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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (57), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

COMÉRCIO NA ÁREA CENTRAL DO RECIFE(PE-BRASIL): NOVOS E ANTIGOS CONCEITOS ACERCA DA HISTÓRIA DA CIDADE

Heleniza Ávila Campos
Universidade de Santa Cruz do Sul- RS/Brasil 


Comércio na área central do Recife (PE-Brasil):novos e antigos conceitos acerca da história da cidade (Resumo)

As práticas sócio-espaciais do comércio na área central da cidade do Recife (cidade portuária do Nordeste brasileiro) apresentam características que revelam registros de distintos processos de desenvolvimento da cidade, a partir do século XVII. O comércio associado às atividades portuárias, atraiu ao longo do tempo, uma complexa rede de negócios– formais e informais –, articuladora entre produção de engenho típicas do interior nordestino (cana de açúcar e algodão) e interesses externos. Atualmente, novos empreendimentos públicos e privados nesta área estimulam projetos com ênfase em outros grupos de estrangeiros - vinculados ao turismo e a programas de revitalização -, mas ainda encontram-se práticas tradicionais, revelando uma rica e diversificada paisagem de permanências e mudanças sócio-espaciais.

Palavras-chaves: áreas centrais, práticas comerciais, nordeste brasileiro, programas de revitalização


Commerce in Recife's central area (PE-Brazil): new and old concepts about the city's history (Abstract)

Social and spatial practices of commerce in Recife’ central area (port city in the Brazilian Northeast) - reveal distinct processes of development of the city since 19th century. In the past, the commerce, associated basically with the port activities, developed a complex network of formal and informal business, articulating typical production of the Northeast country (sugarcane and cotton) and external demands. Currently, new public and private enterprises in this area stimulate yet foreign interests, through revitalisation programmes with emphasis in tourism, despite the resistance of traditional practices, disclosing rich and diversified landscape of social-spatial permanence and changes.

Key words: central areas, commercial practices, Brazilian Northeast, revitalisation programmes


As discussões apresentadas nesse trabalho referem-se uma parte do conteúdo desenvolvido em tese de Doutoramento concluída em 1999, a qual tem como foco principal as territorialidades reconhecíveis nas imediações da área central do Recife, cidade do Nordeste brasileiro que tem sido objeto de intervenções de revitalização de seu centro histórico. Em particular, procurou-se aqui registrar as diferentes manifestações de trabalho associadas ao comércio, comumente associadas a áreas centrais urbanas, bem como a co-existências de práticas tradicionais e inovadoras, sobretudo em cidades portuárias. O texto será desenvolvido em quatro partes: a primeira faz uma breve apresentação da área central da cidade do Recife; a segunda faz considerações acerca do comércio atacadista; a terceira trata do comércio varejista; a quarta aponta para algumas peculiaridades e heranças do comércio informal recifense; a quinta e última parte apresenta as considerações finais do trabalho.
 

Apresentando a área central da cidade do Recife (Pernambuco, Brasil)

A cidade portuária do Recife encontra-se localizada no Nordeste brasileiro, sendo considerada um pólo comercial historicamente. Cortada por rios, a cidade agrega na sua área central um conjunto de ilhas que sofreram diversos aterros, a partir do século XVI, através da ocupação holandesa, sendo hoje foco de projetos de revitalização, iniciados a partir do final dos ano 1980. A sua área central se subdivide em três bairros históricos: o do Recife, de Santo Antônio e de São José.

a) O Bairro do Recife:

"...as [ruas] do bairro do Recife, onde se desembarca e onde estão os grandes bancos, as casas de alto comércio, o Telégrafo inglês, vários consulados - são ruas graves e européias - menos o Cais do Apolo, com seu cheiro forte, denso, tropical de açúcar, sua catinga de negro suado, seu muito de africano e de colonial." (FREYRE, 1961, p. 161)

Situado na extremidade leste do município, o Bairro do Recife - encontra-se à desembocadura dos rios Beberibe e Capibaribe no Oceano Atlântico, numa área aproximada de 100 ha, através das bacias Portuária e do Pina, ocupando toda a ilha do Recife. Trata-se de uma área plana, tendo sua margem oeste banhada pelo Rio Capibaribe, através da bacia de Santo Amaro, a qual o separa e, ao mesmo tempo, interliga aos demais bairros centrais, como será visto mais adiante. O bairro liga-se ao continente pelas pontes Giratória, ao sul, e a Ponte de Limoeiro, ao norte.

O Bairro do Recife distingue-se dos demais bairros da área central por diversos aspectos (morfológicos, funcionais, entre outros), mas sobretudo porque foi um dos poucos que não surgiu em conseqüência da fundação de um engenho, mas da produção de açúcar, que deu origem à grande parte dos principais bairros da cidade. A ilha do Recife foi parte de uma restinga que tem origem na cidade de Olinda, transformada, no início dos anos 1960 em ilha, pela abertura de um canal que ligou a foz dos rios Capibaribe e Beberibe ao Atlântico.

Quanto à distribuição espacial das atividades econômicas, parte do bairro do Recife caracteriza-se como o que se pode considerar o Central Business District (CBD) ou core dentro da área central da cidade, destacando-se ali atividades tradicionais vinculadas: ao porto e ao comércio atacadista; às grandes corporações (escritórios de empresas, sedes bancárias, comércio especializado e retaurantes sofisticados); órgão públicos (Prefeitura Municipal do Recife, Tribunal do Trabalho, da Justiça, Polícia Federal e Receita Federal), além do crescente número de atividades de apoio (bares, restaurantes, oficinas, transportes).

Pela sua localização estratégica em relação à cidade, reforçada pelas condições de crescimento empreendido, é neste bairro onde se concentram as marcas de diversos momentos históricos da cidade, sendo alvo de mudanças constantes. Na verdade, as principais intervenções associadas à mudança de paradigmas e ideologias de desenvolvimento, encontram-se lá registradas. Pela sua significação simbólica para a população local, cada transformação, em geral inspiradas em exemplos internacionais, vai repercutir nos valores históricos construídos. É a destruição de antigas marcas "indesejadas" que permite a idéia de inserção no que há de mais inovador, de universal, revelando novos perfis de poderes dominantes locais em diversos momentos da história da cidade. A presença do Porto talvez tenha no imaginário local, uma influência muito mais complexa do que aquela funcional, associada a atividades econômicas, talvez a de sintetizar uma imagem reconhecidamente representativa da cidade.

É assim que MELLO (1997) lembra as freqüentes destruições ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX de registros da ocupação holandesa na cidade, numa tentativa de reeditar elementos simbólicos característicos das reterritorializações dos dominadores portugueses.

b) Bairro de Santo Antônio.

"As ruas principais do bairro de Santo Antônio - as ruas do comércio elegante, das modistas, das perfumarias, das confeitarias, das joalherias, as ruas cívicas (...) são predominantemente européias, porém sem a gravidade masculina das do [bairro do] Recife: com uma graça feminina. Cheiros também femininos" (FREYRE, 1961, pp. 161-164).

Atravessando o rio Capibaribe, o bairro de Santo Antônio caracteriza-se como espaço de transição entre dois extremos do centro da cidade: por um lado, assume funcionalmente o papel de expansão do core, cujo foco se estabelece no Bairro do Recife, concentrando atividades empresariais (de pequenos escritórios a filiais de grandes empresas), comerciais (formal e informal), além de órgãos públicos (Palácio do Governo do Estado, Museu da Cidade do Recife, Palácio da Justiça, Estação Ferroviária), depósitos e armazéns referentes às atividades comerciais do próprio bairro. Aliás, esta característica polarizadora da área central do Recife representa também um pouco da história da cidade: a conquista de terras em direção ao continente, ao atravessar as pontes os diferentes traçados urbanos, formas de ocupação e estilos arquitetônicos expressam distintos momentos históricos de forte conteúdo cultural para a cidade. A Av. Guararapes é um dos principais eixos de penetração do bairro, concentrando a maior parte das atividades empresariais do bairro.

c) Bairro de São José.

"Já para os lados de São José, o Recife como que se orientaliza; a vida que as ruas refletem é hoje a da pequena burguesia, mais sociável que a grande; é gente que de noite vem conversar, sentada em cadeiras de vime e espreguiçadeiras de lona, à calçada, à porta da casa; e aí toma sorvete, come tapioca, os homens de pijama, chinelo sem meia. É o bairro dos pianos fanhosos mas ainda assim tão românticos; (...) É o bairro do comércio mais barato. Das lojas e armarinhos com nomes sentimentais. (...) São José foi outrora o bairro dos valentões, dos capangas, dos desordeiros, das eleições com barulho e facada, das procissões com gente navalhada. Os focos de desordem eram a Gameleira, Coqueiros, o Cocudo, a Rua da Jangada." (FREYRE,1961, pp. 161-164)

O bairro de São José, juntamente com os bairros de Joana Bezerra e Cabanga, é contornado pelos braços do Rio Capibaribe ao norte e a oeste; estes bairros são limitados ao sul e a leste pela bacia do Pina. A sua ocupação foi feita a partir de seguidos aterros iniciados no século XVII, para expansão da cidade na ilha de Antônio Vaz, através de ações planejadas ou pela ocupação espontânea de casario - em áreas firmes - e mocambos - em áreas sujeitas a alagamentos. O bairro concentra grande número de estabelecimentos comerciais voltados para diferenciadas classes sociais. No contexto dos bairros de Santo Antônio e São José, ao longo desta pesquisa, será considerado com maior destaque o eixo da Av. Dantas Barreto.
 

O setor comercial atacadista

Como já foi mencionado, o comércio atacadista associado às atividades portuárias encontra-se situado em sua maior parte no Bairro do Recife. Em torno das atividades portuárias, foi-se construindo, ao longo do tempo, uma complexa rede de negócios, intermediária entre as propriedades de engenho no interior e interesses estrangeiros. Essas articulações, tendo o centro da cidade como principal entreposto comercial, constituíram-se, durante muito tempo, num importante elo de repasse da produção canavieira (oriundo da Zona da Mata) e, posteriormente, do algodão (produzido em sua grande parte no Agreste) para o mercado externo.

Uma das atividades comerciais mais diretamente associadas ao porto foi o tráfico de escravos nos séculos XVIII e XIX, quando foi considerado por decreto, ilegal. Os escravos desempenhavam papel importante para o comércio da cidade, atuando como vendedores ambulantes, no serviço de lojas na área central, além dos trabalhos de estiva.

A mudança da centralidade nesse setor caracteriza-se como já foi apresentado, pela transferência de equipamentos para outras áreas da cidade ou da Região. É o caso do Porto do Recife, cujas atividades foram em grande parte transferidas para o Porto de Suape (Município de Ipojuca, Região Metropolitana do Recife). Esse deslocamento repercutiu tanto nas formas de estocagem, como em diversas atividades e práticas associadas ao movimento portuário, tal como a prostituição, a estiva, os práticos da barra.

A nova face do bairro portuário do Recife agora é composta por outros aspectos, tais como projetos com ênfase no turismo. A construção de um Terminal Marítimo de Passageiros – já em execução - é um exemplo de tentativa de ampliação do consumo na área, inserindo Pernambuco na rota dos cruzeiros marítimos internacionais. Outra estratégia consiste no aumento de atividades diurnas, como a instalação do International Tecnology Business Center (ITBC), edifício "inteligente", concebido pela Softex, no qual deve funcionar um shopping 24 horas.

A permanência de comércio interregional e com exterior (por exemplo, a Argentina) preserva as funções ainda que de forma menos intensa e com enfoques mais diversificados do que no passado. Exemplo disto é a presença dos práticos da barra e outros trabalhadores do porto nos arredores da Rua do Bom Jesus pelas manhãs, em contraste com a grande massa de consumidores de bares e restaurantes. No entanto, as diferenças de utilização do espaço não se dão apenas na diferença de horários: os práticos em geral ocupam os bancos e calçadas e a praça do Arsenal da Marinha enquanto os consumidores e turistas voltam-se para o outro lado da rua.

Uma mudança importante diz respeito às formas alternativas de utilização dos antigos armazéns vazios, próximos ao porto. Alguns destes galpões têm sido utilizados para festas promovidas por grupos privados e donos de boates locais, com rápida divulgação, realizadas em lugares inusitados. Tais eventos tornaram-se comuns na Inglaterra dos anos 1980 e 1990, cujo propósito era escolher um ambiente desconhecido e abandonado para possibilitar encontros entre pequenos grupos de conhecidos. No Brasil, algumas experiências têm tentado se aproximar dessa idéia inicial, a partir de iniciativas particulares com apoio da Prefeitura, dentro da perspectiva de apontar para novos usos de áreas abandonadas e ociosas. É o caso de alguns armazéns no Bairro do Recife.

Outro fator que também alterou o consumo do comércio atacadista foi a considerável diminuição das casas de especiarias e importados. Tais estabelecimentos, conhecidos como "Secos e Molhados", quase sempre eram de propriedade de estrangeiros, em geral portugueses ou de seus descendentes e funcionavam basicamente durante o dia.

Os "Secos e Molhados" perderam o seu significado de distribuidores para estabelecimentos comerciais de outros bairros, com o surgimento de supermercados, lojas de departamentos, entre outros estabelecimentos do gênero, que vêm suprindo as necessidades da população de classe média e alta. É certamente a população de menor poder aquisitivo a que mantém uma maior vinculação com a área central.

No entanto, algumas ruas comerciais do bairro de São José, pelo seu nível de especialização, como a já mencionada Rua da Praia, das Calçadas e outras, mantêm uma demanda – regular durante o ano e excedente em determinados meses - que garante a permanência do comércio popular na área. São lojas situadas em ruas nas proximidades do Mercado de São José e próximos dos terminais de ônibus que têm tradição de variedade em ofertas e preços acessíveis, procuradas por diversos segmentos da população em períodos de festa.
 

O setor comercial varejista

O comércio varejista, sem dúvida, é ainda a atividade das áreas centrais que mais movimenta e exerce atração sobre a população local. Além disso, atua como polarizador de outras atividades e circulações, como por exemplo, o movimento de pedestres, os transportes (públicos e/ou privados) e do comércio informal. As condições locacionais e morfológicas do centro do Recife favorecem a convergência e concentração de pessoas para o centro. As distâncias mais curtas, devido à exiguidade de espaço, permitem maior facilidade de circulação.

O tipo de consumidor e de demanda pelo comércio do centro também varia de acordo com a época do ano, segundo Eduardo Catão, Presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas do Recife. O Carnaval que, até início dos anos 1990 também promovia grande movimento, tem sofrido retração em função do aumento do carnaval de rua e o retorno dos blocos nos último anos.

Um marco representativo do comércio do centro, o Mercado de São José, com seus 542 boxes, mantém-se como ponto de referência turística pela sua arquitetura e tradição familiar. Projetado e construído no final do século XIX (inaugurado em 1875), em ferro pré-fabricado é um dos mercados públicos mais antigos do país. Quase todos os boxes são ocupados por locatários que herdaram de pai para filho. É o caso de Higino Lins, ocupante do seu box há 20 anos; e de Paulo Montenegro, locatário há 35 anos, cujo pai trabalhou seis décadas após os setenta anos de ocupação pelo avô. No entanto, o processo de decadência e as condições de higiene locais são os principais motivos de reclamações tanto de locatários como dos clientes.

Um dos aspectos que mais interferiu na freqüentação das áreas centrais e na consagração de novas centralidades urbanas foi o surgimento dos shopping centers. Na verdade, o processo de descentralização tem dificultado a permanência de muitos grupos de comerciantes mais tradicionais, que se mantêm na área mas não têm recursos ou formas alternativas de investimento, dependendo de iniciativas públicas, tal como a revitalização:

Maria Martins, a atual proprietária de uma das casas mais antigas da rua [do Imperador, Bairro de Santo Antônio], chegou de Portugal de mala e cuia, há 37 anos, e desde então espera por dias melhores. ‘As coisas não eram tão ruins na década de 1960, mas de lá para cá o movimento caiu muito, os bons fregueses foram dando lugar a consumidores sem recursos’, diz ela, que desistiu de abrir aos domingos e de morar no andar superior do prédio, hoje aos pedaços. ‘Não temos nem dinheiro para fazer uma pequena reforma’ (PEREIRA, 1999, P. 16).

No caso do Recife, o shopping localizado em Boa Viagem desde sua construção teve repercussões diretas sobre o comércio dos bairros centrais. Outros shoppings implantados posteriormente na cidade e RMR têm contribuído para ampliar este efeito descentralizador, como, por exemplo, o Shopping Tacaruna, nas proximidades do centro comercial, e o Guararapes, localizado em Jaboatão (GOMES, 1997).

Percebe-se que o perfil do consumidor do shopping difere daquele que freqüenta o centro. Em primeiro lugar, pelo seu nível sócio-econômico (maior poder aquisitivo). Em segundo lugar, pelos objetivos de consumo: segundo Pedro Paulo da Silva, da Master Consultoria, o consumidor que vai ao shopping, pode estar mais interessado em divertimento e lazer mais do que em comprar novos produtos, enquanto o consumidor que se dirige ao centro sabe e quer consumir produtos específicos, em geral mais baratos, com possibilidade de consumo mais efetiva, real. Em terceiro lugar, pela regularidade de sua freqüência: o consumidor do centro tem uma relação antiga com a área central, muitas vezes por ter morado, ou por conhecimento da área e experiência de consumo, enquanto no shopping as relações são mais efêmeras, tanto para quem trabalha, como para quem vai para consumir. Além disso, clientes de classe média, moradores de outros bairros têm o hábito de comprar há muito tempo na área central, sobretudo em períodos de festas (Natal, Ano Novo) e quando procuram maior oferta e preços mais baixos de artigos específicos (como materiais de construção, ferragens, artigos para festas e outras variedades).

Assim, para os comerciantes, a concorrência com os shoppings força a melhoria das condições de conforto das lojas, como, implantação de ar condicionado, reciclagem de funcionários, mudanças de layout e reformas das estruturas. De qualquer forma, a perda quantitativa de consumidores do comércio das ruas do centro para os shoppings já não é tão intensa há, pelo menos, uns cinco anos. Na pesquisa da Artconsult (1999), 61 por cento dos consumidores consideram que o comércio do centro está melhorando. Contudo, tais mudanças muitas vezes previstas em planos ou condicionadas por projetos públicos não têm boa aceitação, devido a antigas práticas locais, muitas vezes herdadas de família ou reconhecidas como típicas do lugar.
 

As territorialidades do comércio informal

O termo "mascaste" originou-se do porto da Península Arábica, indicando, pejorativamente para os habitantes de Olinda, os portugueses comerciantes que moravam no Recife no período colonial brasileiro. Posteriormente, ficou o termo associado ao comerciante de baixo poder aquisitivo desde o século XVIII, por outro lado, fazem parte do lado popular da história da cidade, vendendo em feiras abertas e mercados públicos, como o Mercado da Ribeira (onde fica o atual Mercado de São José) e no Mercado da Polé (atual Praça da Independência). Até a década de 1950 o mascate era um tipo de comerciante não legalizado, que vendia suas mercadorias em baús dependurados nos ombros ou em caixas de madeira, aberta, conduzida pelas mãos, anunciando com gritos e sons de instrumentos artesanais através das ruas da cidade. A figura dos mascates, no entanto, não se confunde com a dos camelôs contemporâneos, pertencentes ao circuito inferior da economia.

No nível da Prefeitura local, existem algumas distinções entre os comerciantes informais: a) ambulante: tem permissão legal para ocupar algumas áreas da cidade temporária ou permanentemente. que, segundo a PCR, pode ser: estacionado (em local fixo determinado pela prefeitura); itinerante (trabalha se movimentando, através de carroça ou outro equipamento similar); e de época (aqueles que trabalham com artigos de época e prazo determinados pela Prefeitura; b) camelôs: não há compromisso pré-estabelecido com a Prefeitura, nem ponto fixo, sendo utilizada lona e tabuleiros para exposição e venda da mercadoria. A lei Federal nº 6.586 além de alguns artigos da legislação do código tributário municipal, definem as obrigações dos ambulantes. Há ainda os siris, sertanejos que vêm para a cidade, desempregados e passam a vender em pequenos tabuleiros, pendurados no pescoço, muitas vezes artigos de ambulantes estacionados; e os feirantes, sob regulamentação e fiscalização municipal, são aqueles comerciantes estabelecidos exclusivamente em mercados públicos ou feiras livres abertas, temporárias ou periódicas.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE - censo de 1991), houve nos últimos dez anos um crescimento do mercado informal. Na tradição nordestina do Brasil, marcada entre outros aspectos pelas feiras abertas, os maiores índices de compras em ambulantes estão em Salvador (17,8%), Recife (14,8%) e Fortaleza (13,9%). Os ambulantes respondem por 41,37 por cento por cento dos negócios no ramo de jóias, bijuterias e óticas; cerca de 50 por cento das compras de fitas de videocassete; 10 por cento das compras de eletrodomésticos.

Em Recife os gritos personificados, expressões gestuais e movimentos corporais de tantos comerciantes informais marcam a história dos bairros como o de São José. Há sempre referências às figuras como "Bolinha Cambará", "Pente e Chá Preto", "D. Miquelina do Munguzá", entre outros comerciantes que, em suas formas de comunicação e artifícios para vender suas mercadorias, atraiam a curiosidade dos passantes.

Esta é uma vitalidade "sonora" que permanece, embora pouco reconhecida como importante, por não manter registros materiais, arquitetônicos. A experiência dos antigos "pregões", ou seja, vendedores de ruas que, a exemplo dos leilões, vendiam seus produtos "no grito" (Jornal do Commércio, Caderno Cidades, 04.03.1990). Além do mais, uma vitalidade de grupos de pouco poder aquisitivo, de gente do interior e que muitas vezes decodificava os sinais do alfabeto através dessas leituras. SOUZA (1977) menciona ainda os "professores", ou seja, os artistas de rua, ilusionistas. Muitos, trabalhavam com animais peçonhentos, como cobras, por exemplo. Atualmente, os ambulantes que ocupam as ruas dos Bairros de Santo Antônio e São José pela madrugada costumam fazê-lo entre meia noite e oito da manhã. Os que trabalham durante o dia, dependendo do tipo de produto, começam antes das 6h – como é o caso dos que vendem alimentos do tipo queijo, bolos, entre outros. Em geral os ambulantes que trabalham pela madrugada são grupos sem licença para comercialização ou funcionários de barracas abertas 24 horas. Há, no entanto, um sentimento em comum entre todos os que não possuem licença: o medo das "carrocinhas", ou seja, da fiscalização da guarda municipal.

O aumento do mercado informal associa-se diretamente ao alto índice de desemprego. Contudo, segundo o depoimento do vendedor ambulante Amaurino Teixeira, o trabalho informal tem algumas vantagens em determinados casos, tornando aparentemente mais lucrativo do que algumas atividades comerciais a varejo e permitindo maior flexibilidade do comerciante. Sr. Amaurino, por exemplo, utiliza seu carro como trailler para venda de bolos e queijos, uma opção informal comum nas grandes cidades: "fui vendedor de purificador de água e trabalhei em algumas lojas da cidade. Veio o desemprego. E com ele, sempre vem a necessidade. (...) Também para ganhar uma miséria, estou dispensando" (Jornal do Commércio, 04.12.98).

O número de freqüentadores, no entanto, mesmo fiel ao comércio do centro, tem diminuído nos últimos anos. As mudanças de infra-estrutura e equipamentos - como a transferência da rodoviária para o Terminal Integrado de Passageiros (TIP) no Curado – e a crise econômica da população em geral são aspectos apontados como causas para a diminuição do movimento de consumidores na área, como disse Reginaldo dos Santos, vendedor de cachorro quente: "depois que o TIP foi inaugurado, o movimento caiu muito. Eu era bem mais novo, mas lembro bem. Essa área aqui quase morreu durante a noite" (Jornal do Commércio, 04.12.98).

Desta forma, as territorialidades do comércio – tanto formais como informais – permanecem como forte representação do mundo vivido do recifense. As alterações na forma e no tipo de consumidores ainda mostram traços do passado, embora não se possa prever por quanto tempo há de resistir às investidas das inovações e do quadro desanimador de qualidade de vida da população de baixa renda, consumidora em potencial do comércio do centro.
 

Considerações finais

O comércio na área central do Recife apresenta características muito particulares. De uma forma geral a centralidade funcional da cidade, no que diz respeito ao comércio, ainda permanece nos espaços centrais tradicionais da cidade de forma íntegra embora desgastada pelos diversos processos e transformações ao longo da evolução da cidade. Justifica-se o grande número de pessoas que circulam diariamente e mais intensamente em períodos de festas.

O comércio formal ajusta-se a espacialidade complexa e singular dos bairros centrais: no bairro do Recife, as atividades portuárias ainda em vigor movimentam atividades específicas, embora em menor número, como o abastecimento de navios. No bairro de São José, à preservação da estrutura física e das quadras e dos padrões construtivos referentes a períodos históricos da cidade, associam-se as atividades especializadas de vendas voltadas ao abastecimento no nível urbano e regional. Algumas mudanças são motivadas pela modernização do sistema de abastecimento urbano e pelas novas redes comerciais, mas em alguns lugares, permanecem estruturas muito similares com antigos estabelecimentos.

A revitalização do bairro do Recife apresentou-se como iniciativa importante ao valorizar aspectos, espaços e imagens locais já em processo de degradação física avançada além do abandono de diversos prédios e do baixo movimento de consumidores em diferentes momentos do dia. No entanto, algumas limitações são identificadas pelos planejadores: em primeiro lugar, as atividades comerciais estimuladas pelo bairro (gastronomia, cultura, diversão) não geraram o efeito multiplicador esperado pelo plano, atraindo poucos investimentos privados mais substanciais e com expectativa de maior continuidade; em segundo lugar – e como conseqüência – as áreas desenvolvidas limitaram-se àquelas selecionadas como pólos de atração (Pólo Bom Jesus e Pólo Alfândega) não havendo uma expansão significativa para outras ruas que encontram-se em estado de degradação; em terceiro lugar, houve uma grande concentração de atividades nos pavimentos térreos – mais fáceis de serem ocupados pelo comércio e mais visíveis ao público – havendo ainda diversos edifícios nas áreas revitalizadas que não foram ocupados por novos empreendimentos.

No caso de Santo Antônio e São José, as especificidades de tais bairros tão dinâmicos apontam para a necessidade de pensar cautelosamente nos possíveis conflitos e impactos de um plano sobre os diversos grupos de atores usuários e consumidores no centro os quais mantêm fortes ligações com atividades e espaços centrais.
 

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Ficha bibliográfica

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