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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (121), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

O ÊXODO DOS TRABALHADORES RURAIS PARA CIDADES À LUZ DE LEFEBVRE

Ana Maria Matos Araújo
Economista e mestranda em Geografia
Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Brasil


O êxodo dos trabalhadores rurais para cidades à luz de Lefebvre (Resumo)

O ensaio reexamina o êxodo dos pequenos produtores e trabalhadores rurais para cidades, notadamente em direção à Capital do Ceará, Fortaleza, por quase um século, de 1872 a 1970, considerando as adversidades físicas, pois estão situadas em região semi-árida, no Nordeste do Brasil. Encontra em Lefebvre novos elementos para confrontar a opinião consolidada sobre os flagelados da seca e de seus motivos para uma peregrinação no território cearense. Discute o Estado como interventor na aquisição de financiamento externo para oferecer técnicas, instituições produtoras de bens sociais e investidoras de infra-estrutura de sustentação e incentivo à acumulação capitalista localizada no centro hegemônico nacional, em São Paulo, na região Sudeste.

Palavras-chave: êxodo rural, urbanização, mercado de trabalho


The rural workers exodus for cities of to the light of Lefebvre (Abstract)

The rechearsal examines the exodus of the small producers and rural workers for cities, notedly in direction to the capital of Ceará, Fortaleza, for almost a century, from 1872 to 1970, considering the physichal adversities, because are placed in semi-arid area, in the Northeast of Brazil. It finds in Lefebvre new element from confront the opinion consolidated on them flagellated of the drought and of its reasons for a pilgrimage in the territory from Ceará. The State discusses as interventor in the acquisition of external financing to ofter techniques, instituions producing of social goods and invertors of maintemance infrastructure and incentive to the capitalist accumulation located in the center national hegemonyc, in São Paulo, in the Southeast area.

Key-words: exodus, urbanization, work market


A mobilidade de grupos da população, no Ceará, estado localizado na região Nordeste do Brasil, tornou-se uma qualidade, uma capacidade de movimentar-se no espaço, que se inseriu no modo de ser de seus habitantes. Para alguns autores, tais como Juraci Cavalcante (1995, pág.109), trata-se de uma "cristalização da cultura de migração no cotidiano de indivíduos, famílias e jovens interioranos."

Já no período de colonização e de povoamento constatava-se que havia intensos deslocamentos no território, associado à forma como foi instalada a economia mercantil, e, na seqüência, como se deu a acumulação capitalista. A formação das vilas, cidades e municípios é uma das conseqüências da dialética entre êxodo rural e fixação-mobilidade no urbano, como também o foi a constituição da metrópole de Fortaleza, na década de 70 do século passado, enquanto locus privilegiado da expansão capitalista nacional, que passou a concentrar capital e trabalho, portanto, população.

O tema do êxodo rural sempre foi visto, na realidade cearense, como fonte dos problemas de concentração e de aglomeração das cidades, notadamente em Fortaleza, provocados pela urbanização, daí decorrendo uma política pública insistente até os anos 70 do século XX, que objetivava fixar o homem no campo. O fracasso dessa política fez com que décadas depois, esse mesmo assunto assumisse importante posição no debate atual, desenvolvido no país, sobre a desruralização. Um fenômeno ainda pouco definido, que no caso do nordeste brasileiro, supostamente, seria resultante da ocorrência de constantes secas associadas à atração das cidades, pela concentração dos investimentos industriais e urbanos, que determinaram freqüentes migrações rurais, e em decorrência levaram a redução das populações residentes no campo a um contingente mínimo, com taxas negativas de crescimento.

Questões como essas, a serem verificadas no contexto estadual, compõem o principal objetivo deste ensaio, que se inspirou nas análises de Lefebvre e de seus seguidores para compreender a relação do êxodo rural com a produção no e do espaço urbano, sua vinculação com as necessidades das famílias camponesas de habitar em áreas urbanas, dentre outros aspectos das transformações que estariam passando as comunidades camponesas. Procura-se verificar em que medida o êxodo rural estaria associado às lutas camponesas nas mudanças das relações de produção no campo, observando a participação do Estado, através de suas políticas e instituições envolvidas.

Portanto, desenvolvemos neste ensaio as temáticas referentes ao êxodo de trabalhadores rurais: no processo histórico de formação das aldeias, vilas e cidades; nas transformações das relações de produção e reprodução no campo; na continuidade e descontinuidade do processo de urbanização de Fortaleza; concluindo sobre um repensar de seus determinantes, segundo as concepções teóricas de Lefebvre a respeito de pontos considerados básicos na "transição do rural para o urbano" (1978).
 

Os deslocamentos históricos de trabalhadores para aldeias, vilas e cidades

O modo como se deu a colonização luso-brasileira violento e autoritário, que impôs às populações nativas o estilo de vida metropolitano e mercantilista, sobretudo negando a posse de suas terras e reduzindo-as à servidão, transparece nos diferentes sistemas utilizados para povoamento: nas missões jesuítas, no aldeamento indígena, ou no movimento de entradas e bandeiras (Beozzo, 1992, passim).

A perspectiva de fixar as populações naturais do território cearense, a maioria pertencente a tribos nômades, desenvolvida pela classe dos sesmeiros ou de seus representantes pecuaristas, levou ao massacre de muitas nações, restando apenas aqueles grupos que adotaram estratégias de fuga ou de contínuos deslocamentos no espaço constituído por áreas fora do perímetro da pecuária (Araújo e Carleial, 2001, passim).

No caso cearense, entretanto, o que chama atenção no processo não é tanto o aldeamento, uma vez que apenas pequenos grupos se deixaram dominar, mas ressalta-se a sua dialética com a mobilidade no espaço. E, por trás de ambos, os interesses dominantes e declarados de controle e exploração da força de trabalho indígena e na desapropriação de suas terras.

Ao resistirem, grande parte dos índios lutaram até a morte contra os colonizadores, sesmeiros e bandeirantes sequiosos de terras e braços para o trabalho agrícola de subsistência à atividade pecuária iniciada nos sertões. Aqueles que se deixaram submeter ou que foram vencidos vieram compor grupos de trabalhadores: os que faziam parte da população de agregados nas fazendas de pecuária, tendo sido jogados contra outras nações em conflito com a dominação portuguesa; e, os indígenas reduzidos e explorados por jesuítas, que sendo escravizados eram cedidos com remuneração, para prestar trabalho ao Estado ou às propriedades privadas, mediante contrato estabelecido com representantes da Igreja.

Segundo o Pe. Oscar Beozzo (1992, p. 22-23) o aldeamento em toda a Colônia constituía-se "um sistema de campo de concentração, de acampamento de mão-de-obra," onde os índios eram obrigados a se deslocarem a diferentes distâncias para o trabalho, assim como o "engajamento de indígenas nas tropas de linha," que viriam a ser o contingente armado utilizado por fazendeiros, bandeirantes ou mesmo na milícia policial, vai se constituir noutra forma de migração deste período.

Na pesquisa de Auxiliadora Lemenhe, apreende-se que o conflito se estabelecia para além das questões étnicas, adentrava no jogo de disputa alimentado por essas relações sociais com as populações nativas. Ou seja, dizia respeito aos meandros das relações de poder interna à classe hegemônica nos sertões, formada pelos pecuaristas, que nas questões da terra se antagonizavam inclusive com os latifundiários produtores da cana-de-açúcar, da zona da mata. A cisão era relativa à apropriação das terras públicas, ou das sesmarias não ocupadas, além da indefinição dos limites que não eram traçados fisicamente. Por outro lado, a classe dominante entrava em disputa também com a Igreja, pela exploração da servidão indígena (Lemenhe, 1991, p. 29).

Os aldeamentos indígenas localizaram-se no mesmo território de conflito, embora a maioria se deu em torno da vila de Fortaleza, sede do poder colonial. De acordo com Beozzo (1992, p.15) o descimento de grupos indígenas consistia em deslocá-los à força das cabeceiras para a desembocaduras dos rios, nos pontos de colonização litorânea, que no caso cearense significava sair das áreas de produção da pecuária para as de aparato administrativo e de controle militar.

Com a saída dos jesuítas, em meados do século XVIII, e o conseqüente acirramento das disputas entre proprietários pelo controle dessa força de trabalho já adaptada a muitos ofícios de interesse da vida urbana e familiar dos grandes potentados, esses aldeamentos vieram a ser transformados em vilas. Assim ocorreu tanto com aqueles periféricos a Fortaleza: Parangaba (1758), Messejana (1758), Caucaia (1759), Baturité (1763) ; bem como os localizados bem distantes da capital: no Cariri cearense, na antiga localidade de Miranda, atual município do Crato (1764), e na serra da Ibiapaba, no município de Viçosa do Ceará (1758), respectivamente ao sul e ao norte do Estado. As primeiras vilas haviam sido instaladas no litoral, com finalidade administrativa, que se tratavam de Aquiraz, incluindo o aldeamento de Pacajus (1699) e a de Fortaleza (1725), além daquelas criadas por razões econômicas, em vista da expansão pecuária e da carne salgada, quais sejam de Icó (1735) e Aracati (1747) (IPLANCE, 1998, p. 71-73).

Nesse contexto, muitos indígenas não se adaptaram ao trabalho dentro dos aldeamentos e missões, ou posteriormente a esse regime não se deixaram submeter pelos administradores ou fazendeiros, formando um grupo de trabalhadores excedentes, supostamente livres, pois não possuíam terra, nem se integraram a esta sociedade fundamentada no trabalho escravo, sem um mercado constituído para o qual pudesse vender sua força de trabalho, e assim permaneceram adjacentes e circulantes às fazendas e às vilas e aldeias.

O grupo era visto pela classe dominante e pelo Estado como uma corja de "desordeiros e bandidos", apesar da exploração do trabalho indígena, que segundo Beozzo (op.cit, p.22), além da agricultura faziam diversos ofícios "de carpinteiro, de ferreiro, de construtor de casa de pedra, enfim todos os serviços necessários ao mundo branco," sendo as mulheres responsáveis pela fiação e tecelagem de roupas e tecidos e pelas atividades domésticas. A fração dos trabalhadores subjugados e reduzidos à servidão não fora suficiente para dirimir da representação social o estereótipo de "vadios", "preguiçosos" e "vagabundos". Um imaginário social histórico, gerado pelo preconceito contra aqueles trabalhadores circulantes, que ainda hoje se encontra na forma de remanescentes de uma imagem negativa do trabalhador pertencente às famílias mais pobres.

Conforme Andrade (1989, p. 9), "tribos inteiras migraram para áreas mais distantes, menos acessíveis, para se livrarem da terrível dominação". No Ceará, aquelas que não tiveram o confronto direto ou que sobraram dele, se afastaram das áreas da pecuária, para o litoral e serras.

Ressalte-se ainda que aquele grupo de trabalhadores não era composto somente de índios, mas também de negros e mestiços (de negro com índio e branco), alguns homens livres outros escravos fugitivos, que se juntavam formando camadas populares como forma de resistência e luta à dominação colonial. O que veio acirrar o preconceito e a repressão social (Barbosa, 2000, p. 65).

Funes (2000, p.128-129) apontava resquícios de quilombos no Ceará, enquanto forma de resistência negra à escravidão, nos locais escolhidos para refúgio dos índios, alguns deles transformados em aldeias, e de forma mais isoladas nas periferias urbanas, notadamente em Fortaleza.

A criação de vilas com a finalidade de controle social viria atender as reivindicações das classes dominantes sobre esse suposto quadro de desordem, que seria relativo às relações de trabalho da época. Conforme Lemenhe (1991, p. 36), os pecuaristas serviam-se do poder local para encaminharem suas queixas à metrópole:

"As queixas dos administradores locais contra levas de homens "vadios", "facínoras", comuns em toda colônia [...] teriam assumido nas regiões da pecuária proporções maiores. Havia, apesar de muitos potentados necessitarem de homens para compor exércitos particulares e muitas terras potencialmente cultivável, pouca ou nenhuma sobra para aqueles qualificados de "vadios’: mestiços, índios aculturados; homens sem terra e sem trabalho. Nas queixas oficiais e particulares [...] subvertedores da ordem que, no caso, consistia nas agressões contra potentados e seus agregados [...] levas de desocupados que vagavam pelos sertões."

As vilas de controle social foram instituídas dentro da área da pecuária naqueles pontos históricos da resistência indígena, que se localizaram no rio Jaguaribe, desde suas cabeceiras, na localidade de São João do Príncipe, atual município de Tauá (1801), ao médio curso, em São Bernardo das Russas, com a toponímia final de Russas (1766). Localizados ao norte e ao centro do estado, respectivamente, outras vilas sediadas em Sobral (1772) e em Quixeramobim (1766) (IPLANCE, 1998: 71-73).

O negro, migrante de Pernambuco e da Bahia, introduzira-se na economia cearense como agregados na pecuária e tomando posse de terras públicas, na condição de pequenos produtores de subsistência, juntando-se a essa gleba de trabalhadores rurais livres na ordem escravocrata (Funes, 2000, p.104-195).

Na situação de escravo, a população negra foi inserida no Cariri, para uma pretensa exploração de mineração, evento fracassado pelo insucesso da prospeção, que resultou na alocação desse trabalho em atividades da agricultura da cana-de-açúcar e produção de mel e rapaduras, a princípio, para o consumo local e ainda hoje atende ao mercado regional. Outras localidades serranas (Ibiapaba, Meruoca e Baturité) também adquiriram escravos para atividades do café e da cana e seus subprodutos (Andrade, 1989, p.155-157).

Entretanto, no conjunto das áreas, os escravos negros não foram numericamente expressivos, sendo pouco numerosos nas atividades da cana-de-açúcar e de café e na agricultura algodoeira, apesar desta atividade haver se expandido por todo território cearense, mas por não se apresentar economicamente viável, face ao ciclo produtivo da planta e o longo período de mão-de-obra desocupada e diante do seu custo de manutenção. Assim, os poucos que existiam foram, gradativamente, reduzidos pela comercialização no mercado interno para os cafezais do sul do país, durante os períodos de secas (op. cit., p. 157-158)

Um outro lado da questão foi os altos preços dos escravos negros no mercado interno, referida por Riedel, (1988, p. 21), que discutiu também as dificuldades de policiamento e as incidências de rebeliões com possibilidades de fuga, que fizeram do escravo negro uma presença diminuta no território cearense. Esses preços tornavam-se altos no sertão cearense, conforme Irineu Pinheiro, citado por Andrade (ibdem, p. 157-158) devido às distâncias e às péssimas condições das estradas, que dificultavam a produção local se dirigir para o abastecimento do mercado interno. Existia, portanto, pouco capital disponível para ser aplicado em escravos.

Na pesquisa que Machado Neto (2000, p. 21 e 35) coordenou, sobre a reconstituição dos escravos no Brasil do período do cativeiro à liberdade, ratifica-se as conclusões anteriores, pois considerou que o aumento das fugas aliado à incapacidade policial de conter rebeliões levaram a um novo relacionamento entre senhores e escravos. Ressaltou também que o tráfico interprovincial tinha sido igualmente importante para adoção do trabalho livre no norte e nordeste do país, afinal o número de escravos já era diminuto, restando destas populações as mulheres, crianças e velhos, mão-de-obra ainda não aproveitada pelo capitalismo da época.

A estratégia de deslocamentos e de refúgio, adotada por escravos negros e indígenas que se direcionavam para áreas urbanas, fora reforçada pelo negro liberto, avolumando aquele grupo de população com dificuldades de inserção no mundo do trabalho, pelo que se apreende do estudo anteriormente citado de Machado Neto (op.cit., p.35), pois:

"Os escravos foram libertados- despedidos, expulsos, para uma vida de errância e sofrimento-sem alimento, tratamento e vestimentas. Foram forçados a dispersarem-se refugiavam-se na grande cidade, acrescentando a uma população marginal, que tinha toda dificuldade do mundo para arranjar trabalho."

A expansão de atividades e a dialética de fixação e mobilidade de trabalhadores rurais para essas localidades determinaram, até 1823, as dezoito células básicas dos atuais 184 municípios cearense, que incluíam além das quatro primeiras cidades (Aquiraz, Fortaleza, Aracati e Icó); as quatro originadas dos aldeamentos indígenas (Caucaia, Baturité, Crato, Viçosa do Ceará), sendo que Parangaba e Messejana, foram inseridas posteriormente ao território de Fortaleza; adicionadas às quatro que tiveram por início as vilas de controle social (Quixeramobim, Sobral, Russas e Tauá), sendo acrescidas, finalmente, dos seis municípios e sedes de: Granja (1776), Guaraciaba do Norte (1791), Jardim (1814), Lavras da Mangabeira (1816), Jucás e Itapipoca (1823) (IPLANCE, 1998, pág. 71-73).

Constatava-se, em 1804 que a população negra e parda de 47.033 pessoas residentes no Ceará concentravam-se 30 por ciento no Crato (antiga vila indígena); Sobral e Icó (centros de produção pecuária e algodoeira) detinham 15 por ciento e 11 por ciento, respectivamente; São João do Príncipe (antiga vila de controle social) possuía 11 por ciento desses pretos e pardos. Nove anos após, em 1813, continuavam as concentrações étnicas nos municípios de Crato e Jardim, que juntos correspondiam a 52 por ciento de um total de 59.371 negros e mulatos; seguidos de Fortaleza (13%) e Aquiraz (10%), condizendo com o depoimento de Funes a respeito da mobilidade espacial da população negra para Capital.
 

Lutas camponesas e mudanças nas relações de produção

As lutas camponesas no território cearense podem ser observadas desde os primeiros movimentos de resistência indígena e negra ao sistema de povoamento imposto, que não reconhecia alteridade nessas minorias. Elas nasceram com a expropriação da propriedade da terra indígena e evoluíram com as mudanças nas relações de produção no campo.

Formas de resistência diversas eram interpretadas pela classe dominante e poder local como desordem. Ao serem criadas as vilas de controle social obrigava-se àquela população circulante fixar-se nelas, sob a ameaça de vir a ser considerada como "salteadores e inimigos comuns", e como tal "punidos com severidade" (Lemenhe, 1991, p.36)

Andrade (1989, p. 9-10) cita alguns exemplos que revelam a reação dos fazendeiros às resistências ao regime colonizador, pois os indígenas, mesmo alterando seu modo de vida às condições vigentes, ainda assim, agiam fora da ordem mercantilista, sem respeito à propriedade privada, tais como:

"O avanço dos pecuaristas fizeram recuar os índios para as áreas montanhosas e os privaram dos terrenos de caça. Os indígenas [...] encontrando em suas terras bovinos e caprinos trazidos por fazendeiros, passaram a caçá-los como faziam a animais silvestres, provocando a reação dos fazendeiros, que os acusavam de roubar animais"

O confronto branco e índio, de mais de um século (1608 a 1720), no Ceará, de certa forma retardou a ocupação do espaço pela atividade pecuária, é o que se constata dos dados relativos às sesmarias apresentados por Pinheiro (2000, p. 31-33). Essas propriedades foram solicitadas principalmente pelo interesse da exploração pecuária, pois de 2.516 sesmarias concedidas entre 1679-1824, 86 por cento destinavam-se à esta atividade.

Chama-se atenção para esses dados, entretanto, o fato de que as sesmarias, no Ceará, passaram a ser procuradas muito tardiamente em relação às demais áreas nordestinas. Até 1710, somente 34 por cento das sesmarias haviam sido doadas, cujo impulso maior ocorreu entre 1710 e 1730, quando chegaram a 64 por cento delas, mas a concessão perdurou até 1824. Contudo, o agravante dessa distribuição seria o fato de que somente muito mais tarde tenham sido ocupadas. Desse modo, gerou alto absenteísmo (10,1% do total), concentrado no período inicial (até 1710), daí decorrendo: a prescrição (4,7% do total, sendo 75,4% até 1730); a incorporação (6,4% do total, até 1740 foram 62,7% das incorporações); a necessidade de confirmação de posse (3,8% do total, concentrando-se até 1750), ocupação seguida de legalização (4,3%, sendo 53,2% até 1760) e legalização pela compra (0,6%, dos quais 78,6% em 1770).

Ainda nessa distribuição, aparecem alguns indicativos da existência paralela ao regime das sesmarias, de um sistema de posse irregular, pois havia uma legalização posterior, sendo parte dela efetuada pela compra. Um outro fato sugestivo é o da confirmação de posse, que não aconteceria se o sistema de distribuição, posse e uso das sesmarias não fosse conturbado apenas pela demora, mas pela interferência de outras modalidades de posse.

Pode-se dizer que uma segunda negação da propriedade dos indígenas sobre o território brasileiro veio se dar com a instituição da Lei das Terras, em 1850. Essa forma jurídica declarava a necessidade de regulamentar as terras devolutas e as aquisições por compra, mas seu sentido oculto pode ter sido o de negar terras para os índios, além de regular os conflitos entre grandes proprietários, senhores de sesmarias ávidos em acrescentar mais terras à sua propriedade, e pequenos proprietários posseiros.

Pela análise de Dias (1997, p. 10) ao estudo de Ligia Silva apreende-se que a Lei de Terras beneficiava os grandes posseiros, pois argumentava que:

"[...] a longa duração do acesso mediante a posse, mesmo depois de promulgada a lei de Terras que formalmente obrigava a aquisição mediante a compra, deve-se principalmente aos interesses de um segmento da propriedade rural, que ela chama de fazendeiros-posseiros [...]."

Os posseiros também subvertiam a ordem, não apenas por se apropriarem e depois solicitarem a condição de acesso, que muitas vezes não era formalizada, mas porque concorriam com as sesmarias que eram privilégios coloniais e de herança jurídica, fazendo emergir relações agrárias baseadas no direito e na liberdade da propriedade (Dias 1997, p. 9-10).

Das análises de Alberto Passos Guimarães, citado por Dias (1997, p. 10), concluí-se que o sistema de posseiros fora tornando-se violento à medida em que a ocupação se completava, pois "[...] a princípio, as invasões limitavam-se às terras de ninguém nos intervalos entre as sesmarias, depois orientando-se para as sesmarias abandonadas ou não cultivadas [...]", ressaltando-se que com a Lei das Terras essas áreas seriam consideradas terras públicas, cuja posse e ocupação teve importante papel na organização territorial, em que pese a forma conflitiva em que se deu, pois "[...] o pequeno era sempre empurrado sertão adentro todas as vezes que suas terras eram cobiçadas pelos grandes e mais poderosos [...]".

O registro de diversas lutas por terras no Ceará é um desses indicativos da violência no regime de posses. A mais famosa disputa ocorreu entre as famílias Montes e Feitosas, no alto e baixo Jaguaribe, em torno de 1724, que reuniu um bom número de cangaceiros, grupo de agregados aos fazendeiros pecuaristas com expressivo contingente indígena de diversas tribos (Girão, 1966, p. 35).

Antes da primeira metade do século XVII, este potentado, além de outros estabelecidos à ribeira do Acaraú, nas proximidades do Icó, possuía 20 sesmarias, ou seja, era um latifundiário, pois a média de terras concedidas para cada sesmaria era de três léguas ou 10.800 hectares (Lemenhe, 1991, p. 25). Ainda assim, nova solicitação de sesmaria fora realizada por Lourenço A. Feitosa, em 1707, fazendo referências às terras devolutas, onde pedia mais três léguas quadrada de terra (Pinheiro, 2000, p. 24). Tais fatos vêm demonstrar que o sistema de sesmarias convivia com regime de posses ilegais, assim como atesta a ganância de grandes proprietários por terras, que sendo tamanha, justificava os meios para obtê-las.

Pode-se dizer que o cangaço e o banditismo no sertão teve origem nessa ambição de proprietários pecuaristas por mais terras e mais poder, e que veio contribuir para uma cultura de violência. No Ceará, uma luta que partindo do branco com indígenas, estendeu-se para os pequenos posseiros migrantes e tornou-se acirrada entre alguns dos senhores das sesmarias.

As análises sobre o cangaço encontram referências em vários autores da historiografia estadual, dentre eles cita-se Girão (1966, p. 36) o mais conhecido, que tece os seguintes comentários sobre o movimento:

"[...] designa a organização efetiva ou o estado permanente de homens em armas, de que se acercavam os sertanejos abastados [...] ante a ameaça de hordas selvagens que lhes dizimavam os rebanhos e em face de outros potentados que lhes contestavam a posse das sesmarias, muitas vezes de extrema litigiosa [...] um meio de defesa de grupos criminosos que fugiam à ação da justiça, ou a força terrorista dos chefes de facções políticas do interior, continuamente de sobreaviso no tocante às competições partidárias locais."

Nessa citação apreende-se ainda que o cangaço, no Estado, não foi um fenômeno de única característica, ele certamente evoluiu no tempo, pois a princípio era uma força usada em benefício dos potentados e posteriormente contra-força oriunda das classes oprimidas, mas em ambos os casos dizem respeito aos conflitos nas relações sociais e de poder estabelecidas nessa sociedade, tornando-se um marco na formação do território cearense.

Andrade (1989, p. 14), por exemplo, percebe no movimento dos cangaceiros e fanáticos uma vertente da luta camponesa por terra, nos seguintes termos:

"Cangaceiros e fanáticos, vítimas, ambos do poder econômico e político do latifúndio, foram eliminados [combatidos à morte pelos governos] em nome da lei e da ordem [...] como movimentos de reação contra uma estrutura fundiária que negava o acesso à posse da terra aos que nela trabalhavam, em benefícios dos que, tendo direito à terra, utilizavam-nas como mercadoria, como um bem negociável"

Na mesma obra do geógrafo (op. cit., p. 15-16), pode-se identificar a formação lenta do campesinato nos territórios sertanejos da pecuária e do algodão, envolvendo a questão dos posseiros e das relações de produção por parceria, principais vertentes de luta, conforme suas palavras:

"A formação do campesinato, [...] pelos grupos de pessoas pobres que se estabeleciam em terras não juridicamente apropriadas ou em terras apropriadas, mas com o consentimento do proprietário, para desenvolver culturas alimentícias para o [seu] próprio sustento, deu-se vagarosa e persistentemente desde o tempo da colonização [...]. O número deles seria engrossado com o crescimento populacional, aumentando a leva de expropriados formados por brancos pobres e por mestiços de brancos com indígenas e com negros [...]. Os expropriados constituíam uma população bastante numerosa, que vivia nas terras marginais dos engenhos e fazendas, cultivando produtos alimentares para o próprio sustento e pagando aos proprietários um foro em serviços ou mercadorias produzidas [...]."

Na seqüência de sua análise, Andrade (ibdem, p. 16) vai se referir à parcela dos ex-escravos negros, reforçando a pobreza no campo e ampliando a situação dos posseiros e moradores de engenhos e em fazendas de gado e algodão.

Percebe-se, também, que as parcerias, enquanto mudanças nas relações sociais de produção no campo, tiveram início nas áreas agrícolas da cana-de-açúcar e foram determinantes para a emancipação do escravo negro no Ceará (1884) antecipadamente à Lei Áurea (1888). Apesar de que essas mudanças diziam mais respeito à organização da produção consorciada do algodão com a pecuária e a agricultura de subsistência.

O sistema de parceria vinha permitir esta expansão agrícola, pois motivou o interesse das populações para o aumento da produtividade, face à perspectiva de uma economia monetária além da agricultura de subsistência. Mas, na continuidade do processo a parceria viria representar um novo tipo de sujeição difícil de rompimento, salvo nos momentos de crise tais como nos períodos de longas estiagens, provocados pelo fenômeno das secas.

Entre os dois momentos de maior prosperidade da produção algodoeira, o primeiro logo após a Revolução Industrial e o segundo durante a guerra de secessão nos Estados Unidos, ampliou-se o sistema de parcerias nas áreas rurais, sendo a princípio bem recebido pelas comunidades camponesas, embora revelando resultados mais promissores no urbano, dado que trouxe prosperidade, luxo e modernidade para as principais cidades, notadamente para a capital.

Na perspectiva dos donos da terra, a parceria também mostrava-se interessante, pois além de receberem renda por sua exploração, mantinha-se esquema de poder e controle sobre esses moradores, que se tornaram eleitores e clientela de sua dominação política, cujo retorno para o grupo dominante também se dava em termos de influência e prestígio. A referência novamente ao trabalho de Andrade (op. cit., p. 17-19) é alusiva a esta questão:

"O desenvolvimento dessas formas de relações de trabalho é facilmente compreensível em uma sociedade em que os proprietários de terra possuíam áreas superiores à capacidade de produção de seus engenhos e não dispunham de dinheiro em espécie para pagar salários [...]. O proprietário para garantir seu poder controlava os cargos públicos locais e mantinha estreitas relações com as autoridades a nível da província, posteriormente do estado [...] mantinham em suas terras um certo número de moradores que recebiam favores especiais e certos privilégios [...] [em troca de votos] como eleitores [...]. Dispunham assim de um sistema de poder que evitava, ou pelo menos atenuava os choques violentos entre as classes e consolidava a sua influência, riqueza e prestígio".

Com a expansão da agricultura de baixa tecnologia foram agregadas sempre novas parcelas de terra e de trabalhadores, tornando a relação de parceria insustentável, sobretudo nos períodos prolongados de seca, quando proprietários e meeiros, endividados e levados à falência, sobretudo neste último grupo, consumiam suas sementes e perdiam o sistema de sustentação paternalista, quebrado nessas ocasiões mais difíceis (Neves, 2000, p. 79-81).

A vulnerabilidade desse tipo de organização também se devia a sua vinculação e dependência à intermediação comercial e financeira do capital estrangeiro. A classe de comerciantes internacionais, associada aos comerciantes locais, subordinava grandes proprietários, que repassavam essa tutela para os pequenos produtores, parceiros da produção comercial. Ao disponibilizar capital para produção, a cadeia de intermediários também fornecia outros produtos essenciais às famílias campesinas, tais como sal e querosene, gerando submissão e dependência na aquisição de produtos e de implementos agrícolas, não disponibilizados no mercado interno, além do endividamento.

Os preços do algodão comercializado no exterior eram reajustados internamente acertando-se com antecedência o contrato dos latifundiários senhores da terra com os meeiros. As margens de lucro no mercado mundial eram extraídas ou subtraídas dos parceiros, cujas remunerações líquidas eram diminutas, pois dependiam dos proprietários de terras como fornecedores de outras mercadorias, vendidas a prazo e com preços exorbitantes. As culturas de subsistência, por sua vez, reforçavam a sujeição e a exploração, pois rebaixavam os preços da mão-de-obra agrícola e fabril.

Desse modo, a relação latifúndio-minifúndio era conflituosa. Apenas quando havia margens de excedentes na pecuária em binômio com o algodão é que eram também repassados para os pequenos produtores, cuja sobrevivência baseava-se no consórcio da produção principal (algodão-pecuária) com o milho e o feijão.

Em momentos de crise, as relações de parceria vão se combinar com o assalariamento e o arrendamento da terra, numa tentativa das famílias camponesas de suprirem suas necessidades de consumo de bens não produzidos no local. Conforme Andrade (1989, p. 159), "a família mantinha o roçado limpo e o chefe trabalhava assalariado."

O mercado de trabalho no campo dispunha de um exército de reserva amplo, composto de trabalhadores rurais e pequenos produtores sem terra. Os salários, em geral, baixos, além de possibilitar uma rápida acumulação capitalista, tinha por base a agricultura de subsistência, que garantia, (embora parcialmente), a reprodução do trabalhador. Introduz-se, dessa forma, a característica de mão-de-obra barata, que ainda hoje se destaca na realidade cearense.

Sem um sistema agrário favorável ao pequeno agricultor, o êxodo rural era crescente e para Fortaleza, embora parte dele se dirigisse para fora do estado. Portanto, acredita-se que a migração compreendida entre o final do século XIX e início do seguinte, tenha sido motivada pela falta de condições específicas para o desenvolvimento no campo: diante da precariedade das relações de produção e baixa capacidade de luta para romper com a rígida estrutura fundiária; e, naqueles momentos de crise, durante estiagem prolongada, a quebra da relação latifúndio-minifúndio desprotegeu essas populações campesinas que se viram forçadas a deslocarem-se; dentre outras razões para migrar estão as expectativas de mobilidade social e o desejo de viver no urbano, lugar atrativo e moderno.
 

Urbanização no Estado do Ceará e em Fortaleza

Se o êxodo rural é ocasionado pela total "impossibilidade de sobrevivência no campo" (CEM,1986, pág. 9), ele também se constitui na "única solução capaz de permitir a sobrevivência e a reprodução social de segmentos representativos das massas campesinas", embora esta condição não esteja em todas as cidades e metrópoles (Cavalcante, 1995, p. 115).

Vários pesquisadores ao estudarem a problemática da migração no Nordeste, objetivaram retirar o mito da seca como a grande causa do êxodo rural, recolocando-a em sua verdadeira dimensão, entretanto, o discurso e as práticas política e técnica reforçam esta concepção.

Aparecida Menezes e Alfredo Gonçalves, por exemplo, são pesquisadores do Centro de Estudos Migratórios, que ao negarem a questão da seca e enfatizarem a da terra, responsabilizam o Estado em sua atuação referente à seca:

"No Nordeste, tradicional área de expulsão, o que ocasiona o êxodo não é tanto a seca, mas sobretudo a cerca [grifos no original] [...] os projetos governamentais de combate a seca acabam desalojando número maior de famílias que as que conseguem se fixar na terra" (CEM, 1986, pág. 31)

Ainda conforme esses autores (op. cit., p. 47), se o êxodo é decorrente da expropriação dos pequenos produtores à terra, isto se deve ao "processo de transformação dos produtores diretos em trabalhadores livres, verificado no aumento dos trabalhadores assalariados".

A modernização do Brasil durante anos 50, do século XX, trouxe não só o desenvolvimento industrial, mas a urbanização das áreas litorâneas, cidades médias e sobretudo das capitais regionais e metrópoles nacionais, para onde se dirigiu o êxodo rural do período (Calmon, 1998, p. 8).

Entretanto, esse mesmo estudioso vai fazer referência ao Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado em 1963, supostamente para dirimir questões da distribuição da terra no campo, mas que, a exemplo da Lei da Terra, teve efeito contrário, aumentou o desemprego e reduziu a mão-de-obra ocupada no rural, ou seja aumentou a população volante e deu margem a novos fluxos migratórios para cidades (op. cit., p. 25).

No relatório sobre a situação do Nordeste brasileiro, ao final da década de 50, com propósito de planejar a ação do Estado via criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste- SUDENE, foi reconhecida a ineficiência das políticas públicas de combate às secas para a fixação da população no campo, pois teria beneficiado apenas os grandes proprietários. Contudo, nesse mesmo documento, recomendava-se a formação de empresas agrícolas modernas para superar os problemas de pobreza e de disparidade regional, sacrificando, portanto, e mais uma vez, os pequenos proprietários e os trabalhadores sem terra, cuja alternativa foi migrar. Antecipando-se ao fato da migração, também fazia parte do estudo a previsão de liberação de trabalhadores, bem como já havia uma orientação técnica para se adotar política migratória direcionada para fronteiras agrícolas do Maranhão e Goiás (Martins, 2001, p. 50).

De acordo com Francisco de Oliveira (1977, p. 29-30), o planejamento realizado pela SUDENE representava uma forma de intervenção do Estado não mediador de conflitos mas, capturado pelos capitalistas do sudeste, procurava intervir na região "sobre as contradições entre a reprodução do capital em escala nacional e regional", um contraditório cuja aparência era de desigualdades ou de conflitos interregionais (op. cit., p. 31-32).

A SUDENE, continuando na crítica de Oliveira (op. cit., p. 99), fora "um mecanismo de destruição acelerada da própria economia ‘regional’ nordestina, no contexto do movimento de integração nacional mais amplo". O sistema 34/18, de incentivos fiscais para o Nordeste, administrado pela SUDENE, além do incentivo ao investimento permitiu a manutenção e exploração da mão-de-obra barata do nordeste.

No movimento político de 1964, Oliveira vai explicitar como ação política das classes capitalistas nacional e internacional na estrutura do processo de concentração e centralização do capital, pois visava conter "o enorme salto qualitativo nas lutas de classe (op. cit., p.95-96)."

Fortaleza, como principal locus do capital privado e público, lugar preferido, no território estadual para destino das migrações rurais e posteriormente urbanas, abrindo uma lacuna imensa entre seu contingente populacional e o das demais cidades.

No contexto da migração interna ao país, os dados relativos a 1872/1970 mostram que Fortaleza é preterida pelos milhares de cearenses que saíram do estado. Do mesmo modo que as estatísticas referentes à dinâmica demográfica no período de 1950 a 1970 oferecem elementos para que se avalie a urbanização nesta cidade, relativamente a outros centros urbanos no estado.

Ao final do século XIX, entre 1872 e 1890, logo após uma das fases de expansão da economia algodoeira, emigraram do Ceará cerca de 136 mil pessoas, foi o maior contingente na migração interna no pais até 1950. Apenas Minas Gerais e posteriormente Bahia superaram, em outros anos, as perdas populacionais ocorridas no Ceará, nesse período.

No século XX, entre 1920 a 1940, o saldo migratório mostrou-se positivo, constituindo-se evento inédito para o Estado, tendo a imigração de retorno dos cearenses que foram para Amazônia como fato explicativo.

A população presente no estado evoluiu de 721.686 pessoas, em 1872, para 4.361.603 em 1970, isto significou um incremento relativo de 504 por cento, ou seja, seis vezes a população inicial.

Os dados de 1860 revelam o histórico do crescimento populacional em Fortaleza, incluindo os escravos, bem anterior ao processo de disparidade da Capital em relação aos demais municípios cearenses. Fortaleza contava com 35.373 habitantes totais, representando 7 por cento da população do estado. Na seqüência estavam Lavras da Mangabeira com 5,5 por cento; Aracati e Crato, respectivamente com 4 por cento; Sobral com 3,8 por cento e Icó com 2,7 por cento (Brasil;1997).

Acompanhando-se a população urbana municipal de 1950 a 1970, constata-se que a cada década Fortaleza apresentava um nível maior de urbanização e se distanciava das poucas cidades que poderiam passar por um processo semelhante. Em 1950, Fortaleza possuía uma população urbana em torno de 238 mil habitantes, superando Juazeiro do Norte em quase cinco vezes. Na década seguinte, a capital duplicou sua população urbana (515 mil habitantes), enquanto Juazeiro apenas aproximara-se de 10 por cento dos que moravam em Fortaleza. Em 1970, havia apenas quatro maiores cidades no Ceará, além de Fortaleza: Iguatu e Crato, entre 30 a 50 mil habitantes e Juazeiro do Norte e Sobral, na faixa de mais de 50 mil habitantes, todas incomparáveis a Fortaleza, que tinha uma população residente em áreas urbanas de 828 mil pessoas, quase a metade da população urbana do estado. De um lado, a realidade cearense era praticamente rural, pois sua taxa de urbanização atingira em 1970 cerca de 41por cento; do outro, Fortaleza completava 96 por cento de urbanização.
 

Êxodo rural na transição do rural para o urbano, segundo Lefebvre

A síntese mais geral que se apreende deste ensaio sobre o êxodo rural para as cidades à luz da teoria de Lefebvre é de que nesse período conviviam duas realidades superpostas: a urbana com a rural. Semelhante ao que o filósofo se referira em sua obra "De lo rural a lo urbano (1978)", onde argumentava a possibilidade de superposição dos períodos agrícola, industrial e urbano, face às relações de produção e de propriedade e ao caráter subordinado das partilhas do produto e da renda. Um conjunto de fenômenos relativos às necessidades, à demanda e ao imperativo social estava a serviço de uma estratégia de classe, que modificava as relações de produção sem transformá-las (op. cit., p.9-10).

O cotidiano urbano passa a se estabelecer pela pressão de relações sociais e imprime ordem ao campo, metamorfoseando-se com aparência de uma vida distinta. Entretanto, o mundo da mercadoria, com sua lógica e linguagem, se generaliza no cotidiano até o ponto em que cada coisa o veicula com suas significações e, através do tecido urbano, invade o campo, menos materialmente, mais ideologicamente, na linguagem, no pensamento e nos desejos. Por conseguinte, na realidade cearense, os trabalhadores rurais procuraram as cidades para complementar essa vida moderna, com seus signos de consumo. Conforme Lefebvre, o urbano é o primeiro abrigo do trabalhador separado dos meios de produção.

Embora ocorrendo transição rural-urbana, o filósofo lembra que existe uma descontinuidade relativa entre a predominância do campo e da produção agrícola com suas relações específicas de produção e seus problemas; o predomínio da empresa industrial e de sua racionalidade; e o predomínio do urbano e de sua problemática (op.cit., p.11).

Desse modo percebemos que, apesar do processo de urbanização ter se instalado no Ceará, ele vai se desenrolar diferenciado na metrópole de Fortaleza comparativamente às demais cidades interioranas de formação histórica e econômica tão remota quanto a Capital, confirmando uma tendência do que fora afirmado por Lefebvre sobre o fenômeno urbano, que se apresenta como realidade global (ou total) que põe em questão o conjunto da vida social teórica e praticamente. As aglomerações pequenas e médias dos grandes países industrializados, segundo o pesquisador, se encontram coagidas no tecido urbano que se prolifera, excluídas, ou como zonas estanques ou em processo de extinção (p. 277).

Assim, pode-se compreender que na realidade estadual do período analisado, as relações de parceria no campo podiam conviver com o assalariamento, assim como na cidade, havia enorme distanciamento da urbanização na metrópole, relativamente às pequenas e médias cidades. Explicitando as razões daqueles trabalhadores rurais que migraram para fora do estado, na procura de metrópoles nacionais, cujas transformações mais avançadas ofereciam melhores chances para o trabalhador desqualificado.

Na questão do regime de propriedade, desde a colônia, predominava o sentido do direito romano, da propriedade privada (individual), que negava os direitos da população nativa, mas não negava o do Estado, pois as sesmarias não ocupadas voltavam como terras devolutas, a serem públicas públicas e vendidas aos proprietários individuais. O sistema de sesmarias, no caso cearense, correspondia ao tipo de propriedade com partes desiguais, onde os grupos recebiam direitos desiguais, determinados mediante violência e com negação do indígena (ibdem, p. 28-29)

A formação de aldeamentos, vilas e cidades deu-se embrionariamente pela dialética de fixação-mobilidade da população nativa, posteriormente sofrendo transformações com a inclusão do negro na sociedade escravocrata e com sua libertação. Deste modo, reafirma-se aquela teoria de Lefebvre onde em qualquer realidade histórica, a comunidade campesina se desenvolveu, se reafirmou e se dissolveu, sob determinadas condições. Na experiência cearense, ela se deu a partir da economia mercantil e da ordem escravocrata, com muitas lutas pela expropriação da terra dos nativos, mas combinando o capital estrangeiro de acumulação mercantil e industrial, onde o Estado centralizado, combinando-se ao poder local na fase agrícola e ao nacional na fase industrial (ibdem, p. 35)

O movimento camponês precedeu, acompanhou e sustentou as reivindicações urbanas. Lefebvre previa: que no despertar do mundo moderno, haveria uma revolução camponesa, mesmo que fosse incompleta, esporádica, porém profunda, em termos econômicos, sociais, jurídicos e políticos, ao mesmo tempo violenta, profunda e lenta, elevando a emancipação parcial da classe camponesa e a posse parcial dos solos pelos camponeses. A realidade nordestina diferiu, neste aspecto, pois uma contra-revolução antecipou-se à revolução camponesa, que foi o golpe militar de 1964 (ibdem, p. 36)

Apreende-se das críticas de Francisco de Oliveira relativas à Revolução de 1964, no Brasil e ao planejamento regional de modernização implementado pela SUDENE, uma estratégia de sustar as lutas camponesas na região. Com destaque para migração, sendo que os valores rurais morais e políticos (estabilidade, obediência e resignação) foram ressaltados por teóricos, visando restaurar as comunidades tradicionais, mas que no fundo se constituía numa ideologia reacionária e ambígua, pois defendia para a burguesia, residente nas áreas urbanas uma vida moderna, rica e relativa ao mundo de mercadorias e recomendava para os campesinos formas de vida anteriores e exteriores à economia comercial e industrial, a migração para áreas de fronteira. Verifica-se nas intenções dessa proposta técnica, tal como o filósofo percebia razões políticas para esse aparente contraditório, oriundas de uma estratégia de classe, que buscava a reestruturação do capital nacional e internacional em sua fase ampliada (Lefebvre, 1978, p. 22).

Ao impor o domínio das classes hegemônicas nacionais atreladas às internacionais houve destruição da economia regional, a exemplo do que Lefebvre antecipava sobre o momento do progresso, que se cumpriria através da destruição de formas que tiveram seu momento de grandeza e de força. Os problemas de relações entre a comunidade camponesa e as formas superiores da economia (mercantil, industrial, capitalista) confundindo-se com sua relação com o estado. Desse modo, a vida campesina passou a carecer de autonomia, deixou de evoluir por leis próprias, relacionando-se de diversas maneiras com a economia geral, a vida nacional e urbana (p.36-38)

O fracasso do sistema de parceria no Ceará parece ter as mesmas razões apontadas por Lefebvre:

"[...] o camponês não chegava a ser livre, concessionário perpétuo e herdeiro da exploração. [...] Em certo sentido trouxe progresso, devido não à parceria, mas à riqueza das cidades e ao aumento das necessidades do mercado urbano. Entretanto, a detenção do desenvolvimento das cidades, pelos problemas no comércio mundial, levou consigo à cristalização da parceria. Em alguns casos, a falta de condições capitalistas (novos instrumentos, insumos para melhorar a terra, por exemplo), inviabilizavam o aumento da produtividade do trabalho ou do solo, ou simplesmente sua manutenção, que implicava na não continuidade da parceria. [...]O parceiro não pode esperar mais do que a manutenção de sua medíocre condição. [...] (ibdem, p. 40-41).

A parceria, no Ceará, apenas mudou não se transformou totalmente, devido aqueles momentos de crise, pela pressão dos problemas climáticos ou financeiros, mas também porque a comunidade rural se apresentava com um tipo de solidariedade orgânica, mas com vários elementos de uma solidariedade mecânica, dado o intercâmbio de mercadorias e de dinheiro, reunindo em determinados momentos tanto famílias, nas pequenas unidades de produção de subsistência, como indivíduos, na forma de trabalhadores assalariados (ibdem, p. 26-27).

O estudo de Lefebvre permite-nos um repensar da migração como fenômeno social, mas antes de tudo antropológico, pois também se trata de uma decisão de habitar. Para este pensador, a habitação, ou o fato de fixar-se ao solo ou de desprender-se dele, o fato de viver aqui ou acolá e por conseguinte o fato de partir, de ir a outra parte, estes fatos e conjuntos de fatos são inerentes ao ser humano (p.154). Alerta que, o habitar não pode ser considerado globalmente, mas há que considerá-lo um todo. Por exemplo, o habitar individual e familiar é a casa, que se insere e se articula em níveis mais amplos, embora por sua vez sejam parciais, abertos, nunca completos ou fechados (p. 159)

Os seres humanos querem no habitar espaço flexível, apropriavel tanto na escala da vida privada como na escala pública, da aglomeração e da paisagem. Semelhante apropriação forma parte do conceito de espaço social, do conceito de tempo social, onde as relações sociais de produção e de poder são determinantes da forma, função e conteúdo desses espaços (p. 171-172).

É ponto comum em toda a obra lefebvriana a questão da cotidianidade para expressar o espaço vivido, "locus de reprodução estratégica de relações sociais de dominação e exploração, não só dos meios de produção", e sim de tudo aquilo que por meio da troca virou mercadoria, que não se restringe aos produtos e a terra, nem ao dinheiro, ou ao trabalho. Mesmo questões de ordem interior ao homem, tais como os sentimentos, aparecem como mercadoria e reproduzem relações sociais com facetas de exploração e dominação semelhante a qualquer mercadoria tangível.

A partir dessas reinterpretações pode-se considerar a migração como fenômeno sócioterritorial determinado por relações sociais e de poder na sociedade, sendo que alguns grupos populacionais apresentam uma maior propensão a migrar que outros. Neste ensaio observamos que os mais vulneráveis às crises e às mudanças ou catástrofes sociais, políticas e climáticas, seriam os trabalhadores rurais: que compondo um grupo de sobrantes, passaram à relação de parceria ou às vezes como assalariados. Isto porque pertenceram a classes sociais de trabalhadores historicamente subjugados, e vítima da exploração capitalista nas suas mais diferentes formas.
 

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Ficha bibliográfica

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