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REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
(Serie  documental de Geo Crítica)
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. X, nº 567, 25 de febrero de 2005

Gestão da Água na Península Ibérica

Wagner Costa Ribeiro
Universidade de São Paulo


Palabras clave: gestión de recursos, congresos, sostenibilidad

Key words: resources management, congresses, sustainability


Gestão da água em uma escala regional exige muita habilidade política. Ela deve resultar de uma soma de acordos entre atores diversos que integram as camadas dirigentes e as organizadas de cada região envolvida. Para isso, é preciso captar os interesses e propor formas para regular o uso da água que evitem a discórdia entre as partes[1].

Esse foi um dos objetivos do IV Congresso Ibérico sobre Gestão e Planejamento da Água, que se desenvolveu a partir do tema "Ciência, técnica e cidadania: chaves para uma gestão sustentável da água". O evento ocorreu em Tortosa, na Catalunia, Espanha, no período de 8 a 12 de dezembro de 2004 e foi organizado pela Fundación Nueva Cultura del Água.

Mas ele tinha outras metas. A principal era avaliar os impactos da Diretiva Quadro[2] sobre Água da União Européia, que entrou em vigor em 2004. Buscavam-se, ainda, modelos de gestão participativa e sustentável para uma nova cultura da água[3].

Entre a série de manifestações expostas por participantes da Espanha e de Portugal, em sua maioria, mas também da Argentina, do Brasil, da Costa Rica, da

Escócia, da Inglaterra, da Itália, do México, entre outros países, serão destacados dois aspectos: 1. o conflito pela água, tema analisado por Gleick
(2004) e Ribeiro (2004), entre outros; 2. a relação entre a participação da sociedade civil e a privatização dos serviços de água, assunto das reflexões de
Jacobi (1999), Neder (2002), Arrojo e Naredo (1997). Antes, porém, vamos apresentar a estrutura do evento e sua dinâmica.

A estrutura do evento

O Congresso tratou de temas macros, que envolvem Portugal e Espanha, mas também de aspectos regionais, como a gestão da água na Catalunia ou mesmo em uma sub-região, como a das terras do rio Ebre. Outro debate acirrado foi sobre a revisão da Lei da Água na Espanha, graças à conjuntura naquele país, marcada pela ascensão ao poder do Partido Socialista Espanhol que se opôs aos termos aprovados pelo derrotado Partido Popular. Além disso, possibilitou o aprofundamento da discussão dos problemas do uso da água no turismo, atividade muito importante para a Espanha, e seções mais técnicas, como a que tratou da dessalinização da água.

Além disso, as comunicações orais e os pôsteres trataram de vários aspectos relacionados à gestão dos recursos hídricos, porém, abordando casos de muitos países, como México, Escócia e Brasil, entre outros.

O evento foi organizado em 5 eixos temáticos: Administração Pública e Privada da Água; Gestão Integrada das Bacias Hidrográficas; Educação e Participação dos Cidadãos; Modelos de Desenvolvimento e de Economia de Água e Inovação Tecnológica e Metodológica para a Gestão e Conservação da Água. Eles foram tratados em 7 plenárias, 7 mesas-redondas e mais de uma centena de trabalhos submetidos para apresentação como comunicação oral e pôster.

As plenárias trataram dos seguintes temas: O Estado da Questão; Administração Pública e Privada da Água; Gestão Integrada de Bacia Hidrográfica; Educação e Participação Cidadã; Modelos de Desenvolvimento e Economia de Água; Inovação Tecnológica e Metodológica para a Gestão e Conservação da Água; Um Novo Modelo de Gestão da Água na Catalunia.

Já as mesas-redondas destacaram os seguintes assuntos: A Gestão da Água na Iberoamérica: tendências, desafios e oportunidades para uma cultura da sustentabilidade na região; Gestão Integrada de Bacias Hidrográficas; Dessalinização: solução ou problema?; Gestão da Água nas Terras do rio Ebre; Reforma da Lei das Águas; Participação Cidadã: realidade ou ficção?; Desenvolvimento Turístico e Consumo de Água.

Não menos relevantes foram as diversas comunicações orais e os pôsteres que ficaram expostos ao longo do evento. No primeiro caso, apesar da concomitância, foi possível conhecer pesquisadores, representantes de organizações não governamentais e de órgãos de governos apresentando práticas e reflexões envolvendo o uso da água. A presença brasileira não foi numerosa, mas abordou a gestão da água na Grande São Paulo, trabalho apresentado pelo autor desse texto, e em comitês de bacia, como o do rio Pardo, no Estado de São Paulo, que teve como protagonista o professor Antonio César Leal, da Universidade Estadual Paulista, entre outros. Depois, a presença mexicana foi notória. Vários trabalhos apresentaram a gestão da água no México com pontos de vista diferentes. Entre as ONGs, merece destaque o interessante trabalho da Projecte Rius[4], que mobiliza a população de diversas bacias na Catalunia para realizar um monitoramento dos rios catalãs, seguido, em alguns casos, de revitalização de matas ciliares, entre outras iniciativas, apresentado pela bióloga Núria Morral.
 

Conflito por água

Logo na primeira plenária, "O estado da questão", pode-se apreender claramente um dos temas mais crucial que envolve a gestão política dos recursos naturais, em especial a da água: o conflito.

O senhor Jaime Piqueras, do Ministério de Medio Ambiente da Espanha, afirmou que para cumprir as determinações da Diretiva Quadro da Água será preciso alterar o uso do solo em diversos países, inclusive na Espanha, o que gerará conflitos. Como exemplo, citou o caso de agricultores que há gerações plantam determinado produto em uma região que não dispõe de água suficiente para suportar o desenvolvimento das plantas.

A alteração de costumes e práticas agrícolas da população não ocorrerá sem resistência. Como fazer com que um grupo social mude uma prática agrícola para outra? A participação social na gestão dos recursos hídricos pode ser uma alternativa que deve ser combinada à uma sensibilização da população para o problema.

Na mesma plenária, o senhor Pedro Serra, consultor do Instituto Água de Portugal, também apontou a possibilidade de conflito por água. Porém, ele o fez para outro aspecto, ao afirmar que um usuário à jusante pode condicionar juridicamente usuários à montante caso veja ameaçado seu abastecimento. Por isso, reforçou a necessidade de regulamentar a gestão compartilhada de bacias internacionais. Cabe comentar que não foi citada pelos participantes dessa plenária a Convenção de Helsinque[5], que regulamentou o uso da água em escala internacional entre países europeus.

No discurso do representante de Portugal apareceu um outro tipo de conflito: o cumprimento de um acordo entre as partes, tema recorrente quando se analisa a ordem ambiental internacional (Ribeiro, 2001). Segundo afirmou, Portugal, tal qual prescrito na Diretiva Marco da Água, identificou as bacias internacionais e indicou as autoridades competentes para negociar, enquanto que a Espanha ainda não o fez.

É fácil entender a preocupação do participante português. Quando se analisa a distribuição da água em Portugal observa-se que as 5 bacias internacionais do país são compartilhadas com a Espanha, a saber: Douro/Duero; Guadiana; Lima, Minho e Tejo/Tagus. Ou seja, as águas portuguesas dependem, em grande parte do território espanhol.

Data de 1864 o acordo que definiu os limites entre os países, que acabou por deixar com a Espanha o domínio territorial de todas as bacias citadas. Depois, apenas em 1998 chegou-se à Convenção sobre a Cooperação, Proteção e Uso Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Portuguesas e Espanholas (UNEP, 2002).

A Diretiva Marco da Água agregou novos elementos a esse tratado. Ao indicar uma autoridade responsável para cada bacia, ela permite um debate técnico-político entre as partes. Ao mesmo tempo, possibilita uma maior participação da população, incentivando a prática da cidadania, uma das principais bandeiras do ambientalismo em escala internacional, reconhecida em documentos importantes como a Agenda XXI e a Declaração de Joanesburgo.

Cidadania e gestão da água

Envolver a participação dos cidadãos na gestão dos recursos hídricos caminha na direção contrária à privatização dos serviços de água. Ao menos é o que se pode concluir depois de ouvir especialistas, como o senhor René Castro, que apresentou o caso da Costa Rica, seu país, onde a população foi alijada da discussão sobre os rumos da água, e José Esteban Castro, argentino que trabalha na Universidade de Oxford, que afirmou que a privatização excluiu a população da discussão sobre os recursos hídricos na Inglaterra e em vários países da América Latina, como o México.

Ao assistir à apresentação do senhor Luis Camps, representante da Aigues de Barcelona, empresa responsável pela gestão da água em Barcelona mas que pertence a um conglomerado que possui a concessão dos serviços de água em Santiago, no Chile, entre outros países da América Latina, nota-se que na ética de um grupo privado não cabe a participação popular. Ele comentou que há um intercâmbio entre técnicos espanhóis e chilenos, mas não citou o envolvimento dos usuários de Santiago ou de Barcelona, por exemplo, na gestão da água.

O Secretário Nacional dos Recursos Hídricos do Brasil, senhor João Senra, esteve entre os convidados do Congresso. Ele tratou do caso brasileiro, onde a gestão participativa está em operação desde o início da década de 1990 por meio dos Comitês das Unidades de Bacia Hidrográfica do Estado de São Paulo, que determinam que 1/3 dos representantes sejam da sociedade civil. Os rios que passam por dois os mais estados brasileiros são geridos pela Agência Nacional da Água, que também prevê a participação da sociedade civil nos Comitês de Bacia. Isso já vem ocorrendo, por exemplo, no Comitê de Bacia do rio Paraíba do Sul, importante curso d'água que passa pelo eixo Rio-São Paulo, o mais industrializado do Brasil.

O exemplo brasileiro pode servir para outras situações já que a participação popular, o exercício da cidadania relacionado à qualidade e à oferta dos recursos hídricos, vem ocorrendo há mais de 10 anos. Porém, ele não foi suficiente para impedir a privatização dos serviços de água em alguns municípios do país.

Conclusões

A reunião de diversos especialistas e ativistas envolvidos com a gestão dos recursos hídricos em Tortosa foi muito interessante. Ela possibilitou o conhecimento de realidades distintas, mas que apresentam problemas comuns, como falta de água de qualidade ou dificuldades para a participação dos pequenos usuários na gestão da água.

De maneira geral, ficou claro que podem surgir conflitos de várias ordens pelo cumprimento de acordos internacionais, como a Diretiva Marco da Água. Um segundo tipo de conflito viria do descumprimento de acordos internacionais.

Os exemplos de privatização dos serviços da água discutidos no Congresso Ibero foram unânimes em um ponto: eles excluem a participação popular. Ou seja, privatização tem sido sinônimo de perda de cidadania.

Entre as conclusões podemos apontar que, em situações isoladas podem surgir confrontos pelo acesso à água e que a alternativa da privatização dos serviços de água alija a sociedade civil da gestão dos recursos hídricos. É preciso discutir novas alternativas para garantir o acesso à água de qualidade à população, sem excluí-la das decisões.

Notas

[1] Trabalho desenvolvido com apoio da CAPES, por ocasião da estada do autor na Universidade de Barcelona para um pós-doutorado.

[2] A Diretiva Quadro sobre Água da União Européia foi concluída em 23 de outubro de 2000. Em 26 artigos e 9 anexos, definiu o uso da água e sua conservação entre os Estados membros (http://europa.eu.int/eur-lex/pri/pt/oj/dat/2000/l_327/l_32720001222pt00010072.pdf).

[3] A Nova Cultura da Água propõe um compromisso ético com a água e com as gerações futuras. Seus defensores alegam que o rio não pode ser visto apenas como um corpo d'água, mas em todo a complexidade de manifestações de vida que ele abriga e propicia. Além disso, propõe um uso mais racional dos recursos hídricos e a adequação das práticas agrícolas à disponibilidade hídrica local. Para mais informações, acessar http://www.unizar.es/fnca.

[4] Para maiores informações sobre o trabalho desenvolvido pela Projecte Rius, acessar http://www.projecterius.org/.

[5] A Convenção sobre Proteção e Uso dos Cursos d'Água Transfronteiriços e Lagos Internacionais, assinada em 5 de agosto de 1995 em Helsinque, foi criada para proteger os cursos d'água transfronteiriços. Para uma análise da Convenção de Helsinque ver Neves, 2004.
 

Referências bibliográficas

ARROJO, Pedro e NAREDO, José Manuel. La gestión del agua en España y Califórnia. Comité Español del MAB (Programa Hombre y Biosfera de la UNESCO) Bilbao : Bakeaz, 1997.

GLEICK, Peter. Water conflict chronology - 2003. http://www.pacinst.org/, acessado em 09 de fevereiro de 2004.

JACOBI, Pedro. Cidade e meio ambiente: percepções e práticas em São Paulo. São Paulo : Annablume, 1999.

NEDER, Ricardo Toledo. Crise socioambiental: estado e sociedade civil no Brasil, 1982-1998. São Paulo : Ed. Annablume/ FAPESP, 2002.

NEVES, Sinval. Águas transfronteiriças: fonte de conflitos ou de cooperação? IN: Anais do VI Congresso Brasileiro de Geógrafos, Goiânia, 2004.

RIBEIRO, Wagner Costa. Água doce: conflitos e segurança ambiental. In: MARTINS, Rodrigo e VALENCIO, Norma (Organizadores). Uso e gestão dos recursos hídricos no Brasil: desafios teóricos e político-institucionais. São Carlos : RiMa, 2003, v. 2, pp. 71-77.

RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo : Contexto, 2001.

SCHENEIER Graciela & Bernard GOUVELLO (Sous la direction de). Eaux et réseaux. Les défis de la mondialisation. Paris: Institut des Hautes Études de l'Amerique Latine/Centre de Recherche et Documentation sur l'Amerique Latine (Travaux et Mémoires de l'IHEAL, nº 76), 2004 (véase  <http://www.ub.es/geocrit/b3w-218.htm> ).

UNEP. Atlas of international freshwater agreements. Nairobi : United Nations Environment Program, 2002.
 

© Copyright: Wagner Costa Ribeiro, 2005
© Copyright: Biblio3W, 2005

Ficha bibliográfica

COSTA RIBEIRO, W.  Gestão da Água na Península Ibérica. Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. X, nº 567, 25 de febrero de 2005. [http://www.ub.es/geocrit/b3w-567.htm]. [ISSN 1138-9796].


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