Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XV, nº 895 (23), 5 de noviembre de 2010

[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

RIO 2016: JOGOS OLÍMPICOS, FAVELAS E JUSTIÇA TERRITORIAL URBANA

 

Jorge Luiz Barbosa
Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense
Coordenador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro


Recibido: 22 de mayo de 2010. Aceptado: 17 de junio de 2010.


Rio 2016: Jogos Olímpicos, favelas e justiça territorial urbana (Resumo)

Os impactos sociais e urbanos de megaeventos esportivos se transformaram em um tema dos mais relevantes da atualidade. Diversas cidades foram palco desses eventos e, como sabemos, provocaram mudanças significativas em sua fisionomia material assim como em suas dimensões simbólicas. Acreditamos que não será diferente quando se trata da realização dos Jogos Olímpicos na cidade do Rio de Janeiro em 2016. Portanto, colocar em perspectiva o sentido e a oportunidade do evento olímpico em termos da promoção e garantia direitos urbanos é uma causa primordial e inadiável. 

Palavras chave: cidade, favelas e justiça territorial


Rio 2016: Olympics Games, slums and territorial justice urbans (Abstract)

The social impacts of mega events and urban sports have become one of the most relevant topic today. Several towns were the scene of these events and as we know, brought about significant changes in his face material as well as its symbolic dimensions. We believe that there will be different when it comes to the Olympic Games in Rio de Janeiro in 2016. So put in perspective the meaning and the opportunity of the Olympics in terms of promoting and guaranteeing urban rights is a fundamental and urgent issue.

Key words: city, slums and territorial justice


A realização Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro em 2016 deve ser considerada como uma oportunidade histórica para todos os seus cidadãos e cidadãs, sobretudo no que diz respeito às possibilidades se seu legado social para a cidade. È evidente que o sucesso desportivo do megaevento anunciado exige um conjunto de intervenções urbanas em termos de construção de equipamentos, oferta de serviços e condições de acessibilidade que, no final das contas, promoverão mudanças importantes na cidade. Quais serão essas mudanças? Quais serão os atores sociais beneficiados? Qual será Agenda Olímpica da Cidade?


Qual Cidade Olímpica queremos?

Apresentar proposições no sentido de promover as condições urbanas para qualidade de vida da população é um item sempre presente nas candidaturas de cidades para sediar eventos esportivos de escala mundial. Jogos Olímpicos, Copas de Futebol e Torneios Desportivos em diferentes cidades do mundo promoveram impactos urbanos importantes, mas profundamente questionáveis no que concerne às transformações sociais mais amplas e a promoção de direitos urbanos fundamentais.

A proposta do Rio de Janeiro seguiu fielmente o roteiro estabelecido para as candidaturas olímpicas, pois além de apresentar os cenários de suas “belezas naturais” da cidade e do ineditismo dos Jogos em uma capital da “América do Sul”, estavam presentes as promessas de empreendimentos urbanos, com destaque especial para a inclusão da habitação social, do transporte público, da sustentabilidade ambiental e da segurança dos cidadãos na agenda urbana dos Jogos Olímpicos.

Não é sem surpresa que se verifica mo âmbito das promessas - e das preocupações mais evidenciadas em relação aos “problemas urbanos” - a recorrente associação das questões mais graves da Cidade às favelas, especialmente no que diz respeito às exigências de da segurança para realização do evento olímpico. È como se a face negativa do Rio de Janeiro estivesse vinculada a notória presença das moradas populares e, sobretudo, fosse produzida por estas. Estamos diante de reiteração de representações sócio-espaciais hegemônicas que traduzem as favelas como expressões banais da pobreza, da desordem e da violência. Representações que se tornaram historicamente instrumentos recorrentes de discriminação política e da reprodução de estigmas socioculturais das moradas populares na cidade do Rio de Janeiro. E, ao longo de mais um século contado de existência das favelas na cidade, buscam legitimar tratamentos autoritários em relação à presença dos pobres da cidade, incluindo em seu cortejo a prática da remoção de suas moradas para periferias urbanas[1].

As favelas são expressões estruturais do processo urbanização do território brasileiro. È importante sublinhar que não se limitam a um fenômeno que se faz presente nas metrópoles. As cidades médias brasileiras são, na atualidade, representativas da multiplicação urbana de favelas e, inclusive, abrigam um crescimento mais expressivo do que o observado em capitais, sobretudo as da região sudeste do país[2].

Podemos afirmar que as favelas cresceram e se expandiram notadamente em virtude de um modo de urbanização desigual e socialmente discricionário. No caso do Rio de Janeiro, a população residente em favelas vem crescendo de modo contínuo quando comparada à população total do município (14% em 1980; 16% em 1990; 19% em 2000). Na atualidade, cerca de dois milhões de pessoas residem em 968 espaços populares identificados em diversos bairros da cidade. Alguns deles já possuem mais de 100 mil moradores, como exemplos podemos citar a Favela da Maré e a Favela da Roçinha, localizadas, respectivamente, na Zona Norte e Zona da Sul da Cidade do Rio de Janeiro.

Apesar das leituras que sempre consagram uma pretensa homogeneidade das moradas populares, as favelas são complexas e muito diferentes entre si. Para além das particularidades de sua morfologia e localização, há também uma composição diferenciada de formas de trabalho, níveis de renda, de inserção ao consumo de bens e de acesso aos serviços públicos. Um olhar atento para a intensa vida social presente nas favelas perceberá códigos, regras e práticas de sociabilidade que configuram significados próprios e que explicitam identidades socioculturais singulares. 

Ao enunciar as suas especificidades, as favelas também revelam a sua inserção na vida da sociedade urbana como um todo. Podemos afirmar, inclusive, que as favelas representam a maximização das possibilidades econômicas, culturais e sociais realizada pelos pobres nos seus mais legítimos esforços para habitar a cidade. Entretanto, são justamente esses territórios os mais vulneráveis diante das limitações e incompletudes das políticas sociais governamentais, da notória concentração de renda e propriedade urbanas, dos interesses exclusivistas do mercado e da criminalidade violenta.  As favelas são, na verdade, uma das expressões de maior vitalidade da resistência cotidiana dos pobres para permanecer na cidade.  

Figura 1: Favela do Morro Dona Marta – Rio de Janeiro, RJ
Foto: Francisco César - Imagens do Povo / Observatório de Favelas.

 

Para que as transformações urbanas prometidas na candidatura olímpica do Rio de Janeiro não se tornem meras peças publicitárias, se faz indispensável à inclusão das favelas no seu cenário político de formulação e decisão da agenda urbana em construção. É extremamente preocupante quando o governo municipal anuncia um plano de urbanização de favelas tendo como meta o “controle do crescimento desordenado de moradias, da ilegalidade dos usos praticados pelos seus moradores e a fiscalização rigorosa do território[3]. Por outro lado, as favelas que estão identificadas como objetos da urbanização seriam as que se encontram nos chamados polígonos de segurança dos Jogos Olímpicos, ou seja, as favelas que estão próximas aos espaços de concentração de equipamentos esportivos[4].


As Favelas na Agenda Urbana Olímpica

È evidente que as favelas precisam estar na pauta das políticas urbanas de preparação da cidade dos Jogos Olímpicos e, sobretudo, após o evento de 2016. Entretanto, advogamos a inclusão absolutamente diferente em termos conceituais, simbólicos e práticos das que são notoriamente postas em evidência. Trata-se de colocar no horizonte não mais a resolução de “problemas urbanos”, mas a superação desigualdades sociais e distinções territoriais de direitos urbanos.  E, para tanto, novos protagonistas sociais e outros territórios devem estar presentes e evidenciados na formulação e na condução de políticas de transformação da cidade. Nesse sentido, a agenda que envolve a realização dos Jogos Olímpicos deverá estar inserida em um amplo e generoso projeto de justiça territorial. Trata-se, portanto, da construção de um legado social e urbano que promova a superação desigualdades e distinções de direitos na apropriação e uso da cidade como espaço da realização plena da vida individual e coletiva.

Esse projeto deve ser orientando na construção de vínculos efetivos de integração da cidade às favelas, especialmente mediados por políticas de qualificação das moradias e de serviços urbanos afeiçoados às histórias de cada comunidade, à fisionomia urbana construída e às experiências de sociabilidade destes territórios. Isto significa reconhecer a legitimidade social da presença das favelas na cidade, respeitando os imensos esforços empregados na construção das moradas populares e, sobretudo, efetivar direitos sociais, a partir de investimentos públicos no campo da educação, da cultura, da geração de trabalho e renda, da segurança e da habitação.

Preconiza-se, portanto, uma inflexão territorial de políticas públicas, especialmente na direção dos espaços marcados pelas desigualdades sociais, superando a notória concentração de recursos e bens públicos na cidade. Portanto, um projeto de justiça territorial urbana capaz de promover a substancialização dos direitos sociais e o reconhecimento concreto de sujeitos de direitos.

Longe de representarem territórios caóticos, sem lei e sem controle que ameaçam a cidade – como afirmam os discursos mais conservadores - as favelas constituem experiências valiosas para repensar e refazer a cidade como um todo. A inclusão das favelas no cenário de mudanças efetivas do Rio Olímpico não deve ser em função das representações negativas que se fazem delas ou por um “estado absoluto de precariedade urbana”, mas por significarem umas das experiências mais dignas e legítimas de luta de direitos à Cidade.


Notas

[1] Durante as décadas de 1962 e 1973 foram removidas cerca de 140 mil pessoas residentes em favelas, principalmente das localizadas na zona sul da cidade do Rio de Janeiro (Ver SOUZA E SILVA, Jaílson de, e BARBOSA, Jorge Luiz. (2005). Favela: alegria e dor da cidade. São Paulo/ Rio de Janeiro: SENAC / X – Brasil, p. 45/47)

[2] Em 2000, 139 cidades médias brasileiras (entre 100.001 e 500 mil habitantes) apresentavam a ocorrência ou proliferação de diversos desses tipos de “assentamentos irregulares” (favelas, loteamentos informais, ocupações, entre outras), dois anos mais tarde, 52 cidades respondiam por 3.773 aglomerações com 532 mil moradores (Pesquisa de Informações Básicas Municipais – IBGE, 2000).

[3]  “Um Novo Plano para as Favelas” – entrevista com Eduardo Paes, Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro - Jornal O Globo, 25 de julho de 2010.

[4]  Os polígonos possuem como referência a localização concentrada de centros  esportivos nos seguintes bairros cariocas:  Maracanã, Deodoro da  Fonseca, Copacabana e, sobretudo, Barra da Tijuca.

 

Bibliografia

ABREU, Maurício de Almeida. Reconstruindo uma História Esquecida – origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Espaço & Debates, nº37, 1994.

LEEDS, Anthony & LEEDS, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

SOUZA E SILVA, Jaílson de, e BARBOSA, Jorge Luiz (org). O que é a favela, afinal? Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2009

SOUZA E SILVA, Jaílson de, e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela: alegria e dor da cidade. São Paulo/ Rio de Janeiro: SENAC / X – Brasil, 2005.

ZALUAR, Alba. Um século de favela.  Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1980.

 

[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]



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Ficha bibliográfica:

BARBOSA, Jorge Luiz. Rio 2016: Jogos Olímpicos, favelas e justiça territorial urbana. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 895 (23), 5 de noviembre de 2010. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-895/b3w-895-23.htm>. [ISSN 1138-9796].