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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (70), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

GEOGRAFIA DO TRABALHO E DESENVOLVIMENTO DESIGUAL-COMBINADO DOS ESPAÇOS MUNDIAIS: GENÊSE E ESTRUTURA DA ESCRAVIDÃO CAPITALISTA

Júlio Cézar Ribeiro*
Mestre em Geografia
UNESP/Presidente Prudente.

Antonio Thomaz Júnior
Professor dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação
Geografia - UNESP/Presidente Prudente


Geografia do trabalho e desenvolvimento desigual-combinado dos espaços mundiais: genêse e estrutura da escravidão capitalista. Resumo

Para se abordar as razões e as maneiras pelas quais o complexo das relações capitalistas reproduz a arrumação geográfica dos espaços mundiais, tem-se que se atentar ao trabalho abstrato e alienado, produtor de valor-de-troca que, na forma de fixos e fluxos, percorrem e ou abrangem os mais variados cantos do mundo, mas que, todavia, encontra morada em determinados países, sob o mando de determinadas classes sociais hegemônicas.

Palavras chave: Relação homem-meio, trabalho abstrato, espaço-mercado, desenvolvimento desigual-combinado


Geographic of the work and unequal-combined development’s of worldwide spaces: slavery capitalistic’s genesis and structure. Abstract.

To approach the reasons and ways in which the complex of the capitalistics relations reproduce the geographical arrangement of worldwide spaces, we should aware to the alienated and abstract work, producer of worth exchange in fixes and fluxions which go through and embrace the most wide places of the world. However, it has residence in some places, beneath certain hegemony social classes.

Key words: Relation man-environment, abstract work, market-space, unequal-combined development


As informações aqui contidas resultam de anos de pesquisas, reflexões e debates realizados pelo orientador Thomaz e pelo orientando Júlio, no âmbito do CEGeT e fora dele, nas dependências do campus da FCT-UNESP e nos encontros nacionais e internacionais dessa e de outras áreas do conhecimento científico.

Um esforço como esse comparece como os primeiros passos em torno de uma problematização sobre questões e apontamentos levantados por um e por outro que, nesse momento, resolveram juntar esforços em busca de uma sistematização geográfica sobre o que está a se passar no mundo do trabalho: quais as suas diretrizes principais nos países desenvolvidos, e, de outro lado, quais as suas reverberações específicas nos espaços geográficos periféricos, todavia não menos importantes ao sistema econômico imperante. Ou seja, como se efetiva a materialização singularizada desse quadro de transformações globais com a especificidade da formação sócio-espacial brasileira: em termos políticos, econômicos, ideológicos e culturais. E mais, como se arranjam ainda internamente, em um processo quase que infinito de diferenciação interconexa, os espaços "centrais" e "periféricos" dessa mesma formação sócio-espacial, nas regiões mais desenvolvidas e no "interior arcaizado" do país.

Por isso, elencar o mundo do trabalho como filão de análise central implica, ao nosso ver, eleger o mundo do espaço vivido. Daí o vai-e-vem do pensar entre a universalidade de transformações e conformações (re)postas, no espaço-mercado imperialista, com a particularidade da formação sócio-espacial brasileira e suas manifestações diferenciais-combinadas singulares nos aparentemente desconexos espaços vividos, ou seja, os espaços que se encontram além, entretanto anexos, à lógica de consumo da sociedade de mercadorias e, portanto, amarrados ao espaço-mercado de realização da mais-valia global. Esse o desafio e os referenciais metódicos que agora iremos nos lançar.
 

O Labirinto: Primeiras Aproximações...

Entender a colcha de retalhos rasgadas/costuradas pelo capital significa apreender o conteúdo de sua fina linha, isto é, a lógica social que a quase tudo atravessa e destrói (territórios, sujeitos, paisagens, recursos, culturas, subjetividades, etc.), embutida no tecido do espaço social.

Para tanto, faz-se necessário uma visão sistêmica que dê conta de abranger esses fenômenos de conseqüências algumas vezes parcelares, mas com razões e causas globais que geralmente escapam ao "olhar" newtoniano-cartesiano, focado pontualmente, e meramente empirista, do sujeito cognoscente (Ribas et. al., 1999).

Se como disse Gilberto Freire o tempo é tríbio, passado, presente e futuro coexistindo socialmente, torna-se primordial uma tentativa de se vasculhar os troços e os destroços (re)criados pela dinâmica societária que apresenta o mosaico estruturado pelo sistema do capital.

Significa ver o moderno (o novo) como capas novas a uma velha lógica; ver o presente como uma perpetuação do passado, ainda que sob novas fachadas; o capital como antônimo de liberdade e a democracia como antinomia de Estado, hierarquia de classes e subsunção do trabalho.

Urge entender o capital como um sistema de escravidão disfarçada, sob formas assalariadas e não-assalariadas, quer nas cidades ou nos campos interioranos (nesses últimos, enquanto formas pré-capitalistas estruturalmente incorporadas pelo crivo do sistema do capital, expressas na: peonagem, escravidão por dívida, etc.).

E mais, entender esse complexo metabólico como um mecanismo mimetizado e catalisador, centrado na extração de mais-valia e na subordinação do trabalho.
 

As Metamorfoses no Mundo do Trabalho e no Espaço Vivido

O capitalismo inaugurou e extremou a razão social do trabalho abstrato.Voltado à produção de valores-de-troca, esse processo ocupou o lugar que antes pertencia àquela relação metabólica homem-natureza que primava e findava na satisfação das necessidades dos seres conscientes, envoltos em mediações de primeira ordem, que, segundo István Mészáros, nada mais é do que o processo consciente de estabelecimento de relações sociais entre os sujeitos e destes para com o meio em que se encontram; sem fetichizações, porque orientados à produção de valores-de-uso. Com essa inversão de funções, o metabolismo que anteriormente tinha como razão de ser a produção como meio de satisfação material (e espiritual) dos sujeitos – como o que se podia verificar entre os índios, que, por sua vez, se constituía em uma forma organizacional totalmente diferenciada daquelas sociedades feudais européias, cuja produção encontrava-se voltada para o sustento e luxúria das famílias abastadas e de "sangue azul" –, metamorfoseia-se em um complexo de relações estranhadas, ou mediações de segunda ordem (Antunes, 2000; Ribeiro, 2001b), cuja funcionalidade tende a prender cada vez mais os sujeitos à produção-em-si, sob controle social burguês: a classe que desse processo mais se beneficia (1).

Passa, dessa forma, a produção a ser a razão de seu existir. E não o inverso: o existir e humanizar possibilitado-mediado pela produção social. Meio (produzir) e fim (não apenas existir, mas viver plenamente, conforme as possibilidades historicamente postas) se divergem. Trocam de posições. De imediato, na dialética que respondeu e responde por seu fortalecimento, verifica-se um jogo material e imaterial de sustentação e alavancamento do capital, quando de suas arrancadas mais fortes.

No plano material, vê-se a propriedade privada ganhar corpo e a segregação social (espacial) expressar-se entre os detentores dos meios geográficos de produção e os seus despossuídos, que apenas a sua força de trabalho possuem para tentar garantir o meio (o dinheiro: equivalente universal das trocas) de satisfação das necessidades mínimas de se reproduzir socialmente.

Já no plano imaterial, por sua vez, vê-se erigir uma nova atmosfera ou superestrutura social. Como sinalizou o Marx, todo modo de produção possui, sustenta e se sustenta por meio de um edifício ideológico presente no emaranhado de leis e em todo o aparato legal soerguido para garantir a ordem societária. Mudam-se o chão e o céu do espaço social. A produção de riqueza, de satisfação das necessidades que permitem aos sujeitos se lançar a questões e dimensões metafísicas – idealistas ou não (2) –, dando sentido lúdico à sua existência, dificilmente poderia se desenvolver à revelia desse novo "sujeito" social emergente, apenas quando a força do imaginário social se fizesse forte e organicamente unida o bastante para sobrepujar, e não somente complementar, os anseios reprodutivos do capital (Ribeiro, 2001c).

As riquezas capitalistas passam a ser perseguidas e vistas como o novo sentido social radicado no ser, como destino de sua existência, como se o fosse imprescindível. O estranhamento do trabalho e a estrutura de dominação de classe, ancorada nos (des)mandos do capital-camaleão (Ribeiro 2001b), objetam novos e grandiosos desafios para a classe-que-vive-do-trabalho, com vistas à sua emancipação social. Na cadeia evolutiva principal verifica-se que a produção descola-se do sujeito, do corpo ou do coletivo social, e volta-se para si mesma (autovalorização do valor: D-D’), ou àquela minoria que a desfruta, por mais bem localizada se encontrar na hierarquia do edifício social, ou seja, o ser social é esvaziado do seu conteúdo ontológico (3).

Uma nova função atribuída àquela relação metabólica homem-natureza, de realização de trabalho, somente tenderia a resultar em um novo arranjo do sujeito com o seu meio.

Assim, se o trabalho é esta relação do homem com o seu meio, com vistas a satisfazer necessidades materiais e imateriais de seu ser e do coletivo social ao qual pertence – o que permite entender esse processo como a natureza tomando consciência de si mesma –, então, a dicotomização do homem com o seu meio geográfico (de existência e reprodução), sob critérios capitalistas, tende a reproduzir uma infinidade de clivagens subseqüentes, perceptíveis:

a) na separação do social com o natural (exteriorização do homem da natureza e paralela divisão da natureza em primeira e segunda instância);

b) na dicotomização de sua gestão e co-atuação consciente com a obrigatoriedade de sujeição e alienação;

c) bifurcação entre ofício e lazer (o lazer como o não-trabalho e, o não-trabalho, como algo destituído de engrandecimento e humanização; ou, em outras palavras: o trabalho como negação do propósito social de humanização – o indivíduo caminhando no sentido do desenvolvimento de sua omnilateralidade – e afirmação dos princípios amarrados à reprodutibilidade do capital);

d) a dita separação do homem da natureza com a agravante do processo correlato de segregação dos próprios homens, em classes; etc.

Passa-se a se fundar um processo social fragmentário e segregador em todas as dimensões sociais, seja na política (com a pulverização dos interesses grupais e coletivos sob o mando do "neutro" e uno poder estatal), na econômica (entre os que têm e mandam, e os que devem obedecer para subsistir), ou na cultura no sentido amplo (com a tentativa de captação e volatilização de seus imaginários, projetos, desejos, valores, gostos, sonhos..., e paralela dicotomização entre o possuir e o não-possuir, o fazer e o pensar, o mandar e o executar; sem contar a fragmentação que se efetua entre o próprio pensar, fazer, sonhar..., restrito às ilusões banais de consumo mercadológico), entre outros desdobramentos materiais e imateriais (ideológicos e imagéticos).

Se se faz estranhada a relação metabólica entre os sujeitos e destes para com o espaço social produzido, também distantes, e quase que totalmente estranhas, os sujeitos vêem de si as conseqüências geradas por esse processo, seja no "outro" proletário ou na natureza fetichizada, degradada (Ribas et. al., 1999; Thomaz Jr., 2002).

Funda-se uma espacialidade animada pela racionalidade capitalista. E com a expansão dos mercados de troca, extensificam-se territorialmente os espaços produtores de capital, de realização da mais-valia social, ou seja, do trabalho a mais (sobre-trabalho) roubado na esfera da produção dos sujeitos-fragmentos.

A realidade, vista sob esse enfoque cartesiano, apresenta-se como um quebra-cabeça: os sujeitos são diferentes e diferenciados, sua razão de ser exteriorizada e estranhada, o mesmo se dando com os espaços, cada vez mais desiguais, irregulares, dessemelhantes, em termos de concentração e centralização de ações e objetos que dão espessura à sua conformação sócio-espacial. Em que pese estar quase tudo e todos (pessoas, territórios, objetos, etc.) interconectados socialmente pelo espaço-mercado: o espaço de realização da mais-valia global dessa fase supra-imperialista de realização do capital.

Daí que os sujeitos, sejam eles proletários, subproletários, desproletarizados, patrões e ou empregados, trabalhadores "formais" e ou "informais", marginalizados ou excluídos, etc., bem como os lugares que se fazem centrais e periféricos, industrializados e desindustrializados, dinâmicos e inertes, etc., da mesma forma, desempenham uma função no complexo metabólico capitalista dessa fase imperialista de viragem do século XXI, redundante de um espaço monopolista controlado, atualmente, pela força sinérgica e gravitacional exercida pelo circuito de realização da mais-valia global, encabeçada pelos setores industriais e financeiros fortemente oligopolizados, expresso nas empresas multinacionais, atuantes nas esferas da produção e, mormente, na especulação (ver Thomaz Jr., 2000; Ribeiro, 2001b).

A menos que sob sua permissão ou com substanciais lutas promovidas pelos trabalhadores, nenhum espaço social pode se fazer arrumado senão por dentro desses marcos históricos impostos pelas classes hegemônicas capitalistas.

Faz-se mister entender pois, a lógica imanente à configuração territorial capitalista, assim como o contexto situacional em que a classe trabalhadora se encontra imersa, pelo fato de não dirigir a gestão espacial do processo sócio-metabólico, não possuindo controle nem sobre o espaço, os elementos de produção, ou sobre si mesmo, já que é obrigada a vender a sua força de trabalho para que possa simplesmente existir.

Aqui, o fim de sua autonomia e o início de sua escravidão.
 

Escravidão Capitalista: Novas Embalagens para Velhos Conteúdos

Tomando aqui a escravidão em seu sentido lato, de dominação e sujeição da maioria aos desígnios de particulares minorias, por meio da concentração em poucas mãos dos meios de produção e, por conseguinte, controle societal por sobre aqueles que não os possuem, estabelecesse a mais nova escravidão humana: a escravidão capitalista, objetiva e subjetiva (4).

O que anteriormente se fazia domínio direto e privado sobre o corpo ou o ser social, com a fundação do Estado capitalista – guardião, em prima-facie, da "Sociedade Democrática" – transforma-se em domínio de classe, indireto e público, em termos material e psíquico. Talvez a pior escravidão já produzida (Etzel, 1976).

No plano mental, ao contrário de épocas pretéritas, o escravo moderno – escravidão assalariada (5) e não-assalariada – não se reconhece como dominado e explorado e, quando o faz, credita "normal" tal situação pela sacralização que se fez sobre a propriedade privada e sobre os dotes "naturais" dos seres humanos como meio de consegui-la, executada pelo Estado burguês e outros aparelhos que sustentaram tal rígida lógica hierárquica de ascensão social. E além de não se reconhecer como trabalhador e explorado – como geralmente é o que se presencia – põe-se ainda a se digladiar com os sujeitos sociais pertencentes a sua mesma classe por questões pontuais (salários, cargos superiores, status, etc.), ao invés de lutar pela destruição dessas novas correntes sociais.

Já no plano material, os mecanismos de coerção são há muito conhecidos. Despossuídos dos meios e elementos de produção, o "trabalhador livre" (sic!) deve se submeter à vontade de um terceiro para conseguir garantir a sua subsistência. Tem-se então, mais complexificada, heterogeneizada e fragmentada a classe trabalhadora (Antunes, 2000).

O escravo clássico de outrora se reconhecia como escravo e se levantava contra os seus senhores, por ser a relação mais direta, ou não-estranhada. Os escravos modernos não. Por serem mais alienados de si, material e imaterialmente (consciência), assumem o discurso burguês e a lógica social hierárquica e desumanizante.

Os escravos do modo pré-capitalista de produção, ou seja, daquela escravidão clássica (que, para muitos, permaneceu apenas até a abolição da escravidão no Brasil, em 1889) custavam bem mais a seu patrão do que o escravo assalariado moderno que, por pertencer a uma classe (ao invés de a uma pessoa) e a um momento diferenciado do desenvolvimento das relações de produção (modificação na composição orgânica do capital, geradora de exclusão estrutural e largo exército de reserva industrial), custa bem menos e rende muito mais a sua exploração.

A superexploração do trabalho ganha asas... Índios, mulheres, negros, crianças, contraventores e ou presidiários (os quais o capital vem interagindo dentro dos presídios, em troca de parcos salários e ínfima redução de pena), etc., adensam o exército de trabalhadores responsáveis pela produção capitalista, abundando a horda dos superexplorados, marginalizados e excluídos.

Situação mais trágica na periferia do sistema. Nesta, a realização da mais-valia – que escorre, como energia, do suor e da vida do trabalhador para o leito burguês da apropriação privada – prossegue por meio de relações pré-capitalistas, tornadas estruturais e não apêndice ou complemento do capitalismo (Oliveira, 1988; Moreira 1985 e 1988).

A polissemização do trabalho, na absolutização de sua dimensão abstrata, fundida ao enlaçamento estrutural das formas diversificadas de realização da mais-valia, sob os auspícios do espaço monopolista de desenvolvimento desigual e combinado no plano mundial, que, por sua vez, garante a reprodutibilidade macro-sistêmica do capital, perfaz o sentido genésico-estrutural para o qual encontra-se voltado o mundo do trabalho na contemporaneidade.

Moderno e arcaico são expressões fenomênicas de realizações do capital global, permitida pela empiricidade homogeneizada do sistema técnico-científico (Santos, 1992) que interliga, mediante uma rede de fixos e fluxos, de mercadorias materiais e imateriais (dados, informações, etc.), os territórios aparentemente desconectados do/no espaço-mercado mundial.

De arrastão, vai o sujeito também sofrer com tão violenta reestruturação na base produtiva e em seu teto: infra e superestrutura.

Encontrando-se em fase terminal aquele período áureo do pós-guerras, de oferecimento de benesses para o mundo do trabalho para que os trabalhadores de muitos países capitalistas centrais abandonassem suas intenções de controle e autogestão da produção, o capital realiza a sua maior investida ao mundo do trabalho, ante essa crise de realização de mais-valia, gerando daí os crescentes processos de: desproletarização, com a diminuição do número de trabalhadores empregados/assalariados na planta fabril, que tão bem caracterizou o paradigma fordista-taylorista de produção; dessindicalização, devido à correlata redução do contingente de filiados nos aparatos sindicais, quer por sua estrutura economicista (preso à taxa de sindicalização, sem abarcar toda a classe trabalhadora, inclusive os desempregados, que interferem nos ganhos daqueles que ainda se encontram empregados nos setores formais), quer por sua orientação ideológico-burguesa e práticas políticas pouco convincentes e aglutinadoras; dessalariamento, oriundo, como vimos, do arrefecimento das atividades formais e, em termos mais amplos, da própria estrutura de crise global de reprodução do capital; precarização do trabalho e aumento do subemprego, como os novos mecanismos de "contenção de custos" e superexploração da força de trabalho, levados a cabo pela burguesia; recrudescimento do setor de serviços e da informalidade, como engendramento e espraiamento do próprio capital por esferas econômicas não-produtivas e isenta de certas taxações de impostos; ampliação dos contratos de trabalho por curto prazo (part-time), já que interessa às empresas dessa fase toyotista a instituição de mecanismos que as permitam operar sem que, tantos encargos trabalhistas, tenham de custear; heterogeneização da força de trabalho, com destaque para a "feminização" dos postos de emprego e inserção de "novos" sujeitos sociais, que vêm representar menores salários e menores direitos trabalhistas. Como os índios, para citarmos outro exemplo: de uns tempos para cá a mão-de-obra na qual as empresas sucro-alcooleiras sulmatogrossenses, principalmente, vêm elegendo a migração sazonal de suas aldeias por curto período de tempo, para, superexplorando-os, se extrair maiores taxas de lucros (Lima & Ribeiro, 1999; Ribeiro, 2001a e 2001b; Ribeiro & Thomaz Jr., 2001); concretização de novos mecanismos de controle e superexploração do trabalho, verificável na promoção de imigração de "qualificados" entre regiões e países – a dita "fuga de cérebros" – e na instituição dos Círculos de Controle de Qualidade (CCQ’s), entre outras expressões vivas do toyotismo sistêmico (Alves, 2001).

Como não poderia ser diferente, tais investidas no mundo do trabalho açambarcam e remodelam o mundo do espaço vivido, das representações e percepções de espaço, tempo, cotidiano, trabalho, lazer, sociedade, Estado... e as representações em torno de si e do outro. A opacidade das relações sociais tenta suprimir os gritos de agonia do Mundo Paralelo. O mundo real que o Estado e o capital tentam encobrir (Thomaz Jr., 1992).

Com as agressões capitalísticas no plano material e sua interiorização pelo ser social, por meio de novas leis (perdas sociais na legislação trabalhista, por exemplo), valores consumistas e exacerbação do individualismo e da competitividade, de redução dos postos de trabalho e profusão de sua ideologia pelo mass-media, tem-se armada uma conjuntura mais propícia à maior desagregação e esfacelamento da consciência de classe-em-si dos trabalhadores, o que põe em xeque as suas próprias instituições de representação de classe, como os sindicatos, que cada vez mais vêm assumindo uma postura colaboracionista com as empresas – os ditos sindicatos por empresa (Alves, 1999; Ribeiro & Thomaz Jr., 2001).

A escravidão subjetiva mais se avigora sob o paradigma toyotista, que tenta fazer da empresa a morada do trabalhador e, dos patrões, a sua mais nova e importante família.

Nesse processo, a identidade dos trabalhadores, como consciência de classe-de-si, derivada de sua inserção submissa no contexto das relações capitalistas de produção e reprodução social, se desvanece perante a identidade corporativa ou individualista, que Marx conceituou como sendo de consciência de classe-para-si (cf. Ribeiro, 2001b).

Nunca um domínio de classes foi tão forte qual este verificado na sociedade de escravidão capitalista atual. Nunca a ideologia dos dominantes foi tão abrangente e profunda qual essa hodierna. Nem a estratificação social fez a questão de classes parecer tão bruta e ao mesmo tempo a sociedade se enxergar politicamente como um borrão social.

Daí, sobreleva-se a ditadura do pensamento único (Santos, 2000). Talvez nunca tenham estado tão melhores postas as possibilidades de construção do que Milton Santos (2000) denominou de consciência da escassez, fenômeno indicado por Boaventura de S. Santos como conhecimento da ausência (Ikuta, 2001), e que, da mesma forma, entendemos poder vir a se constituir no espelho de identidades, o ponto de encontro com o elo perdido, a situação social do espaço vivido como o meio de construção de um coletivo do diverso (Ribeiro, 2001b). Para que, enfim, o coletivo social se lance para além do mundo do trabalho estranhado.
 

Considerações finais

O capitalismo atual (re)criou os mecanismos perpetuadores de sua lógica (destrutiva) insaciável por lucro. Arrastou e continua por arrastar, nesse processo, o pouco de conquistas trabalhistas que possui a classe-que-vive-do-trabalho (Antunes, 2000) (Por que não considerarmos como sendo ela a classe-que-vive-da-venda-da-sua-força-de-trabalho?).

Mais feroz que no hemisfério Norte, a região Sul, menos industrializada e mais dependente econômica e politicamente das instituições financeiras e das empresas multinacionais, sente as mais profundas agressões lançadas pelo capital ao mundo do trabalho e ao espaço social, nessa fase imperialista de realização do capital. Mais e mais são fundidos e supercontrolados o espaço vivido e o mundo do trabalho, dando a vitalidade a esse espaço-mercado capitalista, que, detendo os meios de comunicação de massa, institui os mecanismos materiais e ideológicos de dar prosseguimento à engrenagem da totalidade do corpo social.

Urgente torna-se a necessidade de reconhecimento da situação social dessa nova e ampla classe trabalhadora, que se encontra para além da planta fabril e do plano do sistema salarial, que envolvia os trabalhadores dantes proletarizados – e que agora entoam fragmentariamente os sentidos e nexos da reforma agrária, somente para exemplificar as (des)sintonias internamente à classe trabalhadora (Thomaz Jr., 2001).

O mundo do trabalho é mais amplo e complexo. A classe trabalhadora também. A escravidão social, de tão sutil e disfarçada, aparenta-se como algo de mais natural e evoluído pelo corpo social. O que faz reforçar o processo de estranhamento, de alienação objetiva e subjetiva do ser social, tanto do espaço, do outro, como de si mesmo.

Eis as novas questões que o quanto antes, entendemos, devem ser abraçadas pela classe trabalhadora, se mais uma vez quiser ela perspectivar quebrar as correntes da sujeição social, dando vazão à liberdade de criação de novos espaços mundiais, não mais combinados pelas desigualdades que caracterizam o sistema do capital.

A emancipação do trabalho para além do capital continua a nos inspirar a prosseguir nas investigações...
 

Notas

(1) Ranieri, em Câmara Escura (2001), apresenta um roteiro de reflexões muito sugestivo a respeito das relações estranhadas. Algumas reflexões também sobre esse processo de des(re)construção da base material e, por conseguinte, dialeticamente, de reverberações ao nível da memória e imaginário elaborados pelos sujeitos sociais por dentro dessa relação social contraditória, (re)alinhando-se e ou opondo-se as mesmas, ver: Ribeiro, 2001c.

(2) Como lembrou Lefébvre (1995, p. 54): "todo idealismo é metafísica. (A recíproca não é verdadeira: muitas metafísicas são idealistas, mas existem outras doutrinas metafísicas não idealistas, ou seja, certos tipos de materialismo)".

(3) As ricas contribuições de Marx e Lukács nos permitem compreender a dialética do processo social, sob as garras do capital (vide bibliografia).

(4) Algumas indicações iniciais podem ser coletadas, como fragmentos, em textos de Gorender (1978 e 1990). Uma sugestiva verticalização, no entanto, pode ser obtida com: Ribeiro, 2001b.

(5) Expressão utilizada por vários autores, e com diferentes intenções, ver: Coggiola, 1998, p. 13; Marx, 1987, p. 20 passim; Reis, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês (1835), São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 201 apud Gorender, 1990, p. 22. Para um aprofundamento maior sobre essa questão, conferir a reflexão por nós realizada em "A geografia da escravidão no território do capital".
 

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THOMAZ JR, Antonio. Qualificação do trabalho: adestramento ou liberdade? Revista Pegada, Presidente Prudente: CEGeT, v. 1, nº 1, p. 5-16, 2000.

THOMAZ JR, Antonio. Desenho societal dos Sem Terra no Brasil, 500 anos depois. Revista Pegada, Presidente Prudente: CEGeT,v. 2, nº 2, 2001.

THOMAZ JR, Antonio. Por uma Geografia do Trabalho. Presidente Prudente, 2002 (inédito).
 

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Ficha bibliográfica

RIBEIRO, J.C. THOMAZ JÚNIOR, A. Geografia do trabalho e desenvolvimento desigual-combinado dos espaços mundiais: genêse e estrutura da.  Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, nº 119 (70), 2002. [ISSN: 1138-9788]  http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-70.htm


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