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Scripta Vetera 
EDICIÓN  ELECTRÓNICA DE TRABAJOS PUBLICADOS  
SOBRE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES 
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1578-0015

 

EM SALVADOR ESTÁ EM JOGO O FUTURO DO BRASIL

Horacio Capel
Universidad de Barcelona

Publicado originalmente en:
BOMFIN, Juárez. O Centro Histórico de Salvador e a sua integração sócio-urbana. Salvador: UFB, 2010.


 

A concessão pela UNESCO do título de Patrimônio da Humanidade, em 1985, teve o significado do reconhecimento mundial da cidade de Salvador. Foi o resultado de uma ação prolongada por parte de grupos de cidadãos para a valorização do seu centro histórico[1].

Desde antes desta data, Salvador já era muito conhecida, era quase uma cidade ícone à escala mundial. Podem-se encontrar toda uma série de descrições elogiosas da localização, das belezas e da riqueza da cidade (e também de suas diferenças sociais) desde a época da colonização portuguesa. Logo após a Independência, naturalistas, comerciantes e viajantes contribuíram para criar uma imagem da cidade em que se reúnem a história, o exotismo, o tropical e a cultura local. 

Salvador está intimamente vinculada à história do Brasil, já que a fundação da cidade coincide, de fato, com sua criação. Construiu-se à imagem de Lisboa e é certo que a recorda muito. Sua história é a de uma evolução que a levou da condição de ser capital do Brasil a converter-se, uma vez perdida a posição de capital política, em uma metrópole regional. Uma cidade barroca e neoclássica, em que este último estilo se prolongou durante boa parte do século XIX, igual que nas cidades européias.

Uma rica tradição de estudos

Sem dúvida a mudança da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, ainda que tivesse sido uma medida acertada do ponto de vista da coesão da Colônia e, logo, para a unidade do país independente, representou para Salvador uma grande perda. Todavia a cidade manteve e inclusive ampliou seu desenvolvimento econômico, sua riqueza e sua personalidade, que seria internacionalmente difundida pelas obras de escritores e intelectuais baianos, entre os quais, de maneira notável, Jorge Amado.

Meu conhecimento de Salvador remonta a começos dos anos 1960 quando tive ocasião de ler, durante meus estudos de geografia na Universidade de Múrcia, vários trabalhos sobre uma área geográfica que, em espanhol, tem uma pronúncia muito sonora: o Recôncavo baiano. Logo pude conhecer a Tese de Milton Santos sobre a cidade de Salvador, apresentada na Universidade de Strasbourg, em 1958, e publicada no ano seguinte. Recordo bem a impressão que então me causou a descrição que fazia o grande geógrafo baiano desta cidade brasileira. A que eu percebia, sobretudo, como a antiga capital do Brasil, uma cidade européia na America tropical, era descrita por Milton Santos como uma criação da economia especulativa, vinculada à exploração açucareira e aos ciclos econômicos posteriores, do fumo e do café.

Naqueles anos o professor Milton Santos utilizaria o exemplo de Salvador para ilustrar as características das cidades subdesenvolvidas. O conceito de subdesenvolvimento, então muito renovador nas ciências sociais, se aplicava sem maiores discussões aos países ibero-americanos, levando em conta não apenas seu menor nível econômico como, especialmente, o que se considerava que era a existência de uma “economia dual” nestes países. Ele mesmo deu contribuições fundamentais ao estudo das cidades dos países subdesenvolvidos, escrevendo uma obra (em espanhol: Geografía y economía urbana en los países subdesarrollados, 1973) que teria uma grande difusão internacional; e não hesitou em considerar o Brasil como participante deste grupo de países, e a Salvador como uma cidade representativa dessas características, como se reflete em seu trabalho “Villes et Région dans un pays sous-développé: l’èxemple du Recôncavo de Bahia”, publicado nos Annales de Géographie de Paris em 1965.

Pouco a pouco me conscientizei que Salvador possui uma longa tradição de escritores, naturalistas, médicos, arquitetos, historiadores locais e intelectuais em geral, que realizam estudos muito valiosos sobre a cidade e têm contribuído a convertê-la em uma urbe mítica. Mais tarde, especialmente nos últimos quinze anos, teria oportunidade de ampliar meus conhecimentos pela participação em diversas bancas examinadoras de Teses de Doutorado sobre esta cidade e a região da Bahia, pela leitura de novas obras sobre o Nordeste e pela apresentação e debate de diferentes comunicações sobre Salvador nos Colóquios Internacionais de Geocrítica; inclusive tive a honra de contribuir na elaboração das Teses de Doutorado de vários geógrafos baianos: a de Guiomar Inez Germani (sobre a Cuestión agraria y asentamientos de población en el área rural: la nueva cara de la lucha por la tierra, Bahía, Brasil, 1964-1990, defendida na Universidade de Barcelona, em 1993), a de Rosali Braga Fernandes (Las políticas de la vivienda en la ciudad de Salvador y los procesos de urbanización popular en el caso del Cabula, em 2000 e publicada pouco depois) e a de Hilda Maria de Carvalho Braga (Producción y desperdicio: un estudio sobre la basura en la ciudad de Salvador, Bahía, em 2002). Os temas destas três Teses são bem representativos do caráter ético e da preocupação dos geógrafos da cidade, como de outros cientistas sociais baianos, pelos problemas sociais de Salvador. 

Todas estas leituras me fizeram consciente do grande nível cultural que existe nesta cidade, e do refinamento dos seus intelectuais. O qual se reflete também em aspectos que podem passar despercebidos, como a utilização do gentílico “soteropolitano”, um rebuscamento estilístico de raiz grega, para designar os habitantes desta cidade.

Modernização e transformações urbanísticas similares às cidades européias

Entre os livros que tive oportunidade de conhecer recentemente sobre Salvador quero destacar dois: o de Consuelo Novais Sampaio e o de Eloisa Petti Pinheiro, duas obras excelentes e imprescindíveis para entender a evolução urbana desta cidade e o processo de modernização. As duas ajudam a penetrar na dinâmica de transformação da cidade desde os anos que se seguiram à Independência até a primeira Guerra Mundial, e permitem afirmar que as mudanças experimentadas, como as de outras cidades americanas do norte e do sul, foram muito similares a dos europeus.

O livro de Consuelo Novais Sampaio 50 anos de urbanização. Salvador da Bahia no século XIX (2005), que conheço graças à generosidade do arquiteto Luis Antônio de Souza, apresenta cinquenta anos de urbanização de Salvador no século XIX, com uma esplêndida coleção de ilustrações e um texto muito sólido e bem elaborado. Analisa a expansão da cidade em duas fases sucessivas. Primeiro entre 1850 e 1870, quando, por influência do intenso movimento comercial, se construíram esplêndidos edifícios e começou a transformar-se profundamente a cidade que tinha sido sede do Brasil Colônia. Depois, entre 1870 e 1900, o momento em que a cidade se articula sob estímulos e desafios aos que teve de enfrentar no processo de modernização: a conquista das encostas, o impacto dos bondes, a chegada da energia elétrica e, em definitivo, o desenvolvimento de uma modernização vinculada a Segunda Revolução Industrial.

Na segunda metade do século XIX numerosos aterros na linha da costa permitiram ganhar terrenos ao mar para o porto, para a atividade comercial e a expansão urbana. O advento do trem fez possível a relação mais estreita e intensa com as zonas produtivas do interior do estado, com o Vale do São Francisco e potencializou a atividade do porto de Salvador.

A cidade foi mudando a estrutura original, em que os ricos, os fidalgos e os aristocratas viviam em cima, na Cidade Alta, e os pobres nas encostas e na parte baixa, a Cidade Baixa, vinculada ao porto. Os bondes e os ascensores permitiram uma melhor relação entre as duas partes, primeiro, e a expansão da cidade, depois. A construção das linhas de bonde foi toda uma proeza devido à topografia e as condições hídricas para o deslocamento, com desníveis, lagoas e áreas pantanosas. O bonde, com a fuga das classes adinheiradas para outros bairros, produziu, igual que nas grandes cidades européias, um processo de transformação da Cidade Alta, convertida em porta de entrada de imigrantes. O que era toda a cidade de Salvador até meados do século XIX começou a converter-se em um setor popular, como sucedeu em outras cidades européias desde as últimas décadas do século, com o desenvolvimento dos novos meios de transporte e a fuga das classes burguesas para outros bairros, onde podiam construir-se moradias que respondiam as exigências da sociedade industrial. A similitude da evolução com as cidades do Velho Continente é surpreendente.

As amplas residências que existiam no centro foram subdivididas e transformadas em cortiços e casas de cômodos. Os cortiços se converteram no novo tipo de habitação popular para as classes de menor poder aquisitivo, situadas no fundo de antigas moradias ou em parcelas adquiridas para este fim. Moradias miseráveis, insalubres, densificadas e promíscuas. Dessa forma, como na Europa, se estabeleceram as condições para o surgimento de graves problemas higiênicos que se mostraram especialmente evidentes nas epidemias de febre amarela e do cólera: a epidemia do cólera em 1855 matou 17 por cento da população. Os novos bairros que começaram a ser construídos fora do antigo centro se edificavam de acordo com os padrões que os novos tempos exigiam.

O processo de modernização urbana iniciado nas últimas décadas do século XIX se prolongou durante as primeiras décadas do século XX. Esse é o objeto de estudo do livro da arquiteta Eloísa Petti Pinheiro, intitulado Europa, França e Bahia. Difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador), resultado de uma Tese de doutoramento que foi apresentada na Universidade Politécnica de Barcelona, e de cuja banca examinadora tive o privilégio de fazer parte. Trata-se de um estudo comparado das políticas urbanas executadas no Rio de Janeiro e em Salvador e do processo de mudança através das reformas urbanas realizadas nos centros antigos a princípios do século XX. A obra mostra a rápida difusão de modelos urbanos da Europa para a América do Sul.

Semelhante às cidades européias e norte-americanas, os melhoramentos urbanos no Brasil durante a segunda metade do século XIX foram também impulsionados pelos problemas higiênicos, assim como a necessidade de adaptar o traçado urbano as novas condições de circulação e as exigências de refuncionalização do espaço. Fez-se necessário reestruturar o espaço já edificado, copiando as cidades européias, sobretudo Paris. 

Como ocorreu na Europa, as reformas tiveram um caráter autoritário e pretendiam ao mesmo tempo “controlar o urbano e disciplinar a população”. A partir do discurso da modernidade, igual ao que se fazia nas cidades européias, “o poder político derruba as moradias pobres, os cortiços e trata de retirar os pobres do centro, quer dizer, dos espaços nobres da cidade”.

Ainda que Eloísa Pinheiro atribua um papel essencial ao modelo de intervenções haussmanianas em Paris, pode-se argumentar que, na realidade, inclusive sem este modelo o processo se produziria. Durante o século XIX todas as cidades sentiram, antes ou depois, a necessidade de transformar seu velho centro histórico para adaptá-lo a nova situação criada pelo desenvolvimento da Revolução industrial e das relações sociais capitalistas. Operações efetuadas antes das atuações haussmanianas se realizaram em muitas cidades européias (por exemplo, em Barcelona com a abertura da Rua Fernando a partir de 1827) como resultado da necessidade vivamente sentida de uma reforma interior dos velhos centros urbanos, ainda que a de Paris tenha tido uma escala e objetivo diferente, e por isso mesmo uma grande repercussão internacional.

Estes dois livros, e outros que poderíamos acrescentar, mostram que desde o ponto de vista do urbanismo e dos ideais da classe dirigente sobre a cidade, o que sucedeu em Salvador é muito similar ao que ocorria na Europa; também reflete que a capital da Bahia era uma cidade européia, como todas as da América espanhola e portuguesa desde o século XVI ou as cidades da América francesa, holandesa ou inglesa desde o século seguinte.

As especificidades brasileiras

Não resta dúvida de que se só nos fixarmos nas transformações urbanas, nos ideais urbanísticos dos grupos dominantes, na ampliação dos serviços públicos ou na implantação de redes técnicas urbanas, o relato que se pode fazer é muito similar ao das cidades européias dinâmicas, com pequenas diferenças temporais em alguns casos, nem sempre em detrimento das cidades brasileiras. 

Poderia talvez argumentar-se que as distâncias sociais eram aqui maiores que nas cidades européias, o que seguramente é certo, e que não se esqueça que na Europa eram também abismais.

Entretanto, no século XIX havia uma diferença fundamental entre Salvador e as outras cidades brasileiras, por um lado, e as cidades européias, por outro: a escravidão, que se manteve no Brasil até 1888. No início do século XIX a população de Salvador ascendia a 45.600 habitantes, e nela 50 por cento eram negros e 20 por cento mulatos. O sistema escravista só seria abolido próximo ao final do século e a exploração dessa mão de obra era a base da riqueza dos proprietários, e afetava profundamente as relações sociais e toda a vida urbana.

Salvador foi uma cidade brilhante, próspera, cuja riqueza se baseava na exploração da mão de obra escrava. Naturalmente os descendentes daqueles escravos não deixam de sentir de forma injuriosa esta lembrança. Um sentimento que nos traz à memória um verso do poeta cubano Nicolas Guillén, que alude a uma situação similar naquela ilha do Caribe:

Yo soy también nieto de esclavo,
¡que se avergüence el amo!

(Eu também sou neto de escravo,
que se envergonhe o amo!)

Mas não se trata só de envergonhar-se e de reconhecer as bases da riqueza a partir da exploração dos outros, e sim de pensar no futuro. Voltaremos a falar disso mais adiante.

O centro histórico, urbanismo demolidor do século XX

As reformas urbanas realizadas no Rio de Janeiro por iniciativa do presidente Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos se converteram em uma referência para outras cidades brasileiras e concretamente para as transformações que se empreenderam na cidade de Salvador por determinação do governador J. J. Seabra, com apoio federal e municipal. Realizaram-se desocupações e demolições de velhas casas e, se necessário, de edifícios monumentais, o que permitiu efetuar novos alinhamentos e melhoria nas ruas. O modelo de centro rico e com fortes investimentos e uma periferia pobre e abandonada, começa a mudar com a implantação do trem e, sobretudo, do bonde. Modernizar a cidade e acabar com o passado foi um objetivo amplamente compartilhado em Salvador com referência as reformas da década de 1910 e parecia haver uma total insensibilidade e “ódio com relação a Salvador colonial”.

O desejo de modernização e de melhoria das cidades era muito aceitado pelas elites de um lado e outro do Atlântico. Nas nações independentes americanas era, ao mesmo tempo, o desejo de distanciar-se da antiga metrópole e de apagar os símbolos do passado na condição de colônia.

Podemos fixar-nos em dois aspectos significativos das mudanças que aconteceram: um, a conversão do centro em um setor popular; outro, o próprio processo de modernização. Em ambos os casos há uma evolução que, em numerosos aspectos, é muito semelhante à experimentada por outras cidades européias.

Igual que em Lisboa, Barcelona, Madri e outras cidades, velhos sobrados e inclusive palácios foram sendo abandonados pelos seus proprietários, divididos e convertidos em moradias populares. Neles se instalaram os imigrantes que chegavam à cidade, geralmente de origem rural. Após a abolição da escravatura em 1888, muitos desses imigrantes eram antigos escravos que ocuparam as moradias que iam esvaziando-se e estavam disponíveis.

Também é bastante similar a européia a evolução no que se refere às atitudes em respeito ao valor do patrimônio histórico. Sobretudo em relação ao patrimônio eclesiástico. A necessidade de diminuir a influência opressiva da igreja, e a existência de propriedades em mãos das ordens religiosas, deu lugar a reações contra esta situação, e destruições que são similares as que se fizeram nas cidades de países europeus e americanos que realizaram a desamortização de bens eclesiásticos. A Tese de Doutorado de Ana Lourdes Ribeiro da Costa sobre Salvador, século XVIII: o papel da ordem religiosa dos beneditinos no processo de crescimento urbano (2003) pôs de manifesto o papel da igreja na expansão do tecido urbano desta cidade e nas estratégias que tiveram tanto o clero secular como as ordens religiosas no que se refere ao mercado imobiliário; de forma mais concreta, destaca o papel dos beneditinos nos processos de construção da capital da Bahia a partir das estratégias econômicas e sociais empregadas pela ordem. Em algumas ocasiões os próprios beneditinos se converteram em agentes urbanizadores, abrindo ruas (como a Rua Nova de São Bento) em terras de sua horta, onde construíram várias casas de moradia.

Ao rechaço do poder da igreja se uniu, como dissemos, o da herança colonial, o que levou a desvalorização dos edifícios da época portuguesa. Ambos os fatores levariam, sem dúvida, a excessos, ainda que pudessem ser suavizados pela aparição de processos de recristianização das classes populares, como forma de manter o controle da ordem social.

Para as grandes demolições se utilizaram razões de higiene e circulação. Formavam parte dos esforços de modernização da sociedade e das cidades, da criação de um novo marco para a vida social. Por tudo isso, a degradação do velho centro histórico se acentuou, com a fuga da população que o habitava para os bairros residenciais que se construíram.

Finalmente, a importância das destruições que se realizaram em algumas cidades deu lugar à reação contra estas atuações. A destruição do morro do Castelo no Rio de Janeiro e da Catedral de Salvador em 1933, após dezoito anos de polêmicas e de resistência dos intelectuais baianos, contribuiu para a aparição de uma legislação protetora. Para a qual contribuiu também uma nova valorização da herança portuguesa, quando se sentiu a necessidade de buscar e reforçar as origens da nacionalidade e esses edifícios se converteram em símbolos de um passado histórico que era essencial para a consciência nacional.

Patrimônio da Humanidade e Patrimônio brasileiro

Com o livro que agora se publica (O Centro Histórico de Salvador e a sua integração sócio-urbana), temos uma contribuição importante ao conhecimento de Salvador e de suas transformações urbanas e sociais, o qual se acrescenta a ampla bibliografia já existente. É um livro que mostra a ampla cultura e erudição do autor, sociólogo de formação e que transitou com grande proveito pela disciplina geográfica durante seus estudos de master e doutorado.

Juarez Duarte Bomfim realizou uma geografia histórica de Salvador, um aporte a história urbana e a valorização e defesa do patrimônio urbano da cidade. O autor realizou um apreciável esforço de síntese da bibliografia disponível e, apoiando-se nela e em suas próprias pesquisas, apresenta um bom panorama da evolução econômica e social, dos debates para a conservação do centro histórico e das medidas que se tem aplicado.

Descreve de forma precisa a tomada de consciência do valor do patrimônio existente no centro histórico de Salvador e o esforço para a sua proteção, que se traduz em medidas protetoras de monumentos a partir dos anos 1930. Também mostra a aparição de uma consciência conservacionista que se estendia a conjuntos urbanos e ao entorno dos edifícios, incluindo as moradias populares e das classes médias, até ampliar-se finalmente ao conjunto do setor da Cidade Alta. Expressa muito bem a dificuldade e complexidade das tarefas, devido à relação estreita entre as edificações e a população e as funções que nelas existem.

O livro faz um bom resumo da evolução da estrutura econômica de Salvador, as fases de escasso desenvolvimento, o estancamento econômico e demográfico, a industrialização tardia, o descobrimento do petróleo na Bahia (1939) e as conseqüências da instalação da Petrobras. Alude a estreita relação e imbricação dos dois sistemas de economia formal e informal, superior e inferior.

Na obra se dedica especial atenção a todo o processo recente de estudos para a proteção e conservação do centro histórico de Salvador, que culminaram na declaração de Patrimônio da Humanidade, e as atuações que se realizaram a partir desta data. Desperta grande interesse os capítulos que o autor dedica a analisar a atuação em Salvador desde fins de 1960, em relação à sua valorização como cidade monumental para o turismo. Também a análise que efetua do reduzido êxito das primeiras intervenções, e do grande impacto das que se realizaram a partir de 1990. Descreve os importantes trabalhos de restauração que se realizaram, de grande valor pelo elevado número de edifícios atingidos e a situação de grave deterioração em que muitos se encontravam, cerca de 1.000 edifícios na área protegida.

A atuação urbanística e a reabilitação dos centros históricos exigem um grande cuidado, nem sempre seguido pelos técnicos que intervêm. É preciso estar muito atento. Às vezes galardões como a declaração de Patrimônio da Humanidade não têm protegido as cidades, inclusive podem contribuir a degradá-las. Porque no calor da concessão do título, agentes imobiliários, agentes turísticos, empresários de hotelaria, especuladores e outros têm executado obras que contribuem a destruir o patrimônio. Os prejuízos provocados por parte dos proprietários à proteção ou tombamento são muito grandes. O que implica a necessidade de colaboração entre os técnicos, entre estes e os políticos, assim como a importância de comprometer toda a população em defesa do patrimônio histórico.

Existem com frequência problemas nas atuações de conservação do patrimônio, que provocam a expulsão da população residente. A intervenção no Pelourinho desalojou 95 por cento dos habitantes da área. Houve também intenção de incorporar outras mudanças frente à perda de funções, como equipamentos universitários na área, similares ao que se há realizado em outras cidades.

Para o êxito da política de proteção é essencial manter o caráter residencial e multifuncional, assim como a diversidade social. Procurar que sejam espaços multiculturais e multiétnicos; assegurar a coexistência da habitação e funções diversas, artesanato, serviços, escritórios. Desta maneira, objetivar que a área mantenha vida social, que sejam espaços verdadeiramente centrais, que se aproveite seu valor simbólico.

É preciso atrair investimentos respeitosos para conservar um patrimônio rico e diverso, lentamente sedimentado com coexistências de estilos diferentes, uma herança que permita um percurso pela história da arquitetura, do urbanismo e da cultura. O passado é essencial para a memória coletiva e a identidade: necessitamos olhar o passado para construir o futuro.

São muitos os desafios colocados para os centros históricos. A gestão dos mesmos é complexa. Existe, por um lado, o perigo da destruição e, por outro, o risco de que se fossilizem, convertidos em setores turísticos, em autênticos parques temáticos. Um dos principais êxitos das intervenções em Salvador é que o centro histórico, que se havia convertido em um setor marginal, se transformou no principal símbolo da cidade. Uma área de lazer e de grande animação cultural. Mas existe também o perigo de excesso de equipamentos para o turismo (bares, lojas, galerias de arte...) e escassamente dirigidos para os habitantes.

Problemas no centro histórico e na cidade de Salvador

Salvador é, desde muitos pontos de vista, uma cidade admirável. Mas é também uma cidade que tem grandes problemas. A forma como se enfrentam os mesmos vai influir sobre outras muitas facetas da evolução do Brasil.

Sem dúvida, muito se fez na cidade, e especialmente, como mostra este livro, no centro histórico. Porém, a cidade em muitos aspectos não é um modelo, ou melhor, o contrário: em muitos casos um exemplo do que não se deve fazer desde o ponto de vista urbanístico.

Salvador passou por um processo de intensa verticalização que continua até os dias de hoje. A edificação de altos prédios na cidade já construída densifica e gera graves problemas de circulação. Ademais, a cidade se estruturou para o automóvel, com um profundo esquecimento ou menosprezo dos pedestres.

Todavia, o pior é a tendência à privatização total do espaço, a falta de atenção às necessidades coletivas. O exemplo mais fragrante disso pode ser a insensata ocupação e obstrução de espaços abertos para a Baía de Todos os Santos, especialmente manifestado ao longo da Avenida Sete de Setembro. Que a cidade não tenha sido capaz de organizar um calçadão que permita caminhar contemplando a baía, que muitos mirantes tenham se tornado inservíveis ao construir-se frente a eles altos edifícios tapando a visão, é algo que demonstra o sacrifício do bem-estar coletivo ante a mesquinhez dos interesses privados. Em certa ocasião escrevi de forma provocativa – e não me é inconveniente repeti-lo – que uma cidade que derrubou sua catedral poderia muito bem promover a desapropriação e a derrubada de toda a lateral marítima da Avenida Sete de Setembro, para convertê-la em calçadão.

Há que mudar urgentemente o modelo de crescimento das cidades. O caso de Salvador pode ser um laboratório para o futuro. Diminuir as diferenças sociais, reduzir o poder dos ricos, tratar de limitar seu egoísmo. Faz falta, urgentemente, comedimento e moderação em tudo.

Sem embargo, o que parece dominar é, frequentemente, o excesso em tudo. Por exemplo, a refrigeração dos edifícios. É um autêntico disparate ter o interior dos edifícios a 18 ou 19 graus quando no exterior a temperatura é de 35 graus (sic) e com forte umidade. Não me surpreende que em Salvador haja um elevado grau de incidência de pneumonias. Por outro lado é inaceitável o gasto perdulário de energia que isso provoca e as graves conseqüências sociais que gera. Os grupos populares que residem nas favelas e não têm possibilidade de refrigerar suas moradias se vêm obrigados a usar sistemas mais ecológicos, que são por si só mais sustentáveis.

O futuro do Brasil está em jogo em Salvador

Nesta nova Europa ultramarina que foi o Brasil desde o século XVI, como outros territórios do norte e do sul da América, e nesta realidade nova e dinâmica que é o Brasil atual, a conservação do centro de Salvador tem uma grande importância nacional e internacional. É a amostra de uma cidade européia construída a partir do Renascimento, com este estilo e com os do Barroco e o Neoclassicismo. Mas é também um desafio e um laboratório para construir uma sociedade diferente. Do êxito ou fracasso dessa construção dependerão muitas coisas. 

As circunstâncias históricas da construção do Brasil português, e logo as que estão relacionadas com a Independência do país, fizeram que Salvador, como todo o território brasileiro, sendo parte cultural da Europa, fosse também outra coisa distinta. Durante meio milênio vem se convertendo em um crisol, em um território de intensa mestiçagem e de nova interação intercultural, que é hoje uma realidade vital e de grande dinamismo cultural. Um Brasil que é uma superpotência mundial, um foco que muitos miram como um possível modelo para todo o planeta, pelo dinamismo cultural e a vitalidade da mestiçagem.

Mas nem tudo é cor de rosa. Há perigos evidentes. E isto se percebe claramente em Salvador. Uma, as diferenças sociais, muito patentes. Outra, a oposição à mestiçagem e o desenvolvimento do black power. Salvador, e especialmente o centro da cidade, que foi considerada a Roma negra, é identificada com a negritude. Não só pela importância dessa população como também pela grande efervescência cultural na cidade nos anos 1980-90 e o seu peso na construção da identidade.

A mutação de Salvador, e especialmente de seu centro histórico tem sido verdadeiramente espetacular. De constituir um símbolo da presença européia na América se transmutou em um símbolo da cultura brasileiro-africana. Alguns inclusive a consideram uma espécie de quilombo, um território negro independente.

Mas o centro histórico de Salvador não pode ser um lugar à margem da cidade, pois há de ser sentido como seu por parte de toda a população soteropolitana. Igual para todo o amplo e diverso Brasil, que o deve perceber como uma de suas raízes identitárias.

A imitação dos modelos sociais norte-americanos por parte da população brasileira de origem africana parece haver aumentado nos últimos anos. A aspiração a um black power é formulada explicitamente por alguns, com o beneplácito e o apoio encoberto ou explícito de fundações norte-americanas, que defendem o padrão dicotômico que domina nos Estados Unidos e que seguramente veriam com agrado a fragmentação do Brasil.

Mas o Brasil não é os Estados Unidos, e os modelos daquele país não deveriam ser seguidos no Brasil, que tem uma realidade histórica e racial diferente, e onde a mestiçagem é um impulso irresistível, que dá uma grande força a esta grande nação. O problema foi muito oportunamente analisado pelo professor Pedro de Almeida Vasconcelos, em dois excelentes artigos que estão publicados na revista eletrônica Biblio 3W, da Universidade de Barcelona (nº 729 e 732), e cuja leitura recomendamos entusiasticamente.

Sem dúvida no Brasil as diferenças sociais são enormes, e não cabe dúvida que – como em outros países americanos – as classes dirigentes tiveram até o início do século XX uma clara atitude racista (que alguns seguiram mantendo nos anos seguintes). Mas o Brasil é um país que tem desde a época portuguesa uma forte mistura entre todos os grupos raciais, talvez pelo fato de que os imigrantes dessa nacionalidade foram relativamente escassos e majoritariamente do gênero masculino.

Temos de levar em conta que nos Estados Unidos, apesar da abolição da escravatura, os descendentes de africanos ficaram totalmente segregados até 1960, e a presença de uma gota de sangue africano converte as pessoas em negros. Basta escutar o qualitativo racial que se atribui ao presidente Obama, que é designado normalmente, e de forma inadequada, como negro, sendo na realidade, pelo que sabemos, um mestiço.

No Brasil a questão racial é muito mais complexa, com mistura de, ao menos, três grandes grupos (indígenas brasileiros, europeus e africanos) cada um dos quais tem, por sua vez, importantes diferenças genéticas internas. A mistura tem dado lugar a uma estrutura social e racial muito complexa, desde logo diferente da norte-americana. A cor da pele não é um elemento que deva servir para classificar os indivíduos; o que importa são as diferenças sociais que existem entre uns e outros, e que todos os brasileiros devem esforçar-se em reduzir se querem um futuro de paz e bem-estar.

A proposta de reunir os pardos e os pretos em uma única categoria como negros ou como afro-descendentes é muito perigosa para o futuro do Brasil. A intensa miscigenação que existe neste país é um dado muito positivo, e a consolidação do Brasil como um país mestiço abre uma via de esperança e um modelo para o conjunto da humanidade.

A ascensão social é possível e está se realizando, ainda que lentamente. Alguns exemplos que poderíamos citar mostram que isso é possível. Entre eles o de um dos baianos mais ilustres, o professor Milton Santos, uma das figuras mais destacadas e reconhecidas da geografia mundial, um cientista social de grande prestígio, um intelectual reconhecido dentro e fora do Brasil e um cidadão comprometido com a defesa das liberdades democráticas. Um documentário sobre ele, "Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá”, realizado por Silvio Tendler, começa com uma frase que impressiona. “Milton Santos, neto de escravos”. Que em duas gerações haja conseguido passar da situação de escravidão a uma posição brilhante a escala da ciência mundial é uma prova da existência de processos de ascensão social. É a melhor prova de que é possível um futuro brilhante para o Brasil, um modelo de sociedade para todos os países do mundo.

O caminho da mestiçagem é o adequado. O outro é o da separação racial e o enfrentamento. O que se eleja ou o que acabe triunfando em Salvador vai influenciar o futuro do Brasil.

 

Notas

[1] Prólogo al libro de Juárez Bomfin O Centro Histórico de Salvador e a sua integração sócio-urbana. Salvador: UFB, 2009. La traducción del texto al portugués fue realizada por Juarez Duarte Bomfim y revisada por Pedro de Almeida Vasconcelos. La versión castellana de este texto se ha publicado en Biblio 3W, nº 860. Hemos incorporado a esta versión la bibliografía que se incluyó en la versión castellana, y que no aparece en el prólogo del libro.

 

Bibliografía

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Copyright: Capel, 1987.
Copyright: UFB, 2009.

 

Ficha bibliográfica:

CAPEL, Horacio. Em Salvador está em jogo o futuro do Brasil. In BOMFIM, Juarez Duarte. O Centro Histórico de Salvador e a sua integração sócio-urbana. Salvador: UFB, 2009. Reproducido en Scripta Vetera. Edición Electrónica de Trabajos Publicados sobre Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, nº 110. <http://www.ub.es/geocrit/sv-110.htm>. [ISSN: 1578-0015].


 

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