Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales 
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9796]
Nº 153, 27 de abril de 1999 

O ESPAÇO DAS CIÊNCIAS HUMANAS

Diamantino Pereira
Departamento de Geografia - PUCSP


Na virada dos séculos XIX e XX, no mesmo momento em que se estabeleciam os pressupostos das disciplinas que vieram a compor aquilo que denominamos de ciências humanas, umas das discussões que ali estava colocada era o papel do espaço na análise social.

Nesse ambiente, ocorreu uma polêmica entre alguns geógrafos que tinham firmado algumas bases teóricas do que passaram a denominar de "geografia humana" e, de outro lado, por sociólogos e antropólogos liderados por Durkheim que achavam que tal disciplina já existia, era um ramo da Sociologia e chamava-se "Morfologia Social".

Após a sistematização de Febvre no livro A Terra e a Evolução Humana, lançado na França em 1922 (com edição portuguesa de 1955), essa discussão praticamente sumiu das ciências humanas de um modo geral, mantendo-se circunscrita à Geografia e à Física, mas com percurso também na Biologia com as noções de "meio-ambiente" e "ecossistema".

Nas ciências sociais, foi Henri Lefebvre quem deu à discussão da espacialidade um novo significado. Sua extensa obra, muitas vezes com abordagens pioneiras acabou influenciando essa discussão em várias áreas. De uns tempos para cá, entretanto, as questões relativas ao espaço começaram a reaparecer com mais intensidade. Alguns chegam a falar que o espaço perdeu significação, uma vez que teria sido aniquilado pelo tempo repleto de tecnologia do mundo moderno. Outros dizem exatamente o contrário. E há ainda os que afirmam ser esta uma discussão que, desde sempre, acompanhou as trajetórias de suas respectivas disciplinas científicas.

Não tenho pretensão, neste pequeno artigo, de definir se a discussão a respeito do espaço é propriedade específica de uma determinada ciência, mesmo porque nenhuma delas é possível sem a reflexão espacial. Entretanto, ao mesmo tempo em que notamos a preocupação de muitos no sentido de extrapolar os muros de suas disciplinas e ampliar o debate, outros simplesmente buscam circunscrever o tema nos estritos muros de suas áreas, ignorando a produção acerca dessa matéria já existente em vários campos do conhecimento.

Um ilustração dessa postura pode ser encontrado, por exemplo, no parágrafo inicial do artigo "Espaço, Identidade e Organização" de Gustave-Nicolas Fisher: "O espaço foi, durante muito tempo, uma dimensão desconhecida das Ciências Sociais. Foram os psicólogos da área de Psicologia Ambiental que revelaram a importância dos fatores espaciais da realidade social."

Outros não ignoram olimpicamente o que se passa em outras áreas, mas seus escritos denotam uma desatualização ou mesmo uma abordagem tendenciosa em relação ao debate do tema. Vejamos, alguns casos.

É muito comum vermos geógrafos e outros cientistas sociais afirmarem que existiria, nas ciências sociais, uma forte tradição de se pensar o espaço na sua relação imediata com o meio físico.

Existe também a tradição, nas Ciências Sociais em geral e na Geografia em particular, de se imputar essa relação imediata a "escola de Ratzel", que seria a fonte inspiradora do chamado determinismo geográfico.

No entanto, atribuir a Ratzel exclusivamente esse papel implica em simplificação, até porque a sua obra só recentemente começou a ser desvendada no Brasil. Até então o trabalho desse autor tinha chegado até nós através de uns poucos textos originais esparsos e principalmente através da produção francesa, particularmente através de Lucien Febvre, que cria os termos "Possibilismo" e "Determinismo", imputando este último a Ratzel.

Em sua obra Por uma Geografia Nova (1978), Milton Santos já apontava para o papel desastroso dessa simplificação no que dizia respeito à evolução da ciência geográfica(1). Obras mais recentes procuram resgatar uma dimensão mais realista da obra de Ratzel, como é o caso de Marcos B. de Carvalho (1997). Em seus textos encontramos uma crítica a essa simplificação através de um levantamento e crítica da produção teórica a respeito de vários artigos sobre aspectos variados da obra de Ratzel, confrontando-os com aquilo que se pode apreender na leitura de suas obras(2) .O determinismo ambiental não é portanto uma criação de Ratzel e nem a discussão de uma possível relação entre espaço e sociedade uma exclusividade da Geografia.

Em outras situações, textos recentes citam, por exemplo, Max Sorre (1952) quando este afirmava que o planeta deveria ser considerado "um conjunto de sociedades particulares dispostas num mesmo substrato: a Terra" (Ortiz, s/d).

Porque não se evocam as discussões recentes no campo da Geografia a respeito desses temas. Ou será que se considera que o conceito de espaço como substrato físico é ainda dominante?

No campo da Sociologia, Durkheim abraçou a noção de espaço como substrato físico da vida social e, para dar conta de sua investigação, propôs a criação da "Morfologia Social", definida em princípio como um ramo da Sociologia, mas, como nos advertia o próprio Durkheim, com uma proposta mais ou menos semelhante àquilo que Ratzel havia batizado de Antropogeografia ou que Vidal de La Blache chamava de Geografia Humana. Essa polêmica corporativa em torno da moldagem desse aspecto do conhecimento científico apresentou vários lances e se encontra estudada em detalhes em Carvalho (1997).

Em alguns trabalhos, Durkheim apresenta vários argumentos para provar que a noção de espaço é uma coisa adquirida socialmente: "Vimos, com efeito, como cada coisa tem o seu lugar determinado no espaço social; e o que mostra bem a que ponto esse espaço total difere das extensões concretas, que os sentidos nos fazem perceber, é que essa localização é totalmente ideal e não se assemelha em nada àquilo que seria se nos fosse ditada apenas pela experiência sensível."(3)

Entretanto, tais argumentos dirigem-se sobretudo para provar que os diversos significados sociais do espaço tem muito pouco a ver com a sua materialidade física, ou, nas palavras do próprio autor, com "as extensões concretas" dadas pela "experiência sensível".

Mas, como afirma Smith, "por mais social que ele possa ser, o espaço geográfico é manifestamente físico; é o espaço físico das cidades, dos campos, das estradas, dos furacões e das fábricas. O espaço natural, no sentido de espaço absoluto herdado, não é mais sinônimo de espaço físico, haja vista que o espaço físico, por definição, só pode ser social".(4)

A noção apresentada por Smith tem como uma de suas mais importantes características o fato de apresentar o espaço como sendo "manifestamente físico", mas o físico não tem ai o sentido de geografia física ou de primeira natureza. O físico é a materialidade, o lugar. E o lugar, por mais físico ("natural") que aparente, traduz uma construção social, independentemente das escalas que adotemos como referência.

A noção de espaço social, contribuiu para sedimentar no âmbito das ciências humanas a possibilidade de existência de uma espacialidade social apartada de sua materialidade física, entendendo essa materialidade como o substrato sobre o qual se desenrolam processos e espaços alegóricos que somente figurariam na elaboração mental da sociedade. Nesse sentido, podemos afirmar que isso criou uma possibilidade teórica de análise da sociedade separada de sua concretude, viabilizando a hegemonia do paradigma cartesiano da dicotomia homem-natureza/sujeito-objeto na análise sociológica. Esse entendimento teria muitos seguidores (não apenas na sociologia) como poderemos continuar observando nos parágrafos seguintes.
 
O Tempo da História sem Espaço

Essa forma de entendimento da realidade colocou a discussão da espacialidade como uma espécie de não necessidade. O que se valorizou científica e culturalmente foi o estudo do processo e esse processo passou a ser entendido como um desenrolar temporal, onde, quando o espaço era mencionado, era apenas na forma da derivação.

Esse modo de pensar, ou de não pensar, ou mesmo de não entender o espaço se propagou por diversas correntes de pensamento. Entre os geógrafos, por exemplo, existe uma polêmica em relação à presença da discussão espacial na obra de Marx.

Isso tem dado margem a diversas interpretações partindo de referenciais diferenciados. Smith afirma que "é um erro interpretarem-se as análises de Marx sobre o capitalismo como sendo não espaciais. Isto não é de forma alguma, correto; seria mais exato dizer que as vívidas implicações espaciais das análises de Marx raramente foram reveladas. O que é certo é que nem Marx nem os teóricos marxistas posteriores conseguiram estabelecer uma base conceitual própria para tratar o espaço geográfico."(5)

Realmente, não se encontra em Marx uma discussão específica sobre o conceito de espaço. O espaço e o tempo aparecem aí como uma característica do real, ou seja, é invocada a sua relatividade, uma vez que o que existe é o movimento da história, e sua existência somente pode ser temporal e espacial.

Ocorre que, justamente em relação ao conceito de história, produziu-se uma espécie de reducionismo advindo do estruturalismo, relativo à sua caracterização como um desenrolar temporal, quando a dinâmica é, essencialmente, espaço/temporal.

O texto de Marx, na medida em que procura identificar os movimentos do real, é tanto espacial como temporal. Quando Marx afirma que "a divisão do trabalho no interior da sociedade é mediada pela compra e venda dos produtos dos diferentes ramos de trabalho, pela conexão dos trabalhos parciais na manufatura e pela venda de diferentes forças de trabalho ao mesmo capitalista, que as emprega como força de trabalho combinada"(6), colocá-nos frente a um raciocínio espaço-temporal, uma vez que a comparação é feita sobre relações que se estabelecem entre si, cada qual com sua própria espacialidade e, no caso, em escalas diferenciadas, na medida em que se trata, de um lado, de existência interna à manufatura e, de outro, de relações entre os diferentes ramos de trabalho, como relações externas à manufatura.

Se podemos encontrar facilmente essas passagens do trabalho de Marx em que as relações espaciais são evidentes, por outro lado, quando ocorre a explicitação isso normalmente acontece em termos de localização geométrica, ou seja, o lugar como ponto de encontro de coordenadas cartesianas. Veja-se, por exemplo, a reflexão feita por Marx no capítulo XII de "O Capital", quando o tema em discussão é a "Divisão do Trabalho e Manufatura". Aqui define-se a diferença existente entre os conceitos de Divisão Manufatureira ou Técnica do Trabalho e o de Divisão Social do Trabalho.

O primeiro conceito é definido como a divisão a que o trabalho é submetido no interior de uma empresa, subjugado pela lógica e autoridade de seu proprietário. Além disso, seus trabalhos parciais não se constituem em mercadorias, pois não são colocados individualmente no mercado.

Já o segundo é definido levando-se em conta que existe uma relação entre a produção específica de várias empresas para a construção de um determinado produto. Nesse caso, cada produto individual é acessado como mercadoria que, montado, produz uma outra mercadoria. Isso implica que o processo escapa ao controle específico de apenas um fabricante, que tem que se submeter às relações de mercado para atingir seu objetivo.

Nesse mesmo capítulo, a divisão territorial do trabalho é definida como aquela que "confina ramos particulares de produção em distritos particulares de um país."(7)

Observe-se que o conceito de Divisão Territorial do Trabalho aparece apenas no momento em que se trata de lugares geométricos de materialização de uma realidade fisicamente constituída.

Porém, qualquer divisão social ou manufatureira do trabalho é, necessariamente, uma divisão territorial, uma vez que somente pode existir na medida que assim se configure. Portanto, o território é uma dimensão de análise daquilo que se denomina tradicionalmente de processo e não apenas a localização em um plano cartesiano.

Analisando esses três conceitos propostos por Marx, podemos perceber que apresentam essencialmente escalas de abrangência diferenciadas, com todas as suas implicações. Assim, um é definido como observável no interior de uma empresa, o outro envolvendo várias empresas e o terceiro como a distribuição física dessas empresas pelo território de um país.

Se tivesse se orientado pela noção da relatividade espacial, o autor poderia ter concluído que todas as divisões propostas (manufatureira e social) são também divisões territoriais, uma vez que, como já afirmamos, todas as divisões apresentam uma territorialidade, somente que em diferentes escalas.
 
  A tradição antiespacial

A tradição antiespacial é um traço característico de certos desenvolvimentos recentes da cultura ocidental, eivada que foi pelos estruturalismos de todos os matizes (inclusive o marxista), que conduziram ao entendimento do processo histórico como um desenrolar apenas temporal no espaço absoluto, dificultando a percepção de que as dinâmicas sociais e seus processos históricos são observáveis também espacialmente.

Mas essa tradição se faz sentir, mesmo em autores preocupados em resgatar a discussão a respeito da espacialidade, como é o caso de Gottdiener, que em sua obra A Construção Social do Espaço Urbano faz uma extensa análise de uma série de autores e formulações acerca da discussão espacial. Ao se referir especificamente à economia política de fundamentação marxista, Gottdiener afirma: "O conflito de classes, a reprodução do trabalho, a reprodução das relações de produção, a acumulação de capital, a formação de crise etc. já não são manifestações do capitalismo que podem ser analisadas como se ocorressem no espaço, como mostraram os marxistas; ao contrário, são sobre o espaço. Dizem respeito às relações espaciais exatamente como envolvem relações entre capital, trabalho e mudança tecnológica."(8)

O problema de se fazerem tais generalizações, acerca de determinadas correntes de pensamento, é que muitas vezes se abstrai que estas são subdivididas e heterogêneas, pois, quem são esses marxistas que mostraram os fenômenos como ocorrendo no espaço? Possivelmente sejam os mesmos que, como Althusser, afirmam que o "Modo de Produção" é sinônimo de capitalismo. Mas Thompson já afirmara: "Um modo capitalista de produção não é o capitalismo. Com a troca de duas letras passamos de um adjetivo que caracteriza um modo de produção, (um conceito da Economia Política, embora dentro da 'anti'-Economia Política marxista) para um substantivo que descreve uma formação social na totalidade de suas relações."(9)

Um outro aspecto ainda deve ser ressaltado em relação ao trabalho de Gottdiener, principalmente porque, muitas de suas elaborações abrem pistas expressivas para a discussão da espacialidade. No entanto, apesar de ser rica em sugestões é também freqüentada por armadilhas ou inconsistências. Vejamos a citação a seguir:

"Nosso efeito final é aquele que se manifesta diretamente nos padrões espaciais de uso da terra característicos do capitalismo tardio, naquilo que se chamou desenvolvimento desigual. Há duas maneiras de examinar essa matéria: como um fenômeno puramente econômico e como um fenômeno geográfico. É claro que os dois aspectos estão relacionados entre si, e é um erro separá-los, especialmente reificando o desenvolvimento desigual como um fenômeno espacial. Ao enfatizar o caráter localizacional desses padrões às custas de suas origens sociais no sistema atual, os analistas convencionais foram responsáveis por mascarar ideologicamente a conexão fundamental entre essas duas dimensões de organização sócio-espacial."(10)

Podemos notar que, apesar de tentar repensar as bases teóricas que dêem suporte a uma teoria do espaço diferenciada das análises denominadas por ele como convencionais, as afirmações acima colocam um véu de imprecisão a respeito de sua concepção de espaço. Examinar o desenvolvimento desigual de uma ótica "puramente econômica" significa abstrair sua espacialidade? Parece que sim, uma vez que o autor admite que o tema possa ser tratado como um "fenômeno geográfico". Mas tratar esse fenômeno como geográfico significa abstrair suas conexões econômicas? Evidentemente que não, mas aqui o autor se baseou em uma concepção de espaço que, segundo ele, enfatiza o "caráter localizacional" e não as "origens sociais" do fenômeno estudado. Mas, é evidente que considerar o desenvolvimento desigual como um fenômeno geográfico, implica em trata-lo através de suas conexões econômicas, reconhecer suas origens sociais e não abstrair sua existência espacial que é, efetivamente local, ao mesmo tempo que é universal, uma vez que não se configura de forma absoluta.

Para dar maior precisão às afirmações de Gottdiener e Smith, a respeito da espacialidade, podemos afirmar com Ruy Moreira que:

"A sociedade é espaço porque sua organização é impossível sem a distribuição territorial da estrutura dessa organização. E uma sociedade sem organização morre. Como a sociedade necessita de uma estrutura que a organize, lhe é necessária uma urdidura topológica de natureza territorial. Assim nasce o arranjo espacial da sociedade: a organização espacial da relação homem-meio.

O arranjo espacial pode servir de via de organização da sociedade porque ele tem a propriedade de ser a própria estrutura da sociedade, e ser, em sua construção, regido pelas próprias leis que regem a sociedade. O arranjo pode se tornar uma instância de organização porque o espaço é a sociedade territorialmente ordenada."(11) (Moreira, 1987).

Quando procura definir a dinâmica implicada no processo de produção do espaço, Gottdiener explicita o que denomina de estruturacionismo. "(...) localizarei a produção do espaço dentro do contexto geral de uma teoria emergente de organização social classificada de estruturacionista, uma teoria que estuda o papel da ação, de um lado, e da estrutura, de outro, na produção de fenômenos e formas espaciais. Meu argumento básico é que as formas espaciais são produtos contingentes da articulação dialética entre ação e estrutura. Elas não são manifestações puras de forças sociais profundas; em vez disso, constituem um mundo de aparências que a análise deve penetrar."(12)

No momento em que descarta a possibilidade do espaço ser produzido apenas por derivações estruturais, o autor consegue escapar do campo dos determinismos (muitas vezes economicistas), ao mesmo tempo em que admite a possibilidade de influências conjunturais e locais.

A esse respeito convém ainda destacar uma afirmação de Soja no sentido de identificar os processos que aí estão envolvidos: "A grande questão, porém, não é saber se o capital financeiro domina o capital industrial "em última instância", mas de que modo ele se relaciona, como uma parcela do capital, com outras parcelas do capital dentro de formações sociais específicas, e de que modo isso afeta a ação das classes. A questão, portanto, é conjuntural, referente ao conjunto das relações de classe que emergem em determinados lugares, durante determinados períodos de tempo. Reduzir a análise marxista à afirmação das determinações estruturais últimas é eliminar toda a especificidade histórica e geográfica e, portanto, eliminar a própria cidade como objeto de análise."(13). Parece-me que a questão está posta. A produção do espaço não é apenas uma derivação estrutural, apesar da estrutura apresentar influência. Quando se fica restrito à identificação das determinações estruturais últimas, não se pode captar a diversidade de combinações que tornam o estrutural uma coisa concreta, ou seja, a sua existência local.

As manifestações do capitalismo não ocorrem no espaço, pois isso seria o mesmo que considerar o espaço como absoluto e substrato. Ao invés disso, os fenômenos possuem uma existência espacial, ou seja, na medida em que ocorrem, manifestam como uma das faces de sua existência, a sua espacialidade. É por isso que se pode afirmar a construção social do espaço.

Porém, a construção social do espaço somente pode ser afirmada na medida em que não estejamos alijando desse processo a natureza, já que o espaço é natural, apesar de ser social, ou vice-versa. Para entender o processo dessa maneira, devemos romper com a concepção cartesiana imperante nos paradigmas da ciência clássica e buscar entender que a sociedade é um dos elementos componentes da natureza, apesar de ser diferente de muitas outras coisas presentes nessa própria natureza. Com base nessa concepção, a afirmação a respeito da construção social do espaço, passa a não ser tão parcial como originalmente pareceria. (14)

Uma última afirmação de Gottdiener nos chamou a atenção, justamente pelo fato de ser muito sugestiva e tentar trazer a discussão do espaço como um dos elementos de caracterização do mundo atual: "Se o momento atual possui uma forma fenomenal de capital - a corporação multinacional -, então a forma fenomenal de espaço correlata do capitalismo tardio é a metrópole desconcentrada."(15). Partindo da afirmação de Mandel a respeito da forma fenomenal do capitalismo atual que estaria materializado na corporação multinacional, o autor afirma que a forma espacial correlata é a metrópole desconcentrada.

A corporação multinacional que assenta sua operações sobre o globo e, em outras palavras, tem o mundo na palma de sua mão, é uma forma espacial, pois o fato de ser econômica, política e social, não faz com que deixe de ser espacial, muito pelo contrário. A própria definição (multinacional) vale-se da referência territorial das empresas que não existem apenas nas formas territoriais de uma "nação".

A metrópole desconcentrada também é uma forma espacial, mas aqui o autor não precisou que estava se referindo ao que ele mesmo denomina de espaço de assentamento. Nesse sentido poderíamos afirmar que se trata da forma espacial da metrópole, embora o autor desenvolva uma série de argumentos que identifica essa forma particularmente nos EUA.

Tanto a corporação multinacional quanto a metrópole desconcentrada são formas espaciais. Se são formas fenomenais, isso é uma outra discussão que não é objeto desta reflexão.

Considero que a discussão a respeito do espaço e da espacialidade começou recentemente a ser resgatada dentro das ciências humanas. A valorização desse aspecto é muito importante, justamente porque ficou relativamente abandonado há bom tempo e isso fez com que evoluíssemos muito pouco no trato dessa questão.

O que quero alertar é que não conseguiremos grandes progressos se nos mantivermos presos a pré-conceitos e ilhados pelos muros estreitos de cada uma de nossas disciplinas. A discussão caminhou alguns passos em diversos pontos, cabe resgatá-la e avançar. Aqui faço minhas as palavras de Freitas Branco: "A autêntica atitude científica é a que repudia os sintomas do narcisismo usando a autodesconfiança inteligente própria do espírito moderno que se sabe não detentor da verdade e por isso mesmo se manifesta disposto a sobrevoar-se derramando o riso sobre as suas próprias conclusões. É a convicção dialética do caráter inacabado das nossas ilações, da inexistência de um ponto de chegada absoluto e da conseqüente infinitude do processo cognitivo." ( Freitas Branco: 1989)
 
 
 
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Notas

1. "Quando Vidal de La Blache escreve que 'não existem necessidades, mas em toda a parte existem possibilidades', trata-se de uma verdade banal. O reino do possível não é o mesmo do aleatório, mas o da conjunção de determinações que juntas se realizam em um dado tempo e lugar. Não se trata ai de 'fatalidades', nem no chamado possibilismo nem no determinismo, se a palavra é tomada com a conotação que os possibilistas lhe deram. A verdade é que, fora da geografia, antes, durante e depois desse debate, as palavras determinismo e possibilismo puderam ser utilizadas sem corruptela. Essa querela serviu apenas para retardar a evolução da geografia; e a noção de possibilismo, por isso mesmo, jamais conseguiu se desenvolver de maneira satisfatória." (Santos, 1978: 26).

2. Carvalho chama a atenção para os perigos de uma leitura descontextualizada e tendenciosa, afirmando que pensadores "profícuos" como é o caso de Ratzel, apresentam "(...) uma espécie de supermercado de idéias, que nos oferecem em suas 'gôndolas' biscoitos e vinhos dos mais finos e saborosos aos mais baratos. A escolha entre uns e outros é nossa." (op. cit. p.12). A escolha que tem nos sido ofertada, todos nós já a conhecemos a ponto de classificarmos Ratzel como o grande pai do determinismo e justificador teórico da doutrina do expansionismo alemão. Creio que, para variar, podemos saborear um outro tipo de afirmação: "Fijaremos nuestra atención en la diversidad de desarrolo y de circunstancias (de los pueblos); por cuya razón estudiaremos detalladamente las condiciones externas de los pueblos y procuraremos, en quanto sea possible, hacer derivar de la marcha histórica sua actual situación. La noción geográfica (estudio de las circunstancias exteriores) y la consideración histórica (estudio del desenvolvimento) deberán, pues, marchar perfectamente unidas, pues sólo la unión de una y otra puede hacernos apreciar la materia de la manera debida." (Ratzel, Las Razas Humanas, apud Carvalho, op. cit. p.5)

3. Cf. Durkheim, 1989, pág. 521.

4. Smith, 1988, pág. 120

5. Ibid., pág. 127

6. Marx, 1983, pág. 279

7. Ibid., pág. 278.

8. Gottdiener, 1993, pág. 197.

9. Thompson, 1987, pág. 171.

10. Gottdiener, 1993, pág. 212

11. Moreira, 1987.

12. Gottdiener, 1993, pág. 199.

13. Soja, 1993, pág. 123.

14. Maior aprofundamento em relação ao desenvolvimento desse tema pode ser encontrado em Smith, 1988.

15. Gottdiener, 1993, pág. 230.

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