reconhecer o interior como uma matriz interpretativa do Brasil. Através dessa perspectiva, esse intelectual brasileiro cristaliza uma visão que atribui um juízo positivo ao interior, enquanto identidade nacional, e um sentido negativo em termos de atraso. Esta concepção é reproduzida na própria representação do interior segundo a revista Interior, nosso objeto.

Antes da apreciação em si dessa questão que nos move nesse artigo, é importante notar que os conteúdos e os significados atribuídos ao sertão não são exclusivo da obra de intelectuais, existe, ao contrário, um verdadeiro imaginário do sertão[25], que perpassa ideias amplas, de segmentos sociais diversificados. Além disso, o designativo não faz referência exata a uma área circunscrita, diferentemente dos demais conceitos geográficos, não remete a um espaço telúrico definido, a uma empiria observável. Na realidade, o significado principal do sertão reside no fato de ser um qualificativo, em geral pejorativo, para definir um espaço segundo valores e interesses dominantes. Sertão, por esse imaginário, não goza de definição positiva, mas negativa. Sertão é o lugar/espaço/região onde não há, onde impera a escassez de algum predicado aceito como necessário. Não existe aí ingenuidade; a qualificação de um lugar/espaço/região como sertão é, em geral, um pressuposto de um projeto político. A própria aceitação do termo indica a cristalização de uma dominação simbólica que precede e legitima uma intervenção efetiva. É importante que não escape ao horizonte analítico o fato de as discussões em torno da ideia de sertão/interior não suscitarem somente desencontros teóricos e conceituais. Sobretudo, elas expõem projetos políticos diferentes, interesses sociais profundos. Pensar o sertão no bojo da formação social/territorial brasileira é também uma prática direta nesse processo. Nesse sentido que Interior deve ser pensada.


O Interior Segundo A Revista Interior

O esforço em se analisar uma revista como Interior se justifica por várias razões, uma delas, exposta anteriormente, reside em sua vivacidade, dada a particularidade escalar em que opera. Outra, central nesse tópico do texto, está no seu conteúdo enquanto representação. As formas de ver e interpretar o mundo são, segundo Bourdieu[26], sistemas simbólicos. Estes são configurados como estruturas de “construção da realidade”, sistemas de interpretação e atribuição de significados que, por sua vez, são produzidos por grupos sociais em disputa pela efetivação de sua própria estrutura (“forma de ver e interpretar o mundo”) como a legítima (o que Bourdieu chama de estruturantes estruturados). Nos discursos de todos os agentes sociais, as imagens representadas são aquilo que se vê como algo que se vê através de uma estrutura estruturada reconhecida como legítima. Criar representações é concretizar o poder simbólico, é edificar significados, valores e sentidos ao mundo social. As representações devem ser lidas como elementos constitutivos do mundo objetivo. As representações da geografia do mundo devem ser lidas como elementos ativos da constituição da própria geografia do mundo. Reside aí um importante papel da revista Interior enquanto promotora de representações do interior.

Interior tinha, segundo Rangel Reis (ministro do interior de 1974 a 1979, período que abrangeu os primeiros anos da revista) o propósito fundamental de atender às questões tocantes ao desenvolvimento regional:

Particularmente os últimos números de INTERIOR têm se mostrado capazes de abranger toda a variada gama de assuntos que fazem o dia-a-dia das entidades subordinadas ou vinculadas ao Ministério do Interior. Sem descurar das atividades setoriais, como as que são empreendidas por órgãos como a Secretaria do Meio Ambiente, o Banco Nacional de Habitação ou o Departamento Nacional de Obras de Saneamento, dedica-se a explicar e discutir, com especial ênfase, as ações do campo do desenvolvimento regional, no qual se concentra parcela ponderável dos esforços governamentais.[27]

A política de desenvolvimento projetada regionalmente aceitava a ideia das desigualdades entre as regiões no território nacional como um fato dado. Segundo esse julgo, Sudeste e Sul concentravam o desenvolvimento, Norte, Nordeste e Centro-Oeste viviam o subdesenvolvimento, definido pela escassez, pelo “atraso”. As regiões “a serem desenvolvidas” predominaram nas páginas de Interior, em diferentes abordagens. Seguramente, Nordeste, Amazônia e Centro-Oeste, nesta respectiva ordem, são os “atores principais” dessa trama. As regiões de desenvolvimento escasso definiu a pauta da revista. Em suas páginas estão os “vazios demográficos” e os “vazios econômicos” de um Brasil “distante”, aonde o progresso ainda não chegou. Interior é o “distante”, o lugar marcado pela “escassez”, não remete a lugares determinados, não tem limites espacial ou temporal definidos. O interior é a negação, aquilo que não é; é a parcela “não desenvolvida” do país. A impávida mata, os largos campos escassamente povoados e os lugares de vivência “tradicional” compõem o universo temático da revista, unificados todos em torno da oposição à parte desenvolvida do país. São todos lugares não desenvolvidos, pensados através do recurso teórico e político da região.

Aí reside a essência temática da revista. Muitos assuntos são abordados em suas páginas; secas, habitação, enchentes, artesanato, poluição, meio ambiente, dentre outros. Entretanto, o tratamento desses temas na revista têm em comum um traço: a ideia de interior. O desenvolvimento, o artesanato, a agropecuária e tudo o mais estão referidos a um “Brasil distante”[28]. Esse elemento articulador da revista Interior, não está livre da ambiguidade marcante no pensamento social brasileiro. Aqui, os dois grupos que se distinguem na composição da revista (anteriormente descritos), representam os dois extremos dessa ambiguidade. Em geral, o grupo mais organicamente relacionado à direção do Minter fez predominar um interior a ser desenvolvido, transformado, dinamizado, modernizado; ausente de civilização e das marcas do progresso. Na passagem a seguir, Orlando Albuquerque, diretor da revista por toda sua duração, escreve:

Também longe das vistas da quase totalidade da população, já quase se faz em rincões distantes, perdidos na imensidão da Amazônia, do Centro-Oeste e em espaços ainda fracamente povoados, é a ação das unidades de fronteira e colonização, num quase anônimo porém hercúleo trabalho naquelas extensas áreas onde só o uniforme verde-oliva [do exército] marca a presença do homem e da civilização brasileira.[29]

As palavras destacadas expressam o suposto caráter incivilizado daquilo a que ele se refere como “rincões distantes”. A fraca densidade populacional anuncia a natureza impávida em detrimento da civilização. Interior não é só marca da natureza, é também marca humana, do subdesenvolvimento, do modo de vida “tradicional”, não moderno. Este é o grupo condutor da concepção mais clara de interior enquanto oposição ao mundo desenvolvido. Eles são os arautos do desenvolvimentismo governista, consoante com a linha politica do Minter: “substituir os métodos empíricos tradicionais das lavouras de subsistência por moderna agricultura de mercado[30].

Há também, no universo da revista, outro significado de interior, que ganha vida através do grupo próximo ao corpo editorial. Seus esforços se mobilizaram para expressar o “Brasil dos brasileiros”, o país dos seus cidadãos dispersos nos “rincões distantes”. Esse grupo adotou como temática as pessoas, os lugares, o folclore, etc. Mostrou a riqueza cultural não representada nas culturas massificadas; cultura própria, autêntica; tradição profunda em oposição à modernidade instantânea. Cultura simples e original, fantástica e profunda, forjados sob o signo do sofrimento e da escassez. É nesse meio, pobre em desenvolvimento mas rico em criatividade humana, que estão as características exuberantes da cultura nacional. Valéria Velasco[31] chega a falar em um interior como, possivelmente, o Brasil é mais representativo. Curiosa e ilustrativamente, esse fragmento está na mesma edição da passagem acima transcrita de Orlando Albuquerque, apenas uma página antes.

Na realidade, conhecer a pujança das grandes metrópoles, a atividade febril dos prósperos centros industriais e a concentração dos esforços que movimentam e transformam as capitais dos Estados não é suficiente para compreender e explicar o que é o Brasil: ele vive e pulsa também – e em certos aspectos mostrando características até mais representativas – nas ruas e praças das cidades interioranas, onde também se está construindo a grandeza do Brasil-potência.[32]

É nesse interior que figuras como Patativa do Assaré (edição nº 55), Chico Antônio (edição nº50) e tantos outros figuram como artistas geniais, retratos de seus lugares. Não se trata simplesmente de mostrar grandes artistas “perdidos no sertão”, trata-se de mostrar uma grandiosidade sertaneja (ou interiorana), tradicional e profunda, da qual esses artistas são filhos. A arte não é somente deles, é do lugar/região/espaço interiorano. A matéria sobre Patativa do Assaré, assinada por Severino Francisco, diz muito sobre esse sentimento:

Em sua voz/poesia, Patativa do Assaré traduz toda uma vivência cotidiana do homem sertanejo – sua faina, sua alegria, sua tragédia, suas esperanças, numa epopéia da vida anônima popular, história afetiva do Nordeste, gráfico nervoso da sensibilidade.[33]

Guardadas as características intrínsecas de cada momento da revista, a concepção governista de cunho desenvolvimentista, prevaleceu nas pautas das setenta edições, fato que se deve ao seu caráter oficial, já tratado acima. Quando se tratam de questões mais específicas que ocuparam as páginas das edições, os contrastes entre os significados das representações do interior ficam ainda mais evidentes. Por esta razão, cabe atinar a alguns desses temas que podem ser generalizados e, numa hierarquia por recorrência de pautas, classificados como mais frequentes.

O primeiro desses temas e é também elucidativo da ambiguidade da representação de interior: o desenvolvimento. Esta é a pauta central não só da revista como do Minter e do governo como um todo. Esse é o foco principal do grupo governista, é o que difundi artigos, matérias e reportagens de diversos conteúdos para ilustrar um país em processo em pleno desenvolvimento. O significado deste termo está bastante próximo do crescimento econômico, da crença na economia de mercado. Profetizam-se as relações de produção capitalistas como as formas modernas exclusivas, sinônimo evidente de progresso. Os empresários são exaltados, as políticas de incentivos fiscais, créditos especiais, investimento em infraestrutura, dentre outras medidas governamentais adotadas em prol da intensificação da capitalização da economia, são apresentadas na revista como a própria representação do desenvolvimento. Fala-se também em desenvolvimento social, em melhorias humanas, mas sempre em sentido subordinado ao crescimento econômico, como reflexo deste. Por todas as edições testemunhos desse repertório são encontrados sem muitas dificuldades.

A produção capitalista é mais que um modelo de desenvolvimento, é um “marco civilizatório”, algo que só não faz sentido em sociedades atrasadas. Em matéria sobre a Usina de Sobradinho, uma passagem retrata a dificuldade de ribeirinhos que não aceitavam deixar suas terras para que o lago fosse alagado; como resposta, o depoimento de Ítalo Galvão, agrônomo incumbido do projeto de reassentamento das famílias:

A vida do ribeirinho é toda vinculada ao rio. Além disso, ele possui acentuado espírito gregário que faz com que as famílias se organizem em clãs, que se apóiam mutuamente, num tipo de vida bem primitivo. Falta-lhe ambição de progresso. O ribeirinho tem medo da mudança, principalmente para lugares distantes. Tem medo do desconhecido.[34]

O desenvolvimento é o progresso, estágio avançado da civilização justifica todos os esforços em seu nome. O Brasil é um “país que tem pressa”[35], há de se reabilitar da defasagem no desenvolvimento, locada no interior subdesenvolvido, onde o progresso é requerido apressadamente. Esta é a concepção desenvolvimentista de interior, território do atrasado expresso nos desequilíbrios regionais.

Nas páginas de Interior há uma reflexão conceitual sobre os desequilíbrios regionais. Dois artigos densos, carregados de termos técnicos, trazem à tona esse debate, ambos refletem o pensamento de Roberto Cavalcanti Albuquerque, Secretário de Planejamento do Minter[36]. O primeiro na edição n. 28, relativa ao bimestre de setembro e outubro de 1979, não leva a sua assinatura mas o texto é escrito, segundo seu autor (não identificado), com base nas reflexões dele e de sua equipe técnica. O outro artigo leva sua assinatura, e é publicado em Março/Abril de 1982, nº 43.

No primeiro artigo há uma defesa enfática dos desequilíbrios regionais como uma questão temporal; as regiões os desequilíbrios regionais seriam expressão de estágios diferentes do desenvolvimento. A questão é a defasagem temporal de uma região diante da outra, e as ciências econômicas seriam as mais aptas a apresentarem as soluções necessárias para reverter esse quadro, para que o desenvolvimento de uma região alcance o nível das outras:

E a dimensão espacial só vem preocupar quando se diagnosticam desequilíbrios de níveis ou ritmos de desenvolvimento, especialmente quando se localizam, regionalmente, defasagens ‘temporais’ de crescimento, ou seja, ‘atrasos’ relativos, localizados na dinâmica do processo econômico-social.[37]

Há aí um tratamento nitidamente evolucionista, uma manobra teórica típica daquilo que Massey[38] chama de tomar o espaço pelo tempo. Interior é, por esse raciocínio, uma categoria temporal de atraso; o espaço defasado no tempo, uma espécie de passado que teima em permanecer no presente e há de ser varrido do futuro. Já no segundo artigo Roberto Albuquerque, ocupando o mesmo cargo, curiosamente demonstra atino com a dimensão espacial do desenvolvimento. Em seu texto aborda o planejamento regional, chamando a atenção para se pensa-lo em uma noção mais abrangente, que de conta da dimensão espacial, associando esta à repartição da renda. O tempo seria estratégico para se pensar o crescimento econômico, e o espaço a distribuição de seus resultados: “Essa inserção da variável espacial, no entanto, torna-se mais fácil quando a preocupação obsessiva pelo desempenho se mescla com a consideração da questão da repartição de seus benefícios”[39]. Em um intervalo de menos de três anos a preocupação com o desenvolvimento ganha uma conotação social, associada à dimensão espacial. Entretanto a estrutura do discurso permanece: a questão principal do desenvolvimento é o crescimento econômico, enraizado na dimensão temporal (“atraso”), agora se soma a essa questão a preocupação social, como uma adjacência do desenvolvimento, e por isso a dimensão espacial é repensada. O desenvolvimento avança no tempo, recuperando as defasagens edificadas no espaço. O interior é uma marca do atraso temporal incrustada no espaço, é uma cicatriz que o progresso esqueceu-se de recuperar, e deve, a partir de então, fazê-lo. Essa é a essência do conceito desenvolvimentista exposto na revista de maneira indelével, protagonizada pelo governista.

O grupo que compõe o corpo editorial da revista, por sua vez, pouco se expressa diretamente sobre esse tema. Como vimos, no modelo típico de suas matérias o conteúdo do debate sobre o desenvolvimento de fato não tinha espaço. Entretanto, é possível se identificar em suas matérias certo receio em relação ao que o próprio ministério evocava sobre desenvolvimento. O desenvolvimentismo propagado pelos índices de crescimento econômico e capitalização da economia em detrimento das atividades produtivas “tradicionais”, a conclamação do empresário para gerir as atividades de artistas (como o artesanato) e outros elementos preciosos para a perspectiva hegemônica aparecem em suas páginas como o grande “vilão” desarticulador de culturas arraigadas, populares e representativas de um país mais profundo. Em matéria assinada por Severino Francisco sobre a arte das carrancas do rio São Francisco, essa ideia está bastante clara:

Estes são alguns estilhaços de um ‘Chico-lenda’, um rio mitológico que começou a desaparecer com a substituição das barcaças pelos barcos a vapor e por toda uma nova estruturação da vida econômica e social em torno do Vale do São Francisco, a partir de 1940. Hoje, o Rio São Francisco se divide entre o arcaico e o moderno. Mas os signos deste ‘Chico-lenda’ ainda estão vivos nos trabalhos de uma legião de artesãos, que confeccionam carrancas e modelam mitos inspirados em lendas do Vale. Aproximadamente 20% da população de Pirapora vive em função de atividade de pesca e do artesanato. Deslocada de seu contexto original, a carranca perdeu a sua força de símbolo mediador da relação corpo a corpo com a natureza, tornou-se elemento decorativo, objeto com pretensões estéticas.

Ronco da cuíca – Os artesãos precisam, antes de tudo, sobreviver, e na guerra pela vida vale tudo. A repetição de modelos, induzida pela grande massa de turistas é fatal. ‘Carranca é imaginação. Você cria na mente para passar na madeira. E, se é imaginação, não pode repetir’, comenta o artesão Joaquim da Silva.[40]

O retrato é de um lugar “tradicional”, de cultura forjada em tempo lento, próprio do lugar. A assimilação deste lugar à lógica da produção em massa põe em risco a sobrevivência dessa cultura. O arcaico, como o trecho demonstra, é a tradição, ameaçada pelo moderno, que é o desenvolvimento. A produção em massa é sintoma de economia capitalista, é indicador do desenvolvimento. Apesar de não existir uma oposição aberta à ideia de progresso, a indignação com que esse grupo retrata a decadência da cultura popular diante do avanço econômico parece traduzir bem o descontentamento para com o desenvolvimento proclamado pelo discurso oficial.

Outra questão central no rol temático da revista é o nacionalismo. Esboça-se em torno do projeto nacional uma contradição nítida entre os dois grupos e suas respectivas concepções de interior. O corpo editorial expressa a valorização da cultura popular interiorana, deste “Brasil profundo”. Representante digno da cultura nacional. A autenticidade do brasileiro diante de um mundo de cultura massificada parece estar guardada no interior, na sua gente e nos seus lugares. Ali, onde o desenvolvimento ainda está por começar a fazer suas “vítimas” (as culturas populares) parece estar resguardada a cultura nacional. Ali aonde o progresso não chegou, a pobreza e o sofrimento mostram o que há de mais autêntico e belo na cultura nacional. Em matéria de Severino Francisco, a poetiza popular Cora Coralina é assim representada:

Quando Cora Coralina fala, é a voz de uma região contida pelo isolamento, pelo atraso, pela pobreza e que, talvez por isso mesmo, traga uma contribuição particular, especial e rica ao acervo da cultura nacional.[41]

Já os governistas expressam um nacionalismo em outro tom. O compromisso desse grupo com o projeto político vigente evidenciou a exaltação da nação e do nacionalismo em seus sentidos políticos diretos[42]. É esse o sentido que o grupo governista atribui à nação, uma legitimação política. Aqui o nacionalismo foi o par casado e indissociável do desenvolvimento. Desenvolvimento significava engrandecimento da nação. O nacionalismo conclamava aos leitores a se aglutinarem no projeto do “Brasil-potência”, a assumirem o ideal de desenvolvimento como seu, um desafio de cada um, construído no dia a dia, demandado pela “vontade nacional”. Eis as palavras de Orlando Albuquerque no editorial da primeira edição da revista:

O desenvolvimento é uma tarefa por demais pesada e grandiosa para que se atribua apenas ao Governo a responsabilidade da sua promoção. É missão de todos, quando nada porque a todos aproveita. Cada um de nós, forjado nessa tão densa tônica de brasilidade, privilégio nosso, pode e deve, na sua ação individual, fazer-se presente nos diversos trâmites do processo global.[43]

O interior é lugar do atraso e preocupação central desse discurso. O destino glorioso da nação passa pelo esforço coletivo de salvação desse interior estagnado. O esforço de salvação, entretanto, é hercúleo (segundo as palavras de Orlando Albuquerque), e o empreendimento, de tão vultoso, torna em si mesmo mais um elemento de reforço do patriotismo. O interior estagnado figura a imagem de uma questão em comum, unificadora, exercendo assim uma função estruturante da “comunidade imaginada”[44].A fronteira agrícola[45] é exemplar dessa missão nacionalista de desenvolver o interior. Nas páginas da revista Interior está documentado o seu processo de expansão que aconteceu principalmente durante a década de 1970 no Brasil; e, mais uma vez, esse tema é também elaborado com a mesma ambiguidade demonstrada até aqui.

A expansão da fronteira agrícola significa modernizar o território nacional, é o moderno que se impõe sobre o tradicional, é o país alcançando o seu ideal. A Revolução Verde[46] e o agronegócio estão incumbidos de, em nome da Nação, recuperar o interior através do avanço da fronteira agrícola, são os “novos bandeirantes”, como várias vezes é mencionado na revista. Fronteira tem um sentido além do econômico[47]. O seu avanço projeta uma imagem de futuro, tem repercussão fundamental no imaginário que se cria em torno dela, algo como se o país estivesse avançando rumo ao “progresso”. Os modos de vida tradicionais serão superados, onde técnicas rudimentares isolavam as pessoas e os lugares, tecnologias sofisticadas irão conduzir à redenção. Segue passagem ilustrativa desse tratamento em matéria sobre o Programa Sudoeste-I, da Sudesul:

A grande potencialidade da sub-região do sudoeste do Rio Grande do Sul, no que diz respeito a solos para cultivo, torna viável a expansão das atividades agrícolas, até hoje apenas incipientes. Além disso, as condições topográficas permitem ampla mecanização das lavouras, o que vem sendo estimulado, considerando-se que a agricultura mecanizada propicia resposta financeira imediata mais elevada, apóia o desenvolvimento da pecuária e provoca modificações benéficas no comportamento do homem rural.[48]

Sua imagem está diretamente associada ao “progresso”, à “modernização” em detrimento da tradição, que é exatamente aquilo que mais desperta o interesse do corpo editorial da revista. Em função disso, a fronteira não foi adotada como foco principal em nenhuma reportagem enquadrada na produção desse grupo, aparece em suas páginas quando se trata de culturas “tradicionais” que estão a sofrer processos de dissolução. Assim como a fronteira é associada à “modernização” pelos governistas, também o está para o corpo-editorial. A diferença está no valor atribuído ao fenômeno. Para estes últimos, a fronteira representa uma ameaça às culturas arraigadas. Os índios são apresentados como as maiores vítimas dessa fronteira, conforme matéria assinada por Jeová Queiroz:

Triste e sem cor para os bororo, são as terras que ficam sob o rastro do boi e do trator. Confinados em seus territórios e ilhados pelos bois, os bororo tem cada vez menos espaço para a caça e a coleta de frutos vegetais, seus tradicionais meios de sobrevivência. O avanço das fronteiras agrícolas chegou a um ponto tal que lhes faltam até a arara e outros pássaros de plumas coloridas, dificultando e quase impedindo o desenvolvimento de sua arte plumária, destacada pelo alto grau de elaboração e senso estético. [49]

A questão indígena é um dos focos privilegiados de trabalho da revista. Parcela bastante considerável do total de matérias são dedicadas a esse tema. Ambos os grupos enfrentam a questão, cada qual a seu modo. O corpo-editorial, seguindo a mesma linha de raciocínio, vê a população indígena como “povo originário”, primeiros e mais representativos habitantes do Brasil. Em diversas matérias esse grupo propôs explicitamente divulgar a riqueza de elementos e a sofisticação cultural desses povos; enfrentando o que eles mesmos repetidas vezes apontaram como uma visão distorcida que o brasileiro tem do índio. Distorcida principalmente pela referência universalizada do índio norte-americano através das telas dos cinemas e televisores brasileiros. Novamente cultura de massas significava ameaça à cultura nacional. Os índios seriam parte representativa da proclamada cultura nacional, mais do que isso, seriam a sua parte mais “pura”:

Puros, eles lembram detalhes da criação do mundo, como se tudo tivesse começado com eles. Resistentes, eles prevêem o fim do mundo, quando ‘tudo acaba, não terá mais Yanomam’. Representando ainda o maior grupo tribal isolado das Américas, os índios ianomamis têm despertado grande interesse da comunidade cientifica do Brasil e do exterior, mas pouco se sabe ainda sobre esta cultura que, por ocupar uma área resguardada por rios, serras e florestas, ainda não foi totalmente atingida pelos reflexos negativos do mundo dito civilizado.[50]

Os índios representam para esse grupo uma cultura “exótica”, extraordinária e curiosa em função de sua cultura próxima da natureza e sua distância do mundo “civilizado”. A passagem a seguir, retirada de uma matéria sobre a IV Moitará (uma mostra de artesanato indígena promovida pela Funai) ilustra bem: “as características de diversas pecas denotam um autêntico primitivismo do ideal selvagem do homem Kayapó, tão bem representado pelo uso do akokakò (batoque).[51]

O que se observou em relação à conceituação dos povos indígenas por parte do grupo governista. Os índios seriam reconhecidos como cultura particular, e mereceriam um tratamento específico – como várias matérias sobre a Funai ou sobre a demarcação de suas terras indicam. Entretanto, esteve sempre claro que a aceitação de sua condição especial de cultura a ser resguardada não poderia ser empecilho ao desenvolvimento nacional. A população indígena, para ser preservada, terá que se adequar às formas modernas do homem civilizado. Em matéria intitulada “Os novos fazendeiros” se retirou a seguinte passagem:

Enfim, procurou-se formar uma infra-estrutura razoável para elevar o padrão de vida das famílias indígenas.

Ao mesmo tempo, iniciou-se também o aprendizado de novas técnicas agrícolas, com a utilização de equipamento pesado como arados e tratores, e das formas de aplicação dos insumos com maior rendimento na produção. Como complemento da atividade no campo, foram também ministrados ensinamentos de piscicultura (criação e reprodução de peixes em açudes artificiais), sericultura (só em 1980 foram plantadas 380 mil mudas de amoras, cuja folha é o alimento básico do bicho-da-seda) e a bovinocultura, com o número suficiente de gado leiteiro para abastecimento exclusivo das comunidades, particularmente das crianças.[52]

Observa-se com este exemplo o sentido de aculturação explicitada como benéfico para o país, que não “abre mão de seu desenvolvimento”, e para os próprios índios pela elevação do padrão de vida, ou melhor, elevação do modo de vida de tradicional para fazendeiro.  Muitos outros temas desfilam pelas páginas da revista, trazendo majoritariamente essa ambiguidade do tratar o sertão/interior como móvel de toda a revista.


Considerações Finais

Nesse artigo se buscou trabalhar alguns aspectos significativos das representações de interior veiculados na revista Interior. Tentou se demonstrar que uma temática consagrada no pensamento social brasileiro, fortemente presente na imaginação social dos brasileiros, como a do sertão e/ou interior, se reproduz através de conteúdos cristalizados, que são revivificados em vários momentos. Esses conteúdos conformam verdadeiras representações do mundo social, mais particularmente, representações da geografia do território brasileiro, prenhes de poder simbólico. Essas representações da geografia se convertem, através de seu poder e de seu alcance, em verdadeiros elementos objetivos da constituição da materialidade dessa geografia.

Entretanto, são importantes algumas ressalvas para que não se sucumba em tentadores simplismos que podem ser daí extraído. Em primeiro lugar, quando se diz que as representações fazem parte das ações, não dizer que não há um limite entre as duas esferas, conforme preconiza a vulgata pós-moderna. Em seguida, tampouco defende-se que há uma oposição absoluta e que, as representações, por estarem impregnadas de poder simbólico, são ideologias, manipulação diretiva da consciência social, como poderia pensar alguns marxismos. Poderes simbólicos estão concretizados em todo o universo das representações, que são parte inerente de todas as relações sociais.

É importante também que a Interior não seja tomada como mera reprodutora de conceitos cristalizados. Trata-se de um conjunto de representações dinâmicas que trazem os conflitos de seu tempo e a marca particular de seus agentes. Através do que ela representa se vê também o que se projeta, a intervenção/ação sobre aquele espaço, sobre aquela geografia representada.

 

Notas

[1] Esse artigo é o desdobramento de uma parte da dissertação de mestrado defendida em abril de 2010 no Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ver Iorio, 2010). Aproveito para agradecer as inestimáveis contribuições dos professores: Ana Daou (orientadora), Lia Osório Machado, Antônio C. de Souza Lima e Sérgio Nunes, que participaram da banca de avaliação. Os limites do texto são de minha exclusiva responsabilidade.

[2] Moraes, 2000, 2002-2003, 2005; Machado, 2002.

[3] Vlach, 2002-2003.

[4] Myiamoto, 1981.

[5] Bomfim, op.cit. p.277.

[6] Oliveira, 1981.

[7] As elevadas taxas de inflação foram um dos argumentos mais fortes dos opositores do governo Goulart, que procuraram associá-las a uma incapacidade da classe política em tomar as medidas necessárias para conduzir a economia (Lafer, op.cit.).

[8] Lafer, 1975.

[9] Gramsci, 2007.

[10] Alves, 1984.

[11] Queiroz, 1977.

[12] Iorio, 2010.

[13] A edição 70 não foi encontrada nas bibliotecas onde todas as outras edições estavam disponíveis (Universidade Federal de Viçosa – UFV; Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; Universidade de São Paulo – USP).

[14] Swyngedouw, 2004; Howitt, 2003.

[15] Iorio, op.cit.

[16] Para uma sustentação mais acurada dessa análise, ver Iorio (op. cit.).

[17] Souza Lima, 2008; 2002.

[18] Almeida, 2008.

[19] Almeida, Ibidem, p. 11.

[20] Maia, 2008.

[21] Machado, 2005.

[22] Machado, op.cit. p. 337.

[23] da Cunha, 2007. pp. 104-105. grifo nosso.

[24] Maia, op.cit.

[25] Moraes, 2002-2003.

[26] Bourdieu, 2007.

[27] Interior, nº14, Novembro/Dezembro de 1976. p.4. grifo nosso.

[28] As cidades e seus problemas de habitação, poluição e qualidade de vida também são tratadas com uma razoável constância. Essas pautas estão relacionadas ao amplo escopo do Minter, que englobou as ações de saneamento básico, o Plano Nacional de Habitação, a assistência aos municípios e, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (Cndu). Entretanto, essas funções eram “paralelas” ao restante das atividades do Minter, e assim também o eram na revista, ver Iorio (op. cit.).

[29] Interior, nº 9, Março/Abril de 1976. p. 4. grifo nosso.

[30] Interior, nº 65, Março/Junho de 1986. p. 41. grifo nosso.

[31] Editora da revista Interior da primeira à última edição. Ela foi entrevista por este que vos escreve como parte das pesquisas para a elaboração da dissertação de mestrado, da qual esse artigo se desdobra. Para maiores detalhes ver: Iorio (op. cit.).

[32] Interior, nº 9, Março/Abril de 1976. p. 3. grifo nosso.

[33] Interior, nº 55, Março/Abril de 1984. p. 8. grifo nosso.

[34] Interior, n. 17, Maio/Junho de 1977. p. 17. grifo nosso.

[35] Interior, nº 15, Janeiro/Fevereiro de 1977. p. 22.

[36] Roberto Cavalcanti de Albuquerque era um exímio representante da tecnocracia no Minter. Economista, era membro do corpo técnico do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea).

[37] Interior, nº 28, Setembro/Outubro de 1979. p. 4. grifo nosso.

[38]Massey, 2008.

[39] Interior, nº 43, Março/Abril de 1982. p. 38. grifo nosso.

[40] Interior, nº 57, Julho/Agosto de 1984. p. 52. grifo nosso.

[41] Interior, nº 47, Novembro/Dezembro de 1982. p. 4. grifo nosso.

[42] Anderson, 2008.

[43] Interior, nº 1, Dezembro de 1974. p. 3. grifo nosso.

[44] Anderson, op. cit.

[45] A fronteira agrícola foi a expansão da agricultura altamente capitalizada, baseada nas grandes produções para exportações. Esse movimento se deu principalmente sobre a região Centro-Oeste do país, mas também sobre algumas sub-regiões, como no sul do país, consideradas de agricultura “atrasada”.

[46] Por “Revolução Verde” me refiro ao processo de amplas transformações ocorridas na agricultura brasileira, marcado pela inserção de sofisticado aparato tecnológico, como insumos agrícolas, agrotóxicos e técnicas de manipulação de espécies.

[47] Becker, 1990.

[48] Interior, nº 7, Dezembro de 1975. p. 12. grifo nosso.

[49] Interior, nº 63, Julho/Dezembro de 1985. p. 18. grifo nosso.

[50] Interior, nº 61-62, Março/Junho de 1985. p. 58. grifo nosso.

[51] Interior, nº 49, Março/Abril de 1983. p. 24.

[52] Interior, nº 55, Março/Abril de 1984. p. 37. grifo nosso.

 

Fontes documentais

INTERIOR. Brasília: Ministério do Interior. Anos I-XV, nº 1-69, dezembro de 1974 a setembro de 1989. Bimestral.

BRASIL. Decreto-lei nº 200 de 25 de fevereiro de 1967. <http://www.lex.com.br/coletanea/default.aspx>. [28/06/2007].


Bibliografia

ALMEIDA, A. W. B. de. Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8/Fundação Universidade do Amazonas, 2008.

ALVES, M. H. M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis-RJ: Vozes, 1984.

ANDERSON, B. R. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

BECKER, B. A fronteira em fins do século XX: oito proposições para um debate sobre a Amazônia. In BECKER, B.; MIRANDA, M.; MACHADO, L. O. Fronteira amazônica: questões sobre a gestão do território. Brasília; Rio de Janeiro: Ed. Universidade de Brasília; Ed. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1990.

BOMFIM, P. R. de A. A ostentação estatística (um projeto geopolítico para o território nacional: Estado e planejamento no período pós-64). Tese de doutorado (Doutorado em Geografia Humana) – Programa de Pós Graduação em Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

da CUNHA, E. Os Sertões. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere v.3. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

HOWITT, R. Scale. In AGNEW, J., MITCHEL, K., GERARD, T. (eds.). A Companion to Political Geography. Maalden (USA), Oxford (UK): Blackwell, 2003, p. 138-122.

IORIO, G. S. Síntese da vida nacional e representação do interior no Brasil: a revista INTERIOR (1974-1989). Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

LAFER, C. O sistema político brasileiro: Estrutura e processo. São Paulo: Perspectiva (Série debates), 1975.

MACHADO, L. O. Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a idéia de ordem (1870-1930). In CASTRO, I. E de; GOMES, P. C. da C.; CORRÊA, R. L. Geografia: Conceitos e temas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

MAIA, J. M. E. A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

MASSEY, D. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MORAES, A. C. R. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no “longo” século XVI. São Paulo: HUCITEC, 2000.

MORAES, A. C. R. Território e História no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2005.

MORAES, A. C. R. Sertão: um outro geográfico. Terra Brasilis, 2002-2003, nº 4-5, p. 11-23.

MIYAMOTO, S. O Pensamento Geopolítico Brasileiro (1920-1980). Dissertação (Mestrado em Ciências Políticas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1981.

OLIVEIRA, F. de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste, planejamento e conflitos de classes. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1981.

QUEIROZ, J. F. de.  Um estudo sobre a comunicação social no serviço público brasileiro. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social). Universidade de Brasília. Brasília, 1977.

SOUZA LIMA, A.C. Traditions of Knowledge in colonial Management of inequality: Reflections on an Indigenist Administration Perspective in Brazil. World Anthropologies Journal, 3, 2008, p. 7-32.

SOUZA LIMA, A.C. Tradições de conhecimento na gestão colonial da desigualdade: reflexões a partir da administração colonial indigenista no Brasil. In BASTOS, C.; ALMEIDA, M. V.; FELDMAN-BIANCO, B. (org.). Trânsitos Coloniais: Diálogos críticos Luso-Brasileiros. Lisboa/Pt: Impressa de Ciências Sociais, 2002.

SWYNGEDOUW, E. Scaled Geographies: Nature, Place, and the Politics of Scale. In SHEPPARD, E.; McMASTER, B. Scale, Geographic Inquiry, Nature, Society, and Method. Maalden (USA), Oxford (UK): Blackwell, 2004, p. 129-148.

VLACH, V. R. F.  Estudo preliminar acerca dos geopolíticos militares brasileiros. Terra Brasilis, 2002-2003, nº 4-5, p. 1-14.

 

© Copyright Gustavo Soares Iorio, 2012.
© Copyright Scripta Nova, 2012.

 

Ficha bibliográfica:

IORIO, Gustavo Soares. Imagens e Imaginário do Sertão no Brasil sob Regime Militar: A Revista Interior (1974-1989). Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (70). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-70.htm>. [ISSN: 1138-9788].

Índice del nº 418
Índice de Scripta Nova