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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (27), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

TRABALHADORAS RURAIS E LUTA PELA TERRA: INTERLOCUÇÃO ENTRE GÊNERO,
TRABALHO E TERRITÓRIO.

Maria Franco Garcia
Mestranda em Geografia- UNESP/Presidente Prudente, Brasil.

Antonio Thomaz Júnior
Professor do Departamento de Geografia- UNESP/Presidente Prudente, Brasil.
 

"El reverso del destino es la conciencia de libertad"
Octavio Paz


Trabalhadoras rurais e luta pela terra: interlocução entre gênero, trabalho e território (Resumo)

A construção de relações de gênero nos territórios de luta pela terra (assentamentos e acampamentos), dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no Brasil, só pode ser compreendida a partir da processualidade social que os define. As funções sociais das trabalhadoras acampadas mudam uma vez que se transformam em assentadas, o que repercute diretamente na redução do seu espaço político e social. A preocupação que permeia esta interlocução radica na necessidade de desvendar processos estruturais e locais da divisão social e sexual do trabalho, que criam e reproduzem a ideologia hegemônica que por sua vez, direcionam as relações de gênero, com o objetivo de manter o status quo do controle social.

Palavras-Chave: Trabalhadora Rural, Relação de Gênero, Território, Luta pela Terra


Rural workers women and Land Struggle: Linking gender, work and territory. Abstract:

The construction of relations of gender inside Land Struggle territories (establishments and camps), of Brazilian Rural Workers Without Land, it can only be understood starting from the social process that defines them. The camped workers' social functions change once they become to have seated, what directly rebounds in the reduction of their political and social space. The principal concern under discussion takes roots in the need of unmasking structural and local processes of social and sexual division of work. They create and recreate the hegemonic ideology, which address the relations of gender with maintaining the status quo of the social control objective.

Key words: Rural Worker, Relations of Gender, Land Struggles, Territory


Os apontamentos que aqui apresentamos são resultados parciais da pesquisa sobre relações de classe e gênero na territorialização da luta pela terra que estamos desenvolvendo na região do Pontal de Paranapanema, no Estado de São Paulo, Brasil. O objetivo deste artigo é apresentar funções e papeis de gênero identificados em assentamentos e acampamentos que têm origem na luta pela terra do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Pretendemos com isto, caracterizar os papeis sociais jogados pelos trabalhadores e as trabalhadoras rurais em diferentes momentos/espaços do processo/movimento da Luta pela Terra: os acampamentos e assentamentos rurais.

Esta análise é ponto de partida para iniciarmos uma maior compreensão das mudanças protagonizadas pelas mulheres trabalhadoras no contexto rural brasileiro. O incremento da mobilização destas através de grupos de trabalhadoras organizadas, autonomamente ou bem no interior de movimentos sociais, nos assentamentos e acampamentos rurais brasileiros, representam sinais dessa mudança.

Os depoimentos das trabalhadoras e trabalhadores do assentamento Madre Cristina e do acampamento Padre Jósimo, ambos no município de Teodoro Sampaio, no Pontal do Paranapanema, São Paulo, Brasil, constituem a base das nossas reflexões. Em ambos territórios o modus vivendi é fruto de processos de organização coletiva, o que os converte em espaços privilegiados para a organização e cooperação entre seus membros. A organização espacial, a historia de luta, e a proximidade das relações e reivindicações comuns, funcionam como elementos de empoderamento de homens e mulheres, socialmente excluídos, no avanço do esforço para superar a miséria.

Nesse sentido, entendemos ser prioritário contextualizar na metamorfose contemporânea do mundo do trabalho, o contingente humano que forma o que, hoje no Brasil e no mundo, se conhece como os trabalhadores e trabalhadores Sem Terra. Particularmente, as mulheres e homens que ingressam nas fileiras de um dos seus mais representativos movimentos, além do mais distorcido e manipulado pela mídia, o MST. Um movimento social rural de classe que luta contra a exclusão e pela dignidade humana. Para tal fim, optamos pelas categorias de classe e gênero como portas de entrada da nossa leitura.

Em primeiro lugar, tratamos de identificar a estrutura da divisão sexual do trabalho que se estabelece nestes territórios. A identificação das atividades produtivas e reprodutivas e de trabalho comunitário nos assentamentos e acampamentos constata-se fundamental para evidenciar a participação de homens e mulheres em todos os níveis e âmbitos, para colocar prioridades e contribuições.

Em seguida, apontamos singularidades e reproduções de ideologias e pràticas de subordinação da mulher presentes no universo destas trabalhadoras. Indagar sobre estas questões responde ao objetivo de desvendar os limites que são colocados nestes novos espaços para a quebra do destino de gênero, luta inerente ao discurso do MST e implícito nas organizações das trabalhadoras assentadas. Intentamos explicitar a produção e reprodução das clivagens de gênero que, nos assentamentos e acampamentos rurais, se apresentam para a militância feminina no movimento social dos Sem Terra e as organizações de mulheres trabalhadoras rurais.

Por último, colocamos as duas estratégias diferenciadas de desenvolvimento e luta que mobilizam as mulheres trabalhadoras do assentamento Madre Cristina e o acampamento Padre Jósimo: o Setor de Gênero do MST e a Comissão de Mulheres Trabalhadoras Rurais.
 

Gênero, Classe Social e Luta pela Terra: apontamentos para o debate

Uma questão de vital importância para iniciarmos a "leitura" geográfica do processo contemporâneo da Luta pela Terra no Brasil, é a de estarmos cientes de uma realidade que, por árdua, habituamos a não definir com palavras e sim com números. Dados estatísticos mostram as absurdas disparidades de uma das distribuições de renda per cápita mais desiguais do mundo que fazem do Brasil, antes de tudo, um país de miseráveis.

Sabemos que qualquer distribuição, não importa quais sejam os meios de consumo, é conseqüência da distribuição das próprias condições de produção. Mas esta última distribuição, porém, é um aspecto do modo de produção em si. (MARX, 1966). Ao afirmar que o Brasil é um país de miseràveis, correndo o risco simplista da generalização, propomos chamar a atenção sobre uma estrutura de relações sociais que outorga e tira oportunidades, além da privação de bens materiais e a sua injusta distribuição.

A armadilha liberal do paradigma distributivo como ideal de justiça social, torna opaco o sistema de opressão – dominação estrutural que constrói a dinâmica das relações sociais. (YOUNG, 2000). Atentos à dimensão do capital como relação social, este como sistema metabólico sócio – econômico de controle é, antes de tudo, uma força de comando, (MÈSZÀROS, s/d). O caráter sistêmico do controle social do capital implica a reprodução do sistema opressão- dominação nas mais importantes instituições políticas, econômicas e culturais. O que entranha a existência de múltiplas dimensões de controle.

Além da exploração de classe, a carência de poder e a exclusão social são formas de opressão que se constituem em virtude da divisão social do trabalho. O imperialismo cultural e a violência estrutural são também pràticas sociais opressivas e de controle (YOUNG, 2000). Trazer à tona estes matizes revela-se de suma importância quando procuramos desvendar as clivagens que oprimem a mulheres e homens como grupos sociais com identidade, ou subjetividade coletiva, de gênero.

No rural brasileiro as diferentes frentes articuladas sob a bandeira da Luta pela Terra e a Reforma Agrária, agrupam uma parcela significativa de trabalhadores e trabalhadoras que lutam contra um destino social de exclusão (MARTINS, 2000). Na exploração da classe trabalhadora a opressão tem lugar através de um processo continuado de apropriação da mais-valia do trabalho pelo capital. Mas a injustiça da divisão em classes da sociedade produtora de mercadorias, não radica só no fato distributivo de que "os menos tem o mais". A exploração determina também as relações sociais estruturais entre as classes. As regras sociais a respeito do que é trabalho, quem faz o que e para quem, como é recompensado e qual é o processo social pelo que as pessoas se apropriam dos seus resultados, operam para determinadas relações de poder e desigualdade. O conflito no campo é a luta de classe dos trabalhadores e trabalhadoras rurais desposuídos dos meios de produção e desnecessários para um sistema econômico e social que coisifica as relações humanas, mercantilizando-as.

O cenário no qual se inserem estas trabalhadoras e trabalhadores, tem como base fundante a concentração da terra, do capital e da renda, e a precarização das relações de trabalho.

Hoje no Brasil, as desigualdades sociais do campo, fruto da concentração fundiária e da modernização seletiva da agricultura, somam-se segmentos sociais da classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES,1999), que nas cidades sofrem as redefinições tecnológicas e gerenciais do mundo do trabalho e que vivem a desqualificação, precarização e informalização assim como a despossessão ou o desemprego em massa. (THOMAZ, 2001).

Focando as mulheres trabalhadoras que formam parte do processo de Luta pela Terra, em condição de acampadas, assentadas ou militantes de movimentos sociais rurais, é importante destacar que estas se enfrentam com opressões diferenciadas às dos seus companheiros. A opressão de gênero dificulta, e muito comumente impossibilita, a plena participação das trabalhadoras, na vida pública e política dos acampamentos e assentamentos rurais. Se bem que como classe a mulher é explorada igual a seus companheiros de luta, no entanto de forma desigual. O capitalismo se apropriou desigualmente da divisão sexual do trabalho e, à mulher, longe de emancipá-la a explora mais ferozmente. Assim as mulheres assentadas e acampadas que vender sua força de trabalho o fazem em condições desiguais em relação aos homens. A infravalorização da sua participação nas atividades produtivas implica remuneração inferior para as mesmas atividades. Mostra disto é que as diárias (1) das acampadas que trabalham em assentamentos e fazendas ou das assentadas que trabalham na roça em lotes vizinhos, é inferior à recebida pelo trabalhador que desempenha a mesma atividade durante as mesmas horas de serviço. A percepção do trabalho produtivo da mulher como complementar e subalterno é mais uma das barreiras de gênero que as assentadas e acampadas vivenciam no seu cotidiano.

A infravaloração do trabalho da mulher é algo que continua fortemente arraigado na sociedade ocidental, tanto nos espaços urbanos e rurais quanto nos territórios da luta. Independentemente das conquistas de cunho feminista e trabalhista logradas durante décadas de luta atendemos, hoje, ao incremento da precarização e informalidade nas relações de trabalho concomitante ao incremento da participação da mulher no mercado de trabalho

Uma conseqüência dramática de discriminação de gênero é o crescente processo de "feminização da pobreza". No Estado de São Paulo o grosso dos lares chefiados por mulheres se localiza na zona urbana, mas a sua situação marginal não é exclusiva da cidade. Durante o nossa pesquisa em campo constatamos que as famílias chefiadas por mulheres assalariadas rurais sobrevivem na periferia da opressão. Sobre elas recai o peso da discriminação de gênero, da exclusão social, da carência de poder e da exploração de classe, colocando-as, junto às suas famílias, no limite da sobrevivência.

A respeito do trabalho não assalariado que se realiza nos assentamentos e acampamentos, este tem um marcado corte de gênero. Ainda que já vislumbremos fissuras no padrão de comportamento dos trabalhadores e trabalhadoras forjadas na luta, a construção de relações de gênero nestes espaços parte da tradicional divisão sexual das tarefas legitimada na nossa sociedade. A mulher é relegada à esfera privada e reprodutiva no assentamento e às atividades assistenciais vinculadas à coordenação do cuidado das crianças, saúde e educação dos acampamentos. O espaço público e as atividades produtivas da roça no assentamento são masculinas, como o são também as tarefas de coordenação e gerenciamento dos acampamentos.

Entendemos que a produção e reprodução do espaço estrutura-se através de determinadas relações de poder decisivas (SMITH, 1988). A classe e o gênero são as categorias de analise que nos permitem interpretar de forma ampliada, a produção e reprodução dos espaços e momentos da Luta pela Terra. Acampamentos e assentamentos concentram relações de gênero diferenciadas da classe trabalhadora forjada nesta luta.

A família e a propriedade privada reforçam a ideologia hegemônica de gênero que oprime a mulher sob normas discriminatórias socialmente aceitas. Nos acampamentos tem lugar a socialização da vida privada. Isto permite quebrar com o silencio de muitas "companheiras" através da criação de espaços para que a sua voz seja escutada. As responsabilidades familiares e a divisão público/masculino - privado/feminino do espaço no assentamento, dificulta a participação das mulheres como agentes políticos de transformação no espaço rural.

O processo de territorialização da Luta pela Terra em feminino: do acampamento ao assentamento.

Nos acampamentos rurais a divisão das funções de gênero esta condicionada pelo seu caráter temporal. Acampar significa ocupar, coletiva e organizadamente, um espaço visando conquistar a terra. O acampamento é o momento entre a ocupação e a posse do lote. E também é o território de barracos de lona e despejos, da organização e gestão coletiva, das assembléias, do trabalho comunitário, da militância ativa e da resistência. A sua dinâmica implica o desenvolvimento por parte de cada um dos seus membros de uma função. Isto faz que as acampadas exerçam diferentes papéis. A associação da mulher à esfera privada/doméstica/reprodutiva não é identificada na mesma medida que para a mulher assentada.

A maior parte das mulheres com as que tivemos a oportunidade de conversar no acampamento Padre Jósimo, levavam na espera de um pedaço de terra quase cinco anos. Durante este período trabalharam como diaristas no assentamento vizinho Laudenor de Souza, como cortadoras de cana da Fazenda próxima ao acampamento, e também aquelas que contavam com a família para ficar tomando conta do barraco, buscaram emprego na cidade de Teodoro Sampaio, trabalhando como domésticas durante a semana e voltando a acampar nas suas folgas. A necessidade de sobreviver no acampamento faz com que a maior parte das famílias estejam divididas durante esta fase da luta. No Padre Jósimo os membros dos casais responsabilizavam-se indistintamente do barraco alternando-se no tempo, em função de quem contasse com serviço fora.

A cotidiano das relações no acampamento caracteriza-se pela precariedade no modo de vida e pela criação de identidades coletivas e laços de solidariedade horizontal. O papel da mulher como sujeito de resistência e "companheira de luta" é valorizado pela sua capacidade de trabalho, como se observa na fala do coordenador do acampamento:

Muitas mulheres aqui neste acampamento dão de mil num homem. Trabalha muito, tem mulher que mora sozinha num barraco. Ela vai para o lote prepara o lugar para de fazer o barraco , tudo sozinha (...) a mulherada aqui dentro não tem tempo ruim. Elas são muito para frente. Para elas não muda nada quando peguem o lote, se vão trabalhar mais o menos. Não muda nada porque são muito trabalhadeiras. (Trabalhador rural acampado no Padre Jósimo. Militante do MST)

Tanto nos confrontos armados como nas passeatas de protesto e ocupações de latifúndios improdutivos, as acampadas e acampados do Padre Jósimo apareceram lutando de forma igualitária.

O assentamento rural é um passo à frente no processo de luta, a consumação do aceso a posse da terra. Neles as implicações de gênero se tornam evidentes na divisão sexual do trabalho no interior das unidades familiares de produção. Todavia, a configuração espacial dos assentamentos divididos em lotes significa para muitas assentadas o seu isolamento social. Confinadas à produção e reprodução dos meios de subsistência na esfera privada, os espaços de sociabilidade são muito reduzidos.

Através das falas dos trabalhadores e trabalhadoras assentados no Madre Cristina pudemos constar que uma vez conquistada a terra os objetivos pessoais e a projeção do futuro familiar muda. Isto repercute diretamente no declínio da participação, sem distinção de gênero, na militância política da luta organizada e na mobilização dos assentados. Mas do cotidiano relatado, as mulheres, especialmente as casadas com responsabilidades familiares, têm maiores dificuldades de participar devido ao peso da sua rotina de trabalho doméstico e extradoméstico, que se acentua no assentamento onde se faz patente a dupla jornada de trabalho.

Além do mais, na percepção das assentadas, fica claro que a participação feminina é limitada por constrangimentos fundados nos papéis de gênero, que as impedem de se ausentar livremente do assentamento.

Segundo depoimentos das lideranças no assentamento, o envolvimento na Luta pela Terra contribui para a formação de comportamentos, mais participativos ou, no mínimo, mais conseqüentes entre as mulheres assentadas, o que permite discriminar aquelas que passaram pela experiência do acampamento, daquelas que não. Não obstante, quando nos referimos às trabalhadoras com um passado na luta, muitas assentadas insistem em que o resto das mulheres não participam porque não querem. Não reconhecem as limitações de gênero e apresentam tudo como uma escolha pessoal.

Todavia, outras assentadas colocam as assimetrias de poder entre homens e mulheres como o impedimento fundamental para a participação eqüitativa na vida do assentamento e na mobilização política . A submissão da mulher dentro do casamento é denunciada sistematicamente:

Há mulheres interessadas em criar atividades no assentamento, ou participar do Movimento, e o marido não deixa mesmo. Tem umas que insistem e falam: eu vou sim.Mas tem umas que o marido não deixa mesmo, dizem que o lugar da mulher é lá, já que quis o lote, tem que ficar lá, tem o serviço, não pode deixar sozinho, depois vêm os filhos e assim... (Representante do Sector de Gênero do MST no assentamento Madre Cristina)
 

O cotidiano da labuta: a divisão sexual do trabalho e a construção de relações de gênero.

Para o pleno exercício da cidadania das mulheres trabalhadoras rurais existem, além dos obstáculos econômicos, sólidas barreiras culturais e sociais, como vimos constatando. As limitações com as quais as trabalhadoras se enfrentam no seu cotidiano, expressam-se na esfera da atividade produtiva, afetando a questões como o cadastramento de beneficiários das terras, aceso ao crédito e serviços de assistência técnica e capacitação (PEREIRA, 1996)

No assentamento e acampamento base do nosso estudo pudemos verificar que a manifestação desta limitação opera em varias dimensões. Em primeiro lugar o trabalho produtivo da assentada no lote, não é reconhecido como componente integrante da produção e sim como componente subliminar . Uma ajuda ao trabalhador principal,o homem.

Uma segunda questão é que o trabalho reprodutivo não é considerado trabalho. Os serviços prestados pelas mulheres aos membros das suas famílias, o trabalho reprodutivo, não podem ser ignorados já que são estas as atividades que se encontram no centro da construção de novos papéis femininos e masculinos no mundo atual. Não obstante partimos da premissa de que na sociedade ocidental o trabalho doméstico é considerado responsabilidade da mulher.

O fato de que este trabalho seja improdutivo do ponto de vista da remuneração econômica, relega ao plano da invisibilidade o tempo e energia que as assentadas e acampadas empregam para o cuidado e atenção das tarefas consideradas como domésticas. Estas que não são expressas em valores monetários, são facilmente esquecíveis e desvalorizadas pela sociedade.

Embora seja mais elevado o número de homens que resumem as atividades femininas às atividades do lar, o volume de mulheres que incorporam esta concepção é também muito grande. O que significa que as tarefas são "naturalmente" realizadas pelas mulheres, como define a literatura sobre gênero e testemunham as falas das e dos trabalhadores entrevistados:

Pegar a enxada? Lógico. Se você vai ficar esperando por ele nunca vai para frente, só ele que vai ficar pensando que você fica lá esperando sem fazer nada , acaba seu serviço da casa, e vai lá pegar a sua enxadinha, um pouquinho já ajuda. (Trabalhadora rural acampada no Padre Jósimo. Responsável pela Ciranda infantil)

Eu sempre trabalhei aqui na região junto co meu marido de diaristas. Eu organizava a vida no barraco e cuidava dos filhos, mais sempre tirava um tempo para voltar para a roça. Tinha que ser assim. (Trabalhadora rural acampada no Padre Jósimo)

Embora a maior parte do trabalho realizado pelas mulheres dentro do assentamento seja não remunerado, aquelas assentadas que realizam serviços na casa para fora, como costura, se consideram afortunadas. A ajuda para o debilitado orçamento familiar e o aceso a um recurso tão escasso na vida do assentamento é reconhecidamente valorado pelas assentadas:

Eu acho muito bom (...) a mulher tem que ter o seu dinheirinho, se você quer comprar algo, se você precisar de batom não ter que estar pedindo um real para o companheiro. (Trabalhadora rural assentada no Madre Cristina)

Em terceiro lugar, a atribuição de valor para as atividades produtivas é diferenciada em função do sexo de quem as desempenha. No assentamento Madre Cristina, de base agropecuária, a invisibilidade do trabalho da assentada na extração do leite é fruto do escasso valor que se confere ao seu trabalho.

Segundo a pesquisa de Relações de Gênero nos Assentamentos rurais, realizada pela UNESCO em 2000, no Estado de São Paulo, observamos que a distribuição das ocupações de homens e mulheres são similares ao estereotipo clássico, no que se relaciona a divisão de tarefas entre "as do lar" e as da produção; pais e filhos nas atividades agropecuárias e mães e filhas nas lides domésticas (Quadro 1). Os dados mostram que a principal atividade dos assentamentos é a agropecuária, onde as ocupações das mulheres são mais diversificadas que as dos homens, que se concentram nas atividades agrícolas.
 
 

Quadro 1
Ocupação segundo membros da família nos assentamentos rurais do estado de São Paulo, 1999
OCUPAÇÃO
Pais 
Mães
Filhos
Filhas
Agricultura/Pecuária
86,0
45,0
71,0
28,5
Atividades domésticas 
0,5
49,0
0,5
40,0
Magistério
...
0,5
...
...
Estudante
...
...
14,5
25,0
Ocupações em contato com o público e/ou lideranças (1)
...
0,5
1,0
...
Atividades manuais, qualificadas ou semiqualificadas (2)
2,5
...
2,0
1,0
Serviços públicos e serviços gerais (3)
...
1,5
3,0
3,0
Sem ocupação (4)
0,5
0,5
1,5
1,5
TOTAL
100,0
(355)
100,0
(345)
100,0
(206)
100,0
(120)

(1) comerciantes, mensageiros/as, cabeleireiros/as, técnicos/as agrícolas, dirigentes e militares.
(2) carpinteiros/as, pedreiros/as, mecânicos/as, operadores/as, tratoristas, motoristas, frentistas, zeladores/as, artesãos/ãs, leiteiros/as, pescadores/as, balseiros/as
(3) funcionários/as públicos/as, administradores, agentes administrativos, auxiliares de enfermagem, agentes de saúde, atendentes de farmácia, serventes, crecheiros/as, merendeiros/as, serviços gerais .
(4) Desempregados/as, inválidos/as, aposentados/as.

Adaptado da Pesquisa de Relações de Gênero em Assentamentos Rurais , UNESCO 2000.
FONTE: RUA, M.G. e ABRAMOVAY, M. (2000)
O assentamento Madre Cristina não é exceção ao padrão da divisão de funções descrita para o universo de assentamentos do Estado de São Paulo. A lavoura e a pecuária são fundamentalmente masculinas, ainda que a participação feminina seja constante não passa a ser reconhecida como complementar. Em contrapartida a criação, pequenos animais e aves e os cuidados do pomar e da horta (fruticultura e horticultura) são funções da ampliada "esfera doméstica" que implica o lote. A participação do homem nestas atividades se realiza de forma residual.

No quadro1 podemos observar como nos assentamentos do estado de São Paulo, a diferenciação sexual do trabalho na agropecuária tem um claro impacto na geração de valor. A lavoura e pecuária são responsáveis pelo grosso do valor total da produção agropecuária, enquanto que aves e pequenos animais junto a horticultura/fruticultura representam porcentagens mínimas do valor da mesma produção.

Além da existência de uma diferenciação de papeis em função da atividade desempenhada, a jornada de trabalho também é um elemento que reforça a divisão sexual do trabalho. Verificamos que os discursos das entrevistas desnudam a realidade do trabalho que as mulheres realizam nestas comunidades. No assentamento as mulheres são responsáveis por muitas tarefas com grande peso nas atividades produtivas, como capinar, cortar, plantar, colher, tombar a terra, tirar o leite etc. Mesmo diante do fato de que as mulheres participem de todas as atividades do campo, o discurso de ambos sexos permanece caracterizando o trabalho feminino como uma ajuda, porque a responsabilidade pelas atividades econômicas, como insistimos, é sempre masculina, na decisão do que plantar ou na comercialização do produto:

Vamos a pegar o nosso lote, ir atrás de crédito, de técnico e tudo isso, vai ser com ele mesmo. O meu é mais cuidar da casa. Eu falei para ele, da casa eu cuido, agora do resto é você. Nós decidimos assim. Se precisar a gente ajuda. (Trabalhadora rural acampada no Padre Jósimo.)

Quase a totalidade das trabalhadoras entrevistada declarou serem os seus companheiros os principais responsáveis pelo dinheiro na casa. Salvo as mulheres solteiras e viúvas, são os homens que possuem todo o controle sobre o dinheiro e o custeio (2).

Por meio das falas das assentadas e acampadas verificamos que, no seu cotidiano, o padrão de subordinação e invisibilidade do seu trabalho faz da sua participação na lavoura uma atividade percebida como subalterna. Ademais, apesar de responder por uma parcela significativa da produção para o autoconsumo - criação, hortaliças e frutas - esta é pouco valorizada devido a escassa participação na geração de renda. A dupla jornada é cumprida pelas trabalhadoras que se responsabilizam e são responsabilizadas pela maioria das tarefas do trabalho reprodutivo.

Algumas autoras falam de tripla jornada (VALENCIANO, 2001) que as mulheres engajadas na luta e militantes de movimentos sociais estão desenvolvendo nestes espaços. Isto nos remete à percepção dos direitos, conseqüente da divisão sexual do trabalho.O confinamento na esfera doméstica que afeta às mulheres assentadas junto ao fato de só os homens ter acedido ao mundo público, faz com que no exercício dos direitos fundamentais as discriminações sejam aceitas como naturais, até em relação à mulher sair da casa:

Eu acho que mulheres igual a mim não tem muitas no assentamento, que saiam da casa, vão à luta,..., os maridos não deixam, a maioria não deixa. Para reunir às mulheres mesmo, você tem que chegar e implorar.Tem maridos que brigam mesmo, e não tem conversa. (Trabalhadora rural assentada no Madre Cristina. Representante do Sector de Gênero do MST no assentamento)

Bem, no assentamento não é bem visto pelos companheiros o fato de que as companheiras deixem a casa e vaiam para São Paulo, Brasília. A primeira coisa que colocam são os filhos, o lugar da mulher é tomar conta dos filhos e não andar de baixo para cima detrás do Zé Rainha (liderança regional do MST). Não queriam terra? Pois a terra está aí. Assim mesmo falam. (Trabalhadora rural assentada no Madre Cristina. Militante do MST)

Eu cheguei a determinado assentamento e convidei a uma companheira para participar de uma mobilização da luta. Cheguei e falei: vamos. E o marido falou: ela não vai, ela tem o que fazer dentro da casa. Ela chorou, mas eu não vou discutir com ele.(Trabalhadora rural assentada no Madre Cristina. Militante do MST)

Eu não participo das reuniões das mulheres porque eu tenho medo. Tenho medo de ouvir o que eu não quero de ouvir por parte deles. (Trabalhadora rural assentada no Madre Cristina.)

A relevância que a mobilização e politização destas mulheres através de organizações de classe e gênero é inquestionável à luz dos depoimentos das trabalhadoras.

Pensar, decidir e fazer no território de luta: ideologia e construção de relações de gênero

O gênero é uma entre várias relações sociais, o que significa que tem classe, raça e etnicidade. Os territórios da luta pela terra, como apontamos, são espaços de luta da classe trabalhadora pelo direito à vida e à dignidade roubada (THOMAZ, 2001).

Como na sociedade ocidental como um todo, ideologia hegemônica de gênero se faz presente nos acampamentos e assentamentos. Em ambos espaços cobram-se papeis e valores sociais diferenciados segundo o gênero das companheiras e companheiros. A partir da analise da divisão sexual do trabalho, vimos que não se trata apenas de uma divisão fortuita e aleatória, senão que estabelece a hierarquização de funções entre homens e mulheres. Contudo, o gênero é também construído ideologicamente através de uma série de valores que se reproduzem no tempo e nos espaços.

No acampamento Padre Jósimo a exclusão social e o projeto político de ocupação e resistência unem na mesma luta a acampados e acampadas. A organização do acampamento em barracos próximos uns dos outros facilita a cooperação e socialização da vida entre todos os seus membros. Não obstante, a coletivização das funções não implica a mudança dos valores sociais que reproduzem a assimetria de gênero, fazendo que as mulheres fiquem presas a convencionalismos e moralismos dos quais os homens não são cobrados:

As meninas não formam parte dos cursos de formação de base do movimento, porque, qual pai e mãe vai permitir que sua filha passe três messes em um barraco cheio de homem? O medo da sexualidade feminina está presente também na luta. (Trabalhador rural assentado no São Bento. Militante do MST)

Muitas observações da literatura especializada de gênero e da feminista encontram respaldo nos depoimentos levantados pela pesquisa que estamos desenvolvendo. O pensar e o falar das entrevistadas estão carregados de contradições e ambigüidades entre o dito e o feito no seu cotidiano. Assim, o discurso da equidade entre homens e mulheres é apropriado por acampados e assentadas, mas continua-se acreditando que certas tarefas cabem "naturalmente" às mulheres porque elas levam "mais jeito". Da mesma forma que determinadas atitudes se correspondem um determinado gênero:

Alguns acham que é o homem que tem que ir atrás dos negócios. Está certo que a esposa também pode ir atrás, mas às vezes não tem tempo por causa dos afazeres do lar, pela criança, então ela não vai. Se eu tenho que ir a cidade vou mais despreocupado, porque sei que ela está cuidando da criança e de algum plantio próximo. Eu não deixo ela entrar numa roça, isso é muito pesado, é serviço de homem. Outras coisas mais leves , um quiabo, cuidar uma horta, ela pode fazer.(Trabalhador rural acampado no Padre Jósimo)

Hoje tudo se divide, eu sou franco e acho bonito um homem ajudar a lavar uma louça, fazer uma comida, só que eu não levo jeito. Ajudo em último caso se ela estiver enferma.(Trabalhador rural assentado no Madre Cristina)

Nas entrevistas se transluz o modo como as mulheres assumem estas responsabilidades tornado-as naturais. E as representações estereotipadas sobre os gêneros contribuem para afirmações de que os homens são incapazes de ocupar-se das crianças , diante de outras tarefas de maior importância:

As crianças se dão melhor com a mãe, ela é mais paciente. Eu tenho que trabalhar, aqui no lote temos muito serviço, e sou eu sozinho.(Trabalhador rural assentado no Madre Cristina)

O trabalho da casa não é pesado não, é tranqüilo, eu levo jeito. A mulher é a que sempre cozinha porque o homem não leva jeito para isso. Agora com as crianças eu acho que é igual, né?(Trabalhadora rural acampada no Padre Jósimo)

O enfoque do empoderamento das mulheres (MOSER, 1991) enfatiza o fato de que as mulheres experimentam a opressão de maneira diferente de acordo com a sua raça, classe, história e posição atual na ordem econômica internacional. O que nos sugere este tipo de abordagem é atentar para as estruturas e situações que simultaneamente a mulher trabalhadora rural tem que enfrentar nos territórios da Luta. Pela terra.

A desigualdade no acesso ao poder e tomada de decisões nos assentamentos e acampamentos rurais entre trabalhadores e trabalhadoras coloca o empoderamento como uma necessidade básica para as mulheres. Isto abrange a formação de alternativas provenientes delas próprias, seja por estar organizadas algumas em grupos seja pela consciência da sua situação. O Setor de Gênero do MST e a Comissão de Mulheres são as duas organizações que articulam esforços para lutar pela melhora da vida no acampamento Padre Jósimo e no e assentamento Madre Cristina, a partir de posicionamentos diferenciados de classe e gênero. Ambas organizações trabalham conscientizando à mulher para desafiar a sua subordinação.

Uma outra consideração é que as trabalhadoras rurais que fazem parte de organizações ou movimentos sociais assumem e reconhecem seu triplo papel: produtivo, reprodutivo e militante.

A construção de novas relações entre homens e mulheres remete ao esforço de mudança da ordem social como um todo.Com este fim, as iniciativas baseadas na construção de identidades coletivas, novos códigos de valores e normas de interação social beneficiam-se das pràticas associativas tal qual empreendidas pelos movimentos sociais rurais como o MST. (ABRAMOVAY, 2000).

O imperialismo cultural do pensamento racional iluminista ocidental coloca uma concepção da imagem feminina que agrega atributos de inferioridade, subordinação e constrangimento, cabendo ao gênero masculino as características de superioridade, força, coragem e liberdade em todas as sua acepções. E esses modelos e imagens são transmitidos às novas gerações mediante padrões de sociabilização. Mas nos assentamentos e acampamentos rurais nada disto permanece inquestionável: Estas são os sinais de mudança nas relações de gênero que apontávamos no inicio da nossa reflexão. As organizações das mulheres trabalhadoras nos assentamentos e acampamentos concretizam o desejo de mudar a realidade, desde a luta de classe e a perspectiva de gênero.

Formas de inserção e construção de espaços de poder das trabalhadoras rurais: O Setor de Gênero e as Comissões de Mulheres

Tanto no acampamento Padre Jósimo como no assentamento Madre Cristina, os grupos organizados de mulheres viabilizavam a reivindicação formal dos seus direitos, além de incrementar a percepção crítica sobre a condição de desvalorização na qual se encontra a mulher. A mobilização implica que o espaço da mulher deixa de ser restrito somente ao âmbito privado "da casa", a esfera doméstica.

Por meio dos depoimentos das assentadas e assentados até agora apresentados , tratamos de evidenciar o cativeiro da terra, da casa , do lote, do espaço, muito marcante na mulher assentada. Além dos condicionantes materiais é significativo o peso dos papeis de gênero que fazem da mulher prisioneira destes espaços.

O isolamento e a ausência de mobilidade são percebidos pelas assentadas, que vêem nas companheiras na militância ativa, a mulheres que podem ir e vir. Mas também são cientes do preço que as mulheres têm que pagar por esta "liberdade": a censura moral e social da comunidade e dos próprios companheiros de luta.

Os movimentos sociais de caráter popular são locais de pràticas de resistência às desigualdades contidas nas relações de gênero. (PINTO, 1992). A importância da participação de mulheres neles não implica, necessariamente, a sua transformação em feministas, mas faz com que a sua posição na rede de poderes dentro da própria organização do assentamento e do acampamento , seja transformada.

O sentido da propriedade da terra para o MST, não é somente restrito ao imediato e ao valor em relações de trocas econômicas. O lema "resistir, ocupar e produzir", do Movimento assume que, a luta pela terra é também uma luta de questionamento de sistemas, de múltiplas injustiças. (BOGO, 2000).

Através de organizações, associações, comissões, movimentos autônomos ou setores e coletivos dentro de movimentos sociais, as mulheres trabalhadoras rurais do Brasil estão criando espaços a fim de quebrar com a sua invisibilidade. As distintas formas de mobilização, com ideologias políticas diferentes articulam estratégias de desenvolvimento rural com visível caráter de classe e gênero.

A luta pela terra e a dignidade das condições de vida das trabalhadoras e dos trabalhadores, com especial atenção às necessidades pràticas de gênero, levadas em frente pelo Setor de Gênero do MST e a Comissão de Mulheres no assentamento Madre Cristina e no acampamento Padre Jósimo, respondem a esta mobilização.

As clivagens de gênero

As formas de inserção e construção de espaços de poder das mulheres assentadas no Madre Cristina são o Setor de Gênero do MST e a Comissão de Mulheres. No acampamento Padre Jósimo só o Setor convoca e interage com as trabalhadoras.

Segundo Pinto (1992) da inserção da mulher nos movimentos sociais de caráter popular derivam-se três situações. Em primeiro lugar, a mulher que deixa de atuar nos limites do privado, provoca novas relações no interior da família e com a vizinhança e amigos. Em segundo lugar, a mulher passa a articular, no interior do movimento, lutas diferenciadas em relação aos seus companheiros homens. Uma terceira situação seria a referente àquelas mulheres organizadas em torno de aspectos tradicionalmente femininos que passam a questionar a própria condição de mulher.

A primeira das situações é generalizada nos territórios da luta . A participação da trabalhadora implica a ruptura com a sua invisibilidade pública. A ruptura que isto supõe é feita sob tensões no seio familiar. A decisão de participar, quando se realiza de forma autônoma, é usualmente acompanhada da resistência de pais, mães, familiares, mas principalmente, dos companheiros. Esta resistência é muito maior no assentamento, onde as funções sociais de gênero são mais nítidas. A carência de poder na tomada de decisão dentro do casal é visível através de múltiplos depoimentos das mulheres trabalhadoras militantes. O grande limite para a participação efetiva da mulher na vida pública, associativa e comunitária, é para a grande maioria das entrevistadas a proibição explícita dos companheiros.

A quebra do cotidiano familiar, tanto para as mulheres trabalhadoras militantes quanto para as assentadas que se organizam em comissões, é um fato. O desenvolvimento da dimensão pública da sua vida pressupõe, além de novos saberes, novas informações que redefinem as relações de poder a nível privado. O embrião dessas mudanças é a nova divisão de tarefas que se realiza no lote. Todavia, longe da eqüidade de gênero na participação no trabalho reprodutivo, uma das respostas da inserção das assentadas e acampadas nas organizações de mulheres que observamos é que elas constituem os canais para repensar a sua condição no seio familiar valorizando o seu papel social.
 

Origens ideológicas das organizações

As mulheres trabalhadoras militantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) criaram, por meio do Coletivo de Gênero, um espaço de poder que as identifica coletivamente no seio de um movimento social liderado por homens. Uma leitura feminista deste fenômeno nos levaria a discutir o caráter discriminatório desta segregação dentro do movimento e os seus porquês, algo que está fora dos nossos objetivos. Não obstante, às sucessivas mudanças de nomenclatura, do Coletivo de Mulheres passou-se ao Coletivo de Gênero e deste ao Setor de Gênero, parecem indicar a vontade de superação desta segregação, muito mais que uma simples mudança de nome.

Porém, durante o nosso trabalho de campo pudemos verificar que o grosso de militantes que formam parte, ou representam o Setor nos respectivos assentamentos, continuam sendo mulheres, quando não são as únicas. A vontade presente no discurso do Movimento é incorporar representantes de ambos os gêneros neste setor. No Pontal do Paranapanema a direção regional do Setor está liderada por três integrantes, sendo duas mulheres. Nos assentamentos com presença de representantes do Setor a proporção de mulheres é sempre maior. Contudo, é importante destacar que este foi e é um espaço de visibilidade conquistado pela mulher militante.

As assentadas do Madre Cristina também se organizam através de uma Comissão de Mulheres, que sob a coordenação do ITESP ( Instituto de Terras de São Paulo), as articula para o desempenho de projetos de desenvolvimento, vinculados ao incremento da renda familiar. Como evidenciamos, a dependência econômica do companheiro é também um elemento constrangedor que dificulta as relações eqüitativas entre o casal. A possibilidade de contar com um dinheiro próprio, encaminhado à manutenção da família, é um mecanismo de empoderamento que faz atrativa a participação da assentada na Comissão.

O motivo econômico somado aos limites físicos do assentamento para a implementação dos projetos, não só estimula a participação da mulher, que dá conta de organizar o seu tempo de trabalho e responsabilidades familiares, como contribui para quebrar com as limitações que as pràticas discriminatórias de gênero colocam.

Se bem que os objetivos e a ideologia do Setor de Gênero do MST e as Comissões de Mulheres são diferenciados o que, não significa que a participação neles seja excludente. Ambas são formas de construção e dimensionamento de espaços de poder das mulheres trabalhadoras rurais, e assim são identificadas pelas mesmas. No entanto, as mulheres militantes do Movimento se mostram mais reticentes e críticas a respeito dos modelos fechados e as estratégias que os técnicos do organismo do Estado colocam para o desempenho destes projetos. Ainda que os técnicos estatais confirmem o incremento da participação das mulheres nos projetos e políticas para o desenvolvimento dos assentamentos, só aquelas com uma trajetória de militância política são as que decidem fazer-se ouvir nestas assembléias. O fato de a mulher assentada transgredir a invisibilidade a partir destas incipientes incursões na esfera pública, representa um logro no caminho da emancipação da sua condição subordinada de gênero.

É importante reter desta experiência, não só a chegada das mulheres à mobilização de classe e o questionamento da sua condição de gênero, mas também a ruptura do isolamento do "eu" construído no privado, e sua inserção no espaço público (STEPHEN, 1996).

Acreditamos que este processo de ruptura é o que concretiza o "novo" das relações sociais de gênero que se constroem nos territórios de luta.
 

Considerações finais

Chegados até aqui, acreditamos ser necessário acrescentar à discussão o conceito de mulher trabalhadora rural enquanto "categoria totalizadora". Através de entrevistas e conversas junto com as mulheres do Pontal do Paranapanema durante quase dois anos de pesquisa, conferimos a grande limitação conceitual e analítica que o emprego de categorias como esta supõe para a compreensão do "movimento" da luta.

A territorialização do processo da luta se concretiza, através da produção de espaços de resistência à exclusão e da construção de relações sociais que implicam relações de gênero diferenciadas. É assim como entendemos a dimensão relacional do conceito de gênero.

Constatamos ainda que, as forças sociais que atuam e se articulam nos assentamentos e acampamentos, refletem uma ideologia de gênero herdada e hegemônica na sociedade ocidental. Recuperando as palavras de uma ex-militante:

O assentamento não é, ainda que às vezes pareça, uma ilha isolada da sociedade, nem o MST pode sê-lo, porque são produtos da mesma, com todos os seus sonhos e todas as suas contaminações. (Trabalhadora rural assentada no Madre Cristina)

Os levantamentos de campo nos mostraram a existência e reprodução de fortes obstáculos culturais e sociais, além de econômicos, que inibem o pleno exercício da cidadania das mulheres nos acampamentos e assentamentos rurais.

A divisão sexual do trabalho alimenta a invisibilidade do trabalho da mulher e dificulta o aceso à tomada de decisões de ordem comunitária. As organizações de classe onde se privilegiam as diferenças de gênero supõem caminhos abertos por onde trilhar as mudanças pràticas e estratégicas contra a opressão e as suas faces.

A relativa equidade entre os companheiros e companheiras de luta , observada nos acampamentos, perde significado nos assentamentos, quando a participação feminina se torna surpreendentemente restrita. O fato da baixa participação das mulheres no ambiente dos assentamentos não representa um comportamento "naturalmente" feminino. Nada existe na natureza das mulheres que as torne menos participativas, se isso ocorre deve-se às barreiras à participação erguidas a partir das relações sociais e de gênero e do código de valores que as sustenta.
 

Notas

(1) A diária é a remuneração correspondente a uma jornada de trabalho sem vínculo empregatício.
(2) O crédito para custeio destina-se à aquisição de insumos e serviços para as lavouras já instaladas: fertilizantes, sementes, agrotóxicos etc. Cada família assentada pode receber um crédito custeio entre R$500,00 e R$2000,00 por safra (ano).
 

Bibliografia

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Mestranda em Geografia junto à Faculdade de Ciências e Tecnologia/UNESP/Presidente Prudente, sob a orientação do Professor Antonio Thomaz Júnior e membro do Grupo de Pesquisa "Centro de Estudos de Geografia do Trabalho" (CEGeT). E-mail: mmartillo@terra.es  e mmartillo74@hotmail.com.

 


© Copyright Maria Franco Garcia y Antonio Thomaz Júnior, 2002
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Ficha bibliográfica

FRANCO GARCÍA, M. THOMAZ JUNIOR, A. Trabalhadoras rurais e luta pela terra: interlocução entre gênero, trabalho e território. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, nº 119 (27), 2002. [ISSN: 1138-9788]  http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-27.htm


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