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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (135), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

FALANDO AOS TRABALHADORES RURAIS SOBRE ALIMENTOS,
CONSUMO CRÍTICO E SOLIDARIEDADE

Eduardo Guagliardi
Jane Broch
Alimente – Laboratório de Idéias e ações pelo alimento solidário


Falando aos trabalhadores rurais sobre alimentos, consumo crítico e solidariedade (resumo)

Relata-se uma experiência de projeto de Educação Alimentar desenvolvido por profissionais voluntários da área de saúde, em pequenos municípios do Planalto Médio Gaúcho (Rio Grande do Sul, Brasil), junto à grupos organizados de trabalhadores rurais.
Considerando que o trabalhador rural também é um consumidor, destaca-se a importância de se levar a esta parcela da população reflexões sobre o "Consumo Crítico" de alimentos como novo instrumento de organização e solidariedade entre as pessoas.

Palavras-chave: alimentação, solidariedade, consumo crítico, trabalhador rural.


Talking to rural workers about food, critical comsumption and solidarity (abstract)

Description of an experiment of a project of nourishment education, developed by professional volunteers from health field, in small villages of the Planalto Médio Gaúcho (in Rio Grande do Sul, Brazil), together with groups of rural workers.
Considering the rural worker as a consumer as well, it becomes important to bring them to reflect about a critical consumption of food as new instrument of organization and solidarity between people.

Key- words: alimentation/nourishment, solidarity, critical consumption, rural worker.


O tema do consumo de alimentos é o ponto de partida deste artigo. Através de trabalho voluntário junto à pequenos agricultores (e suas famílias), em cidades de pequeno e médio porte do Estado do Rio Grande do Sul (Brasil), temos destacado a necessidade de que estes trabalhadores do campo, ao consumirem alimentos, optem por aqueles que favoreçam, por diferentes aspectos, a solidariedade, entendida aqui num sentido amplo. Palestras e cursos breves estimulam a reflexão e a ação em torno do que estamos chamando "alimento solidário" – um conjunto de características que fazem do alimento algo saudável não só para o organismo das pessoas mas igualmente para o desenvolvimento econômico local, para o meio-ambiente e a cultura.

No Brasil, ainda são raras as experiências e iniciativas de consumo crítico, propriamente dito, a partir de grupos organizados, localizando-se geralmente em grandes cidades e formadas por cidadãos da classe média. Nos últimos anos, com o trabalho de alguns grupos de trabalhadores rurais em assentamentos de Reforma Agrária, ampliou-se a discussão em torno da produção de alimentos saudáveis, ecológicos e comercializados de maneira justa. Percebe-se, porém, entre trabalhadores do campo ou da cidade, que a dimensão do consumo crítico de alimentos ainda não foi incorporada no seu dia-a-dia. No meio rural, tanto quanto nas cidades, valores e conceitos propagados pela mídia determinam, basicamente, um padrão de consumo de alimentos totalmente desfavorável à saúde, à economia e à cultura popular. É no campo, talvez, que os trabalhadores estejam hoje, paradoxalmente, mais expostos à inculcação de um modelo que lhes é estranho (e dominador) e onde, portanto, ações que estimulam a reflexão e a ação, tendo por base o consumo de alimentos, podem estar sendo necessárias, como veículo de libertação.

Uma crescente interdependência entre o que é fabricado, o que é comercializado e o que é consumido, caracteriza o atual sistema de alimentos em todo o mundo. Mais do que isso, observa-se um mesmo padrão, uma tentativa de homogeinizar formas de produção, comercialização e consumo, fazendo com que as conseqüências da implantação e manutenção deste modelo único, em países tão diferentes entre si, acabem tendo aspectos em comum. Os custos sociais, ambientais, econômicos e culturais deste modelo agro-alimentar têm sido acompanhados por diversos pesquisadores, sobretudo nos EUA e Europa. Particularmente com relação ao consumo de alimentos, é importante salientar que os estudos médicos existentes concentram-se nos EUA – face à americanização dos hábitos alimentares no Brasil, justificam-se as referencias que faremos, neste artigo, à dados norte-americanos. Enfatizando, portanto, que o atual modelo de produção, comercialização e consumo de alimentos tem, por toda parte, dominado modelos locais e tradicionais (impondo um estilo próprio aos EUA), acreditamos que os dados apresentados sobre as realidades européia e norte-americanas ilustram, de certo modo, o que poderá ser observado, mais adiante, em países como o Brasil. Neste artigo, a apresentação de alguns dados nacionais já revela justamente esta tendência citada de nos tornarmos todos iguais.

Um resultado possivelmente não esperado desta interdependência do setor agro-alimentar é que a alteração em apenas um dos fatores – por exemplo, no padrão de consumo – pode, por sua vez, permitir a emergência de outras e novas formas de produção e de comercialização. A parcela de contribuição que cada grupo social ou indivíduo isolado tem, neste processo, é freqüentemente subestimada. Concretamente, a partir de nossas opções diárias de consumo, podemos estar contribuindo, entre outras coisas, para o desenvolvimento de laços de solidariedade na comunidade em que vivemos e mesmo entre regiões ou países distantes. A reflexão sobre o consumo, em particular sobre o consumo de alimentos, parece ser uma das formas mais diretas para o entendimento do lugar em que vivemos e de nós mesmos, além de abrir caminho para ações de transformação pessoal e coletiva, baseadas entre outras coisas na justiça, na paz, na auto-sustentabilidade e na solidariedade.

Este artigo expõe um panorama atual de algumas implicações de um modelo mundializado de produção, comercialização e consumo de alimentos, propondo em seguida uma forma de se estimular a reflexão e a ação entre trabalhadores por um outro tipo de alimento, o "alimento solidário", baseado justamente noutras formas de produção, comercialização e consumo.
 

Produção

A escala industrial em que os alimentos são produzidos no campo e na cidade apresenta diversos aspectos de desequilíbrio que geram, conseqüentemente, desequilíbrios os mais variados em outras áreas relacionadas.
No campo, a produção de alimentos tal como vem ocorrendo há décadas, tem representado, paradoxalmente, uma ameaça de extinção dos próprios agricultores, até então os únicos especialistas em manejo de solo, sementes, etc. Levantamentos estatísticos apontam que, por exemplo, no Japão, mais da metade dos agricultores tem mais de 65 anos; na Polônia, cerca de 90 por cento das fazendas podem desaparecer enquanto que na Suécia a cifra atinge 50 por cento nesta década; nos EUA, existem mais presidiários de tempo integral atualmente do que pessoas se dedicando à agricultura (apenas 1% da população!). Estes e outros dados, dando conta das insuportáveis pressões econômicas e redução de autonomia que agricultores, em todo o mundo, vêm sofrendo há décadas, levou Brian Halweil (consultor da ONG World Watch Institute, WWI) lançar uma instigante pergunta: "Se é que teremos um mundo onde a terra não é mais manejada por estes profissionais e sim gerida por burocracias corporativas distantes, interessadas em extrair o máximo de produção a um mínimo de custo, que tipo de alimentos teremos, e a que preço?".

Um modelo de produção que, anos atrás, introduziu maciçamente a utilização de agrotóxicos e adubos químicos com suas indiscutíveis e já conhecidas repercussões ambientais, hoje trabalha pela aceitação por parte de produtores como de consumidores, de sementes e alimentos modificados geneticamente. Sementes que estarão padronizando e homogeinizando tudo que se produza, que serão a outra face de uma outra já anunciada padronização de espécies animais, introduzindo no campo o fim de todas as diversidades.

Desautorizados em seu saber, diante de dívidas e outros aprisionamentos econômicos, os agricultores perdem, além da autonomia, a saúde mental. Nos EUA, estão cinco vezes mais propensos a cometerem suicídio do que morrerem por acidentes na fazenda; e na Grã-Bretanha, suicidam-se duas vezes e meia mais do que o resto da população. Abandono do campo, êxodo para as cidades, perda de laços comunitários e familiares são algumas das conseqüências comumente observadas.

Cenário não muito diferente nas cidades, em termos de produção de alimentos. Grandes indústrias, cada vez mais concentradas, deslocam ou aniquilam antigas produções locais, mais simples ou ligadas à produtos e à hábitos da região. Padronizam-se as formas de produção, de embalagem e de utilização de matérias-primas. A indústria de alimentos moderna não existiria se não fossem determinados ingredientes que lhe dão condições para uma produção de baixo-custo aparente – porém de elevados custos ambientais, sociais etc – e que lhe determinam, por outro lado, suas características mais desagregadoras em termos de saúde. Açúcar branco, farinhas processadas, corantes e conservantes artificiais de todo tipo, realçadores de sabor e gorduras hidrogenadas constituem sua base. Para cada um destes ingredientes, centenas de estudos científicos provando repercussões diretas ou indiretas, sobre a saúde física e mental das pessoas. Alimentos que pouco a pouco, na melhor das hipóteses, deixam a todos obesos mas que têm representado muito mais do que isto, ao comprometerem vontades, clarezas mentais, memórias e poderes de decisão, favorecendo depressões, fobias, medos ou dificuldades de convívio social, agressividade, violência e dependência de drogas, entre outros efeitos. Efeitos bioquímicos com repercussões sociais, algo além da simples epidemia de obesidade que se propaga pelos países avançados.

Um modelo de produção que reserva apenas uma condição, tanto à produtores como à consumidores: a de passividade, meros espectadores de um espetáculo midiático que lhes apresenta, a cada momento, a última palavra científica em matéria de sementes, técnicas e produtos. Convencendo a um e a outro pela redução de custos, pela praticidade ou comodidade (apelos mais freqüentes), tanto a indústria agro-química como a de alimentos, contribuem para um acelerado processo de erosão ética da sociedade, estimulando o abandono de valores humanos tradicionais baseados, por exemplo, na confiança, auxílio mútuo, paciência, trabalho etc. A produção de alimentos, urbana ou rural, é portanto também, e principalmente, a produção de uma determinada idéia de alimento, onde não cabem mais as concepções e formas tradicionais, locais, populares ou simples de plantar, colher, preparar, vender, consumir etc
 

Distribuição/Comercialização

Os processos ligados à comercialização de alimentos (processamento, embarque, corretagem, publicidade e varejo) cada vez ocupam lugar mais destacado na cadeia alimentícia global. Empresas especializadas ampliam seus poderes e passam a arrecadar, com tais atividades, valores várias vezes superiores aos arrecadados pelos próprios produtores rurais. Um controle que vai do gene à prateleira do supermercado através de conglomerados alimentícios verticais – no Canadá, apenas três empresas controlam mais de 70 por cento das vendas de fertilizantes, cinco bancos oferecem a grande maioria do crédito agrícola, duas empresas controlam mais de 70 por cento dos frigoríficos de carne e cinco empresas dominam o varejo de produtos alimentícios. Parcerias entre empresas asseguram controle de sementes, fertilizantes, pesticidas, crédito agrícola, colheita e processamento de grãos, processamento de ração animal, pecuária e abate, como também algumas marcas famosas de alimentos processados. Apenas três conglomerados dominam praticamente cada elo da cadeia alimentícia norte-americana (e cada vez mais a global).

Impactos econômicos ou ambientais deste modelo não são o único problema. A própria maneira como se comercializa, cada vez mais, está associada à padrões pouco éticos de conduta. Para que um determinado produto possa ser comercializado à preço competitivo, muitas vezes trabalhadores são explorados em condições de trabalho sub-humanas em países do Terceiro Mundo.

A primazia do consumo sobre a produção tem sido apontada como uma das características dos tempos atuais. A manipulação do consumidor, via publicidade, não encontra limites, atingindo as mais afastadas regiões e até mesmo o público infantil, saudado como o mais novo consumidor no mercado, liberado por fim dos cuidados de pais e mães zelosas que lhes impediam o exercício do sagrado direito de consumir. No Brasil, 63 por cento das crianças decidem seus padrões alimentares, atualmente, contra 24,6 por cento em 1960 (1).

O mercado experimenta periodicamente uma enxurrada de produtos alimentícios voltados a este segmento, caracterizados pelo uso indiscriminado de corantes artificiais e excesso de açúcar, entre outros aditivos, supermercados reservam seções especiais para este público e a televisão recheia sua programação infantil com patrocinadores de alimentos e bebidas industrializadas e artificiais – nos EUA, estima-se que em quatro horas de programação, sejam exibidos cerca de duzentos anúncios de "junk food" . Um conhecido fabricante, nos EUA, visando atingir um segmento do mercado ainda não explorado, associou-se ao maior fabricante de mamadeiras do país para lançar uma linha especial com o logotipo de seu refrigerante estampado – fato que evidencia, por si só, a sede de lucro que move estas indústrias.

A própria ampliação de pontos de venda para determinados produtos obedece preceitos unicamente mercadológicos, indiferente às conseqüências sobre a economia e a cultura local, bem como a saúde pública. Exemplo característico desta política agressiva de vendas são os refrigerantes que, no Brasil, por exemplo, passaram nos últimos anos a serem vendidos em locais não habituais, como postos de gasolina, plataformas de trens, saguãos de repartições públicas etc, favorecendo um consumo excessivo que já nos coloca como terceiro mercado consumidor mundial (um consumo per capita em torno de 60 litros/ano). Mais disponíveis e em tamanhos cada vez mais gigantes, estão hoje associados à qualquer evento social, desde o mais formal ao mais familiar.

Outro expediente utilizado pela grande indústria de alimentos diz respeito ao tamanho das embalagens. Recente estudo aponta, nos EUA, um aumento gradativo no tamanho de quase todas as embalagens de produtos alimentícios. Esta tendência de aumento teve início nos anos setenta e vem se mantendo na atualidade, contribuindo fortemente para o incremento da ingesta calórica e, conseqüentemente, para a obesidade, conforme observa o estudo. A mesma relação tamanho das embalagens-aumento da ingesta calórica-obesidade já se observa no Brasil, acompanhando tendência mundial.

A competição das indústrias de alimentos pelos dólares dos consumidores significa, nos EUA, um gasto anual de 30 bilhões de dólares, em propagandas que tentam convencer as pessoas a comerem mais de seus produtos e a comerem seus produtos ao invés de outros – "Eles querem que as pessoas comam quando elas não têm fome e que continuem comendo quando já estão cheias", observa a Prof. M. Nestlé, do Departamento de Nutrição e Estudos de Alimentos da Universidade de Nova York (2).

A produção maciça de alimentos industrializados não-saudáveis bem como as técnicas de marketing claramente agressivas têm levado vários pesquisadores e organizações, sobretudo nos EUA, a proporem políticas de interesse público. Uma destas propostas envolve a taxação – adotada atualmente em 19 estados e cidades norte-americanas além de sete províncias do Canadá – sobre refrigerantes e outros produtos como balas e petiscos ("snack foods"), revertendo-se a arrecadação em subsídios para alimentos saudáveis ou campanhas de educação alimentar.

O trato público com a questão dos alimentos não-saudáveis pode estar começando a mudar. Uma notícia recente nos informa que escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro (Brasil) estão proibidas de venderem balas e doces em suas cantinas e lanchonetes, e várias pequenas cidades do país já adotaram programas de merenda escolar inteiramente baseados em produtos frescos, naturais e locais.
 

Consumo

A máquina de gerar consumo que se transformou a publicidade, nas últimas décadas, assegura que, no campo como na cidade, o consumo de alimentos seja coerente com o modelo de produção e comercialização adotado pelas grandes corporações. A penetrabilidade da mídia, especialmente da televisão, transforma a todos, sejam agricultores do interior ou estudantes da cidade, em apenas uma coisa: consumidores.

Alimentos e bebidas, em particular, por serem itens de consumo diário indispensáveis, constituem poderoso veículo transmissor de valores de vida. A mudança nos hábitos alimentares, verificada nas últimas décadas na maioria dos países, constitui exemplo de como padrões de consumo ditados pelo mercado podem ser rapidamente difundidos e incorporados, gerando repercussões em várias áreas. Embora o que se consome hoje pode não ser totalmente diferente do que se consumia há trinta ou quarenta anos atrás, a forma como tais alimentos ou bebidas são hoje produzidos e comercializados já apresenta profundas mudanças – o vertiginoso aumento de poder das grandes corporações na cadeia de alimentos trouxe, por exemplo, o desaparecimento de pequenos e médios mercados locais, assim como de pequenas fábricas, entre outras conseqüências. Do mesmo modo, qualquer produto industrializado hoje está várias vezes tornado mais acessível, pela multiplicação dos pontos de venda, do que anos atrás, levando a um maior consumo por parte da população. Lugares como escolas, plataformas de estações ferroviárias, repartições públicas e postos de gasolina – que, nos últimos anos passaram a vender refrigerantes e outros produtos industrializados, competem de maneira desigual com feiras de pequenos produtores ou vendedores ambulantes. Formas diretas e tradicionais de comercialização estão em processo de extinção, levando consigo produtos alimentícios regionais e igualmente tradicionais.

Talvez nenhuma outra esfera tenha sido tão atingida com as mudanças dos hábitos de consumo quanto a da saúde das pessoas. Alimentos e bebidas produzidos em larga escala pela grande indústria, em sua maioria, apresentam ingredientes indiscutivelmente nocivos à saúde. Dezenas de aditivos químicos só passaram a ser ingeridos a partir das modificações introduzidas por estas indústrias na forma de elaborar e conservar alimentos. Sob a expressão "exigências de mercado" um número infinito de procedimentos são adotados, unicamente para garantir o suprimento de alguma coisa, em alguma região, por determinado período – frutas, por exemplo, recebem cargas extras de conservantes e são refrigeradas para que possam ser compradas o ano inteiro. Neste ponto, uma relação de interdependência parece se dar, com consumidores demandando determinado produto e a indústria o fornecendo, ambos alheios aos custos ambientais, por exemplo, de tal atitude.

A obesidade é exemplo de um problema de saúde que tem assumido dimensões epidêmicas em alguns países – atualmente, nos EUA, 61por cento das pessoas encontram-se acima de seu peso e 26 por cento são obesas, contra 15 por cento nos anos 70. No Brasil, segundo dados da Sociedade Brasileira de Pediatria, entre crianças menores de dez anos, os índices alcançam os 15 por cento, contra apenas 3 por cento nos anos 80 (3). Ao mesmo tempo, outros dados revelam que a indústria de alimentos nos EUA atualmente produz, per capita, muito mais calorias do que o necessário (cerca de 2.680) e não dá mostras de que esteja interessada em rever seus rumos. No Brasil, em apenas dois anos (1997-99), o consumo doméstico de alimentos enlatados subiu 15 por cento, o de hambúrgueres e pratos prontos, 18 por cento e o de salgadinhos e biscoitos, mais de 25 por cento. O cruzamento de tais dados revela a raiz do problema: o consumo acrítico e excessivo de alimentos produzidos por uma indústria não comprometida com o bem-estar das pessoas.

Repercussões na saúde mental, embora não sejam tão ponderáveis como as relacionadas à saúde física, também estão ligadas aos alimentos modernos. Novamente as crianças podem estar sendo um dos grupos mais prejudicados, levando-se em consideração o expressivo consumo do que há de pior em matéria de aditivos, corantes e açúcar, presentes nos alimentos e bebidas voltadas à este público. Particularmente os corantes artificiais, largamente utilizados pela indústria de alimentos, relacionam-se direta ou indiretamente à quadros de hiperatividade, irritabilidade, alergias (com repercussões emocionais) e até dificuldades de aprendizagem. Metais pesados, como o chumbo, igualmente observáveis em corantes e outros ingredientes de alimentos industrializados, podem estar implicados em diversos quadros psiquiátricos entre crianças e adolescentes. Um aditivo utilizado pela indústria apenas para realce de sabor e que não aporta valor nutricional algum – o glutamato monossódico – possui uma lista de dezenas de efeitos físicos e, dado seu poder excitatório cerebral, pode gerar reações de irritabilidade e depressão. A despeito de estudos científicos, opiniões de especialistas e pressão organizada de consumidores, o glutamato monossódico é hoje amplamente utilizado nos alimentos modernos, inclusive infantis.

Mesmo a gordura, tida como ingrediente não-saudável das dietas tradicionais de muitos povos, já não é mais a mesma. A única gordura que, por razões técnicas, pode ser utilizada na fabricação industrial de alimentos foi criada em laboratório – gordura vegetal hidrogenada. Esta é a gordura presente em todos os produtos da indústria de alimentos, largamente disseminada e amplamente consumida por todos. Gordura artificial que deslocou todas as outras fontes naturais e tradicionais de óleos e gorduras da nossa alimentação, acarretando com isso uma deficiência severa em determinados ácidos graxos essenciais, fundamentais para várias funções do organismo, inclusive cerebrais.
 

O alimento solidário

O panorama apresentado sobre a produção, comercialização e consumo de alimentos revela-nos, a despeito de uma aparente complexidade, aspectos que podem ser agrupados com a finalidade de gerar uma reflexão e um desdobramento prático. Observa-se que um determinado grupo de alimentos – aqueles produzidos pela grande indústria – está intimamente relacionado ao modelo aqui apresentado criticamente. No entanto, como expressão de outras formas de produção, comercialização e consumo, existem outros alimentos que, como já ressaltado neste artigo, não estão associados ao poder das grandes corporações e que são produzidos de forma tradicional, simples, ecológica, local etc. Neste sentido, podemos falar de alimentos que colaboram, ou seja, que trabalham junto, com aspectos como a cultura, a economia, a saúde e o meio-ambiente de um povo. Do mesmo modo, o conceito de solidariedade também se aplica aos alimentos, ainda que de uma maneira indireta. O termo "solidariedade", na língua portuguesa, abriga interessantes sentidos. Um primeiro, laço ou vínculo recíproco de pessoas ou coisas independentes. Ora, todos nós sabemos como os alimentos funcionam como elemento de agregação entre as pessoas, inseparáveis da própria construção e manutenção de uma cultura. Uma segunda definição nos fala de um sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades de um grupo social, de uma nação, ou da própria humanidade. A função significadora do alimento, como nos define Luis da Câmara Cascudo, fica aqui evidentemente enlaçada à solidariedade:

"De todos os atos naturais o alimentar-se foi o único que o homem cercou de cerimonial e transformou lentamente em expressão de sociabilidade, ritual político, aparato de alta etiqueta. Compreendeu-lhe a significação vitalizadora e fê-la uma função simbólica de fraternidade, um rito de iniciação para a convivência, para a confiança na continuidade dos contatos".

Uma vez que solidário pode ser definido como "que tem responsabilidade ou interesse recíproco", cabe-nos perguntar: Que responsabilidade o atual modelo de produção, comercialização e consumo de alimentos, ditado pelas grandes corporações, tem para com as pessoas, sua cultura, sua economia, seu ambiente?

A fim de que possamos estabelecer uma distinção clara entre os dois grupos de alimentos – solidários e não solidários – é preciso que tenhamos em mente o que, basicamente, os coloca em campos opostos. Vale dizer, é preciso que analisemos os efeitos de tais alimentos sobre, pelo menos, quatro eixos: a saúde física e mental, a economia social (ou popular e solidária), o meio-ambiente e a cultura. A partir de perguntas-chave, podemos estabelecer esta distinção, com a finalidade de gerarmos reflexão e dados para ações concretas, tendo o alimento como centro. As perguntas de cada eixo, a título de exemplo, seriam as seguintes:

a-Saúde física e mental – "Este alimento colabora com minha saúde?", "Estou ingerindo algo natural ou artificial?", "Preciso disto para me alimentar e me nutrir?"

b-Economia Social–"Este alimento colabora com a economia local?", "Sua comercialização reverte efetivamente para os trabalhadores?", "Foi produzido sem exploração de trabalhadores e está sendo comercializado de maneira justa?"

c-Meio-ambiente – "Este alimento colabora com a preservação do meio-ambiente?", "Foi produzido com poluição intensiva, desmatamentos e outras degradações ambientais?", "Sua embalagem é reciclável ou excessiva?"

d-Cultura – "Este alimento colabora com a cultura de minha região?", "Até que ponto seu consumo não contribui para o desaparecimento de formas de cultivo, fabricação, preparo e comercialização tradicionais, típicas da minha região?"

As respostas à estas e outras questões similares, permitem-nos agrupar os alimentos em listas distintas que passam a funcionar como fichas de identificação dos mesmos, no que diz respeito às ações sobre os quatro eixos citados. Como os exemplos abaixo deixarão evidente, cada alimento nocivo à saúde, por exemplo, também o é com relação à economia, meio-ambiente e cultura, dadas as relações de interdependência já analisadas neste artigo. É desta maneira que reflexões e ações derivadas de abordagens junto aos trabalhadores como a que descrevemos aqui, apresentarão algo mais do que uma simples visão maniqueísta acerca de um dos eixos, para apresentarem um entendimento claro, orgânico e completo sobre o que distingue os alimentos, hoje no mundo. Face à infinita variedade de produtos alimentícios lançados no mercado e permanentemente propagandeados, acreditamos que somente através de abordagens como esta é que os trabalhadores poderão reverter as atuais tendências de dominação e destruição de sua saúde, economia, meio-ambiente e cultura, conseguindo discernir entre o que deve e o que não deve ser consumido. Mais do que isto, reunirão condições para ações concretas na sociedade, tendo como ponto de partida o alimento - pressionando, por exemplo, por políticas públicas que favoreçam a produção, comercialização e consumo de alimentos saudáveis, tradicionais, regionais etc. O consumo coerente de alimentos que colaboram com os trabalhadores, podemos assim dizer, pode significar, para estas mesmas pessoas, uma contribuição à reconstrução de suas identidades e força política, valendo-lhes como ferramenta de emancipação.

Nos exemplos abaixo (quadros 1 à 3), escolhemos alguns produtos de uso comum, como representativos de grandes grupos de alimentos e lhes associamos algumas características. Cada tipo de produto possui uma versão solidária e outra não solidária. Esta listagem pode ser ampliada de modo a incluir outros produtos (assim como outras características), desde que seja possível contrapor dois grupos distintos de ações sobre os eixos de saúde, economia, meio-ambiente e cultura.

Os trabalhos junto à grupos organizados de trabalhadores rurais, com esta metodologia, têm se revelado extremamente acessíveis, diretos, esclarecedores e mobilizadores.
 
 

Quadro 1
Açúcar
Não solidário
Solidário
Açúcar branco Açúcar mascavo, rapadura e melado
Perdas no refino superiores à 80% para vários minerais Nutrientes preservados (vitaminas e minerais)
Quem ganha: grandes produtores e refinarias, indústria do adoecimento (hospitais e medicamentos) Quem ganha: pequeno produtor, economia local, meio-ambiente, saúde
Quem perde: meio-ambiente, trabalhador rural (condições de trabalho), saúde Quem perde: só a grande indústria
Produto não tradicional (introdução recente) Produto tradicional

 
Quadro 2
Farinhas
Não solidário
Solidário
Farinhas refinadas Farinhas integrais
Perdas no refino superiores à 70% para vários minerais (Mg, Cr, Mn etc) Nutrientes preservados (vitaminas e minerais)
Quem ganha: grandes moinhos, distribuidores, agricultura moderna (monocultura), indústrias de alimentos Quem ganha: pequeno produtor, meio-ambiente, economia local e solidária, diversificação de culturas (agricultura), saúde
Produto não tradicional (introdução recente) Produto tradicional

 
Quadro 3
Gordura e manteiga
Não solidário
Solidário
Gordura vegetal hidrogenada Manteiga, gordura de porco
Artificial, produzida pela indústria Natural, produzida pelo pequeno produtor
Velha, estocada e exógena Fresca e local
Não resiste às altas temperaturas (alteração química) Estáveis em altas temperaturas
Produto não tradicional (introdução recente) Produto tradicional

 

Conclusão

Por seu natural papel aglutinador, o alimento representa hoje um tema de grande importância, sendo capaz de reunir diferentes questões relacionadas à saúde pública, à sustentabilidade (biodiversidade), à diversidade cultural e à própria manutenção ou não de um modelo econômico.

A inclusão deste tema, de uma forma ampla e profunda, na pauta de discussões de grupos organizados de trabalhadores e consumidores, pode contribuir para que estes mesmos grupos formulem propostas e desenvolvam ações centradas no alimento, com objetivo de recolocar-lo como veículo de comunhão, entendimento, convivência e solidariedade entre as pessoas. Do mesmo modo, é preciso que tais grupos avancem no entendimento das questões de saúde, econômicas, culturais e ambientais, articulando-as com as questões relativas ao alimento.

Quanto ao consumo de alimentos, vale lembrar que as decisões sobre o que consumir, ainda que no âmbito meramente pessoal, são tão importantes quanto políticas públicas para o setor. O impacto de pequenas ações locais pode ser desconcertante para sistemas complexos como o atual modelo agro-alimentar. A experiência de grupos de consumidores e outros coletivos, tanto nos EUA como na Europa, comprova esta afirmação – são inúmeros os exemplos de ações concretas e diretas que acabam por minar as bases de um sistema tão amplo e disseminado. O que estas experiências levantam, assim como este trabalho, é a necessidade de uma reflexão permanente acerca do que se consome – Até que ponto o que estamos comendo e bebendo não estará contribuindo para a manutenção de um modelo de exploração do meio-ambiente, de trocas comerciais injustas e concentração de poder econômico, de dominação e homogeinização cultural, de destruição progressiva de nossa saúde física e mental?
 

Notas:

(1) Instituto Sodexho para o Desenvolvimento da Qualidade de Vida no Cotidiano – 2001, citado no jornal Folha de São Paulo em 31 de maio de 2001.
(2) Hellmich, Nanci. Food for thought for a fat nation. USA Today, 19 de fevereiro de 2002.
(3) Monteiro, K. Elas comem tudo errado. Revista Veja, 19 de maio de 1999, p. 80-86.
 

Bibliografia:

CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1983.

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© Copyright Eduardo Guagliardi y Jane Broch, 2002
© Copyright Scripta Nova, 2002
 

Ficha bibliográfica

GUGLIARDI, E.; BROCH, J. Falando aos trabalhadores rurais sobre alimentos, consumo crítico e solidariedade.  Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, nº 119 (135), 2002. [ISSN: 1138-9788]  http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119135.htm


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