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Scripta Nova.
 Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 94 (5), 1 de agosto de 2001

MIGRACIÓN Y CAMBIO SOCIAL

Número extraordinario dedicado al III Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

DIMENSÃO ANTROPOGEOGRÁFICA DOS MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS

Marcos Bernardino de Carvalho
Pontificia Universidade Católica de São Paulo/ Brasil


Dimensão antropogeográfica dos movimentos migratórios (Resumo)
As abordagens dos estudos de população e de migrações, especialmente aquelas feitas em nome da Geografia da População, têm se caracterizado pelo reducionismo demográfico, estatístico e econômico. Mas, de alguns pensadores não-geógrafos do presente e da formulação antropogeográfica, proposta por F. Ratzel, ainda no século XIX, é possível extrair algumas idéias bastante inspiradoras para novas abordagens que queiram considerar outras dimensões, que não apenas as econômicas, dos deslocamentos humanos. Este artigo pretende indicar, entre essas idéias, aquelas mais apropriadas para fortalecer o espírito de tolerância, o respeito à diversidade e aos direitos humanos, incluindo as liberdades de pensamento e de movimento, com as quais deveríamos nos guiar para enfocar os deslocamentos migratórios.

Palavras-chave: mestiçagem / migrações / antropogeografia / diversidade / cosmopolitismo


Anthropogeographical dimension of migratories movements (Abstract)
The approaches of population and migration studies, especially those made on behalf of Geography of Population, have been characterized by demographical, statistical and economical reductionism. However, it is possible, from both some non-geographers thinkers of nowadays and Ratzel's anthropogeography, proposed in 19th century, to draw some quite inspiring ideas to new approaches which would consider dimensions of human displacement other than only the economic ones. This article intends to point out among these ideas the most appropriate ones to looking at migratory movements, seeking to strenghten tolerance, respect for diversity and human rights, including freedom of thought and movement.

Key-words: miscegenation / migrations / anthropogeography / diversity / cosmopolitanism


Este será um diálogo travado com todos aqueles que de alguma maneira se sentem um pouco lesados, ou diminuídos de sua humana condição, todas as vezes que se deparam com análises populacionais que reduzem seres humanos a números, ou a resíduos biológicos (famintos ou sedentos) e econômicos (força de trabalho ou desempregados), cuja única meta de vida é a da sobrevivência imediata.

Mas esse diálogo será travado especialmente com um agrupamento profissional que também é reponsável pela produção dessas análises que incomodam: os geógrafos da população, ou geodemógrafos, ou, simplesmente demógrafos, como alguns prefeririam ser chamados.

A condição atual, do autor deste texto, de professor de geografia da população para o bacharelado em geografia numa universidade brasileira, poderia ser evocada, por si só, como justificativa para esse direcionamento especial aos geográfos e à geografia. Mas outra razão igualmente importante reside no fato de que se poderia extrair da tradição teórica da própria geografia, especialmente se seus praticantes se dispuserem a sair da "neutralidade" e se engajarem em abordagens solidárias aos seus "objetos" (populações), idéias e inspirações capazes de apoiar as novas análises que as consciências lesadas estão a exigir, independentemente de suas filiações profissionais, étnicas, religiosas, financeiras, nacionais etc.

Nesse sentido, apesar da atenção especial que possa ser dedicada aos geógrafos, por causa de nossa condição e de algum vício corporativo, o diálogo, acreditamos, se dirigirá a todos que produzem análises e abordagens populacionais, particularmente com vistas a entender o papel dos chamados movimentos migratórios.

O espírito aqui será um pouco o de fortalecer posições e posturas como as adotadas pelos estatísticos populacionais alemães em sua atual campanha — Alle Menschen zählen. Statistiker gegen Fremdenfeindlichkeit, für Demokratie und Toleranz (1)—, por meio da qual estimulam um engajamento solidário aos estrangeiros e aos que são obrigados a migrar, justamente porque, conforme anunciam, pretendem alcançar "conclusões objetivas, neutras e cientificamente independentes", mas não vêem outra maneira de atingirem tais metas a não ser que exerçam suas profissões em ambientes povoados por espíritos movidos pela tolerância, pela cooperação e liberdade de pensamento.

Antes, porém, de nos aprofundarmos na importância desses valores, gostaríamos de recuperar um pouco da história e dos vícios adquiridos pelas abordagens geodemográficas.
 

Os vícios estatístico-demográficos dos estudos de população

Nos manuais de geografia humana, nos capítulos dedicados aos estudos de população, invariavelmente aponta-se o período posterior à II Guerra Mundial — década de 50 —, como aquele em que florescem os trabalhos e análises geodemográficas que justificam o estabelecimento de uma subdisciplina especificamente dedicada aos assuntos de população no âmbito da geografia.

Carências de informação estatística consistente, ausência de regras para unificação e coleta de dados, fraco interesse pelas questões demográficas e prevalescimento ainda de relações coloniais entre muitos países, são, entre outros, os argumentos evocados para justificar o desinteresse, anterior aos anos 50, por uma geografia dedicada aos estudos de população.

No entanto, as modificações experimentadas pelo mundo após a II Guerra, tanto no plano das novas realidades políticas e econômicas que passam a ser enfrentadas pelos países e suas populações, como no plano institucional das relações entre esses países, através, por exemplo, da fundação e reconhecimento da ONU e especialmente sua divisão dedicada aos assuntos populacionais, UNFPA — Fundo das Nações Unidas Para a População —, fizeram com que a situação de interesse pelas questões demográficas também mudassem radicalmente. Segundo Rafael Puyol:

"A evolução demográfica posterior à II Guerra Mundial indicou novos e graves problemas, com diferentes significados para os países desenvolvidos e para o Terceiro Mundo, que tornaram a população um tema de interesse social, de que antes carecia. Outras ciências, como a Demografia, à qual a Geografia da População deve importantes aportes metodológicos, experimentaram, de certo modo, o mesmo processo(2)".


Talvez fosse possível acrescentar que caminhos não muito diferentes foram também experimentados pelas disciplinas sociólogicas, econômicas, ecológicas etc., vinculadas aos temas populacionais e dependentes dos desenvolvimentos conquistados pela demografia. Em geografia, trabalhos como os produzidos por Pierre George e Glen Trewartha (3), por tratarem exclusivamente do tema população, são considerados pioneiros na sistematização, instituição e estabelecimento das diretrizes e modelos teóricos da nova disciplina. Mas, independentemente dessas matrizes mais recentes e específicas a cada um dos campos disciplinares interessados nos estudos populacionais, há uma concordância na indicação das fontes teóricas mais remotas que teriam inspirado inclusive muitas das formulações atuais. No caso especifico da demografia, Hervé Le Bras afirma o seguinte:

"Todos os demógrafos, que quase nunca estão de acordo, reconhecem, no entanto, que J. Graunt fundou sua disciplina ao publicar em Londres, em 1662, suas Observações naturais e políticas. A obra marca também o nascimento da aritmética política: primeira tabela de mortalidade, primeiras comparacões entre populações, entre cidades ou entre Estados, primera indicação de riscos de mortalidade segundo o ano e a causa etc (4)".


E no caso das demais disciplinas que, a despeito dos enfoques mais sociológicos, econômicos ou geográficos, possam ser caracterizadas como demográficas, são evidentes as influências exercidas pelo pensamento dos mesmos inspiradores do liberalismo clássico, de seus seguidores, contestadores etc., tais como Adam Smith, David Ricardo, Thomas R. Malthus, K. Marx, F. Engels, entre outros. Bastam essas breves indicações para entendermos os vícios demográficos (descritivos, quantitativos e estatísticos) que acompanham os estudos de população nos mais diversos campos disciplinares.

Em geografia, por exemplo, os vícios mencionados, além de conduzirem muitos dos "geodemógrafos" a nutrirem uma crença cega na precisão dos números, patrocinaram abordagens igualmente viciadas pelos reducionismos estatísticos e locacionais. Jaqueline Beajeu-Garnier chega a proclamar na introdução de sua já clássica obra dedicada ao assunto, Geografia da População: "Os números são a chave insubstituível da precisão e das comparações que constituem elementos para a classificação(5)". Pierre George, por sua vez, em texto homônimo, afirma: "A mais inelutável das razões da desigualdade entre os homens é hoje a sua origem geográfica, isto é, o lugar onde nascem(6)". Ou seja, para desenvolver a geografia da população que então nascia, bastava conjugar os seguintes verbos: localizar, descrever e quantificar.
 

A população como ameaça e as falsas projeções demográficas

As descrições estatístico-locacionais prestaram-se muito bem para desenvolver a versão geográfica do mesmo reducionismo economicista que, em maior ou menor escala, assenhorou-se dos estudos populacionais promovidos pelas mais diversas áreas do conhecimento. Por essa razão a dinâmica da população e de seus movimentos têm sua análise quase sempre reduzida aos ditames das necessidades econômicas, das desigualdades entre as regiões e entre os países, num mundo cuja totalidade é vista como uma espécie de justaposição dos interesses desses mesmos países e assim por diante. A população, nesse caso, é invariavelmente descrita como um fenômeno numérico que cresce e ameaça o conteúdo econômico das estabilidades geopolíticas consagradas pelo jogo entre as nações e a análise de seus deslocamentos — movimentos migratórios —, circunscreve-se aos limites estabelecidos por esse tipo de percepção, ou seja, ora são entendidos e descritos como função de uma necessidade estimulada pela geopolítica dos Estados em atendimento a uma necessidade econômica qualquer, ora como função de uma restrição provocada por variações conjunturais dessa mesma necessidade.

Pierre George e Beaujeu-Garnier, nas obras há pouco mencionadas, não vacilaram em caracterizar o fenômeno populacional com expressões tão eloqüentes como "vertigem demográfica" (George) ou "maré humana" (Beaujeu-Garnier), que foram as formas como esses autores se referiram aos próprios perfis de crescimento populacional com os quais normalmente introduziam suas análises:
 

"A população do mundo duplicou primeiro em 2000 anos, entre a Antiguidade e a Idade Moderna, depois em dois séculos, de 1650 a 1850, em menos de um século de 1850 a 1940, e finalmente numa geração... Não é exagero falar-se de uma vertigem demográfica (7)".
De maneira bastante semelhante a essa descrição exponencial do perfil de crescimento populacional, Beaujeu-Garnier abre a introdução de seu livro exclamando: "Poder-se-á perguntar até onde irá essa maré humana e quanto tempo nosso pequeno planeta poderá conter e, acima de tudo, alimentar todos esses milhões...(8)".

Aparentemente, nesse tipo de abordagem faz-se apenas projeções demográficas com o intuito de se discutir os melhores caminhos e medidas para promover o bem estar das populações humanas. Na prática, como bem nos alerta Le Bras em seu livro Los límites del planeta/ Mitos de la naturaleza y de la población, tais projeções são geopolíticas e ilustram os temores de perda de estabilidade e de poder econômico e geopolítico desfrutados pelos centros difusores e produtores dessas abordagens.

Segundo demonstra Le Bras, especialmente no capítulo 12 — Espejos de La Previsión —, de sua mencionada obra, desde 1925, quando o demógrafo inglês A. M. Carr-Saunders publicou pela primeira vez um mapa que mostrava na escala do planeta o crescimento das populações, uma sucessão de previsões e projeções demográficas foram produzidas, ora superestimando, ora subestimando, os crescimentos de parcelas da população mundial, de acordo com os interesses e/ou ameaças que os contextos específicos pretendiam divulgar. Assim, no mapa pioneiro de Carr-Saunders, o que hoje denominamos de países do terceiro-mundo apresentavam uma taxa de crescimento bastante baixa, se comparada com a dos que viriam a compor o primeiro mundo e isto se tornaria um argumento demográfico para justificar a ocupação, por parte destes últimos, dos espaços pouco povoados dos países do sul. Em outros momentos, durante o período áureo da Guerra Fria, as projeções invariavelmente apresentavam altos crescimentos populacionais para os países do leste europeu, especialmente na antiga URSS, e um baixo ritmo de crescimentos dos países do oeste e, dessa forma, o comportamento demográfico ilustrava a ameaça socialista à estabilidade capitalista(9).

Hoje, ainda segundo Le Bras, "o temor ecológico volta a colocar na moda os malabarismos com os efetivos populacionais (10)". E as populações que já foram peça importante para alertar sobre as ameaças ao equilíbrio geopolítico entre países do norte e do sul, que já ameaçaram também a estabilidade do padrão de acumulação ocidental, atualmente foram promovidas à condição de séria ameça à estabilidade do planeta como um todo: "Meio ambiente e ecologia unem-se aqui para restaurar a velha ideologia do poder do número, mas em um nível que supera o da geopolítica(11)".

Com a aparência de que estão descrevendo e examinando desinteressadamente apenas as dinâmicas das populacões, seus desdobramentos e fatores, ou, agora, a estabilidade e o equilíbrio ambiental do planeta, em todas as suas latitudes, muitos analistas têm na verdade é contribuido para travestir de análises demográficas as preocupações e discussões acerca dos melhores caminhos para o desenvolvimento e manutenção de interesses econômicos e geopolíticos, que geralmente beneficiam apenas parcelas minoritárias dessas populações e em latitudes muito precisas.
 

Deslocamentos populacionais como imposições dos fluxos econômicos

Entre os desdobramentos e fatores da dinâmica populacional, os movimentos migratórios, invariavelmente são analisados segundo as mesmas perspectivas a que nos referimos: em geral são enquadrados e vistos como fatos a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos mencionados, isto é, são tratados como indicadores demográficos dos fluxos econômicos do padrão de acumulação global e das disputas políticas que daí advém.

Esse padrão, como sabemos, elegeu a cidade como locus privilegiado para o controle, gerência e execução de suas estratégias produtivas e acumulativas. A partir daí expandiu a espacialidade urbana, convertendo-a numa trama de alcance planetário, capaz de impor seus ritmos, suas necessidades de divisões sociais e técnicas do trabalho a todos os lugares e a todos os agrupamentos sociais. Nesse contexto é natural que os movimentos de urbanização tenham se tornado os mais importantes entre os deslocamentos migratórios, tanto considerando as quantidades de pessoas por eles envolvidas, como considerando o significado que a consagração do sistema urbano de referências tem para o próprio padrão de acumulação globalmente instalado. A urbanização, nesse caso, torna-se sinônimo de adesão a esse padrão e é assim divulgada e estimulada, mesmo que não restem quaisquer outras opções nesse processo de "adesão".

Segundo previsões do Fundo das Nações Unidas Para a População (UNFPA), por volta de 2030 se concentrarão nas zonas urbanas 4,9 bilhões de pessoas, 60 por cento da população mundial, contra um índice de 47 por cento da atualidade. Para regiões específicas como América Latina e Caribe ou Europa e América do Norte, o informe do UNFPA prevê índices maiores ou iguais a 83 por cento de urbanização(12).

Esses movimentos projetados pelo fundo de população da ONU, embora tenham uma expressão internacional e reflitam, evidentemente, a forma como cada país ou região do globo participa do processo de acumulação global, são classificados como migrações internas. As migrações internacionais que, quantitativamente falando, abrangem um número bastante inferior àquele envolvido pelo processo de urbanização, aparecem assim como movimentos compensatórios aos problemas, conflitos e crises gerados pela movimentação principal. Entre os estímulos que promovem as migrações internacionais, o documento do UNFPA aponta os seguintes:

"A busca por uma vida melhor para si e para sua família; as disparidades de recursos entre distintas regiões e no interior de uma mesma região; as politicas trabalhistas e migratórias dos paises de origem e de destino; os conflitos políticos; a degradacão do meio ambiente, incluindo a perda de terras de cultivo, florestas e pastos; o 'êxodo de profissionais', ou a migracão dos jovens com maior grau de formação dos países em desenvolvimento para preencher as deficiências da força de trabalho dos paises industrializados(13)".


Esse caráter compensatório e, até certo ponto, apêndice dos processos urbanos, com que são observadas tais migrações, explicita-se ainda mais com as argumentações e indicações presentes em um outro informe da mesma divisão de população da ONU, sobre o que denominam "migrações de reposição" (replacement migration, no original em inglês): "A expressão migrações de reposição é utilizada para definir o nível de migracões internacionais necessário em cada país para evitar a diminuição e o envelhecimento da população que resultam de taxas de fecundidade e de mortalidade baixas(14)". Evidente que aqui as indicações se referem basicamente às necessidades daqueles países e regiões do globo que majoritariamente ocupam posição de destaque e comando na rede urbana mundial, pois, como sabemos, são eles, salvo exceções, os mais "ameaçados" pelas baixas taxas de fecundidade e mortalidade que, entre outras conseqüências, apontam para um grande envelhecimento de suas populações, diminuição da força de trabalho ativa e aumento das despesas sociais. De fato, os países examinados no informe são: Alemanha, Estados Unidos, Rússia, França, Itália, Japão, Reino Unido e República da Coréia, além de duas regiões — Europa e União Européia. Entre outras conclusões, apontam-se as seguintes: "Em termos relativos, Alemanha e Itália necessitariam o número mais elevado de imigrantes para manter o tamanho de suas populações ativas. Itália necessitaria anualmente 6.500 migrantes por milhão de habitantes e Alemanha necessitaria 6.000. Os Estados Unidos precisaria menos — 1.300 imigrantes por milhão de habitantes anualmente(15)".

Como se vê, as populações, especialmente as mais pobres, concentradas nos chamados países "em desenvolvimento", que quase sempre são tratadas como uma espécie de ameaça às estabilidades econômicas, geopolíticas, ideológicas ou ambientais, são, dessa maneira, promovidas agora à condição de "peças de reposição" do mecanismo global.
 

Outras dimensões dos movimentos migratórios

Apenas com o que vimos abordando até aqui, já se pode ter uma boa idéia dos parâmetros e referências que esquadrinham as análises, projeções e outras considerações acerca dos movimentos migratórios. Confirmam o que de início afirmávamos com relação aos estudos de população de uma maneira geral: a redução estatística, o privilégio às abordagens quantitativas e a eleição da dimensão econômica, senão como determinação exclusiva, pelo menos como subordinadora ou, então, como referência hegemônica no que diz respeito às orientações, estímulos e desencadeamentos das migrações humanas.

Não discutiremos aqui a importância da dimensão econômica, pois ela é óbvia. As influências exercidas pelos arranjos econômicos nas dinâmicas populacionais, especialmente no estímulo ou desestímulo aos deslocamentos dos agrupamentos humanos, são fatos incontestáveis. Sua consideração, além de útil e necessária, é obrigatória para quem se proponha a entendê-los seriamente.

Mas quando a intenção das análises não é a de se restringir à explicação do jogo econômico internacional, nem a de formular propostas dinamizadoras desse jogo, mas produzir conhecimento que seja capaz de contribuir para a compreensão da geografia do planeta e conseqüentemente de sua população, não se pode reduzir a abordagem apenas aos aspectos econômicos da questão. Essa redução não só desvirtua o sentido histórico-cultural que as movimentações humanas apresentam, quando examinadas à luz de dimensões espaciais e temporais mais amplas, como também contribui para alimentar os inúmeros vícios interpretativos decorrentes de concepções equivocadas sobre os seres humanos. Concepções essas que costumam ver os seres humanos como fragmentados e governados por uma hierarquia de necessidades (ou de liberdades), classificadas como básicas (consideradas fundamentais), quando vinculadas aos aspectos da chamada sobrevivência imediata (física, biológica ou econômica), ou como secundárias (e, portanto, supérfluas), quando vinculadas aos aspectos produzidos pelas diversas identidades culturais.

Portanto, do ponto de vista de abordagens interessadas na compreensão das populações e de suas dinâmicas, isto é, interessadas nas movimentações do seres integrais e culturais que as protagonizam, há que se considerar, por exemplo, que migrar é também difundir histórias, hábitos de cultura, memórias e ações ambientais pelos diversos cantos do planeta e, ao mesmo tempo, absorver outras histórias, outras culturas, metabolizar outros ares, outros ambientes. Sendo assim, as imposições das necessidades episódicas de padrões de acumulação transitórios, podem nem ser o mais importante a se considerar, nem ser tampouco o caminho mais indicado para elucidar o papel desempenhado pela condição humana no planeta, em todos os seus desdobramentos, que, sabemos, são inseparavelmente históricos, sociológicos, antropológicos, ecológicos, geográficos, econômicos, físicos, biológicos etc.

Sobretudo em tempos como os de agora, de subordinação das pessoas e dos lugares a um único e pretensiosamente global padrão de acumulação, a ampliação dos enfoques restritivamente estatístico-demográficos para a consideração das outras dimensões e desdobramentos que as migrações revelam e produzem, mais do que ser uma exigência cognitiva, impõe-se como uma espécie de imperativo ético. Bastaria recordarmos algumas das características que presidem esses tempos, para entendermos o porquê.

Embalado pelas referências do assim chamado neoliberalismo, o processo de subordinação global não têm medido esforços para conquistar suas metas de assenhoramento do planeta. Dessa forma, o individualismo, a competitividade e a concorrência, independentemente da lisura dos meios empregados, têm sido alguns dos valores mais difundidos. A imposição de regras de consumo e produção (especialmente de produtos agrícolas), a redução dos programas sociais, a privatização das conquistas e das necessidades públicas, o arrocho salarial e financeiro, têm sido as indicações mais comuns feitas pelos gerenciadores da globalização através de seus organismos gestores tais como FMI, BIRD e OMC. E a fé cega na tecno-ciência e no mercado, têm sido a postura mais recomendada para aqueles que ainda não se sentem beneficiados pelo conjunto das ações globais.

Como conseqüência dessas ações, aprofundam-se as desigualdades entre países e regiões, avoluma-se o endividamento externo dos integrantes do chamado Terceiro Mundo, estreita-se o controle monetário das economias, o desemprego atinge níveis preocupantes, aumenta a pobreza, as classes médias perdem qualidade de vida, recrudesce toda ordem de conflitos, dos trabalhistas aos nacionais, dos étnicos aos religiosos. Se prosseguíssemos nessa listagem de conseqüências chegaríamos, por fim, ao rol completo dos ingredientes daquilo que M. Santos denominou de "globalização perversa(16)", em que, para arrematar a lista, "alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção(17)".

Diante desse quadro, de uma "época de globalitarismo muito mais que de globalização(18)", é normal que entre as "soluções" adotadas, para fazer frente às conseqüências mencionadas, parcelas crescentes das populações atingidas se desloquem, ou, se se preferir, sejam deslocadas de seus lugares e engrossem as estatísticas de migração.

Em primeiro lugar, como já mencionamos, aparecerão os deslocamentos em direção às cidades, refletidos nas estatísticas de urbanização. As migrações internacionais, no entanto, apesar de atualmente envolverem números menores de contingentes populacionais, intensificam-se e exigem maior consideração, conforme reconhece o próprio UNFPA(19).

Obviamente, diante dos fatos promovidos pela perversidade econômica e principalmente diante dos valores morais de que ela têm se valido, a presença dos migrantes é que será vista como ameaça; a invasão dos "estrangeiros", vindos dos campos e da cidades, do próprio país ou de outros países, conseqüentemente, só tende a agravar os conflitos, as intolerâncias, os preconceitos e a xenofobia, como manifestações de um mecanismo de transferência, para as vítimas do processo, dos ódios e das revoltas que as percepções reducionistas não conseguem canalizar para as matrizes verdadeiramente geradoras das mazelas globais.

É por essa razão que a ampliação dos enfoques restritivamente estatístico-demográficos, para a consideração de dimensões qualitativas que evidenciem também as identidades e os traços comuns existentes entre todos os seres humanos, e não só as incompatibilidades momentâneas que arranjos transitórios da política e da economia costumam cultivar em prol de interesses imediatistas, torna-se um imperativo ético que vai além de uma exigência de complementação cognitiva.

A materialização dessa necessidade ético-cognitiva pode se dar através do estímulo a formulações que se proponham a observar os movimentos migratórios de uma perspectiva daqueles que migram, realçando valores de tolerância, de respeito à diversidade, de cooperação e de solidariedade, em oposição ao cinismo, ao egoismo e à pretensão de homogeneidade, que têm lastreado a competitividade e a exclusão globais. Tais abordagens, solidárias aos que migram, não contribuiriam apenas para revelar algumas dimensões não muito presentes nas análises populacionais, especialmente naquelas feitas em nome dos estudos demográficos ou geodemográficos, mas, principalmente, poderiam contribuir para indicar que há possibilidade de inversão no sinal da perversidade promovida pelo atual padrão de acumulação, que dessa sua condição de "globalitarismo", poderia investir-se dos valores de uma democracia planetária, desde que o ritmo dos processos globais se apoiasse nos interesses das populações de todas as latitudes e não apenas nos dos padrões de acumulação que interessam a uma parcela restrita delas.
 

Recuperar a dimensão antropogeográfica da dinâmica populacional

Para os interessados em produzir abordagens que invertam ou ampliem os enfoques estatístico-demográficos, há, na geografia, toda uma tradição de desenvolvimentos teóricos, anteriores aos anos 50, que se recuperada poderia muito bem servir como fonte de apoio e de inspiração. Para isso, no entanto, algumas barreiras necessitariam ser vencidas.

Infelizmente é comum dizer-se que dessa tradição seria possível extrair apenas contribuições muito remotas, pois as abordagens geográficas que de alguma maneira contemplavam enfoques populacionais, antes dos anos 50, são criticadas por se dirigirem mais para "as marcas deixadas pelo homem na superfície da Terra do que ao estudo dos seres humanos (a população)(20)".

Assim, nas obras de Jean Brunhes (1869-1930), Max Sorre (1880-1962), Carl Sauer (1889-1975) ou Carl Troll (1899-1975), entre outros, e nas suas propostas de "ecologia do homem", "ciência da paisagem" ou de "geografia cultural", acusa-se o "defeito" de terem promovido abordagens geográficas orientadas muito mais para conteúdos "ecológicos" do que propriamente populacionais. Ou, então, de obras mais anteriores ainda, como as produzidas por Friedrich Ratzel (1844-1904), de quem inúmeros dos pensadores mencionados extraíram muito de suas inspirações, chegou-se até mesmo a dizer que nem a própria geografia, como ciência, teria sido contemplada em suas formulações(21).

Todos esses "defeitos", a geografia da população que emergiu no pós-guerra pretendeu consertar. Acreditando estar sintonizada com as próprias exigências de desenvolvimentos cognitivos, especializados no assunto população, para a época, instituiu a subdisciplina geográfica vinculada exclusivamente a esse tema, libertando-a das assim consideradas diluições promovidas por abordagens do tipo homem-meio que até então se faziam. Além do mais, ao investir-se de um conteúdo quase exclusivamente demográfico e estatístico acabou conferindo ares de ciência para a nova subdisciplina, pois essa passou a se comunicar em linguagem matemática, e seus temas, reduzidos às quantificações, passaram a ser equacionáveis nos mesmos termos das ciências que tradicionalmente têm sido as mais merecedoras do qualificativo científico.

Mas, ao julgar libertar-se de uma diluição — a "ecológica"—, promoveu, na verdade, outra: a econômica. E ficamos mais uma vez em dívida com abordagens integrais, não reducionistas e não deterministas, da população. Essa dívida, no entanto, pode começar a ser resgatada se em atendimento às necessidades ético-cognitivas a que há pouco nos referimos, finalmente investirmos em abordagens solidárias aos conhecimentos e necessidades dos que protagonizam os processos populacionais.

Isso envolve, é claro, predisposição para a produção de novas análises e para a adoção de novos sistemas de referências teóricas, que sejam capazes de contemplar outras dimensões da existência humana, além das econômicas. E é aqui que poderiam ser muito úteis e inspiradoras algumas das idéias presentes nas obras daqueles pensadores que não tem tido o direito de figurar sequer como pré-história dos estudos populacionais. Entre eles, e até mesmo por causa da influência que seu pensamento exerceu em todos os demais, destaca-se F. Ratzel, cujas formulações antropogeográficas deveriam merecer, mais uma vez, a atenção dos interessados na construção de novas abordagens.

Também nesse tema as possíveis contribuições de Ratzel ou foram esquecidas ou foram desvirtuadas e preconceituosamente apagadas de nossa história(22). Talvez isso se explique porque, de fato, haveria imensas dificuldades em vincular as formulações presentes nas obras de Ratzel aos reducionismos estatísticos e aos determinismos, sobretudo econômicos e ambientais, presentes nas análises geodemográficas da atualidade.

Acreditamos, no entanto, que não haveria qualquer dificuldade em vincular algumas dessas formulações àquelas abordagens populacionais que estamos denominando de solidárias aos interesses dos que, por exemplo, são obrigados a migrar. Para isso, bastaria relacionar algumas das idéias presentes nas principais obras de F. Ratzel, que uma espécie de sistema de referências, com grande capacidade de oferecer suporte ao conhecimento solidário a que nos referimos, facilmente se evidenciaria.

As obras a que nos referimos são, na sequência cronológica de suas publicações, Anthropogeographie, Völkerkunde, Politische Geographie e Die Erde und das Leben. Delas destacaríamos, no mínimo, o seguinte: da Anthropogeographie (1882-1891), a afirmação dos vínculos existentes entre populações e territórios ou entre dimensões antropológicas e geográficas, a relatividade das interações entre todos os elementos constituintes do planeta ou a unidade/diversidade desses mesmos constituintes, a proposta de adoção do método hologeico — "abraçador de toda a Terra" —, e, em decorrência disso, a contraposição aos enfoques determinísticos que dependem de uma única dimensão (seja ela qual for) para elaborar análises das atitudes humanas; de Völkerkunde (1885-1888), interessaria recuperar a idéia de humanidade ("um todo, diverso em suas manifestações"), a crítica aos enfoques viciados pelo evolucionismo linear na análise dos povos e a admissão de que todos os povos têm história, religiosidade e a faculdade da razão; de Politische Geographie (1897) por sua vez, seria interessante recuperar a importância conferida à influência da dimensão político-territorial na movimentação dos povos e, também, o conjunto de críticas feitas por Ratzel àquelas abordagens por ele consideradas como simplistas ou reducionistas, seja porque desprezam o fator espacial, seja porque pretendem estabelecer leis universais das migrações ou, então, porque simplesmente ignoram o fato de que todos os Estados resultam de misturas étnicas; por fim, de Die Erde und das Leben (1901-1902), é possível recuperar idéias que, reafirmando a concepção hologeica, reforçam os nexos existentes entre todos os seres humanos e destes com o espaço terrestre ou até mesmo com o cosmos e, conseqüentemente, nos exortam a formular abordagens integradoras das diversas áreas de conhecimento, da história à geografia, ou da antropologia à biologia(23).

Em moldes semelhantes aos já manifestados nas suas obras anteriores, aí, nessa sua última grande obra, o reconhecimento dos traços comuns a todos os seres humanos e da característica mestiça de todos os seus agrupamentos, tornam-se idéias recorrentes e culminam com a afirmação de convicções cosmopolitas, favoráveis a uma cidadania universal. Tais posições são explicitamente manifestadas por Ratzel quase ao final do segundo volume de Die Erde und das Leben. Vale a pena reproduzi-lo:

"É próprio do nosso tempo! Fala-se de ciência universal, de comércio mundial, de política mundial, e se busca ao mesmo tempo ansiosamente evitar cada sinal que possa revelar que as barreiras nacionais existem para estreitar o olhar que aspira a abraçar o mundo inteiro. Mas é evidente que no progresso da civilização, no incremento da cultura, das comunicações, dos Estados se inscreve uma tendência em direção a uma cidadania universal (24)".


Como se vê, desse conjunto de idéias é mesmo possível extrair, sem muitos esforços, inspirações e suportes para abordagens que queiram atender o chamado daquelas exigências ético-cognitivas a que há pouco nos referimos, pois em formulações inspiradas por tais idéias haverá uma tendência de se valorizar positivamente a mestiçagem, o cosmopolitismo, a unidade/diversidade da humanidade, as conexões telúricas dos seres humanos e a multiplicidade de dimensões que governam suas dinâmicas e que determinam seus deslocamentos.

Abordagens lastreadas por príncipios pautados nesses valores, ao lado de condutas analíticas preocupadas com a conexão disciplinar, muito poderiam contribuir para iluminar os debates contemporâneos acerca das dinâmicas das populacões, especialmente sobre os motivos e decorrências de seus deslocamentos. Essa contribuição será tão mais efetiva quanto mais essas abordagens e condutas se caracterizarem por agregar aos debates premissas de tolerância, de não segregação, de não hierarquização valorativa de culturas, de universalização de direitos e de adoção de meta-possibilidades como as de uma cidadania universal.
 

Do "globalitarismo" à democracia planetária

Nos discursos e análises da geografia da população raramente vemos incorporados essas premissas, valores ou princípios que podemos extrair das formulações ratzelianas. Tudo se passa como se a consideração daquilo que poderíamos chamar, em resumo, de dimensão antropogeográfica, estivesse ausente de grande parte das considerações produzidas por geógrafos.

Mas esse não é o caso de inúmeros outros desenvolvimentos que se podem encontrar em abordagens de pensadores não necessariamente vinculados aos estudos populacionais, demográficos ou geodemográficos. Implícita ou explicitamente, muitos deles repercutem condutas de análise bastante identificadas com alguns dos principais valores e princípios negligenciados por muitos dos analistas exclusivamente dedicados aos assuntos populacionais.

Edgar Morin e A. B. Kern, por exemplo, em seu livro Terra-Pátria(25), argumentam a favor do reconhecimento do planeta como pátria comum a todos os seus habitantes, independentemente de suas condições de nacionalidade e dos distintos universos culturais em que, voluntária ou compulsoriamente, estejam inseridos. Especialmente em um dos seus capítulos, sugestivamente denominado de "O Cartão de Identidade Terrena", os autores sugerem que essa cidadania de caráter universal, ou, mais propriamente, essa espécie de anticidadania, deveria ser aceita como um direito de todo e qualquer habitante da Terra, apenas pelo fato de ele existir no planeta e, naturalmente, ser resultado de uma dupla condição identitária, nem sempre bem considerada ou devidamente reconhecida quanto a importância e equivalência de suas deteminações: as identidades bio-física e sócio-cultural, ou, numa palavra, a identidade bioantropológica(26).

É essa dupla condição que ao mesmo tempo aproxima e afasta os seres humanos. Por um lado ela é a força-motriz que produz a tremenda diversificação que os caracteriza e por outro, por seu sentido inexcapável a todos, indica o processo de unidade que para o conjunto deles se estabelece. Segundo os autores de Terra-Pátria, essa dinâmica pode ser assim descrita:

"Apesar desta diáspora, apesar das diferenciações físicas de tamanho, de cor, de forma de olhos e nariz, não obstante as diferenças de culturas e de linguagens tornadas ininteligíveis, entre si, de ritos e usos tornados incompreensíveis uns aos outros, de crenças singulares tornadas irredutíveis umas às outras, em toda a parte houve mito, em toda parte houve racionalidade, em toda parte houve estratégia e invenção, em toda parte houve dança, ritmo e música. Em toda parte, é verdade, expressas ou inibidas houve desigualdades nas culturas, no prazer, no amor, na ternura, na amizade, na cólera, no ódio, assim como proliferação imaginária e, por mais diversas que sejam as suas fórmulas e dosagens, por toda a parte e sempre houve mistura inseparável de razão e de loucura (27)."
No entanto, interesses de sedimentações nacionais, ideológicas, religiosas, econômicas ou até mesmo de algumas das formas de condução, transmissão e construção do conhecimento, têm invariavelmente ocultado essa identidade complexa — ao mesmo tempo una e diversa, bio-física e cultural — dos seres humanos, obstruindo os acessos a uma compreensão mais integral de nossa condição.

Tais interesses investem na redução de nossa identidade, pois ocultar ou obstruir essas suas características de complexidade contribui para evidenciar apenas aquilo que se manifesta ou como diverso ou como semelhante.

O fato é que seja para sedimentar e fortalecer barreiras, que em nome desses interesses são construídas, ou para atropelar diferenças, esgarçando as fronteiras que tradições das mais diversas estabeleceram, sempre se pode apelar para um dos dois possíveis reducionismos que nossa identidade complexa possibilita: o da parte, que só enxerga e realça as diferenças e incompatibilidades, ou o do todo, que só enxerga destinos comuns, humanidade, seres palanetários, com mesmas vontades, mesmos potenciais de consumo...

Vandana Shiva, em seu livro Biopirataria, a pilhagem da natureza e do conhecimento, é quem melhor nos decreve as conseqüências nefastas promovidas pela manipulação oportunista dos diversos reducionismos:

"O que acontece na natureza acontece na sociedade. Quando a homogeneização é imposta a diversos sistemas sociais por meio da integração global, as regiões começam a desintegrar-se uma após a outra. A violência inerente à integração global centralizada, por sua vez, gera violência entre suas vítimas. As condições de vida diária passam a ser cada vez mais controladas por forças externas e os sistemas de governo local se deterioram; as pessoas apegam-se às suas várias identidades como fontes de segurança em um período de insegurança. Tragicamente, quando a causa dessa insegurança é tão distante que não se pode identificá-la, vários povos antes em convivência pacífica começam a observar-se com medo. As marcas da diversidade tornam-se fraturas; a diversidade passa a ser então justificativa da violência e da guerra, como vimos no Líbano, na Índia, em Sri Lanka, na Iugoslávia, no Sudão, em Los Angeles, na Alemanha, na Itália e na França. À medida que os sistemas locais e nacionais de governo tornam-se inoperantes sob o impacto da globalização, as elites locais tentam agarrar-se ao poder manipulando os sentimentos étnicos e religiosos que surgem como reação(28)".


Portanto, quando são adequada e oportunisticamente manejados, é possível transformar quaisquer um dos mencionados reducionismos em argumentos e fundamentos que amparam e justificam ideías ou ações que ou se nutrem das vantagens auferidas pelos estímulos às incompatibilidades dos agrupamento humanos, ou então, se for este o interesse, extraem seus benefícios da receptividade que esses agrupamentos possam apresentar aos processos de homogeneização.

Se, ao contrário, é à divulgação do princípio da identidade complexa do ser humano — unitas multiplex(29) — que se dedicam os maiores esforços, serão os interesses reducionistas aqueles que poderão vir a ser questionados e prejudicados. Nesse caso, em que prevalece a consciência de tal princípio, barreiras geradoras de intolerância (nacionais, religiosas, culturais, etc.) ou processos homogeneizadores, monocultores, que ameaçam diversidades, passam a ser vistos como o que de fato são: ameaças tanto para cada um dos diferentes agrupamentos humanos como para o seu conjunto.

Edgar Morin, em uma de suas obras mais recentes, na qual sugere alguns princípios que em sua opinião deveriam nortear os processos educacionais(30), desenvolve algumas reflexões das quais poderíamos extrair importantes argumentos favoráveis ao combate das mencionadas ameaças, como, por exemplo, na seguinte passagem:

"A diáspora da humanidade não produziu nenhuma cisão genética: pigmeus, negros, amarelos, índios, brancos vêm da mesma espécie, possuem os mesmos caracteres fundamentais de humanidade. Mas ela levou à extraordinária diversidade de línguas, culturas, destinos, fontes de inovação e de criação em todos os domínios. A riqueza da humanidade reside na sua diversidade criadora, mas a fonte de sua criatividade está em sua unidade geradora(31)."


Considerar tais fatos e características, significa entender que obstruir a diversidade empobrece o conjunto dos seres humanos e impedir a percepção ou o exercício daquilo que o autor chama de "caracteres fundamentais de humanidade", que nos indicam os traços comuns existentes entre todos os agrupamentos humanos, ameaça o manancial do qual todo ser humano, consciente ou inconscientemente, se nutre de sua própria humanidade.

Associando-se às características naturalmente constituídas por dinâmicas físicas e biológicas, que desde muito antes da presença humana produziam o caleidoscópio terrestre, a diáspora humana povoou a Terra de humanidade. Os deslocamentos humanos, portanto, acrescentaram dimensão antropológica, cultural, às dimensões físicas e biológicas que até então produziam autonomamente a diversidade das paisagens terrestres. Dessa forma, toda diversidade biológica ou física passou também a ter conteúdo cultural e toda diversidade cultural passou a se nutrir e a se identificar das características dos ambientes em que se desenvolveram.

Mesmo que tal processo não tenha se verificado ao mesmo tempo em todos os lugares, o fato é que há um determinado momento, e não importa o grau de (im)precisão com que possamos indicá-lo, a partir do qual a dimensão humana passou a ser parte indissociável da dinâmica do planeta como um todo e de cada uma de suas partes.

Em suma, as migrações humanas quando consideradas no contexto ampliado da própria história e constituição do planeta, podem e devem ser interpretadas como parte de sua natureza, como fator de manutenção de seu equilíbrio e responsável, junto com outros fatores, pelas características concomitantes de diversificação e unidade das suas paisagens. Considerar, portanto, os movimentos migratórios sob a ótica dessa dimensão, que alguns dos autores mencionados preferem designar por antropológica, significa conferir importância para essa vocação complexa — diversificadora/unificadora — que os caracterizam e, conseqüentemente, apontar para o sentido mais amplo que esses movimentos representam, independentemente dos motivações episódicas e/ou conjunturais que possam tê-los desencadeado em cada situação e momento histórico particular.

Os tempos atuais, exaustivamente caracterizados como globais, mundializados etc., podem ser vistos como uma espécie de ápice do processo a que estamos nos referindo. A dimensão antropológica e sua vocação de dotar de humanidade o conjunto do planeta, estende-se, hoje, até os limites do geóide. Nesse processo, não custa lembrar, cada "pedaço" de humanidade, em contrapartida, dotou-se também das dimensões telúricas (físicas, químicas e biológicas) e sócio-culturais inerentes à própria história geográfica do planeta.

Sendo assim, melhor carcterizaríamos esse processo de mútuas influências que ao longo da história das migrações humanas se estabeleceu, e segue se estabelecendo, entre os grupos humanos, entre as pessoas e os lugares, se a ele nos referíssemos como sendo um processo balizado por uma dimensão que sintetize as reciprocidades e concomitâncias de fundamentos antropológicos e geográficos: a dimensão antropogeográfica, numa palavra.

Valorizar a consideração dessa dimensão, por todos os motivos que acabamos de expor, impõe-se como um pré-requisito à elaboração de abordagens e análises populacionais solidárias aos seres humanos e valorizadoras de suas liberdades integrais.
 

Bibliografia

BEAUJEU-GARNIER, J. Geografia de População. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. 437 p.

GEORGE, P. Geografia da População, 2ª ed. São Paulo: Difel, 1971. 119 p.

LE BRAS, H. Los límites del planeta/ Mitos de la naturaleza y de la población. Barcelona: Ariel, 1997. 256 p.

MORIN, E. & KERN, A. B. Terra-Pátria. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. 163 p.

MORIN, E. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo, Brasília: Cortez-Unesco, 2000. 118 p.

PUYOL, R., ESTEBANEZ, J., MENDEZ, R. Geografia Humana. Madrid: Catedra, 1995. 727 p.

SANTOS, M. Por uma outra globalização/ do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. 174 p.

SHIVA, V. Biopirataria/ A pilhagem da natureza e do conhecimento. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. 152 p.

RATZEL, F. La Terra E La Vita/ Geografia Comparativa (Vol. II). Torino: Unione Tipografico-Editrice, 1907. 836 p.

UNFPA- United Nations Population Fund. Population Issues/ Briefing Kit 2000. ,www.unfpa.org/ disponível em março de 2001.

Notas

1. "Todos contam. Estatísticos contra a xenofobia, pela democracia e pela tolerância". Trata-se de campanha promovida pelo Statistisches Bundesamt (Escritório de Estatísticas Oficiais da Alemanha), cujas justificativas, símbolos e metas podem ser verificados no seguinte endereço: http:/www.statistik-bund.de.

2. Puyol, Estebanez e Mendez, 1995, p. 52.

3. Segundo Puyol, op. cit., esses trabalhos pioneiros são:
GEORGE, P. Introduction à l'étude géographique de la population du monde. Paris: P.U.F., 1951.
TREWARTHA, G. A case for population geography. Annals Assoc. Amer. Geog., 43.2 (1953).

4. Le Bras, 1997, p. 214.

5. Beaujeu-Garnier, 1971, p.19.

6. George, 1971, p. 10.

7. Ibid., p. 9.

8. Beaujeu-Garnier, 1971, p.19

9. Cf. Le Bras, 1997, p. 197-211.

10. Ibid., p. 209.

11. Ibid., p. 210.

12. Cf. UNFPA, 2001.

13. Ibid., cap. 6.

14. UNFPA, Replacement Migration, www.un.org/esa/population/unpop.htm disponível em , em março de 2001.

15. Ibid.

16. Santos, 2000

17. Ibid., p. 20.

18. Ibid., p. 55

19. Segundo UNFPA, 2001: "A migracão internacional também está exigindo maior atenção. Embora os migrantes representem ainda cerca de 2 por cento da população mundial, aumenta o número — atualmente, 125 milhões — de pesoas que vivem fora de seus países de origem (incluindo refugiados e imigrantes sem documentos)".

20. Puyol, 1995, p. 52.

21. Aqui tomamos a liberdade de remeter o leitor para outros trabalhos de nossa própria autoria, nos quais todas as afirmações que aqui fazemos com relação às obras de F. Ratzel poderão ser verificadas, inclusive estas últimas — sobre o caráter não científico de suas formulações —, originalmente manifestada por Lucien Febvre em sua clássica obra A Terra e a evolução humana. São eles:

"Ratzel: Releituras Contemporâneas. Uma reabilitação?". Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografia y Ciencias Sociales, nº 25, 23 de abril de 1997. Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/b3w-25.htm.

"Diálogos entre as Ciências Sociais: um legado intelectual de Friedrich Ratzel (1844-1904)". Biblio 3W, nº 34, 10 de junho de 1997. Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/b3w-34.htm.

"Geografia e complexidade". Scripta Nova. Revista Electrônica de Geografia y Ciencias Sociales, nº 34, 15 de febrero de 1999. Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/sn-34.htm.

22. Dizemos que isso acontece, também nesse tema, pois em outra ocasião, em trabalho apresentado no II Colóquio Internacional de Geocrítica (Innovación, Desarrollo y Medio Local), já discutimos a negligência histórica igualmente praticada com as contribuições de F. Ratzel em outra especialidade geográfica: a biogeografia. Esse trabalho — "Novos fundamentos para a biogeografia: a revolução biotecnológica e a cartografia dos mananciais de bio-sociodiversidade" —, foi publicado em Scripta Nova. Revista Electrônica de Geografia y Ciencias Sociales, nº 69(17) de 1° de agosto de 2000, e está disponível no seguinte endereço: http://www.ub.es/geocrit/sn-69-17.htm.

23. Todas as afirmações e idéias atribuídas a Ratzel são extraídas de suas obras. Em função dos propósitos deste artigo, nos eximimos de citá-las na integra ou reproduzir os trechos que as amparam, pois isso aumentaria desnecessariamente o tamanho do artigo. Tomamos, no entanto, mais uma vez , a liberdade de remeter o leitor interessado em conferir as idéias e menções às obras de Ratzel, a consultar os trabalhos de nossa autoria mencionados na nota 21. Neles será possível encontrar todas as citações e reproduções de trechos das obras originais de F. Ratzel que amparam o conjunto de idéias que nesse parágrafo arrolamos.

24. Ratzel, 1907, p. 817.

25. Morin e Kern, 1993.

26. Ibid. , p. 48.

27. Ibid. , p. 47.

28. Shiva, 2001, p. 129

29. Morin e Kern, 1993, p. 48.

30. Nos referimos a Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro (Morin, 2000) em que o autor avalia os principais temas e/ou princípios que deveriam ser considerados em tais processos: 1) As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; 2) Os princípios do conhecimento pertinente; 3) Ensinar a condição humana; 4) Ensinar a identidade terrena; 5) Enfrentar as incertezas; 6) Ensinar a compreensão; 7) A ética do gênero humano.

31. Morin, 2000, p. 65.
 

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