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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (47), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

NO TRABALHO DOS PESCADORES ARTESANAIS
A LAGOA DOS PATOS VIVE E DÁ VIDA.

César Augusto Ávila Martins
Professor no Departamento de Geociências/Universidade Federal do Rio Grande/Brasil; Doutorando em Geografia na UFSC/Brasil.


No trabalho dos pescadores artesanais a Lagoa dos Patos vive e dá vida (Resumo)

Este artigo pretende discutir o trabalho dos pescadores artesanais no município do Rio Grande, junto ao Estuário da Lagoa dos Patos no litoral do Estado do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil. Considera a reprodução simples da pesca artesanal como um dos momentos da reprodução ampliada do capital. Sua manutenção é através da reprodução das famílias com a multiplicidade de atividade desempenhas por seus membros. A linha básica de reflexão trata da produção do capital num lugar da moderna sociedade capitalista baseada na produção de relação não capitalistas. Será apresentado o processo de produção social da Natureza do Estuário pelos diferentes agentes sociais, seguida das estratégias de manutenção da pesca artesanal e das perspectivas analíticas possíveis da reprodução do trabalho dos pescadores artesanais.

Palavras-chave: pescadores artesanais, indústria, reprodução social


In the work of fishermen artisinal a lagoon of patos live and enough life (Abstract)

This paper analyses the work of artisanal fishermen in the Stuary of Patos Lagoon in the city of Rio Grande/RS/Brasil. This approach considers that the simple reproduction of artisanal fishing constitutes one of the moments of amplified reproductin of the capital in the fishing sector. The maintenance of the artisanal fishing is obtained from the reproduction of the families whose members perform a multiplicity of activities related to it. The basic line of reflexion deal with the production of capital in a place of the modern capitalist society based on the production of non capitalist relations of production.

Key-words: artisinal fishermen, industries, reproduction social


Procurar compreender o significado da atividade pesqueira no Estado do Rio Grande do Sul é uma tarefa que exige compreender a História como processo de múltiplas formas de reprodução social constituídas pelos processos hegemônicos, por aqueles considerados acessórios e com assentamento na história local.

Na abordagem aqui proposta indissociavelmente associada com as categorias/conceitos espaço e lugar, "a história local não é necessariamente o espelho da História de um país ou de uma sociedade. A história local não é nem pode ser uma história-reflexo, porque se fosse negaria a mediação em que se constitui a particularidade dos processos locais e imediatos" (Martins, 1992, pág. 12).

As preocupações específicas dos Cientistas Sociais com o litoral do Estado são recentes. Entende-se ser necessário assinalar neste momento a localização do lugar de estudo, pois são escassos os trabalhos acadêmicos realizados por Cientistas Sociais sobre a base material do lugar. Deve-se somar a tal constatação que o estudo é baseado numa atividade extrativa, portanto dependente da existência dos recursos naturais vivos sujeitos aos diferentes ritmos naturais e da sociedade urbano-industrial.

O município do Rio Grande está localizado na desembocadura da Lagoa dos Patos na interação dos ecossistemas oceânico atlântico, lacustre e estuariano-lagunar. Tal domínio natural é objeto de importantes estudos de suas condições naturais. Entre os resultados destes esforços, o estudo organizado por Villwock e Tomazelli (1995) procura sintetizar os esforços dos pesquisadores especializados em Geologia.

Qual é a produção natural da Natureza do estuário da Lagoa dos Patos? O estuário conceituado do ponto vista natural como um ambiente mixohalino, compreende uma área constituída por águas que circulam entre a barra do Rio Grande e as proximidades de uma linha imaginária distante 70 km ao Norte que liga a ponta da Feitoria à ponta dos Lençóis. Dependendo das estações do ano, e especialmente a direção dos ventos, os efeitos da maré salina podem ultrapassar estes limites. Tais combinações dão condições especialmente adequadas para a reprodução de uma grande variedade de espécies com sazonalidades múltiplas, passíveis de captura e consumo humano. Concomitantemente aos atributos do ponto de vista estratégico que levaram a construção e consolidação do pólo industrial e portuário (DOMINGUES, 1995), existem dimensões da produção espacial marcadas pelos recursos das pescarias.

CHAO et alii (1982) listou 110 espécies de peixes no estuário da Lagoa dos Patos (excluindo os típicos de água doce). O trabalho conclui que o conjunto do sistema lagunar costeiro gaúcho "constitui-se na mais importante área de criação, reprodução e alimentação para grande parte dos peixes que ocorrem no litoral sul do Brasil. A comunicação com o oceano faz-se unicamente por um estreito canal, delimitado pelos molhes da barra do Rio Grande. Por esta barra é que se efetua a passagem de todos os organismos que dependem do estuário para o seu desenvolvimento" (pág. 67). Há uma profunda interação entre as águas oceânicas que banham o Rio Grande do Sul e as águas da Lagoa dos Patos permitindo maior rendimento para as capturas demersais (SILVA, 1977, pág. 76) .

Os estudos mais relevantes realizados por Cientistas Sociais sobre o Rio Grande do Sul tem suas temáticas assentadas na origem, consolidação e metamorfoses do bloco hegemônico (1) da formação espacial gaúcha formado pelos proprietários de terras, originados nas lutas de construção das fronteiras e dos comerciantes e industriais do eixo P.Alegre/Vale dos Sinos/Caxias do Sul (2). Mais recentemente, o foco principal das investigações é o impacto do processo de modernização da agricultura e da instalação do complexo agro-industrial, especialmente vinculado a produção de soja e ao arroz e de pólos industriais com certos graus de especialização em bens intermediários de capital, que conduziram HEIDRICH (2001) a forjar a expressão de "além do latifúndio" para a nova geografia econômica do Rio Grande do Sul..

É a partir de 1870 que os recursos pesqueiros do Estuário e litoral adjacentes passam a ser socialmente produzidos com a imigração de portugueses da Povoa do Varzim. Neste sentido, podemos delimitar dois momentos de sua constituição. O primeiro, no último quartel do século XIX, quando imigrantes portugueses, portadores de capitais e de um passado vinculado à pesca, organizaram as primeiras parelhas de pesca e unidades de industrialização. O segundo, com os resultados das políticas estatais iniciadas e consolidadas pelo decreto 221/67 com a possibilidade de captação de recursos públicos via incentivos fiscais.

Desde 1870, imigrantes lusos inflexionaram a pesca como atividade mercantil demonstrando a riqueza natural do Estuário da Lagoa dos Patos e do litoral adjacente. Inflexionaram no sentido de que os registros sobre a existência da atividade pesqueira capaz são escassos e os dados disponíveis sobre as exportações pelo porto do Rio Grande revelam a pouca importância do pescado em relação aos produtos da pecuária gaúcha.

Porém, no começo da década de 90 do século XIX, houve um incremento das exportações de pescado salgado para o Nordeste brasileiro e em Rio Grande "fundaram-se duas fábricas de conservas" (Varella, 1897, pág. 449).

Entre os imigrantes lusos uns eram despossuídos dos meios de produção e possuídores da capacidade de trabalho na pesca. Foram os homens que viveriam suas vidas puxando as redes e dando vida ao Estuário. Alguns ao se capitalizarem, deixaram de pescar e se diferenciaram dos outros como comerciantes de pescado. Estes passaram a se reproduzir através do trabalho dos que seguiam vivendo de puxar as redes e vender sua força de trabalho nas indústrias. Outros imigrantes lusos já chegaram capitalizados para serem os donos das embarcações, do comércio do pescado e/ou para estruturar um grande parque fabril pesqueiro em quantidades produzidas e das diferentes formas de processamento, isto é a salga, os congelados, os óleos/farinha, as especialidades e o enlatamento.

A riqueza dos ritmos naturais do Estuário da Lagoa dos Patos também será produzida pelo ritmo dos novos agentes com seus instrumentos e técnicas de trabalho para atender as possibilidades do abastecimento do mercado urbano-industrial em constituição no Brasil.

O parque industrial pesqueiro instalado em Rio Grande foi capitaneado essencialmente por imigrantes lusos capitalizados, num momento histórico que lhes garantiu supremacia durante a formação do mercado consumidor abastecido pela produção nacional. Sodré (1976) demonstra que entre 1839 e 1844 a pauta de importações do Brasil era hegemonizada pelas manufaturas têxteis (51,6 %) e alimentos (21 %): o bacalhau era o 10° produto numa pauta de 25 produtos importados. Nestas condições, estariam sendo forjadas as possibilidades para a produção de outras espécies de peixes salgados para a substituição das importações: "o Rio Grande do Sul concorre ainda grandemente para o abastecimento de peixes para a capital do país" (Silva, 1944, pág. 1171).

Imigrantes como F. Marques Leal Pancada, J. Cunha do Amaral, J.Gomes Sequeira, Francisco Furtado, M. Pereira de Almeida. F. Fernandes Troina, Torquato R. Pontes, Abel F. Dourado e Albano G. de Oliveira chegaram a Rio Grande entre 1889 e 1930 e fundaram suas indústrias na primeira metade do século XX. Basicamente, suas atividades de gestão e processamento estavam localizadas em Rio Grande ou em pequenas filiais em municípios do entorno da Lagoa dos Patos como São José do Norte, Pelotas e São Lourenço do Sul. Entre elas a exceção é da indústria fundada por F. Marques Leal Pancada (a Leal Santos), que ao ser incorporada pelo Grupo Ipiranga em 1945, atuou na captura e processamento de camarão no Norte do Brasil usando como base operacional o porto de Icoaracy no Estado do Pará.

Apesar de especificamente, sobre a indústria pesqueira do Rio Grande, inexistirem trabalhos recentes e de relevância, sabe-se que parte das indústrias do setor originaram-se de capitais acumulados no comércio varejista e não possuem tradição meramente étnica.

Copstein (1975), demonstra que empresários italianos estabelecidos em Rio Grande, como Luiz Loréa, Raffaelle Anselmi e Pedone & Irmãos investiram no processamento de pescado, assim como os descendentes ingleses da família Wigg. Espanhóis fundaram a indústria Balester, onde atualmente funciona parte das instalações da Pescal S.A.

Trabalhos importantes sobre a industrialização do Rio Grande do Sul como os de Lagemann (1978) e Pesavento (1985) não têm referências sobre as indústrias de pescado.

Na década de 1940, eram sete as indústrias de pescado instaladas em Rio Grande (Pimentel, 1944). As indústrias instaladas em Rio Grande enlatavam espécies do estuário e do litoral adjacente como tainha, savelha e bagre. A partir de 1947, com o começo das capturas no litoral adjacente à costa gaúcha, com mestres e embarcações estrangeiros contratados por armadores e/ou armadores/industriais houve incremento nos volumes das capturas e do pescado industrializado (Beatty, 1961; Yesaki e Bager, 1975).

A partir de 1952 foram delineadas as condições para a participação do setor pesqueiro local, particularmente das indústrias, no projeto de modernização conservadora pós-1964 (Fernandes, 1975). Neste sentido, as indústrias pesqueiras de Rio Grande forneceram volumosas quantidades de pescado em diferentes modalidades de beneficiamento para o mercado do Sudeste e Nordeste do Brasil, garantindo alimentos baratos que sustariam a reprodução da força de trabalho a baixos custos. Tal expansão deu-se em parte pela utilização de cerca de 25 por cento do total nacional dos recursos estatais fornecidos pelo 221/67 por parte das indústrias instaladas em Rio Grande (3).

Os empresários do setor pesqueiro instalado em Rio Grande, reproduziram-se como proprietários do capital, com a riqueza e os ritmos da Natureza do lugar, com o trabalho dos homens sem meios e instrumentos de produção disponíveis para vender sua força de trabalho (formadores do operariado fabril e dos trabalhadores do mar - os pescadores embarcados), com os resultados do trabalho de homens conhecedores das artes de pesca e proprietários de embarcações (os pescadores artesanais) aproveitando-se dos privilégios das regulamentações estatais para o setor, que incluíam imposições contra as importações de pescado e o uso exclusivo do Mar Territorial brasileiro.

Os dados referentes às quantidades de pescado desembarcado no Rio Grande, no primeiro qüinqüênio de dados disponíveis (1945/49), indicam médias anuais de 14.000 toneladas para esse período de conformação do parque industrial pesqueiro instalado no Brasil (4). Com o uso das águas territoriais uruguaias e argentinas e a expansão tecnificada da frota pesqueira instalada em Rio Grande na década de 1970, as capturas totais atingiram máximos de aproximadamente 120.000 toneladas/ano. Os dados disponíveisdo último qüinqüênio (1993/1997) mostram capturas médias de 56.000 toneladas/ano. De acordo com esses dados, as médias são superiores àquelas do período de delimitação do parque fabril instalado no Rio Grande, não justificando a diminuição da produção do parque fabril. O pescado das redes dos pescadores está "caindo em outras redes". Há uma nova divisão territorial do setor pesqueiro nacional? Quais novas redes?

Atualmente o Estado é responsável por cerca de 25 por cento do pescado industrializado no país e até o começo da década de 90 o parque industrial pesqueiro instalado em Rio Grande correspondia a aproximadamente 50 por cento da capacidade da indústria pesqueira no Brasil. Por pescado industrializado entende-se por como qualquer forma de processamento em escala e com certa divisão técnica do trabalho dos resultados das pescarias realizado na realização entre trabalhadores e proprietários dos meios de produção. Estão concentrados em empresas instaladas em Rio Grande aproximadamente 80 por cento dos resultados da indústria pesqueiras instaladas no Estado (Alonso et alii, 1994, pág. 75) e cerca de 95 por cento dos desembarques totais de pescado no Rio Grande do Sul. Do total do pescado processado em Rio Grande, 70 por cento é realizado por quatro (Pescal/EMPAF, Torquato Pontes, Furtado e Leal Santos) das seis indústrias que operam legalmente (as outras são a Junção Pescados e a Albano e Sobrinho).

Existem dois aspectos que devem ser ressaltados como a redução do número de indústrias de pesca e de trabalhadores fabris e o comprometimento das águas estuarinas.No começo da década de 80 havia 15 indústrias de pescado operando em Rio Grande que empregavam 17.000 trabalhadores (CIRG, 1980). Atualmente, as que funcionam regularmente empregam cerca de 1.000 trabalhadores.

Noticiários alarmantes e quase terminais da atividade pesqueira em Rio Grande, podiam ser facilmente encontrados em fins dos anos 80: "Pescadores, indústria e a natureza a perigo" (Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 28/2/88); "O mar não está prá peixe" (Jornal Zero hora, 13/10/89). No final da década de 1970, foi divulgado um estudo sobre o comprometimento da qualidade da água no saco da Mangueira, canal de acesso e da Praia do Cassino. Entre os dados divulgados citamos o número de vezes acima do máximo tolerável de alguns metais pesados para corpos de água destas características: cobre, 32 vezes; mercúrio, 8,9 vezes, chegando excepcionalmente a 300 vezes; chumbo, 10 vezes; fenóis, 36,8 vezes no saco da Mangueira e 75,2 vezes no canal de acesso (Avelline, 1979). Almeida et alli (1993) identificaram 30 pontos de emissão de poluentes na área circundante a cidade do Rio Grande e na área portuária .

Neste trabalho interessa, a comprovação da riqueza natural do estuário explorado por relações sociais não tipicamente capitalistas e com instrumentos simples de trabalho, confirmando que na História do Brasil "a pesca é incipiente no Brasil, exceto no Rio Grande do Sul" (Carvalho, 1949, pág. 1394/1398), mas que com certeza desde muito cedo "é suffocada entre as mãos de uns poucos e estúpidos monopolisadores" (Varella, 1897, pág. 448). Considera-se, a pesca artesanal aquela realizada com relações sociais não assalariadas entre os pescadores e membros de suas famílias, proprietários de pequenas embarcações (para fins de coleta de dados aquelas com capacidade de arqueação bruta de até 20 toneladas- 20 TAB) e seus eventuais parceiros de pesca, que utilizando instrumentos simples trabalho e conhecimento ancestrais, podem eventualmente trabalhar em atividade formais e não formais urbanas e rurais, assalariando e se assalariando. Tal relação não impede que produzam seus próprios meios de vida, rebaixem sua reprodução à níveis quase biológicos ou com ganhos excepcionais produzirem mercadorias que se realizem em escala planetária e possam ascender socialmente.
 

Algumas estratégias para a manutenção da pesca artesanal

Desde a estruturação do complexo portuário-industrial em Rio Grande e das políticas estatais que privilegiavam o ritmo industrial sobre o ritmo da natureza, mesmo sujeitos as regulamentações estatais que incluem épocas de defeso, tamanho mínimo para a captura de cada espécie e a caracterização dos equipamentos que podem ou não ser usados, os pescadores artesanais do Rio Grande têm produzido estratégias de manutenção do seu viver e do seu trabalho,

Na década de 70 existiu pelo menos uma intervenção do Estado na direção da tecnificação da pesca artesanal, acirrando a diferenciação interna dos pescadores. Em 1979, houve o financiamento para aquisição de equipamentos de navegação e detecção de cardumes, bem como de guinchos e guindastes. Ora, os dados do período seguinte, indicam que embarcações que poderiam utilizar estes equipamentos, além de aumentar o esforço de pesca representavam apenas 6,45 por cento das 929 embarcações registradas em Rio Grande (Assembléia legislativa do estado, 1991). Ou seja, 93,55 por cento com TAB até 20 toneladas mantinham-se como instrumentos simples de trabalho.

Assim, identificamos três estratégias básicas de reprodução dos cerca de 2.000 pescadores artesanais do Rio Grande. A primeira, apesar de ser calculado que há uma diferença de 100 por cento do preço pago pelo atravessador ao pescador daquele vendido para a indústria (MA/SUDEPE, 1988) ocorre uma relação entre pescador-atravessador que ambos se reproduzem. Pois a inexistência de políticas públicas específicas para a pesca artesanal e a sua característica sazonal, afirmam uma clara relação de subordinação de ambos aos agentes hegemônicos do setor como relação de dependência pessoal entre ambos. Ou seja, nas "relações diretas de pessoa a pessoa, com conhecimento da personalidade de cada implicado e tendo, por isso mesmo uma carga emocional que pode ser positiva ou negativa" (Queiroz, 1972, pág. 9/29).

A segunda, baseada na capacidade e possibilidade dos membros da família em trabalhar em atividades agropecuárias. Mesmo residindo em áreas urbanas, observou-se que em parte das propriedades dos pescadores artesanais há a prática da criação de pequenos animais, gado leiteiro e a produção de verduras e hortaliças que produzem parte dos meios de vida e garante o ingresso de dinheiro do circuito M-D-M. Um exemplo desta estratégia está na localidade de Porto do Rei na localidade da Ilha dos Marinheiros onde numa época do ano que antecede as colheitas de verão e durante o defeso de várias espécies, o ingresso de dinheiro para várias famílias ocorre com a venda de flores para a semana de finados no começo de novembro.

Uma última estratégia é o assalariamento e/ou o trabalho em atividades não assalariadas de membros da família fora ou na unidade produtiva familiar. Nesta estratégia há um claro corte de gênero. Foram identificados casos de filhos de pescadores que se assalariam em barcos industriais. Alguns entrevistados afirmaram que além de diminuir os custos de manutenção da família e enviarem dinheiro para "casa", objetivavam poupar para melhorar o barco do pai ou adquirir sua própria embarcação. Em outros casos, os homens podem conduzir pequenos veículos de carga puxados por cavalos para transporte de mercadorias (chamados de carroceiros) ou trabalharem esporadicamente como operários da construção civil. As mulheres além de garantir o funcionamento da economia doméstica podem ser empregadas temporárias ou informais em indústrias de pescado ou em atividades domésticas.

Com estas estratégias básicas os pescadores artesanais do Rio Grande , além de capturarem aproximadamente os mesmo volumes médios qüinqüenais dos últimos cinqüenta anos conseguem obter valores monetários proporcionalmente mais altos que aqueles da pesca industrial (5).
 

Perspectivas da pesca artesanal e uma possível pauta de estudos

A década de 90 é marcada no Brasil por uma nova agenda de regulamentações que entre outras estratégias e ações visa a reordenação do papel do Estado na sociedade e no território. Na pesca, após a extinção da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca que regulamentou a pesca entre 1962 e 1989, a atividade pesqueira no Brasil está dividida entre o IBAMA e o Ministério da Agricultura. O primeiro, atuando basicamente na fiscalização das práticas de pesca e o segundo, direcionado para a fiscalização dos produtos industriais, autorização do funcionamento de embarcações e da aqüicultura.

Porém, a mediação do processo histórico é dado pelo trabalho e neste estudo realizado com base numa atividade extrativa realizada em um lugar da moderna sociedade capitalista. Depois de 37 anos de regulamentação para o setor, o Estado ao se reorganizar dividiu seu papel na pesca e até 1996-1997 não havia reorganizado sua estrutura. Como exemplo, veja-se que o último censo da pesca realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística foi publicado no primeiro semestre de 1989.

Neste sentido, parece estar sendo desenhada uma nova organização empresarial-espacial do setor pesqueiro no Brasil. De um lado, a expansão financiada com dinheiro público da aqüicultura e da pesca de atuns e afins em alto mar para exportação. Articulado a este processo, houve a concentração da produção de pescado enlatado pelas multinacionais Quacker/Pepsi e GDC Holding e pela empresa nacional FEMEPE e o início da ação de grandes grupos econômicos como a Sadia e a Perdigão que importam pescado congelado da Europa e Estados Unidos para serem comercializados com sua logística e suas marcas. Somado a estes processos houve a retirada de recursos estatais para a indústria da pesca, para a pesca artesanal e a chamada pesca industrial costeira. Localmente, o parque industrial pesqueiro na última década, não somente desempregou cerca de 16.000 trabalhadores dos 180.000 cidadãos do Rio Grande, como eliminou a produção de enlatados e produtos de maior valor agregado, e especializou em mercadorias de menor valor como pescado congelado e salgado

Além do seguro-desemprego federal para os pescadores artesanais em período do defeso, no Rio Grande do Sul, o governo do Estado desde 1998-1999 vem locando alguns recursos orçamentários no programa "RS-Pesca" para que os pescadores melhorem e/ou adquiram equipamentos

A produção técnica e/ou acadêmica está em grande parte submersa e acaba por viabilizar a ação do Estado nas questões que envolvem a pesca. Ou melhor não distingue os sujeitos que pescam e vivem da pesca e os sujeitos que vivem do trabalho das pescarias dos sujeitos que pescam. O movimento do pensamento e a práxis do trabalho foi para evitar a utopia da sacralização da relação pescador-Estuário e do maniqueísmo nas relações entre os diversos sujeitos sociais, que poderiam sinalizar a demonização do Estado, dos industriais, dos compradores de pescado ... Qual seria o papel do governo estadual em financiar para que os pescadores artesanais do Rio Grande ainda pesquem como seus ancestrais? Mostrar a vida da Lagoa significa seguir vivendo? Como e quem? O senhor Carlos Simões, presidente de uma das Colônias de Pescadores do Estuário indica saber mais do que da pesca; "é preciso um esforço de toda a sociedade para que o peixe não acabe" (Jornal Agora. Rio Grande, 06/03/2002, pág. 3).

Considera-se que as Ciências Naturais foram muito produtivas ao desvendar partes das estruturas e processos das espécies e das condições físicas do Estuário. Porém, suas premissas contribuíram para referendar a imposição dos tempos técnicos (ou tempo técnico?), que se constituíram em um dos momentos do tempo da produção industrial, agora radicalmente acelerada. Tendencialmente há o desligamentos tempos cósmicos, da Natureza cíclica (Lefebvre, 1969, pág. 182) .

O sentido do trabalho é de realizar leitura da materialidade da existência da pesca no Estuário como confusão viva, como turbilhão que vive e da vida. Voltar a Natureza? Não retorno dentro da Natureza. Natureza que anima e ao animar pode ser uma possibilidade de afirmação e re-construção da produção da vida dos sujeitos que a apreenderam pelo saber-fazer.

As contradições descobertas não se colocam apenas nas oposições entre o moderno e o arcaico, entre ser cultivador ou extrator, entre ser proprietário dos meios de produção ou ter apenas a força de trabalho para vender. São amalgamadas numa atividade produtiva envolta na racionalidade imposta pela lucratividade média medida em plano global. Ou seja, a simples aplicação de técnicas que aumentem a produção e/ou a produtividade, como da construção de alternativas que rompam ou minimizem os ritmos naturais das espécies, a exemplo de formas de cultivo, ou mesmo a quebra das redes de comercialização dificilmente apontaram para a minimização do processo de empobrecimento dos que vivem apenas de seu trabalho. São redes que se rompidas podem proletarizar definitivamente os que vivem da pesca. Ou mais intensamente: transformar o desespero da falta de pescado, da quebra nos canteiros e dos preços da "mão invisível" em busca de alternativas nas esferas da criminalidade. A rede rompida não é apenas material, mas conduz ao rompimento das relações de transmissão dos saberes da vida do Estuário. Aqueles sujeitos que já estão diferenciados continuaram seus aprendizados em outras redes. Caberia produzir novas redes.

A pesca artesanal representa até o presente período histórico também reserva de força de trabalho para os setores capitalizados da atividade. Representa em determinadas condições naturais específicas, a possibilidade de produzir alimento e matéria-prima industrial de baixo custo. O que significará descartar tais capacidades de trabalho e da utilização dos ritmos naturais sem custo de produção?

A pesca artesanal pode estar em extinção ou ser extinta. Extinta pelo esgotamento dos recursos naturais. Mas, ainda é uma unidade produtora e reprodutora de relações sociais baseadas numa baixa monetarização, pouco mensuráveis, envolvidas na religiosidade, confiança e padrões sociais de consumo e mesmo de sobrevivência que podem ser considerados próximos da reprodução biológica. Constitui-se ao constituir sujeitos sociais com formas diversas de relacionamentos e relações, transferidoras de trabalho para outras escalas.

No mundo constantemente artificializado e que busca a previsibilidade, os pescadores artesanais prevêem dias de sol, dias de chuvas, compreendem o significado dos ventos, da tonalidade das águas, da qualidade e da quantidade das safras, conhecem os ritmos da natureza próxima. Afirmam-se ao resistir contra o rompimento com o processo e os resultados do trabalho, com a natureza. Não rompem a si mesmos?

Para finalizar é possível lembrar a sabedoria "naturalmente incorreta" de uma velha senhora, esposa de um pescador português ao ver as redes cheias de pescado: "viva o homem e morra o peixe". Aqui a opção é de vida longa ao que pescam, vivem e dão vida ao Estuário.
 

Notas:

(1)Toma-se a reflexão gramsciana encontrada em MACCHIOCCHI (1977), especialmente capítulo 6.
(2)O trabalho que representa um marco é: SINGER, Paul. Porto Alegre. In: Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana. Cia. Editora Nacional 2. ed. S.Paulo, 1977, p.141/198. A primeira edição é de 1968.
(3) Sobre o período de 1967/1977, DIEGUES (1984) baseado em documentos oficiais, apresenta a seguinte síntese: 40 por cento das empresas incentivadas faliram; os erros de planejamento levaram a aplicação de 74 por cento dos investimentos entre industrialização e administração, 29 por cento na captura e "somente 7 por cento para a comercialização, onde se situa um dos pontos de estrangulamento do setor pesqueiro" (pág. 140); seletividade de espécies que aumentou os custos operacionais das viagens (lembramos a crise do petróleo do início dos anos setenta).
(4) Em função da sazonalidade e das oscilações das disponibilidades naturais de determinadas espécies para as capturas muitas vezes ainda não explicadas pelos Cientistas Naturais, opta-se utilizar os dados com intervalos qüinqüenais. Assim, com a não disponibilização dos dados referentes aos anos de 1999, 2000 e 2001 pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis, apresenta-se os dados entre os anos de 1949 e 1997.
(5) Os dados completos dos totais capturados e valores produzidos pela pesca artesanal e industrial em Rio Grande são apenas entre os anos de 1977 e 1986. Enquanto as capturas da pesca artesanal oscilam entre 50 e 30 por cento das capturas totais, seu valor produzido foi de no mínimo 50 por cento dos valores totais, chegando a ser 20 por cento superior aos valores obtidos pela pesca industrial. Tal fato se explica por safras e condições de mercado excepcionais para algumas espécies de maior preço como o camarão e o linguado.
 
 

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© Copyright César Augusto Ávila Martins, 2002
© Copyright Scripta Nova, 2002
 

Ficha bibliográfica

AVILA MARTINS, C.A. No trabalho dos pescadores artesanais a lagoa dos patos vive e dá vida.  Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. VI, nº 119 (47), 2002.  [ISSN: 1138-9788]  http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-47.htm


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